Dossiê
Abordagens possíveis do ser religioso, do manifestar a fé e do viver experiências de crença: religiões e religiosidades a partir da história ensinada[1]
Possible approaches of being religious, of manifesting faith and of living belief experiences: religions and religiosities from the history taught
Abordagens possíveis do ser religioso, do manifestar a fé e do viver experiências de crença: religiões e religiosidades a partir da história ensinada[1]
Revista Tempo e Argumento, vol. 10, núm. 24, pp. 221-246, 2018
Universidade do Estado de Santa Catarina
Recepción: 18 Octubre 2017
Aprobación: 25 Abril 2018
Resumo: Este artigo apresenta algumas reflexões sobre os significados e as possibilidades de abordagem de religiões e religiosidades no ensino de história, apresentando também os possíveis sentidos de aprendizagens sobre experiências religiosas na disciplina, bem como as emergências de suas concepções, que podem ser problematizadas nas aulas de história. Trata-se dos significados teóricos de narrativas históricas que são construídas e que podem ser acionadas no ensino de história de modo a propor (condições de) possibilidades de aprendizagem histórica, de ser e viver religiosamente ou não, e de realizar escolhas de ação relativas ao senso de liberdade (religiosa) do presente.
Palavras-chave: Ensino de História, Religiões e religiosidades, Tempo Presente.
Abstract: This text presents some reflections about the meanings and possibilities of approaching religions and religiosities in history teaching, also presenting the possible senses of learning about religious experiences in the discipline, as well as the emergencies of their conceptions that can be problematized in the lessons of history. These are the theoretical meanings of historical narratives that are constructed and can be activated in the teaching of history in order to propose (conditions of) possibilities of historical learning, to be and live religiously or not, and to make choices regarding the sense of (religious) freedom of the present.
Keywords: History Teaching, Religions and Religiosities, Present Tense.
Este artigo se apresenta como um ensaio sobre os significados e possibilidades de abordagem de religiões e religiosidades no ensino de história.[2] Ao partir do pressuposto de que o ensino de história forma (para a) vida, forma humanos atentos aos efeitos das temporalidades, às mudanças, às ações sociais no tempo e aos entendimentos críticos do presente na construção de relações humanas baseadas em ideais de igualdade, liberdade e respeito (RODRIGUES; SCHMIDT, 2017, p. 171), buscamos perceber especificidades teórico-metodológicas e os sentidos construídos ao se acionar religiões e religiosidades na história ensinada. Por religião, numa abordagem cultural da história, entende-se “um sistema mais ou menos aberto de crenças e práticas transmitidas historicamente [...] e que orientam comportamentos, ações e relações de indivíduos e coletividades”, compondo assim, “estilos de vida, modos de pensar, sentir e agir, de conceber a vida, o mundo, a morte e o além” (BENATTE, 2014, p. 65).
Como este artigo, de modo muito particular, pauta-se nas abordagens de religiões e religiosidades no ensino de história, acabamos por apresentar problematizações que considerem a compreensão e o respeito às diferentes formas de ser ou não ser religioso e de se estudar e aprender sobre essas distintas possibilidades, indo de encontro aos projetos políticos de cunho conservador, calcados em pressuposições anticonstitucionais e antidemocráticas, como o Escola sem Partido[3] e, também, às definições do Supremo Tribunal Federal, de setembro de 2017, que considerou constitucional o ensino religioso confessional em escolas públicas brasileiras.[4] Diante desse contexto, em que o ensino de história é (in)diretamente afetado, ganham relevância as reflexões sobre os sentidos e as especificidades das abordagens históricas (de temas religiosos), feitas no ensino de história.
A proposta do artigo aproxima minimamente concepções teórico-metodológicas da história e do ensino de história com o campo de pesquisas e estudos em história das religiões e religiosidades. Longe de pretender apresentar práticas pedagógicas ou métodos de ensino, o artigo busca refletir sobre o que faz o professor de história quando ensina religiões e religiosidades e os significados das abordagens desses temas no ensino de história, especialmente quando se consideram os sentidos desse ensino.[5]
Sobre a ideia de pensar religiões e religiosidades no e a partir do ensino de história, levantamos as seguintes problematizações: o que parece ser relevante e fundamental quando se ensinam religiões e religiosidades na perspectiva histórica, no ensino de história? Qual o significado de ensinar e aprender sobre religiões e religiosidades na disciplina história? De onde emergem as concepções de religiões/religiosidades possíveis de serem problematizadas no ensino de história?
Não pretendemos avaliar como as religiões e religiosidades são ou devem ser abordadas no ensino de história. Também não temos intenção de indicar maneiras/modos tidos como ideais ou adequados para realizar tais abordagens. Não estaremos a indicar receitas ou a dizer como e o que o professor de história deve fazer em sala de aula, e nem a demonstrar metodologias ou práticas de ensino.
Estamos pensando no significado teórico da abordagem de religiões e religiosidades, não apenas do ponto de vista histórico, mas do ponto de vista da história ensinada. Desse modo, em primeiro lugar e mais demoradamente, elencamos alguns pontos (complementares e interligados) que julgamos ser pertinentes e fundamentais, do ponto de vista histórico, ao acionar religiões e religiosidades no ensino de história; depois, apresentamos brevemente as concepções e produções sociais a partir das quais o professor de história pode abordar determinadas compreensões sobre religiões/religiosidades; por fim, destacamos os possíveis significados da abordagem desses temas no ensino de história.
