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Popularizações do passado e historicidades democráticas: escrita colaborativa, performance e práticas do espaço
Popularizations of the past and democratic historicities: collaborative writing, performance and practices of space
Revista Tempo e Argumento, vol. 10, núm. 24, pp. 279-315, 2018
Universidade do Estado de Santa Catarina

Dossiê



Recepción: 14 Diciembre 2017

Aprobación: 17 Mayo 2018

DOI: https://doi.org/10.5965/2175180310242018279

Resumo: Este artigo pretende compreender as relações entre popularização do passado e democratização da história. Para tal, realizamos três estudos de caso que nos permitem pensar em outros regimes de escrita, presença e memória. No primeiro caso, descrevemos um suposto plágio que a revista de divulgação Leituras da História teria cometido a partir da Wikipédia, no segundo analisamos como as artes cênicas representam uma possibilidade ativa de relação com o passado traumático e, no terceiro, lidamos com a forma pela qual inscrições históricas no espaço urbano são constantemente ressignificadas. Concluímos que a popularização do passado em diferentes meios desestabiliza os lugares tradicionais de produção e consumo de conhecimento histórico, e lançam uma série de questões para repensar o lugar da historiografia na contemporaneidade.

Palavras-chave: Popularização do passado, Historicidade, Presença, Memória.

Resumo: This paper aims to understand the relations between the popularization of the past and the democratization of history. The analysis of three case studies allows us to reflect on other regimes of writing, presence, and memory. In the first case, we describe alleged plagiarism that the history magazine Leituras da História would have committed from Wikipedia. In the second, we analyze how performance and theater present an actual possibility of relation with traumatic past. Finally, the third case deals with the way in which historical inscriptions in the urban space are resignified continuously. We conclude that the popularization of the past in different spaces destabilizes the traditional places of production and consumption of historical knowledge and raise some questions that require us to rethink the position of historiography in the contemporary world.

Palavras-chave: Popularização do passado, Historicidade, Presença, Memória.

Keywords: Popularization of the Past, Historicity, Presence, Memory

[...] nada ameaça a história senão seu próprio cansaço relativamente ao tempo que a fez ou ao seu medo diante do que fez a matéria sensível de seu objeto: o tempo, as palavras e a morte. A história não tem que se proteger contra nenhuma invasão estrangeira. Ela tem somente necessidade de se reconciliar com seu próprio nome

(RANCIÈRE, 1994, p. 1994).

Começamos por lembrar uma imagem evocada por Claude Lefort (1981): entre o Antigo Regime e o estado totalitário, a “invenção democrática” emerge por meio da desincorporação do lugar de poder unitário para dar lugar a um "espaço vazio de poder", e desse lugar vazio produziu-se algo como uma "liberdade política". Para Lefort, esse terreno invisível da liberdade política manifestava-se como lugar próprio da indeterminação, ou seja, a história da "invenção" democrática como a história da experiência indeterminada de liberdade e do acesso universal ao conhecimento (LEFORT, 1981).

A indeterminação da política relaciona-se, de maneiras mais ou menos desiguais, com o que se pode chamar de "indeterminação histórica", i.e. a impossibilidade de enquadrar processos históricos a partir de categorias teleológicas ou que menosprezam a agência individual em nome de explicações casuísticas dadas de antemão (RANCIÈRE, 2014). Desde o século XIX, a constituição da história disciplinar passa a ser acompanhada temporalmente por transformações decisivas nas relações entre o público e as formas gerais de conhecimento, sendo que tais mudanças se intensificaram no final do último século e parecem atingir, atualmente, um momento particular. Por mais trivial que a última frase possa parecer, queremos dizer que acreditamos haver, em nosso presente, uma dinâmica muito específica de abertura do discurso histórico para alteridades epistemológicas que possibilita a reimaginação dos fluxos entre os saberes produzidos ao redor do que se convencionou chamar de “espaço público”. Queremos dizer que, nesse momento, o reconhecimento da história como conhecimento e campo de ação se torna comum, levando a uma alteração da relação entre sujeito e objeto, em direção a formas mais ativas que ultrapassam a exclusividade de um grupo social ou profissional produtor da história. Em poucas palavras: os sujeitos da história - do conhecimento histórico e da ação, simultaneamente - se pluralizam em um processo dinâmico e cheio de idas e vindas. Foi mais ou menos a partir de uma movimentação intelectual como essa que a "invenção", a "criação" ou a "construção" se tornaram termos convencionais na historiografia e nas ciências humanas para fazer referência à ação histórica (AGEEVA, 2016; ARAUJO, 2012; ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2008; ČERNÍK & VICENÍK, 2009).

Ao considerar essa dimensão ativa entre os sujeitos e a história (o acontecimento e o que se pensa sobre ele), a reflexão aqui desenvolvida diz respeito a contextos sociais, culturais e historiográficos atuais que nos conduzem à tarefa de repensar as historiografias populares e o que chamamos de popularização do passado – visando recobrar a noção de popular, aparentemente marginalizada há algum tempo (DOMINGUES, 2011; STOREY, 2009). Ao dialogar com algumas experiências que envolvem o “tema do passado” não necessariamente produzidas por historiadores e historiadoras profissionais (mas por autodidatas, amadores, hackers, museólogos, artistas, ativistas), pretendemos contribuir para o debate, articulando esses momentos às dimensões próprias do que Jacques Rancière chama de historicidade democrática. Essa pode ser caracterizada como: 1) o movimento simultâneo de pluralização dos sujeitos históricos e falas sobre a história, e de esgotamento da forma científica da historiografia que almejava, por assim dizer, o monopólio da compreensão histórica,[1] e 2) as mutações da escrita, desdobrando-se em outras formas de inscrição, intensificação da presença do passado e pluralização das memórias em sua relação com a história e a historiografia no contemporâneo.

O diagnóstico já clássico de Jacques Revel e François Hartog (2001, p. 5-6) expressa a questão como a crescente “contemporaneidade” do passado, que surge e se desenvolve como “demanda social” do presente. Para cumprir essa demanda, no entanto, a história é mobilizada para além dos círculos especializados. Vivian Sobchack (1996) caracterizou esse movimento como um processo a envolver atores plurais na esfera pública como participantes ativos da representação/apresentação histórica. Disputados na esfera pública, a presença do passado e os sentidos históricos se ampliam e pluralizam, as formas de reconhecimento se transformam, a história é "consumida", os sujeitos a ela se articulam e a utilizam em seu cotidiano das mais variadas formas. Sendo assim, Sylvia Paletschek e Barbara Korte (2012, p. 9) apontam que, no “boom da representação popular da história [...] organizações estatais ou públicas, elites sociais ou grupos políticos elaboram imagens populares da história para legitimar ou seu status quo ou transformações políticas”.

Para alguns autores recentes, como Paletschek e Korte (2012), Billie Melman (2006) e Jerome De Groot (2008), a diversidade das imagens populares do passado sustenta-se em processos e materiais variados e intercambiantes. A partir de diferentes casos nacionais, esses autores identificam um movimento de apropriação e presentificação do passado no teatro, nos museus, em diferentes gêneros literários, nos monumentos, em práticas de coleção populares etc. Para Melman (2006), por exemplo, a variedade da popularização do passado indicaria uma cultura de história em que as imagens populares e aquelas produzidas segundo uma disciplina ou por uma elite sempre se comunicam, integram um circuito de produção da história no qual os consumidores são concebidos como “seres ativos” cuja atividade atinge uma “produção secundária ou até mesmo uma coprodução da cultura” (MELMAN, 2006, p. 18). Essa situação de circularidade caracteriza a popularização do passado como fundamento da polifonia e indeterminação próprias às historicidades democráticas.

Partindo dessas premissas, este artigo pretende refletir sobre essas questões (as democratizações da história e as popularizações do passado em outros regimes de escrita, presença e memória) a partir de três casos que comportam certas especificidades e, em especial, autonomias entre si. O texto se divide em três momentos nos quais mobiliza-se uma série de questões sobre o estatuto contemporâneo da história em contextos não acadêmicos. No primeiro momento, destacamos o aparecimento de certas instabilidades da escrita da história por meio de novos processos de escrita colaborativa, com foco em um suposto plágio que a revista de popularização Leituras da História teria cometido da Wikipédia. Em seguida, alguns trabalhos de Yuyachkani, um importante grupo teatral peruano, são utilizados como evidências de outras possibilidades ativas de relação entre a encenação e os passados-presentes de violência. Por último, tratamos da maneira pela qual as inscrições históricas no espaço urbano são constantemente ressignificadas politicamente, tomando como exemplo um caso notório do Brasil recente.