Aspectos fundamentais ao se abordar religiões e religiosidades na perspectiva histórica, no ensino de história
1) As experiências religiosas precisam ser compreendidas a partir da contextualização, da identificação do contexto de desenvolvimento das práticas e de construção de determinados discursos.
A historiadora Eliane Moura da Silva (2006, p. 225) destacou que “qualquer criação definida como ‘religiosa’, entendendo-se criação como produção de sentidos, pertence a uma determinada cultura compartilhada, a um universo cultural onde se desenvolve”. Nesse sentido, segundo a pesquisadora, “tradições espirituais”, “mitológicas” e “simbolismos”, “correspondem a um período histórico” e estão “dentro de uma comunidade particular de interpretação, pois não existem fora de um suporte cultural e histórico”. Nessa perspectiva, por exemplo, as Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, de 2002, já destacavam a necessidade de se “situar as diversas produções da cultura”, entre elas “a religião”, “nos contextos históricos de sua constituição e significação”. Em outras palavras, significa reconhecer que toda e qualquer expressão religiosa deve ser compreendida e ensinada, do ponto de vista histórico, quando se considera e se questiona o “quando”, o “onde”, o “quem”, o “como” e o “porquê”. As experiências, as práticas e os discursos religiosos são relativos a determinados sujeitos e a determinada temporalidade, e só podem ser compreendidos quando estudados os lugares sociais, os interesses, as condições e o universo cultural do período em que se desenvolveram ou eram realizados.
A historiadora Laura de Mello e Souza (2009, p. 22), ao escrever um novo prefácio ao seu livro O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial, reforçava sua abordagem histórica, destacando o estudo como sendo “sobre o sentido” que a feitiçaria “pôde assumir no seio de relações históricas muito peculiares, tecidas a partir de tradições culturais múltiplas”, enfatizando assim o caráter contextual da análise. Assim, por exemplo, ao ensino de história cabe compreender esses sentidos de religiosidade em relações históricas específicas, o que pode significar entendê-las na sua temporalidade, na sua historicidade, no movimento de embates que as constituíram. No caso da religiosidade colonial, implica entender a dimensão da criação, recriação e mudança pelas quais passaram as formas de crer e de se acionar recursos à magia e feitiçaria por sujeitos específicos que viveram em determinado espaço e tempo, em meio a conflitos, disputas, relações de poder, contradições, etc.
Contextualizar práticas, vivências e discursos religiosos, portanto, significa assumir a sua condição histórica, temporal, mutável e relativa à diferença, rompendo com noções essencialistas que consideram o estudo das origens como um começo que explica[6] (ou que basta para explicar) e que identifica práticas supostamente universais.[7] Como bem enfatizou André Vauchez (1995, p. 08) ao apresentar as espiritualidades como seu objeto de estudo: “a necessidade de uma apresentação histórica desses fenômenos religiosos nos levará fatalmente a enfatizar as mutações”. Se o ensino de história ensina a vida e para a vida, deve ensinar a mudança e para a mudança, pois, como já alertava Lucien Febvre (2011, p. 75), “viver é mudar”.
2) É relevante a tentativa de compreensão dos pensamentos e sentimentos daqueles que praticavam/detinham/atuavam em determinados universos religiosos a partir da função desempenhada pelos indivíduos ou grupos.
Esse é um movimento importante porque relativiza discursos que simplificam e tornam homogêneos determinados aspectos de religiões/religiosidades e considera que, em dado período e sociedade, os entendimentos e as práticas religiosas poderiam ser compartilhados, porém compreendidos de diferentes formas, a contar pela função e pelo papel social ocupados por múltiplos sujeitos. A confissão religiosa poderia ser a mesma, mas os entendimentos e as vivências poderiam ser diferenciados. Nesse caso, importa não apenas o que as religiões (supostamente) prescrevem, mas como as pessoas elaboram a sua religiosidade.
Citemos dois exemplos. Ao se estudar o catolicismo brasileiro do século XIX, há de se considerar os subsistemas que disputavam espaços de poder e de influência social, como o catolicismo popular – não institucional – de caráter devocional, centrado no culto aos santos e o catolicismo centrado nos sacramentos com mediação do clero secular (STEIL, 2001, p. 16). A diversidade interna ao catolicismo estava presente nas tensões e nas diferenças entre os significados e as crenças que cada grupo nutria e defendia (STEIL, 2001, p. 17), e essas diferenças precisam ser consideradas no ensino de história, pois geram distintas narrativas, mesmo entre uma mesma confissão religiosa. Outro exemplo diz respeito aos entendimentos de magia e religião na Idade Média. Na Inglaterra medieval, o pensamento sobre crenças religiosas e atividades devocionais poderia variar conforme os sentidos que lhes eram atribuídos ou pelo clero ou pelos leigos (RIDER, 2014, p. 30). Algumas práticas advindas da crença em fadas e seres sobrenaturais poderiam ser aceitas, outras deveriam ser rejeitadas, mas todas elas – com predomínio das decisões do clero sobre as linhas divisórias entre magia e religião – respondiam de diversas formas ao cotidiano das pessoas e às preocupações, podendo ser rotineiras ou exóticas, perigosas ou úteis, segundo distintas compreensões.
Assim, a prática religiosa, o discurso religioso, a aceitação dos dogmas, as expressões de sentimentos religiosos compartilhados por dados sujeitos históricos serão sempre relativos ao lugar que esses sujeitos ocupam no seu universo religioso e relativos à função desempenhada por cada um deles.
3) A busca por uma compreensão crítica sobre como, em um dado contexto, os sujeitos lidam e significam suas religiões e suas práticas religiosas é importante quando o tema religiosidades é abordado no ensino de história.
Essa perspectiva é relevante porque considera a necessidade de não projetarmos nossos valores, nossas expectativas prévias e nossos entendimentos sobre as significações e as práticas religiosas construídas e experenciadas em um outro tempo. Ou seja, quando estudamos e ensinamos sobre religiões/religiosidades na disciplina história, devemos estar atentos ao diferente, buscando compreendê-las no seu tempo, mesmo que esse tempo seja cronologicamente curto e próximo ao nosso presente imediato. Entender os significados religiosos e as verdades dos fenômenos religiosos como construção realizada por determinados sujeitos e com uma duração delimitada permite a complexificação e não a naturalização das religiões/religiosidades.
Aqui se insere o “risco do anacronismo”, surgido ao se “pensar o passado com conceitos contemporâneos” (PROST, 2008, p. 117), embora, como apontou Ana Maria Monteiro (2012, p. 195), na aula de história se cria um contexto comunicativo particular que utiliza de referências de vivências dos estudantes e do contexto sociocultural mais amplo para tornar possível a atribuição de sentidos aos objetos de estudo, que estão “em disputa com outros sentidos possíveis”. Se há o uso e a possibilidade do anacronismo na produção do conhecimento (histórico escolar),[8] existe a necessidade de “vigilância epistemológica para que sejam evitadas simplificações e distorções” (MONTEIRO, 2012, p. 206).
André Vauchez (1995, p. 08) ao estudar a espiritualidade no ocidente medieval, a dimensão religiosa da vida que conduz, pela mística, ao estabelecimento de relações pessoais com Deus, enfatizou que havia lugar “no próprio seio da ortodoxia, para diversas maneiras de interpretar e viver a mensagem cristã, isto é, para diferentes espiritualidades”. Em outras palavras, e muito próximo do que estamos considerando como fundamental de ser abordado no ensino de história, trata-se “da maneira pela qual” a espiritualidade “é vivida por homens historicamente determinados”. Esse é justamente o principal elemento da análise histórica que enfatiza não o conceito filosófico de religião, mas “a percepção dos modos diversos como os diferentes sujeitos concebem o religioso e o vivenciam como uma experiência concreta” (BENATTE, 2014, p. 65).
Vejamos outro exemplo de apreço crítico, no ensino de história, de como os sujeitos significam suas práticas religiosas. Ao se estudar religiões de matriz africana, notadamente o Batuque e o Candomblé, percebemos que um dos elementos que explica suas ritualísticas religiosas está na utilização e sacralização de animais. Ao ensino de história cabe a compreensão pela historicização destas práticas, de tal modo que expliquem, por exemplo, determinadas posturas intransigentes e preconceituosas na contemporaneidade. Assim, o ensino de história pode desmistificar a construção de narrativas que acentuam a (suposta) crueldade e desumanidade para com os animais nas religiões afrobrasileiras, cujos argumentos são elaborados provavelmente por sujeitos reunidos “em conversas de mesa, ao redor de um filé aromático e fumegante”.[9] Porém, mais do que isso, que compreenda e explique os significados historicamente construídos da relação humana com o sagrado – motivos de controvérsias públicas contemporâneas – como uma prática cultural constantemente ressignificada no tempo. Não se trata, vale ressaltar, de “oferecer uma visão ‘crítica’ a priori”, mas de ambicionar um ensino que desenvolva a crítica a partir da problematização de discursos (DELGADO; FERREIRA, 2013, p. 31-32). Essa atenção às diferentes significações do elemento religioso no tempo não elimina a problematização do passado pelo presente, como veremos no próximo tópico.
4) A percepção de que nossas explicações contemporâneas sobre religiões e religiosidades de um outro tempo são relativas ao nosso presente, aos nossos problemas, às nossas inquietações; a visão e interpretação do passado sempre parte do filtro do nosso presente e de nossas escolhas teóricas e políticas.
Pensar que nosso olhar para vivências religiosas de um outro tempo, visando a problematizá-las no ensino de história (poderíamos dizer também, o olhar do professor de história) é carregado, conscientemente ou não, de inquietações, de perguntas que são relativas ao presente, ao momento em que se vive. Quando o professor seleciona o conteúdo, quando elabora sua aula, quando dialoga com os estudantes, quando propõe atividades pedagógicas que acionam o tema das religiões, ele os faz já com determinadas interrogações que partem do seu presente. A abordagem do tema religiões/religiosidades, em sala de aula, implica também escolhas conceituais, que são teóricas, filosóficas, políticas (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2016b, p. 34), sejam elas explícitas ou não. Portanto, o professor de história também problematiza e discute como o passado é relatado, conceituado e nomeado no presente, desde o lugar singular que ocupa no mundo.