Depois da apresentação dos casos (mais ou menos independentes), procuraremos apontar o que há de comum e as interpolações entre as formas de popularização descritas. Podemos adiantar, porém, que elas apontam para alguns elementos fundamentais das popularizações do passado. Em primeiro lugar, a desestabilização da autoria e das formas que lhe são próprias, como o texto impresso ou demais suportes materiais de apresentação do passado. Em segundo lugar, a proliferação dos sujeitos e lugares de produção do conhecimento histórico. Além disso, a mobilização da história e da historiografia para além dos círculos especializados, suspendendo dicotomias estabelecidas tradicionalmente entre história e memória. Por fim, a dimensão da “presença” que suspende a distância entre sujeito e objeto do conhecimento como abordagem alternativa aos regimes mais convencionais de representação histórica.

Instabilidades da escrita: uma história de suposto plágio na era da escrita colaborativa

São os wikipedians bons historiadores? Como na velha lenda do homem cego e do elefante, sua avaliação sobre a Wikipédia enquanto história depende muito

das partes as quais você toca.

Roy Rosenzweig (2011, p. 59)

Um fantasma ronda a Wikipédia: o plágio! Além daqueles cometidos por colaboradores, “a enciclopédia livre” costuma ser, constantemente, objeto de copy and paste. As contribuições reconhecidas como plágios são, em geral, eliminadas por colaboradores e máquinas (chamadas de bots) vigilantes. Ao mesmo tempo, ela é copiada livremente sem os créditos necessários. Em 2016, o caso mais famoso a esse respeito se relaciona à acusação que o filho do ex-presidente Lula teria recebido vultosas somas em consultorias supostamente baseadas em “reproduções da Wikipédia”.[2]

Roy Rosenzweig (2011), com seu famoso estudo sobre a história como entidade open-source (ou seja, de "código aberto"), demonstrou que as páginas da Wikipédia apresentam uma “poética popular da história”, constituída por regras diferentes das praticadas por historiadores profissionais e que, portanto, tende a ser mais anedótica e factual (ROSENZWEIG, 2011).[3] A Wikipédia, desde a sua fundação, em 2001, é um dos websites mais visitados do mundo, com mais de 250 milhões de acessos por dia.[4] Trata-se, na verdade, da mais popular experiência em uma wiki.[5] Apesar de muitas vezes envolvida em controvérsias, sua presença em nossas vidas chega a parecer irreversível. Pesquisas indicam que de 40 a 60% dos médicos nos EUA e Inglaterra a utilizam para fazer diagnósticos, mesmo sem que seus pacientes saibam.[6] No momento em que escrevemos esse texto, registram-se mais de 45 milhões de artigos escritos cooperativamente, e mais de 130 mil colaboradores ativos. Atualmente, a Wikipédia figura como o quinto website mais acessado do mundo.[7] Um estudo de 2009 concluiu que 84% dos estudantes de graduação, nos Estados Unidos, acessam regularmente a Wikipédia como fonte de informação (HEAD & EISENBERG, 2009). Eis um bom argumento pelo qual nós, historiadores e historiadores, deveríamos nos envolver de maneira mais comprometida com a Wikipédia. Porque os estudantes já a utilizam de qualquer maneira. Além disso, a advertência de Rosenzweig ainda guarda sua atualidade: historiadores profissionais tem muito o que aprender não apenas pela forma da Wikipédia (aberta, democrática e distributiva), mas com o próprio modelo de produção democrática e aberta do conhecimento que a experiência wiki põe na prática.

O plágio, por sua vez, já não é tão novo assim, e está intimamente ligado à emergência moderna da função de autor (FOUCAULT, 2006; MEDEIROS, 2012). Na “enciclopédia multilíngue” há artigos em que a autoria é evidente, uma vez que, ao analisar seu histórico, percebe-se que apenas um ou poucos editores elaboraram o texto em questão, havendo ou não a edição de outros responsáveis por pequenos ajustes. Nesses casos, as transformações da autoria em rede são mediadas pela identificação das colaborações por meio do histórico dos artigos, o que possibilita a criação de meios alternativos e indiretos para estabilizar a autoria em um ambiente estruturalmente definido pela escrita compartilhada (D’ANDRÉA, 2011; PHILLIPS, 2015). Entretanto, há outros verbetes, especialmente os mais antigos e com longos históricos, ou seja, bastante acessados e editados, que problematizam a noção de autor, pois, ainda que seja possível analisar o que cada pessoa fez, é demasiadamente complexa a reconstrução de todo o processo de (re)escrita.

Assim sendo, procuraremos reconstituir uma discussão na qual os colaboradores da Wikipédia debatem sobre o que fazer frente a um suposto caso de plágio do verbete acerca da monja beneditina Hildegarda de Bingen, que viveu no século XII. Segundo o histórico do artigo, o mesmo, sem imagens e com um parágrafo, foi criado em 2 de dezembro de 2004. No início de novembro de 2009, já passara por quase 100 edições, porém com apenas quatro parágrafos e uma imagem. Ao longo do mês em questão, após quase uma centena de edições do colaborador Tetraktys, o artigo passa a contar com mais de vinte fotos, música, e quase 60 parágrafos. Ainda hoje, em 2017, após mais de 50 edições de muitos colaboradores, o verbete é muito próximo ao estabelecido naquele mês de novembro.

Em 2012, o colaborador Tetraktys apresenta, em uma página de discussão da Wikipédia Lusófona chamada “Esplanada”, a seguinte denúncia:

por acaso encontrei um artigo sobre Hildegard von Bingen na revista Leituras da História, da editora Escala, ano IV, nº. 48, jan. 2012, pp. 52-57, que é praticamente um copy-paste do artigo na wiki. tem algumas seções originais, mas grande parte do artigo é cópia, ou com ligeira adaptação. mas vem assinado por [...] e não cita referência nenhuma. fazemos alguma coisa com isso? se não, vale como piada, pois além de copiar, em alguns trechos a escriba alterou frases e o sentido ficou oposto ao original. valha-nos deus! rsrsabz![8]

A partir daí abre-se uma longa discussão. Um dos colaboradores (identificado pelo pseudônimo de ‘MachoCarioca’) sugere nada fazer, uma vez que a Wikipédia é de domínio público, afirmando que: “tá na Wikipédia é de todo mundo”. O usuário, no entanto, é repreendido por vários outros colaboradores que destacam que o problema não seria exatmente o uso da informação, mas a falta de créditos e o fato do verbete ter sido apropriado pela revista e pelo(a) jornalista que o assina com fins lucrativos (um aspecto destacado por alguns é a larga utilização da Wikipédia no meio jornalístico, mesmo que a maioria dos jornalistas não assumam[9]). Após explicações sobre o fato de que a enciclopédia não está em domínio público e sim em licença livre (o que exigiria créditos e manutenção da mesma licença em obras derivadas), decide-se enviar um e-mail para o editor responsável pela revista que, em resposta, promete investigar o caso. Após uma série de discussões sobre qualidade da Wikipédia e sobre direitos autorais, a correspondência com o editor da publicação continua. O colaborador Tetraktys, em correspondência com o diretor da revista, afirma que:

os créditos não devem ser dados a mim, mesmo que eu tenha sido o autor do texto, mas à Wikipédia. Todo o material encontrado lá é considerado na prática como “anônimo e coletivo” e é de uso livre e pode sim ser copiado literalmente. Nossas políticas autorizam até mesmo a cópia para fins lucrativos. Em contrapartida por essa mamata, só solicitamos do usuário a atribuição do crédito, conforme o especificado nas referências que lhe enviei em um dos primeiros e-mails.

Na continuação do debate, Tetraktys afirma que “neste caso o texto foi só meu, mas em outros artigos em que há centenas de contribuidores e IPs? impossível... na prática é anônimo e coletivo mesmo”. Mesmo assim, o usuário MachoCarioca discorda da necessidade de “dar qualquer crédito à Wikipédia MUITO MENOS [sic] a qualquer autor de verbete aqui” afirma. E prossegue: “quem quiser ter seu nome reconhecido e creditado que escreva seu próprio livro”.

Cabe esclarecer que o adjetivo livre na Wikipédia possui dois sentidos: qualquer um pode editar, o que não significa que cada um possa fazê-lo da forma que desejar. Além disso, o termo remete à licença do conteúdo presente na Wikipédia: uma licença livre, do tipo CreativeCommons BY-SA, isto é, uma licença que permite a livre distribuição, alteração e venda do conteúdo, desde que citada a fonte e se o conteúdo adaptado da Wikipédia também esteja disponibilizado por uma licença igual ou equivalente. Essa duplicidade do adjetivo contribui para a produção colaborativa em bases comuns, por intermédio da criação e da execução de projetos de larga escala, reunindo pessoas com diferentes origens e motivações, unidas pela tecnologia e pelo sentimento comunitarista. Podemos dizer, assim, que a Wikipédia instaura a possibilidade de uma comunidade de conhecimento mais horizontal. Ainda nesse sentido, seria possível atribuir mais outra camada ao predicado “livre” no que concerne à autoria partilhada: ela se realiza justamente na problematização de uma fala autorizada. Os pseudônimos, alguns nitidamente vulgares,[10] criam a possibilidade de um espaço emaranhado de saber/poder, a partir do qual se fala como condição original do ato de conhecimento feito na escrita.