A partir das experiências, das subjetividades, das escolhas teóricas e políticas do presente problematizamos, selecionamos ou descartamos, arrumamos, ordenamos e construímos significados para as práticas religiosas do passado. Desse modo, entendemos o passado das relações humanas com seus universos religiosos e o explicamos “adequadamente ao tempo em que se está”, pois dialogamos com o passado “mediante o qual se busca desvendar a questão intrigante que se põe, hoje, sobre o ontem” (MARTINS, 2011, p. 08-10). E assim, a relação com a temporalidade, no tempo presente, demarca determinadas problematizações possíveis (e às vezes necessárias) de serem pensadas e construídas, como veremos na sequência.
5) A consideração de que os modos como as sociedades contemporâneas se relacionam com o passado e com a história, implicam dados entendimentos sobre possibilidades de problematização de religiões/religiosidades no ensino de história.
O historiador Henry Rousso, no livro “A última catástrofe. A História, o presente, o contemporâneo” destacou que diante das relações que as sociedades atuais mantêm com o passado, o lugar da história – e poderíamos dizer, do ensino de história – “mudou de natureza”. Assim, no senso comum, “o passado se tornou um problema” a resolver, sendo comum dizer-se que os grupos e os indivíduos devem enfrentá-lo, confrontar-se com ele, superá-lo e dominá-lo. Ainda segundo Rousso, existe a ideia de que o passado deve ser arrancado do esquecimento, tornando-se matéria sobre a qual se pode, ou se deve agir para “adaptá-lo às necessidades do presente”, como campo da ação pública. “A exigência de verdade própria da atividade histórica” seria transformada “em exigência social de reconhecimento, em políticas de reparação, em discursos de desculpa e de ‘arrependimento’” (ROUSSO, 2016, p. 29-30). Nesse sentido, o historiador Carlo Ginzburg (2009, p. 20) alertou para a superficialidade de insistir na memória como elemento eficaz para “cicatrizar as feridas do passado”. Os pedidos de perdão e de desculpas sobre eventos “que se verificaram muitos séculos antes soam de modo ambíguo. Quem tem o direito de perdoar a quem?”[10]
Quando se estuda as relações entre missionários e indígenas contemporâneos, por exemplo, sabe-se que estas relações não são as mesmas daquelas que ocorreram no passado e que estão lá para que as estudemos no presente, ainda que fabriquemos este passado com nossas interrogações. A história do contato entre indígenas e missionários “foi marcada por cisão, dispersão, fusão, desaparecimento e recomposição de muitos desses grupos”. Logo, quando o ensino de história encara práticas, ritos religiosos e crenças de grupos indígenas contemporâneos – embora considere e lide com um “passado sensível” – precisa “decompor as evidências” de modo “a perceber as várias ‘camadas históricas’ depositadas na superfície enganosamente plana que se oferece ao olhar do observador direto” (MONTERO, 2006, p. 15).
O mesmo vale para os discursos de líderes religiosos, como o Papa Francisco, que no dia 20 de março de 2017 pediu perdão a Deus e expressou solidariedade às vítimas. O “perdão a Deus” foi declarado em função dos “pecados e falhas da Igreja Católica cometidos durante genocídio em Ruanda, que deixou mais de 800 mil mortos em 1994”. O Papa teria afirmado: “Imploro o perdão a Deus pelos pecados e faltas da Igreja e de seus membros, entre eles padres, religiosos e religiosas, que cederam ao ódio e à violência, traíram sua missão evangélica”. E ainda: “Manifesto a profunda dor, da Santa Sé e de toda a Igreja, pelo genocídio contra os tutsis e expresso solidariedade às vítimas e a todos que padeceram por esses trágicos eventos”.[11] O Papa estabelece uma relação com esse “passado problema” que precisa ser resolvido e enfrentado no presente, pois responde a determinadas relações humanas com o passado e entendimentos públicos (ao menos o seu público cristão-católico) dos sentidos da religião na vida contemporânea.
Diante disso, os modos como religiões e religiosidades são problematizados no ensino de história implicam aderência ou não, a dados discursos memoriais e a dados usos públicos do passado, como os usos religiosos que são também políticos. Essa consideração é importante porque revela a postura e o sentido do ensino de história diante dos “ódios intermináveis” e das “feridas do passado” contemporâneas (GINZBURG, 2009, p. 20).
6) A tentativa de compreensão sobre como, em um dado presente (geralmente um presente do passado), os indivíduos relacionam a sua fé à sua vida prática cotidiana, de forma a produzir explicações de ordem espiritual/cosmológica para o mundo.