O texto que teria plagiado a Wikipédia não está mais disponível no website da revista Leituras da história. No entanto, uma rápida análise na revista impressa indica a existência de trechos idênticos e/ou parecidos entre a página da Wikipédia e a da publicação de divulgação histórica.[11] O que gostaríamos de destacar é o quanto a internet intensifica e pluraliza certas práticas de popularização do passado, por meio da escrita colaborativa, e que essas podem ou não passar por acusações como a do plágio.

O advento da internet e de experimentos como a Wikipédia certamente nos ajudam a entender a revalorização do conceito de popular. É por meio dessa desestabilização da função autor que, atravessada pelo paradigma de uma colaboração pluralizada e dificilmente identificável, se produz um modelo mais distributivo de produção e apreciação do conhecimento. Mas a questão da instabilidade da escrita não se limita à desestabilização da função autor; ela também se relaciona com o meio digital e o suporte material da escritura colaborativa.[12]

No caso do verbete analisado, esse processo de abertura se vê tensionado a partir de um uso externo do documento produzido pelos editores voluntários do Wikipédia – uso identificado, ali, como a forma contemporânea do plágio, o “copy and paste” acusado por um dos responsáveis pelo texto – que, no afã de decidir certo direito de originalidade, remonta a discussões tradicionais sobre os limites entre o público (a enciclopédia colaborativa sem fins lucrativos) e o privado (uma revista de história pertencente a um grupo editorial). O caso indica, portanto, uma das potências da proliferação de sujeitos da história em um mundo no qual, constantemente, saberes coletivos se transformam em patentes privadas. A discussão sobre a cópia do verbete inverte a lógica do que se chama apropriação indébita: ela existe apenas quando um ente privado ou um autor individual toma como seu o produto da reflexão e trabalho coletivos, nunca quando um anônimo usa livremente o conhecimento produzido.

Além disso, no contexto digital, o plágio em questão repõe, redimensiona e intensifica as negociações das “fronteiras cambiantes entre o público e o privado” (Cf. THOMPSON, 2010). A contradição parece clara: quando falamos da história produzida pelos historiadores estamos falando também de certas disposições institucionais que, para lidar com múltiplas variedades interpretativas de certos fenômenos ou acontecimentos, necessitam de uma clara noção de autoria; embora seja ainda necessário reconhecer a potência da crítica aguda de Michel de Certeau (2007) ao nome próprio aposto à obra historiográfica concluída como véu sob o qual se ocultam o lugar e as práticas que são sempre coletivamente estabelecidos. Ora, é importante identificar autores (e, num sentido semelhante, as escolas às quais pertencem), porque a autoria é parte constitutiva da ideia; ela é, em certo sentido, a corporificação da ideia. E essa ideia pertence, inclusive juridicamente, a seu produtor. De que maneira isso se relaciona ao conhecimento histórico produzido numa enciclopédia colaborativa virtual? Nessa comunidade, o espaço de trabalho do conhecimento é livre e cooperativo. Sobretudo, ele é o que se convencionou chamar de um trabalho de "licença livre".

Em termos genéricos, "licença livre" equivale a dizer que o sistema do projeto está completamente aberto para ser estudado e distribuído, com abertura do código-fonte para que qualquer indivíduo possa aperfeiçoar o programa, de modo que toda a comunidade se beneficie disso. O produtor de texto não pode ser enquadrado na categoria "autor", e não pode porque o conhecimento colaborativo de código aberto é essencialmente construído em rede, não em linha. É mais uma rede de "atores" (no sentido em que agem em torno de um processo coletivo) do que uma rede de "autores" (entendido como um conjunto de produtores individualizados de conhecimento).

O conhecimento histórico produzido é, assim, essencialmente open-source: seu código está em aberto e tem uma função essencial, tanto no modo como nós - historiadores e historiadoras que utilizamos computadores e internet em nosso dia a dia - produzimos conhecimento, como essencial ao próprio futuro das humanidades (alguns perguntam se seu futuro será digital?[13]). Em todo caso, essa experiência e suas constantes tensões em torno das estruturas de autoria cristalizadas em nossa cultura epistemológica parece funcionar como uma demonstração sobre como essa mesma cultura pode ser atravessada por experimentações mais abertas e democráticas. Se na Wikipédia temos, como defendia Roy Rosenzweig, algo como uma “poética popular da história” (ROSENZWEIG, 2012, p. 141), é tanto porque ela parece carregar um potencial disruptivo ao descentrar a noção de autoria, quanto porque, ao reavaliar e rearranjar na prática lugares já estabelecidos da dinâmica entre produção e consumo de conhecimento, produz questionamentos sobre a necessidade de estabelecer a historiografia como uma atividade democrática.

Multiplicação das vozes: encenação e passado traumático no Peru

Em meio aos trabalhos da Comissão da Verdade e Reconciliação (2001 a 2003) no Peru, uma série de audiências públicas tomaram lugar na cidade de Ayacucho, na região do país mais afetada pela violência do conflito armado interno que vigorou no país de forma mais aguda entre as décadas de 1980 e 2000. Logo no início do processo de pós-conflito, em 2002, como uma forma de recepcionar as/os depoentes da Comissão, o grupo teatral Yuyachkani produziu algumas montagens em frente aos locais das audiências. Como lembra Fidel Melquíades, integrante do grupo, a ideia era produzir “um gesto para eles, uma homenagem por seu valor e por sua luta, um pequeno rito para aqueles por quem havíamos ido até lá e que agora apenas traziam suas almas conosco” (RUBIO, 2010, p. 277). Uma das montagens elaboradas pelo grupo no contexto das audiências públicas foi a da obra Rosa Cuchillo. Baseada no romance de Oscar Colchado Lucio, de 1997, Rosa Cuchillo trata da história de uma mãe que falece ao tomar conhecimento da morte de seu filho, guerrilheiro do grupo maoísta Sendero Luminoso, cujo corpo explodiu em uma batalha de granadas. Depois de morrer, a mãe recorre aos mundos da cosmologia andina para buscar o corpo de seu filho desaparecido. A trama se passa, então, entre os mundos do Ukhu Pacha (o mundo “de baixo”, dos mortos), Janaq Pacha (o mundo “de cima”, celestial) e Kay Pacha (o mundo do “agora”), utilizando das metáforas cosmológicas andinas para se referir à busca por justiça, reparação espiritual e a luta pelo não esquecimento (COLCHADO, 2005).

A obra foi apresentada em locais de “busca do espectador”, ou seja, não em cenários preconcebidos. Não em teatros e salas, mas em praças, mercados, pátios, átrios de igrejas, etc. O depoimento da única atriz envolvida na obra, Ana Correa, informava o funcionamento peculiar de preparação e execução da obra: apresentava-se sobre uma mesa de um metro e meio por um metro e meio, chegava cedo ao mercado onde lhe perguntavam o que iria vender em sua banca, iniciava às 11h e se apresentava em 20 minutos, o tempo limite para manter a atenção dos que iam de fato vender seus produtos.[14] A necessidade de oferecer, mais uma vez, certo grau de autonomia ao público, caracterizava os trabalhos do grupo. Ana Correa ressaltava, ainda, a audiência de homens e mulheres que falavam quéchua, tinham domínio limitado do espanhol e pouco sabiam da Comissão da Verdade, mas “reconheciam o mundo mítico, assim como o diálogo entre esse mundo e os mundos de violência que vivenciaram”.[15]

Apresentada também em departamentos do país tradicionalmente excluídos dos processos de decisão política, como Puno, Cuzco e Apurimac, a encenação de uma obra como Rosa Cuchillo, que articula sentidos de uma cosmologia popular e suas potencialidades nos processos de cura, da memória e da reconciliação com a violência que atingiu a vida de milhares de pessoas parece oferecer, de fato, uma forma mais aberta e livre do trabalho de lidar com o passado e imaginar as possibilidades, para conviver com as feridas do presente e do futuro.


1
Ana Correa interpretando Rosa Cuchillo.
http://hemisphericinstitute.org/hemi/pt/modules/item/125-yuya-rosacuchillo-2002

Yuyachkani, expressão do idioma quéchua, possui três possíveis traduções: “estou pensando”, “estou lembrando” e “eu sou seu pensamento”. A expressão dá nome ao grupo em torno do qual se agrega Ana Correa, na montagem de Rosa Cuchillo. Criado em 1971, oito anos antes do início do chamado “conflito armado interno”, boa parte da produção cênica do grupo se deu em meio ao conflito entre guerrilheiros do Sendero Luminoso, as forças armadas do Peru, as rondas campesinas e outros atores armados.[16] Essa inserção do grupo em meio ao conflito organizou, de maneiras diferenciadas, a relação entre a ficção e o real. O diretor e fundador do grupo, Miguel Rubio, lembra quando, em meio a outra performance executada numa pequena cidade na qual aconteciam as Audiências Públicas do pós-conflito, cidadãos humildes, de origem camponesa, aproximaram-se das personagens para oferecer seu testemunho; ou quando, durante a peça Adiós Ayachuco, que fazia uso de pequenos fogos de artifício, camponeses e camponesas locais “saíram apavorados” com o barulho similar ao das rajadas de fuzil (CABALLERO, 2011).

Outra obra do grupo, a instalação Hecho en el Perú, Vitrinas para un Museo de la Memória, em 2001, apresentava a preocupação do grupo em potencializar politicamente a arte teatral e performática, oferecendo uma outra possibilidade de acesso entre o público e o passado histórico nacional. Instalada em uma antiga galeria no centro comercial de Lima, o trabalho propunha a experiência de uma espécie de “museu vivo”, os transeuntes-espectadores compartilhavam o espaço com artistas que, por sua vez, carnavalizavam fatos históricos da história peruana. A hibridização de linguagens na performance já apontava para as múltiplas tentativas de criar pontos de conexão entre os espectadores e a “memória nacional”. O caráter popular do espetáculo também deve ser sublinhado, principalmente para os exercícios reflexivos que busquem complexificar o papel da popularização do passado. É que, para além de ser uma obra voltada para espectadores (qual obra, no fundo, não o é?), esses últimos ganham centralidade fundamental na experimentação estética do grupo. Na montagem original de Hecho en el Perú, por exemplo, a galeria das vitrines estava localizada na zona central do comércio de roupas da capital peruana. Na rua, um auxiliar do grupo chamava, pelo microfone, os transeuntes para assistir ao espetáculo gratuito, e completava: señor, señora, señorita […] vamos a ver cultura, para que nunca más se vuelve a repetir la historia.[17] Para além disso, toda a cenografia da galeria estava montada no sentido de mimetizar uma espécie de mercado popular de ambulantes, com luzes de néon e uma canção merengue ressoando no ambiente. Esse “museu da memória” tentava se estabelecer, sobretudo, como um museu popular da memória, no sentido mais expansivo do termo. A natureza dessa experiência estética e efêmera importa a partir do momento em que pretendemos interpretar seus modos de narração e suas estratégias (políticas) de lembrança.

Diversos autores e autoras já explicaram a performance como uma atividade caracterizada por sua própria efemeridade e não-durabilidade (CARLSON, 2003; HEATHFIELD, 2000; TAYLOR, 2013 e MELIM, 2008). Disso poderia decorrer uma concepção da performance como atividade incapaz de fornecer inscrições fortes ou definitivas na memória popular. Em nossa visão, essa mesma efemeridade produz e direciona narrativas múltiplas acerca dos temas que abarca. No caso das performances onde a memória é o ângulo de reflexão, o efêmero carrega em si a potência de aparecer como recusa de fechamento e limitação das narrativas possíveis. Podemos dizer: a encenação que se esvai, torna-se metáfora própria da negação do passado como matéria morta e “resolvida”.

Cremos que as artes cênicas, no contexto de memórias traumáticas, lançam outras formas de produção discursiva acerca do passado e estas parecem ser capazes de popularizar esses passados no sentido de uma abertura indeterminada para uma audiência que não necessariamente precisa compartilhar do linguajar teórico especializado sobre o tema. Essa é, de toda maneira, uma das “funções” da memória social e coletiva já descrita exaustivamente pela crítica: fornecer coesão coletiva, institucional, local ou nacional, produzir sentimento de pertencimento a um passado a partir da lembrança e do esquecimento.

A encenação histórica, por sua vez, apresenta a potência de recriar tais laços de memória, mas também de desfazê-los, de torná-los mais visíveis, objetos de crítica e reflexão, enfim, de recriá-los e transformá-los em objeto de uma ação performativa que produz intimidade, proximidade, e não meramente contemplação - pois contemplar implica tomar distância, deslocar-se para ver objetivamente. Os afetos em jogo (os risos, as lágrimas, etc.), como efeitos da encenação, produzem uma interação com o passado capaz de rearticular laços de pertencimento.

O que as encenações de Yuyachkani apresentam são possibilidades de reconstrução desse pertencimento imaginado para a audiência que compartilha certos sentidos em jogo na realidade nacional do Peru. A abertura da narrativa ao público apresenta as divisões e segregações nacionais, coloca o discurso do pertencimento à prova, questiona os limites da construção identitária do país, seus custos, e os conflitos derivados de suas falhas e projetos. Isso tudo parece indicar a emergência e a potência de formas diferenciadas de lidar com o passado, assim como manejos alternativos da linguagem histórica e de seu uso político.

Deslocamentos do espaço: iconoclastia e história na cidade

“Prefeitura 'derruba' Costa e Silva”; “Prefeitura de cidade gaúcha derruba estátua de Costa e Silva”; “Baseada no relatório da Comissão da Verdade, prefeitura remove estátua de Costa e Silva”: da ironia do Estadão à referencialidade mais objetiva de Zero Hora, eis os títulos de algumas matérias de 2014 sobre a retirada do busto de Costa e Silva em sua cidade natal, Taquari, no Rio Grande do Sul.[18] Em todas as reportagens, Costa e Silva era lembrado, replicando as informações da placa pregada ao pedestal, ainda menino a organizar seu primeiro pelotão na praia da lagoa na qual o busto se encontrava. Os mesmos jornais e outras reportagens também informavam sobre a existência de uma Casa Costa e Silva, onde a memória do ditador era lembrada; espaço no qual o busto seria exibido ao lado de uma cópia do relatório da Comissão da Verdade. Nas palavras do prefeito Emanuel Hanssen (PT): “Não temos intenção de esconder a história, mas vamos, então, mostrá-la por completo. Quem for lá, pode tirar as próprias conclusões”[19].

O prefeito justificava a decisão, que sofreu oposição dos vereadores do PSDB, ao apontar uma contradição entre a memória da personagem corporificada em bronze e o espaço que ela habitava. Segundo o prefeito, o lugar era o principal ponto de manifestações culturais na cidade e sabia-se que “a ditadura foi contra qualquer manifestação, seja de música, dança ou arte”; portanto, a permanência do busto “não tinha mais sentido”. O Globo informava que o evento fora gravado em vídeo e divulgado numa rede social, alcançando mais de 70 mil visualizações e 2 mil compartilhamentos até a noite de terça-feira, 15 de dezembro.[20] Quatro dias depois, o Estadão noticiava: “MP pede recolocação de estátua de Costa e Silva retirada de praça no RS”[21], o que se justificava porque, segundo a promotoria, a derrubada feria a Constituição Federal, “que estabelece ao agente público a obrigação de proteger direitos culturais e memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.”[22]

A retirada do busto de Costa e Silva não foi uma notícia isolada nesse tempo de polêmica sobre a memória da ditadura, suscitada pela comemoração dos 50 anos do golpe e como decorrência dos resultados da Comissão da Verdade durante seus trabalhos e relatório final – que pretendia ser a inscrição mais ou menos definitiva dos crimes contra os direitos humanos perpetrados durante o regime de exceção (PEREIRA, 2015). Além disso, a memória da ditadura tem sido objeto de constante debate social e político em razão do assustador crescimento de diversos grupos e pessoas que defendem a experiência autoritária e/ou “intervenção militar” em nosso presente.

De todo modo, em abril do mesmo ano, 2014, estudantes da Universidade Federal do Paraná (UFPR) derrubaram, com o auxílio de cordas, o busto do primeiro ministro da educação da ditadura.[23] Em 1o de abril de 2015, alunos da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) também derrubaram o busto de Rondon Pacheco, governador de Minas Gerais e fundador da UFU durante o regime de exceção.[24] Ambos esforços, à margem de uma decisão oficial como a do prefeito de Taquari/RS, parecem com aquele imaginado por Sergei Eisenstein em Outubro, na cena de derrubada da estátua de Nicolau II, que inspirou movimentos semelhantes ao longo do século XX, como a “deposição” da pesada estátua de Stalin, em Budapeste, em 1956.

A iniciativa do prefeito de Taquari, assim como as proposições para trocar nomes de logradouros públicos e vias expressas que lembravam os generais-presidentes, assemelha-se mais às iniciativas promovidas pela lei da Memória Histórica aprovada pelo parlamento espanhol em 2005. Segundo a lei, os símbolos franquistas deveriam ser apagados das ruas espanholas, ao mesmo tempo em que apareciam homenagens às vítimas do franquismo[25].


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O busto de Costa e Silva retirado.
Foto: Divulgação/Prefeitura de Taquari/RS.