Significa pensar nos vínculos que sociedades, grupos ou sujeitos estabeleceram entre suas religiões/religiosidades e o seu cotidiano e às suas ideias, escritas, oralidades, enfim, às suas narrativas que produziam explicações para a existência, para os fenômenos naturais e sociais, para os modos de vida, as relações políticas e econômicas, etc. Os estudos sobre religiosidade, do ponto de vista histórico, em última instância, visam à elaboração de compreensão de uma sociedade específica, como destacou Laura de Mello e Souza (2016, p. 14). Caso, então, professores de história acionem estes estudos em suas práticas de ensino, poderão vincular, quando possível, reflexões sobre a relação entre práticas rituais e necessidades políticas comunitárias ou inquietações do cotidiano.[12] Implica considerar que o religioso está radicado no campo das relações sociais (BENATTE, 2014, p. 66) e que práticas religiosas e bens simbólicos são “objeto de lutas sociais onde estão em jogo sua classificação, sua hierarquização, sua consagração (ou, ao contrário, sua desqualificação)”.[13]
Na dinâmica cultural, textos, performances e símbolos (inclusive religiosos) “articulam maneiras de ser e estar no mundo e dão significado e sentido ao cotidiano” (Silva, 2006, p. 226). Por exemplo, o ofício das baianas do acarajé, inscrito como patrimônio imaterial brasileiro em 2005, tornou-se para elas uma marca de alteridade, ao associar o acarajé às religiões afrobrasileiras, mas também uma construção simbólica das suas experiências sensíveis, do seu sistema cosmológico (BITAR, 2013, p. 87). Muito mais (e antes) do que uma prática (patrimonializada) de produção de um alimento vinculado a dada identidade, o acarajé ganha o sentido de obrigação religiosa vinculada à Iansã – orixá propulsor da alegria, leveza, amizade, namoros, etc. –, numa lógica religiosa de troca entre o humano e a divindade, como demonstrou a antropóloga Nina Pinheiro Bitar (2013, p. 101), que, sendo ou não patrimonializada, continuará sendo feita, pois responde a demandas cotidianas e está vinculada ao “dar” e “receber” axés.[14]
Compreender esses vínculos entre a crença religiosa e a explicação da vida cotidiana, suspendendo julgamentos sobre qualquer “verdade dos fenômenos religiosos” (GOMES, 2002, p. 20), ao considerar a importância do ensino de história na construção de dados valores voltados à convivência democrática, livre e tolerante, torna-se fundamental. Assim, ao levar em conta a distinção entre o lugar ocupado pelo professor de história e os objetos (religiosos) que aborda na construção do conhecimento histórico escolar, não se discute ou se julga a fé em si, mas se problematiza os discursos e as “verdades” que deixam marcas nas relações sociais, de onde quer que eles sejam produzidos, circulem ou sejam apropriados.
7) A consideração de que nossos entendimentos sobre religiões e religiosidades de um outro tempo (passado ou presente) são provisórios e não constituem verdades inquestionáveis.
A história e o ensino de história não produzem e nem enunciam verdades, apenas elaboram possíveis compreensões parciais e fragmentárias do “universo humano” (FERREIRA; FRANCO, 2013, p. 97). O conhecimento histórico e a construção desse conhecimento em sala de aula não é e não pode querer ser absoluto (CERRI, 2011), de modo que é possível interpretar de acordo com os problemas colocados, as perguntas feitas, os conceitos acionados, as indagações reformuladas (STEPHANOU, 2005, p. 166). Nesse sentido, as interpretações dos vestígios do passado podem ser múltiplas e diferentes, “o que não significa que qualquer interpretação seja válida” (SCHMIDT, 2014, p. 335-336), pois a metodologia exige demonstração do percurso da pesquisa, da construção da prova e da apresentação da “operação historiográfica” realizada, cujo sentido considera que o historiador parte de um lugar social, das práticas de pesquisas e dos procedimentos de análise e da escrita realizada, conforme Michel de Certeau assinala.
Os entendimentos sobre religiosidades que circulam na sociedade também são provisórios e muitas vezes distintos da narrativa histórica escolar. Cabe discutir com os alunos como se constroem as verdades socialmente e culturalmente, a quem elas interessam e a quem servem (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2016b, p. 32). Como apontou Paul Veyne (1989, p. 34-35), “a história não estuda as verdades eternas”, apresentando-se como um “inventário explicativo [...] do que há de social” no humano, “ou mais precisamente das diferenças que apresenta este aspecto social”. Se pensarmos as vivências religiosas do tempo presente, a provisoriedade do conhecimento histórico sobre elas ganha um outro teor, já que esta narrativa está sujeita a constantes “acréscimos, revisões e correções” (DELGADO; FERREIRA, 2013, p. 23). Parafraseando Durval Muniz Albuquerque Júnior (2016b, p. 32), pode-se dizer que a narrativa histórica acionada pelo professor implica sempre uma definição, uma singularização, uma escolha de personagens, uma escolha política (momentânea, provisória), para os temas religiosos que serão tratados. Quando o foco do historiador e do professor são experiências com o sagrado do tempo presente, uma singularidade talvez ganhe destaque e diante da qual o professor de história pode estar atento, conforme anunciam Lucília de Almeida Delgado e Marieta de Moraes Ferreira (2013, p. 23): a excessiva valorização do evento religioso, ou, pelo contrário, sua desconsideração, a partir do instante em que o professor/historiador é “testemunha e ator de seu tempo”, envolvido na aceleração da história.