A iconoclastia oficial ou popular evidencia as lutas pela memória no espaço das cidades. Embora possa parecer contraditório, o apagamento que provoca se liga à intenção programada de fazer de um relato do espaço, a cidade, o lugar da história monumental.[26] Ambas partilham a intenção duradoura das inscrições monumentalizantes que caracterizavam, e ainda caracterizam, residualmente, a estatuamania inventada na França ainda no século XIX e que se espalhou mundo afora (AGOULHON, 1988; KNAUSS, 1995; SAVAGE, 1999). Esta última se tornou uma marca da cultura urbana que indicava um movimento preciso de popularização da história: a história nacional devia ser vista, intenção pedagógica que procurava fazer de uma história a história de todos. É preciso lembrar, ainda, que a iconoclastia de natureza política que se seguiu à Revolução Francesa ensejou os primeiros movimentos de patrimonialização ordenados segundo a lógica monumental (CHOAY, 2001) - pode ser, então, que Costa e Silva estivesse esquecido até ser derrubado, e tanto a ação do Ministério Público noticiada pelo Estadão quanto alguns comentários ao vídeo da derrubada no YouTube corroboram essa possibilidade de reforço da lógica monumentalizante. Iconoclasmo e monumentalização, apagamento e inscrição, esquecimento programado e lembrança duradoura, constituem, portanto, faces da mesma moeda que toma o espaço urbano como base material para produzir a história. Antes de passar a outras formas de rememoração mais efêmeras que colocam em questão a eficácia da pulsão iconoclasta ou da duradoura intenção monumental, é necessário pensar essa relação entre espaço e produção da história.

A deposição e exposição do busto no museu tinha, na perspectiva do prefeito, ao menos três objetivos. Primeiro, garantir um cenário mais adequado às manifestações culturais da cidade, pois o busto seria um sinal contrário à liberdade de criação que aquelas encenavam. Segundo, integrar a história de Taquari/RS ao compasso da interpretação democrática da história nacional que o relatório da Comissão da Verdade suscitava. Terceiro, promover justiça histórica ao colocar lado a lado a história dos vencedores e dos vencidos. Nenhum desses significados do ato, contudo, realizou-se sem disputa: a intenção de apagar a marca da ditadura no espaço urbano não deslocou, por completo, sua lembrança.

A deposição simbólica de Costa e Silva indica o caráter entrelaçado da memória ao revelar a heterogeneidade dos atos da recordação que configuram um campo de disputa sobre a presentificação do passado; atos de recordação que são interpretações contingentes dos atores em cena. Há, portanto, uma polifonia intrínseca aos atos de recordação, isso porque a variedade das interpretações acerca de um significante mnemônico – aqui os monumentos e o espaço urbano – é correlativa ao pertencimento simultâneo dos atores a diferentes quadros sociais (FEIDT et al, 2014, p. 32). No caso apresentado inicialmente, o prefeito de um partido de esquerda usou de sua prerrogativa para contestar a imagem da história que o busto promovia, levando ao questionamento de opositores à direita que, sem defender diretamente a personagem homenageada, tomavam o monumento como um marco da história da cidade e não da ditadura propriamente, justificando o questionamento do ato supostamente arbitrário do prefeito. A pluralidade e o entrelaçamento dizem respeito, ainda, ao trânsito entre diferentes meios ou formas dos atos de recordação. Mais uma vez, no exemplo evocado, vimos como a deposição do busto seria sucedida por sua exibição num museu ao lado de uma peça concorrente, o que abriria uma variedade de interpretações; e, também, como a performance da retirada do busto repercutiu na imprensa, principalmente nos meios digitais.

Esses elementos nos levam a reconhecer que “um significante mnemônico é a encruzilhada de interpretações concorrentes com uma variedade ilimitada de constelações possíveis”, estabelecendo um campo discursivo plural que se caracteriza pela “luta dos atores por reconhecimento e visibilidade” (FEIDT et al, 2014, p. 32). Nesses conflitos, o caráter heterogêneo da memória se revela e acompanhá-los ao longo do tempo torna ainda mais evidente o fato de que “interpretações não são igualmente visíveis em diferentes momentos no tempo” (Idem). De fato, embora já fossem disponíveis os relatos da violência organizada do Estado contra os opositores e casos escabrosos de tortura, como o “suicídio” encenado de Vladimir Herzog, que precipitou um dos aspectos da abertura com o controle relativo da chamada “linha dura”, dificilmente uma interpretação alternativa teria ganho o espaço público de Taquari/RS quando o busto foi inaugurado em 1976.

Hoje, felizmente, isso é possível, mas a memória negativa da ditadura e a consequente positivação da resistência a ela, de um lado, e a celebração do regime de exceção, incluindo a nostalgia (difusa?) enganosa sobre aquele tempo, de outro, não se cancelam obviamente (mesmo que retirássemos todas as marcas da ditadura inscritas nas cidades brasileiras, isso seria impossível) porque há mesmo um caráter fantasmagórico da história nesse e noutros casos de violência política.[27] Quando dissemos que a iconoclastia pode ser a contraparte da monumentalização, é porque ela supõe a possibilidade de superar o passado, especialmente o passado da violência política que caracterizou, em todas as latitudes, o século XX. Ambos são gestos próprios à concepção moderna de história na qual a separação entre as dimensões do tempo seria auto evidente (BEVERNAGE & LORENZ, 2013, p. 7-36). Embora não seja ultrapassado, derrubar uma estátua, nesse sentido, pode ser um gesto antiquado.

Havia, contudo, no gesto de depositar o busto no museu algo além disso e uma forma da memória em diálogo intenso com os parâmetros contemporâneos da representação histórica. A ideia de colocar lado a lado duas visões do passado ditatorial se inscreveria numa tentativa de popularização da história, uma vez que o prefeito defendia não ter a “intenção de esconder a história”, mas sim “mostrá-la por completo”. O público teria duas interpretações, apresentadas simultaneamente – o busto e o relatório - para tirar suas próprias conclusões e para pensar sobre a história a partir de dois vestígios distintos. Pode-se ver nessa intenção a forma pela qual a verdade da história se relaciona à verdade da memória e à busca por justiça. Não havia necessariamente a intenção de fazer com que o ato de recordação da retirada do busto se naturalizasse, apagando as marcas de sua construção, como tende a ocorrer com as interpretações dominantes. Há um movimento auto reflexivo próprio da história como conhecimento, na musealização programada da imagem urbana do ditador.

Ainda assim, pensamos que seu apagamento do espaço histórico da cidade talvez não fosse a melhor opção em termos da visibilidade e complexidade que outras formas disponíveis de pluralizar o passado inscrito na cidade apresentam. Ao assumir que as formas da memória e de uma história popular estão em trânsito, outras experiências realizadas em contextos diversos poderiam inspirar ações mais efetivas de visibilidade de passados ocultos, de relacionamentos populares com o passado, de tensionamento público da memória na cidade.

Por um lado, o gesto do prefeito se assemelha ao “exílio” da imaginária urbana do realismo socialista no Memento Park, na periferia de Budapeste, após o fim do regime comunista (VERDERY, 1999). Em outro registro, o Vietnam Veterans Memorial suscitou formas populares imprevistas de relacionamento com o passado traumático: as pessoas depõem objetos pessoais aos pés dos nomes dos mortos inscritos nas paredes negras como um espelho no monumento (HASS, 1998). Rituais semelhantes tornaram-se mais comuns contemporaneamente pela ação de artistas ou de grupos políticos organizados, na Argentina e no Chile pós-ditadura, assim como as rememorações das vítimas da violência urbana no Rio de Janeiro (MELENDI, 2017, p. 235-262). Outro exemplo pode ser visto como uma interessante modulação da iconoclastia que aposta na ritualização e efemeridade: a Abraham Lincoln: War Veteran Projection, de Krzysztof Wodiczko (2017), na qual os rostos e vozes de veteranos norte-americanos, em sua maioria negros, foram projetadas sobre a estátua da personagem símbolo nacional. Tudo isso parece evidenciar uma dissolução da lógica monumental. Segundo Maria Angélica Melendi, o monumento “era a cristalização de um bem moral que o Estado situava como exemplo e guia - uma estrutura vertical imperecível, uma lição de quem “sabe” para quem deve “aprender”; já os novos monumentos ao rés do chão e a ritualização crítica dos antigos “exaltam a consciência própria da massa anônima que os constrói e os deixa morrer espontaneamente” (MELENDI, 2017, p. 260). Certamente, o deslocamento do busto para o museu se comunica com isso, mas nos perguntamos se não seria mais potente, por exemplo, o ritual de deposição de fotografias dos desaparecidos e mortos na ditadura aos pés do busto e/ou a projeção de suas imagens sob o rosto frio de um dos responsáveis por suas mortes.

Popularização do passado e historicidades democráticas: entre a memória e a presença

Os casos aqui analisados apontam para dinâmicas do que chamamos de popularização do passado como expressão das historicidades democráticas. A produção popular da história acontece no trânsito entre, para usar o conceito já consagrado nos estudos de Aleida e Jan Assmann, diferentes meios da memória cultural (ASSMANN, 2011a; ASSMANN, 2011b). Vimos, no primeiro caso, a interpolação e disputa entre a escrita nos novos meios digitais e suportes tradicionais como os impressos de circulação massiva. Nessa disputa, a credibilidade supostamente maior do impresso frente aos meios digitais é colocada em xeque e experimentamos a constituição de um regime de autoria compartilhada potencialmente mais democrático que só pode se realizar plenamente por meio desses novos meios – o que faz da Wikipédia uma metáfora das formas mais horizontais de relacionamento com a história. Nesse caso, como também nas performances de Yuyachkani e no deslocamento do busto de Costa e Silva, há uma relação mais livre com um elemento decisivo da historiografia em sua forma moderna, isto é, o regime dos vestígios como condição de uma postura reflexiva e controlada para com o passado.

Em todos os casos, portanto, podemos afirmar que há uma apropriação produtiva de elementos que são próprios da historiografia, e uma subversão programada no uso desses elementos, tendo em vista a pluralização das narrativas e interpretações sobre os passados tratados em cada um dos casos. O fator que nos parece decisivo aqui é, ao contrário do que certo pessimismo sobre a pluralização dos meios e suposta dissolução do regime dos traços pode indicar (ASSMANN, 1996), que a escrita colaborativa, a performance e as práticas do espaço podem configurar, assim como outras formas de popularização, momentos reflexivos, e não de pura contemplação, fruição ou diluição do passado apresentado. Nesse sentido, eles não rivalizam com a historiografia, mas colaboram com ela em algum sentido, ao se apropriarem de algumas de suas formas – a escritura e o regime dos vestígios - para oferecer interpretações potencialmente mais democráticas. Esse aspecto caracteriza uma reconfiguração da escrita e da inscrição do passado que é fundamental e nos leva a considerar outras condições sob as quais essas possibilidades se dão: a reconfiguração da memória e da presença do passado contemporaneamente.

A noção de popularização do passado tem a vantagem de assumir a contingência própria da historiografia diante da pluralização das formas pelas quais o passado é reconstruído e apresentado contemporaneamente. Essa contingência aponta para a difícil separação entre história e memória, sem que uma se dissolva na outra. Sobre essa última, os conceitos de memórias entrelaçadas e memórias multidirecionais (ROTHBERG, 2009) apontam para a transitoriedade, em especial, para sua dimensão de presença da coisa ausente, ocorrida anteriormente (RICOEUR, 2007). Esses conceitos destacam a dimensão processual, em vez da descrição de elementos como os quadros da memória ou os lugares de memória e seus vínculos substanciais com um grupo. São formas de pensar que, no lugar de uma compreensão reificante da memória e sua relação com a identidade, tomam-na em sua qualidade essencialmente temporal e relacional. Trata-se de conceitos que procuram evidenciar o caráter conflitivo dos atos de rememoração sem que se aponte teleologicamente para uma unidade final da memória de um grupo ou nação. São formulações que assumem a historiografia como parte dos atos rememorativos, a história escrita como um dos significantes da memória, embora com padrões sustentados na reflexividade e consciência do caráter transitório de suas compreensões.

Michael Rothberg (2009) defende a memória multidirecional como alternativa a um modelo competitivo segundo o qual uma memória se sobrepõe, desloca e apaga outras – como seria, para alguns, o caso do Holocausto, ao deslocar a memória da escravidão nos EUA. Ao reconhecer a força diferencial das narrativas que constituem a memória de um evento, Rothberg chama atenção para as transferências entre a lembrança de um acontecimento a outro. Segundo o autor, a noção de memória multidirecional se relaciona às lembranças encobridoras, reconhecendo sua ambivalência: de fato, uma lembrança pode obliterar outra e, simultaneamente ou em outro momento do tempo, servir de tela ou quadro para a projeção das lembranças reprimidas – como nos parece acontecer nas performances de Yuyachkani ou nas práticas de ressignificação dos monumentos.[28]

Não existiria, como supõe o modelo competitivo nos estudos e certa prática da memória coletiva, uma memória pura, unívoca ou própria, adequada a cada momento político. Em poucas palavras: o vínculo direto entre memória e identidade não é tão evidente. Ele existe, sim, e sobretudo nas condições de uma memória transnacional ou global, conformada pelos meios mais voláteis e democráticos do universo digital, memórias relacionais que, se definidas contrastivamente e sob o risco de prováveis silenciamentos, têm o “potencial de criar formas de solidariedade e novas visões de justiça” (ROTHBERG, 2009, p. 5).

Uma pergunta a ser enfrentada é sobre como o paradigma da presença, ativado nos casos analisados, assim como em outros momentos de expansão da história na esfera pública (SOBCHACK, 1996), pode oferecer formas justas, diferenciadas, identitárias e politicamente ativas de expressar o passado no presente. Acrescentaríamos que a expressão pública de representação e apresentação do passado transforma também as formas pelas quais esse mesmo passado é consumido e rearticulado na vida cotidiana de espectadores e produtores. Essa relação ativa, não monopolizada, entre o sujeito histórico e o objeto historiográfico, abre possibilidades significativas no entendimento acerca do passado como domínio público. O conceito de reencenação (re-enactment) tal como utilizado por Jerome de Groot (2009) pode oferecer subsídios importantes para reavaliar as experiências de produção de contato entre sujeitos e passados.

Para o historiador inglês, a reencenação, como combinação imaginativa do passado que busca nele alguma autenticidade, mistura a experiência do contato individual com o artefato histórico. Essa busca pela autenticidade (vista também no crescente apelo pela interatividade nos museus e nos meios digitais) aparece como sintoma da demanda por um passado que possa ser quase palpável e “visivelmente presente” (DE GROOT, 2009, p. 104). De todo modo, o que essa demanda pela “autenticidade palpável” do passado demonstra é a importância do que chamaremos aqui de forma ampla de uma “relação incorporada”.[29] Mas qual a importância dessa relação incorporada enquanto modalidade da experiência histórica? Há alguns aspectos dos movimentos ou cenas descritos que parecem afirmar a especificidade desses modos de relação entre sujeitos e história, como também entre saberes especializados (a própria historiografia) e escritas, práticas e lugares mais difusos: 1) a força da sensibilidade produzida através de modos não textuais de relação com o passado; 2) a variedade de rearticulações possíveis dos laços de pertencimento, memória coletiva e “comunidades imaginadas” através dos afetos mobilizados pela encenação, reencenação, reescrita e rememoração de fatos históricos; e 3) a configuração e força discursiva da autoria compartilhada. Tais aspectos encontram-se articulados de forma diferencial e desigual nos três casos.

O primeiro aspecto é mais pronunciado no segundo e terceiro casos por serem aqueles nos quais as reconstruções do passado ativam, de maneira mais evidente, a dimensão de presença, provocada pela sensibilidade do tema e da dimensão sensível das formas de que se servem, por oposição ao caso da Wikipédia, ainda demarcado por formas próprias ao que Gumbrecht (2010) chama de cultura de sentido. Porém, mesmo aí é possível surpreender um tensionamento do sentido calcado no texto explicativo, na produção de informação histórica especificamente, que se poderia relacionar a um pensamento que descreve, analisa e representa. Isso porque há uma desincorporação do autor sob o pseudônimo e fragmentação da autoria, atribuída a um nome correspondente a uma ideia própria. Desincorporação e fragmentação do autor, contudo, não são substituídas pelo vazio, por uma ausência, mas pela multiplicação das vozes que falam e produzem a história reconstruída numa disputa não velada - o histórico dos verbetes possibilita isso - em torno da representação histórica. Em outras palavras, mesmo que a apresentação do passado na Wikipédia não seja sensível e remeta diretamente à presença, ela convoca a sensibilidade e curiosidade histórica de muitos que, gratuitamente, se engajam na escrita.

Já o segundo e terceiro aspectos atravessam os três casos. A encenação e rememoração ritualizada dos fatos históricos nas artes cênicas ou despertadas pelo gesto iconoclasta rearticulam o pertencimento a comunidades imaginadas porque dialogam com o passado nacional, exibindo suas fraturas e, por isso mesmo, instauram outras comunidades imaginadas de conhecimento e identificação política a partir do tensionamento das memórias estabelecidas e seus sujeitos. Aqui se trata, portanto, da criação, mesmo que efêmera,[30] de comunidades de sentido e sentimento não subordinadas necessariamente ao nacional,[31] ou que pelo menos ressaltam o local como espaço primordial da memória e da política. A reconstrução do passado no primeiro caso, por sua vez, também serve de motivo para instaurar outra comunidade política constituída no processo entre anônimos a negociar o conteúdo e usos possíveis do conhecimento produzido.

Por fim, a autoria ou a autoridade partilhada na reconstrução do passado caracteriza os três casos. No primeiro, isso se torna evidente pelo processo de escrita do verbete e na discussão que seu mal uso suscitou entre os usuários da Wikipédia, ambos indicando a dissolução ou mutação da função autor. O caso do grupo teatral Yuyachkani também expressa a dissolução ou mutação da autoria, uma vez que a encenação do passado que protagonizam serve-se, por um lado, de material autoral variado, incluindo o universo mítico essencialmente coletivo; por outro, ao convocar a participação ativa do público, suspende a dicotomia e hierarquias entre atores e plateia, palco e rua, ficção e realidade, produtores e consumidores de história. Mais próxima do segundo caso, a ritualização iconoclasta do busto de Costa e Silva também é uma performance[32] que rearticula o espaço da cidade como lugar de inscrição histórica e não há nada mais anônimo, sem autoria, do que a vida urbana em meio aos seus signos. Mais importante, porém, é o conflito interpretativo despertado pela deposição do busto - lembremos, viralizada na internet - e que continuaria após a musealização da imagem urbana ao lado do relatório da comissão da verdade. Em todos os casos, pode-se dizer que se torna visível uma maneira de produzir a história de forma compartilhada. E isso se dá, para usar uma metáfora criada para pensar o primeiro caso, com a instituição temporária de uma rede de "atores" (no sentido de ação em torno de um processo coletivo) do que uma rede de "autores" (entendida como um conjunto de produtores individualizados de conhecimento).