Religiões e religiosidades problematizadas no ensino de história
Diante das escolhas do professor, que até então tem o direito à “liberdade de ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” (PENNA, 2016, p. 49), vale questionar de onde emergem as concepções de religiões/religiosidades possíveis de serem problematizadas no ensino de história. Podemos destacar que, em sala de aula, o professor pode acionar compreensões sobre religiões/religiosidades advindas de fontes diversas, dentre as quais: concepções acadêmicas, teóricas e conceituais; entendimentos públicos, sociais, comunitários, próprios das experiências da comunidade escolar; e, concepções públicas e midiáticas, notadamente jornalísticas, filmográficas e de redes sociais.
Mesmo que a aula de história se dê em escolas confessionais que primem por uma educação moldada por certos valores morais e religiosos, a abordagem de temáticas diversas relativas à história das religiões e religiosidades estará não apenas, mas diretamente vinculada à escolha do lugar de fala e de narrativa feita pelo professor. Durval de Albuquerque Júnior (2016b, p. 27-28) refere-se à escolha de “um lugar de onde falar”, que implica “não apenas a escolha de uma maneira de exposição [...] mas também a escolha de um lugar político e ético para se situar, uma tomada de posição, uma localização nos embates no plano das ideias, no plano político e no campo dos valores”. Na aula de história, as seleções dos professores estarão em contato direto com as ativas percepções dos educandos, proporcionando, na relação dialógica, aprendizagens e construções de subjetividades (PENNA, 2016, p. 55).
Para além do “lugar” ocupado pela escola, pelo professor e dos múltiplos lugares ocupados pelos estudantes diante de aspectos religiosos da história humana, narrativas históricas sobre diferentes religiões e experiências de práticas religiosas circulam amplamente na sociedade e exercem uma função pedagógica – sobre todos – uma vez que ensinam ao oferecer determinadas versões sobre o passado. Essas concepções sobre o histórico de dadas religiões são produzidas pelos próprios grupos religiosos, pelas narrativas mitológicas, pelos movimentos sociais, pelas memórias comunitárias, pelas redes sociais, pela mídia televisiva, pela música, pelo cinema, pela literatura, enfim, são diversas as narrativas históricas sobre práticas e experiências religiosas que são construídas e circulam socialmente. Portanto, vinculam determinado tipo de conhecimento (histórico) e que podem ser trabalhados e problematizados no sentido de questionar quem os produziu e para quem (ROCHA, 2014).
No ensino de história, as diferentes concepções de religiões ou de práticas religiosas devem ser tomadas como fontes, como códigos construídos por um sistema de representações (PROST, 2008, p. 61). Assim, não servem necessariamente para corroborar explicações ou para legitimar supostas verdades religiosas, mas para promover o entendimento crítico da construção narrativa da história. O mais importante é debater a partir de questionamentos sobre de onde provém tal concepção de religião/religiosidade, quem as elabora, quem e como se apropria, como são ressignificadas, que discursos sobre relações humanas defendem, que linguagem utilizam, como constroem representações sobre a sociedade, sobre o imaginário e sobre o cosmológico. De todo modo, não existe um lugar neutro onde esse procedimento possa se dar, tendo em vista que a escola é o espaço onde convergem diferentes subjetividades, nem sempre convergentes: a do professor, a do aluno e a da própria instituição.
Os diferentes modos de ver e entender religiões/religiosidades precisam ser comparados, relacionados, confrontados. Ao apresentar o livro Orixás e Espíritos, o historiador organizador da obra, Artur Cesar Isaia (2006, p. 9) reconheceu que “espíritos e orixás são familiares à cotidianidade brasileira e aparecem de maneira proeminente tanto em produções científicas, literárias e acadêmicas quanto em produtos culturais de fácil consumo”. Cabe ao ensino de história considerar as versões do passado que circulam socialmente para além da aula de história e problematizá-las, relacioná-las com outras versões, construindo aprendizagens que considerem a relação racional e emotiva que se estabelece com esse passado.[15]
Assim como a história, a história das religiões e religiosidades existe em diferentes instâncias, independentemente da produção acadêmica. No entanto, vale reforçar que a divulgação histórica de movimentos sociais e grupos religiosos institucionalizados deve, em sala de aula, ser problematizada para que se construa a capacidade do “pensar historicamente”.[16] O historiador Luis Fernando Cerri apontou os movimentos de fundamentalismos religiosos como exemplares na produção de compreensão de dada temporalidade, mas de incompatibilização com o pensar historicamente. Segundo Cerri, “qualquer fundamentalismo religioso [...] exclui elementos centrais do raciocínio da ciência histórica, como a relatividade e historicidade da verdade [...] e a ação autônoma do sujeito”.[17] Como exemplo da exclusão da relatividade e historicidade da verdade, destaca que no fundamentalismo “a verdade religiosa é revelada de modo sobrenatural e não está sujeita à discussão”; e como exemplo da exclusão da ação autônoma do sujeito, destaca que no fundamentalismo “os sujeitos são instrumentos para que se realize o que a divindade já havia concebido” (CERRI, 2011, p. 62). O ensino de história compreende as verdades de cada discurso religioso, mas as relativiza enquanto “verdades” para explicações de fenômenos sociais, pois os contextualiza a partir de seu próprio “lugar” discursivo. Assim, o ensino de história possibilita emitir juízo crítico, entender e posicionar-se diante de julgamentos e explicações fragmentárias sobre a sociedade (CERRI, 2011).