Como já indicado, a relação incorporada com o passado vincula-se com a questão da presença. Destacamos que há uma disputa em torno do conceito. Se, para Ewa Domanska (2006), a presença deve ser entendida como “dimensão espacial” das coisas, para Hans Gumbrecht (2010), a reflexão sobre ela deveria se dar no terreno de uma resposta à hegemonia da hermenêutica como forma privilegiada de acesso ao passado - isto é, voltar a atenção àquilo que o sentido não consegue comunicar ou trabalhar na tensão constitutiva entre culturas de sentido e culturas de presença. Para Eelco Runia (2014), por sua vez, a presença poderia se definir como um “estar em contato” (literal ou figurativamente) com os eventos do passado. Considerar a presença como a forma não-representada na qual o passado está no presente talvez funcione como um mecanismo capaz de superar o conteúdo meramente textual ou semiótico das representações históricas e memoriais, como adverte Eelco Runia. A presença coloca em jogo, portanto, a possibilidade de uma relação de contato com a materialidade não mediada pela narração ou pela interpretação. Esse “estar em contato” (being in touch) seria definido, assim, como efeito de um desejo de compartilhamento real entre pessoas, coisas e eventos. Aqui, afirma-se novamente aquela mesma transferência que apontamos anteriormente: são menos autores do que atores, em um sentido amplo. Há menos autoria e mais agência.

Os casos evocados indicam a necessidade de repensar as relações complexas entre as variadas práticas de recordação, de apresentação e de representação do passado, que promovem a multiplicação produtiva dos tensionamentos da história e da memória pública. O que é próprio da historicidade democrática, como defende Jacques Rancière, é a polifonia e a tensão acerca da história. Que outros espaços mais apropriados para isso do que a cidade e seus monumentos, a encenação e mesmo a internet? Todos esses lugares e momentos se definem pela interação entre sujeitos históricos e formas da história que se encontram em movimento. Nesse espaço de abertura também a história enquanto disciplina é afetada. Embora saibamos o quanto “passado” e “presente” guardam proximidade, entrelaçamento e distanciamento, é preciso sublinhar que quando o “passado” se torna menos redutível a um sistema único de significados e efeitos, o “presente” se reorienta em meio a proliferação de histórias e memórias (Brown, 2001, p. 5). Assim, a história emerge de uma maneira diferente: potencialmente menos determinista do que antes. O que nos leva a pensar os efeitos para a historiografia profissional em situação, ou seja, como uma entre tantas maneiras disponíveis de pensar e apresentar a história nesse mundo.

Para retomar a noção consagrada por Michel de Certeau (2007), não há um lugar social da história exclusivo ou privilegiado, mas sim o trânsito dos sujeitos históricos – da ação e do conhecimento, diga-se - entre lugares diversos, assim como também não haveria a prevalência indisputada de práticas e escritas autorizadas pelo lugar social da historiografia. Por isso, os casos aqui tratados parecem oferecer elementos importantes para uma análise das historicidades democráticas que acontecem na relação entre a atividade pública e a história como domínio do indeterminado, trazendo inspiração e desafios para a historiografia profissional que se vê instada a posicionar-se frente a eventuais simplificações, falseamentos e outros riscos da popularização do passado. Jurandir Malerba (2014; 2017) lembrou, oportunamente, das obras de grande circulação claramente reacionárias, retrógradas, eurocêntricas e preconceituosas da/sobre a história do Brasil. Sendo assim, a historiografia poderia atuar, circunstancialmente, como árbitro, sem decair no arbítrio de pretensões monopolistas? (Cf., em especial, Araujo, 2017). A esse respeito, um bom exemplo recente é a resenha que Renato Pinto Venâncio fez do Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, de Leandro Narloch (Venâncio, 2018). Além disso, a produção pública da história no Brasil se encontra, desde pelo menos os eventos políticos de 2013, sob intensos fluxos de polarização e radicalização, o que certamente afeta, de maneiras que ainda precisam ser investigadas com mais atenção, os modos de distribuição e as possibilidades de constituição democrática das formas de conhecimento, acadêmicas ou não (ALMEIDA & BIANCHI, 2018).

Os movimentos aqui descritos configurariam territórios sem “nome próprio”? Jacques Rancière (1994) argumenta que a democratização funciona sempre na baliza entre saberes específicos e os afetos aos quais atinge e produz. É que, no tempo onde os nomes dos sujeitos não são reflexos do corpo do rei e, tampouco, “[d]os nomes comuns de classe”, torna-se cada vez mais problemático definir e fixar os espaços de participação entre quem “cria” e quem “consome”. Esperamos ter demonstrado que apenas exercícios capazes de compreender a não fixabilidade desses territórios podem, em algum sentido, compreender e explicar os fundamentos de seus desvios e das suas criações.

Agradecimentos

Agradecemos as interlocuções e o estímulo de muitas pessoas envolvidas no processo de escrita deste texto. Ao grupo de estudos Historicidades Democráticas e Popularizações da História (HDPD/NEHM), no qual a maioria das leituras presentes no texto acabaram sendo construídas criativamente. Agradecemos especialmente a Daniel Mendes, Rodrigo Machado, Aguinaldo Boldrin, em nome de todos os estudantes que participaram de nossas atividades. Um agradecimento especial para Ana Carolina Monay e Ana Mônica Lopes, cujas observações foram precisas para a melhoria da primeira versão do texto que apresentamos. À FAPEMIG, ao CNPq e à CAPES. Agradecemos, por último, ao Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM) e ao Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), por oferecer o espaço (físico e intelectual) no qual o presente texto foi escrito e pensado.