Significados de religiões e religiosidades no ensino de história
O ensino de história, quando aborda religiões/religiosidades, possibilita a compreensão de diferentes experiências religiosas no tempo e o entendimento de que estas experiências são descontínuas. Mas o ensino de história traz, no seu horizonte, o compromisso com a cidadania, com o aprendizado da convivência com o outro, com o aprendizado do compartilhar e viver com o diferente, o estranho, o distante (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2016a). Essas diferentes maneiras de ser ou não religioso, em diferentes temporalidades, se exprimem por meio de símbolos, cujos significados podem ser compreendidos a partir do estudo e conhecimento da cultura que os criou historicamente (BENATTE, 2014, p. 65).
O ensino de história pode problematizar a história vivida, a atuação e o papel dos agentes sociais na vida prática, cotidiana, especialmente da fluidez das identidades religiosas, das perspectivas que apontam para o elevado trânsito contemporâneo por entre práticas religiosas diversas e dos significados híbridos que estas assumem nas configurações identitárias. A “concorrência” religiosa na contemporaneidade favorece muito mais supressão das fronteiras, gerando uma porosidade das crenças e um livre trânsito dos sujeitos por diferentes práticas religiosas, não sem conflitos, negociações ou reelaborações.[18] Daí, por exemplo, ser possível perceber facilmente católicos, evangélicos, espíritas e umbandistas participando de um mesmo ritual religioso (seja batuque, sessão, culto, missa, etc.), católicos acendendo velas e jogando flores ao mar à Iemanjá e à Nossa Senhora dos Navegantes, umbandistas e batuqueiros assistindo à missa festiva a determinado santo. A cada diferente rito, novos sentidos são negociados, novas maneiras de expressar as crenças podem estar presentes, num movimento que expressa muito mais do que o simples, automático e linear “trânsito” religioso, mas que pode conjugar diferentes tradições religiosas, articular registros de práticas religiosas e construir novos significados, os quais são definidos, em estudos socioantropológicos, como sincretismo, hibridismo, bricolagem, butinagem.[19] Estes plurais e distintos modos de manifestar a fé estão presentes nas práticas culturais de diversos sujeitos sociais e são reflexos dos pensamentos, dos sentimentos e dos dinâmicos modos – instáveis e incertos – de vida humana contemporâneos.
Embora se perceba esse rápido e dinâmico trânsito religioso, o qual o ensino de história pode problematizar, há de se considerar o importante papel do ensino na desconstrução dos discursos de intolerância religiosa. Entre os inúmeros possíveis exemplos de casos de intolerância na contemporaneidade, citaremos aquele destacado pelo antropólogo Vagner Gonçalves da Silva (2015, p. 16): em um livro didático, de 2003, de uma editora do estado de São Paulo, atendendo à necessária inclusão da temática “História e Cultura Afro-brasileira”, enfatizou-se o tema religiões afrobrasileiras como parte dessa cultura, abordado “de forma não sectária ou proselitista, como convém a um material destinado ao ensino laico, humanista e de difusão da tolerância à diversidade cultural”. No entanto, “colocar nos livros escolares as religiões de origem africana ao lado de religiões hegemônicas”, cristãs, “dando-lhes o mesmo espaço e legitimidade destas últimas, têm gerado, por si só, protestos”.
no capítulo ‘Nossas Raízes Africanas’, a autora trata da formação das religiões afro-brasileiras, inclusive com exercícios pedindo para as crianças pesquisarem sobre a história dos orixás. Uma coordenadora pedagógica evangélica de Belfort Roxo, Rio de Janeiro, protestou junto à editora alegando que o livro fazia apologia das religiões afro-brasileiras e que não seria adotado em sua escola, onde a maioria dos alunos e professores, segundo ela, era evangélica. A mesma coleção também gerou protesto na Câmara da cidade de Pato Branco, Paraná, onde um vereador e pastor evangélico denominou a obra de ‘livro do demônio’ e pediu a cassação da coleção (SILVA, 2015, p. 16).
Como estamos tratando de religião, podemos dizer que a história ensinada possibilita posicionarmo-nos diante dos discursos de intolerância religiosa, de violência e de agressão, pois a aula de história é fundamental para a manutenção de uma escola que construa “valores necessários a uma convivência democrática” e combata “toda forma de valores preconceituosos” (PENNA, 2016, p. 52). Na história ensinada, conforme a concebemos, uma disciplina capaz de promover a criticidade da desigualdade e da indiferença, aprende-se a construir possibilidades de ação no presente (MARTINS, 2011, p. 7) e, assim, conceber que “as religiões, os cultos, as crenças, não podem continuar sendo, como foram ao longo de toda a história humana, motivo de discriminação, rejeição, agressão e extermínio do outro (...), de todo aquele que não professe a mesma fé” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2016a, p. 172).
Ao recriar a interpretação do historiador Georges Minois, podemos dizer que o ensino de história não faz apologia nem a favor de qualquer forma de crença ou ateísmo nem apologia contra eles. Ao buscar um sentido – histórico ou histórico escolar – o ensino de história não rejeita a priori quaisquer atitudes, mas as problematiza para compreender o presente e perceber que determinadas soluções para conflitos ou acomodações religiosas do passado “não poderiam de modo algum ser as soluções do presente” (FEBVRE, 2011 [1952], p. 83).
Em relação às explicações religiosas para o mundo que circulam no Ocidente, George Minois (2014, p. 07) categorizou reações sociais: aqueles que absolutamente não se preocupam com tais explicações; outros que têm respostas prontas e sabem bem quais condutas devem adotar (afinal, na linguagem religiosa, a vida pode ser um karma, pode ser o encaminhamento para a salvação ou condenação, pode ser a preparação para a volta de Jesus, etc.); e outros que não compreendem nada, são inquietos, angustiados, insatisfeitos, mas querem compreender. Diante dessas três atitudes, o ensino de história assume um importante papel no sentido de entender estas reações na sua historicidade, o passado dessas atitudes, sabendo que o próprio sujeito que busca tal compreensão “está imerso numa dessas três correntes mais fortes do que ele” (MINOIS, 2014, p. 07). Assim, sujeitos em relação de ensino e de aprendizagem histórica geralmente fazem parte do terceiro grupo: o dos inquietos, dos questionadores, dos insatisfeitos.
Como vimos até aqui, quando perguntamos sobre os significados de religiões e religiosidades no ensino da disciplina, estamos buscando compreender como e por que uma dada sociedade construía referências religiosas, ideias de crença e principalmente consolidava determinados comportamentos pautados na religião. Ou seja, trata-se de buscar entender como mulheres e homens viviam, inventando para sua existência sentidos religiosos ou sentidos que excluíam qualquer fé (MINOIS, 2014); como pensavam sua existência social e construíam suas expectativas a partir das crenças vividas (EIRE, 2013, p. 27, 30). Assim, com criticidade, confrontando ideias e versões, vamos racionalizando o discurso religioso perante a vida humana, não no sentido de questionar a fé, mas no de verificar os limites e as possibilidades desses discursos para explicar ou conceber o social em diferentes temporalidades.
Considerações finais
Quando interrogamos os fundamentos e significados da abordagem de religiões e religiosidades no ensino de história estamos, em última instância, a propor positivamente possibilidades de se aprender com a história, de considerar o viver, o agir, o sentir humano do passado como “condição de possibilidade do agir humano no presente” (MARTINS, 2011, p. 7-8), muito embora existam atualmente argumentos com outras direções: daqueles que visualizam o fascínio pelo passado na ausência de aprendizagem com a história, na ausência de crença na capacidade da história de “oferecer orientação para a ação” (GUMBRECHT, 2011, p. 29, 34) e daqueles que julgam ser importante considerar que “a história ou o passado ainda continua a fascinar e a ser um enigma para muitos seres históricos” (PEREIRA, 2015, p. 364).
O historiador francês François Hartog (2017, p. 21) destacou que existe a crença na presença da história, mas dúvidas sobre o seu caráter exequível, ressaltando ainda que “crer em história” não implica crer que ela tenha um sentido. Entretanto, é possível fazer ou crer que a história faça sentido, “desde que se admita que existe uma distância entre o que se acredita fazer e o que se faz efetivamente”, considerando a dinâmica do tempo presente que conduz os sujeitos por “decisões a tomar e ações a empreender, projetos louváveis ou menos louváveis a conduzir, cujos efeitos temos dificuldade de avaliar” (HARTOG, 2017, p. 22-23). Já o fazer/escrever/fabricar história pode se acomodar “tanto à crença como à descrença em um sentido de história” (HARTOG, 2017, p. 23).
Se as relações ocidentais contemporâneas com o tempo mudaram, lançando um golpe à determinado entendimento de história e a uma concepção de futuro aberto e positivamente transformador, “o que entra em crise é a capacidade do pensamento da história de tornar inteligível a natureza de nossas sociedades com base na análise de seus destinos, e sua capacidade de lhe fornecer guias para sua ação transformadora” (HARTOG, 2017, p. 224).
Ainda que se perceba essa “tirania” do presente na relação humana contemporânea com as categorias temporais, acredita-se que a disciplina história ainda tem um lugar importante na sociedade, uma vez que instrumentaliza a capacidade de selecionar e criticar informações que chegam prontas pela dinâmica dos processos de informação[20] e de produzir humanos capazes “de se colocar no lugar e no tempo do outro” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2016b, p. 40). Assim, pensando com Albuquerque Júnior (2016b) – quem inspirou o título deste artigo – o ensino de história permite a compreensão de outras possibilidades de ser religioso, de manifestar a fé, de viver experiências de crença, motivos pelos quais, talvez, o professor e a aula de história nem sempre são vistos como agradáveis aos olhos de algumas expressões religiosas contemporâneas.
Ao trazer o estranhamento a partir do estudo e da aprendizagem do outro, do diferente no tempo e no espaço, a história ensinada contribui para o respeito às diversas denominações religiosas, o respeito ao que não crê, para o conhecimento e respeito aos direitos de liberdade de culto, de convicções e de crença, e não apenas ao direito de serem “toleradas”, para a relativização das certezas e para a valorização do pluralismo e convivência pacífica diante dos direitos de se professar e praticar (ou não) uma religião.
Referências
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Notas