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Notas

[1] Essas condições são dadas pela emergência daquilo que Rancière identifica como sendo os sujeitos de história na era democrática. Para o autor, esses “não são nem os nomes de soberanos cujo corpo e fala regeriam um mundo de ordens hierarquizadas, nem os nomes comuns de classes que a ciência definira pela coerência de suas propriedades. São os nomes singulares, falsamente próprios e falsamente comuns, de um ser-junto sem lugar nem corpo; de um ser-junto que é um ser-entre: entre vários lugares e várias identidades, vários modos de localização e de identificação. Essa heresia ou errância moderna tem com efeito uma propriedade extraordinária: ela é idêntica ao princípio da lei que, declarando os direitos do homem e do cidadão, instala o sujeito democrático no infinito de seu desvio e de sua contestação recíproca e coloca, ao mesmo tempo, sua história fora daquilo que assegura a subordinação, nas incertezas da conjunção”. Cf. RANCIÈRE (1994, p. 100-101). O que estamos chamando aqui de “tema do passado” talvez esteja próximo do que Nicolazzi, em reflexões ainda inéditas, tem conceituado de “cultura de passado”, i. e., “as diferentes formas pelas quais, em distintas sociedades, o passado é culturalmente interpretado, apropriado, consumido, significado” e, ao mesmo tempo, “as variadas maneiras através das quais ele é cultuado e cultivado em determinados presentes”. O mesmo autor em sua análise sobre Leandro Karnal mostra os limites e possibilidades dos historiadores/historiadoras profissionais e públicos diante das demandas e expectativas de diferentes públicos (NICOLAZZI, 2018).
[2] Consultoria de empresa de filho de Lula se baseou na Wikipédia, diz PF. Folha de São Paulo, 27 nov. 2015. Disponível em: . Data de acesso: 4 dez. 2017.
[3] Sobre as potencialidades e limites da questão da popularização e democratização na Wikipédia, ver Bruns (2008); Phillips (2015), Kenneth (2008) e Vandendorpe (2008); sobre o caráter anedótico e acontecimental próprio às popularizações da história no Brasil, ver Malerba (2014) e Pimenta et al (2014).
[4] Para acompanhar as estatística da Wikipédia em tempo real cf.
[5] Como consta na própria Wikipédia, o termo wiki é utilizado para identificar um tipo específico de coleção de documentos em hipertexto, ou o software colaborativo usado para criá-lo.
[6] Wikipedia GPs! Half of all doctors go online to help diagnose patients while a quarter want health apps to help treat the sick. Daily Mail, 31 jan. 2015. Disponivel em: . Data de acesso: 4 dez. 2017; Doctors’ #1 Source for Healthcare Information: Wikipedia. The Atlantic, 5 mar. 2014. Disponivel em: . Data de acesso: 4 dez. 2017.
[7] Ver ; . Data de acesso: 4 dez. 2017.
[8] Toda a discussão pode ser visualizada na página: . Todas as citações a seguir também estão registradas no mesmo endereço. Data de acesso: 4 dez. 2017.
[9] Wikipedia in the Newsroom. American Journalism Review, 2008. Disponível em: . Data de acesso: 4 dez. 2017.
[10] Note-se que vulgar aqui remete na verdade a vulgo. Maria Angelica Melendi em seu estudo sobre os trabalhos de Rosângela Renó nos lembra que a palavra remete a popular, populacho, ralé, multidão, plebe. Cf. MELENDI, 2017, p. 183
[11] Revista Leituras da História. Editora Escala, ano IV, nº. 48, jan 2012, pp. 52-57,
[12] Entendemos a função autor aqui tal como Foucault desenvolveu originalmente em 1969. A figura do autor, ascendente após Gutenberg e a Reforma, tornou necessária a existência de uma figura identificável com a ideia, até como modo de desafiar a autoridade da Igreja Católica. Pensar o significado da função autor na historiografia já foi objeto de extensos debates. (WHITE, 1973; LACAPRA, 1985; CURCINO, 2016). Para nós, interessa aqui entender como essa função autor, posição socialmente construída e hegemonizada ao longo dos últimos quatro séculos, enfrenta agora tensionamentos, nesse novo cenário de pluralização das comunicações. Chartier de forma unilateral e polêmica, pois se apoia em apenas em algumas partes do elefante, chega a afirmar que a Wikipédia anula a função autor: “Wikipedia démontre et illustre les promesses d’une textualité numérique soustraite aux contraintes de l’imprimé : l’information peut y être actualisée en temps réel, l’accès en est gratuit, la construction en est collective, sans revendication de propriété intellectuelle. Elle peut-être ainsi tenue pour emblématique d’un mode de production des discours qui annule la « fonction auteur » (Foucault l’avait imaginé, Wikipedia le fait), qui libère le savoir de son appropriation éditoriale et qui constitue l’une des figures possibles de la communauté du web. Elle est un réseau social en elle-même, avec son espace de discussion et ses possibilités de révisions”. Alves (2015), tendo em vista a internet e os meios digitais, analisa as complexas transformações no exercício da função-autor. O autor procura pensar o que resta ou restará do autor moderno a partir do fato de que “a autoria persiste sendo um problema, uma questão em aberto. As reflexões levadas a cabo por Foucault permitiram, sem dúvida, jogar alguma luz nesse tema, mas não muito mais do que isso” (p. 93).
[13] Para acompanhar um pouco do debate que tem sido feito em torno da ideia de humanidades digitais Cf. BORGMAN, 2009; e SCHREIBMAN, SIEMENS e UNSWORTH, 2008; BERRY e FAGERJORD, 2017.
[15] Idem.
[16] Sobre o conflito armado cf., entre outros, Theidon (2004), Stern (1998) e Degregori (1996).
[18] Prefeitura “derruba” Costa e Silva. O Estado de São Paulo, 17 dez. 2014. Disponível em: < https://goo.gl/Tb9T2d>. Data de acesso: 4 dez. 2017; Prefeitura de cidade gaúcha derruba estátua de Costa e Silva. O Globo, 17 dez. 2014. Disponível em: < https://goo.gl/5nwnTd>. Data de acesso: 4 dez. 2017.; Baseada no relatório da Comissão da Verdade, prefeitura remove estátua de Costa e Silva. Zero Hora, 16 dez. 2014. Disponível em: . Data de acesso: 4 dez. 2017.
[19] Baseada no relatório da Comissão da Verdade, prefeitura remove estátua de Costa e Silva. Zero Hora, 16 dez. 2014. Disponível em: . Data de acesso: 4 dez. 2017.
[20] A derrubada do busto despertou uma “guerra” narrativa de baixa intensidade no Youtube: Cf. ; < https://goo.gl/R1Rznf >; < https://goo.gl/itTdgf >. Data de acesso: 1 jun. 2018.
[21] MP pede recolocação de estátua de Costa e Silva retirada de praça no RS. O Estado de São Paulo, 19 dez. 2014. Disponível em: . Data de acesso: 4 dez. 2017.
[22] Idem.
[23] Estudantes da UFPR derrubam busto do primeiro ministro da educação pós-golpe de 1964. Banda B, 2 abr. 2014. Disponível em: . Data de acesso: 4 dez. 2017.
[24] Alunos derrubam busto de ex-governador em ato de repúdio à ditadura. O Tempo, 3 abr 2015. Disponível em: . Data de acesso: 4 dez. 2017.
[25] Retrieving un untold story: voices of Spanish female artists finally heard. The Guardian, 15 fev. 2017. Disponível em: . Data de acesso: 15 fev. 2017; Retirada la ultima estatua de Franco em Madrid. El Pais, 16 mar. 2005. Disponível em: . Data de acesso: 4 dez. 2017.
[26] Sobre a cidade como lugar da história monumental veja-se o texto de Roland Barthes, “Semiologia e Urbanismo”, no qual retoma a inspiração de Victor Hugo acerca da cidade como inscrição histórica para pensar o espaço urbano como um sistema de signos constituídos e transformados ao longo do tempo (BARTHES, 2002). Ainda sobre a cidade como texto continuamente produzido pela interação entre lugar como sistema de posições e o espaço como lugar praticado ver o importante texto de Michel de Certeau que certamente se inspira em Barthes (CERTEAU, 1994: 169-217).
[27] A esse respeito Daniel Faria (2018, p. 60) afirma: "os conceitos e imagens em torno do espectral têm grande potencial interpretativo para a História que envolve a abertura, lenta e gradual, e a transição democrática inacabada – ou mesmo o retorno do passado que parecia passado (como no caso das defesas recentes de uma nova ‘intervenção militar’). A ideia do espectral, do fantasmático, é interessante por sugerir que as relações entre passado, presente e futuro não são simplesmente lineares. Aspectos do passado sobrevivem no presente como resíduos ativos, apontando para uma dimensão da História que não se dá como progresso e sim como trauma e repetição. Ela sugere, ainda, a ideia de uma presença latente, imaterial e, ao mesmo tempo, real. Por fim, o espectral contemporâneo tem relação com a dimensão midiática da realidade. Fotografias, vídeos e tantos outros aparatos fazem com que o cotidiano seja povoado de imagens, compondo um espaço público demarcado pela audiovisualidade."
[28] O funcionamento dessas transferências – o Holocausto como metáfora para outros eventos violentos como a descolonização, por exemplo – se assemelha à dinâmica das lembranças encobridoras (screen memories na tradução mais feliz para o inglês), conceito freudiano relativo às imagens da memória infantil que ocultam temporariamente eventos traumáticos.
[29] Embora não possa ser considerada uma tradução literal, a influência mais clara aqui vem do termo embodiement tal como empreendido por Vivian Sobchack onde, mais que uma metáfora abstrata do “outro”, o corpo é tratado epistemologicamente como uma existência concreta e viva: "[...] isto é, o corpo vivido como, simultaneamente, um objeto subjetivo e um sujeito objetivo: um conjunto sensível, sensual e senciente de capacidades materializadas e de agência que, literal e figurativamente, faz sentido para nós mesmos e para os outros" (SOBCHACK, 2004). Estamos assim ampliando a definição original da autora: do corpo para a performances próprias dos atos de recordação enquanto situação na qual objetos e sujeitos diversos estão em relação.
[30] Em outro momento queremos tratar sobre o fenômeno da efemeridade a partir de uma abordagem que libera a possibilidade de uma valorização ontológica e epistemológica de sua expressão.
[31] Acompanhando Jean e John Comaroff, contemporaneamente assiste-se a tensão entre a nação como comunidade imaginada sustentada na homogeneidade cultural e fraternidade horizontal, real ou fictícia, e comunidades imaginadas da diferença, ou, poderíamos dizer, de identificações múltiplas (COMAROFF & COMAROFF, 2012). Parece-nos que a memória e a história são objetos privilegiados dessa nova produção do político.
[32] Por perfomance entendemos, tal como os autores da Wikipédia em inglês, “[algo] amplo e pode incluir performances artísticas e estéticas, bem como concertos, eventos teatrais e arte performática; eventos esportivos; eventos sociais, políticos e religiosos como rituais, cerimônias, proclamações e decisões públicas; certos tipos de uso da linguagem; e aqueles componentes de identidade que exigem que alguém faça, em vez de apenas ser algo.“ "Performance studies." Wikipedia, The Free Encyclopedia. Wikipedia, The Free Encyclopedia, Disponível em: Acesso em 30 de maio, 2018.
[14] http://hemisphericinstitute.org/hemi/es/modules/item/416-yuya-sanaciones-reparaciones-rosa-cuchillo> Data de acesso: 4 dez. 2017. Tradução nossa.
[17] https://player.vimeo.com/video/146836605>. Data de acesso: 4 dez. 2017.


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