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Maio de 68 e o “efeito Bourdieu”: críticas ao estruturalismo althusseriano e ao reprodutivismo bourdieusiano em Jacques Rancière
May ’68 and the “Bourdieu efect”: criticisms of althusserian structuralism and bourdieusian reproductivism in Jacques Rancière
Revista Tempo e Argumento, vol. 10, núm. 24, pp. 341-377, 2018
Universidade do Estado de Santa Catarina

Artigos



Recepción: 05 Septiembre 2017

Aprobación: 12 Diciembre 2017

DOI: https://doi.org/10.5965/2175180310242018341

Resumo: Este artigo compõe-se de uma apresentação e uma análise das principais críticas ao reprodutivismo assinaladas por Jacques Rancière, desde seu afastamento do estruturalismo althusseriano no fim dos anos 1960, até suas críticas mais recentes ao reprodutivismo, especialmente aquelas relacionadas à noção de “redução das desigualdades” que aparece no pensamento de Pierre Bourdieu. Nesta análise, também são apresentados alguns aspectos das concepções sobre história, política e igualdade no pensamento de Jacques Rancière.

Palavras-chave: Jacques Rancière (1940-), Structuralism, Louis Althusser (1918-1990), Reproductivism, Pierre Bordieu (1930-2002).

Abstract: This article is composed of a presentation and an analysis of the main critiques towards the reproductivism pointed out by Jacques Rancière, from his deviation of the Althusserian structuralism in the late 1960’s to his more recent critiques towards there reproductivism, especially those critiques related to the notion of “reduction of inequalities” which appears in the thought of Pierre Bourdieu. In this analysis, some aspects of Jacques Rancière's conceptions of history, politics and equality are also presented

Keywords: Jacques Rancière (1940-), Structuralism, Louis Althusser (1918-1990), Reproductivism, Pierre Bordieu (1930-2002)..

1 Um balancete crítico do althusserianismo ou o dia seguinte ao Maio de 68

Professor emérito da Universidade de Paris VIII – Vincenne-Saint-Denis, Jacques Rancière é um dos mais importantes teóricos da estética e da política na contemporaneidade. Além disso, por transitar entre diversas áreas, pela força transdisciplinar dos conceitos que propõe, seu pensamento também tem sido debatido nos domínios da arte, da história, do cinema, da literatura e da educação, além, é claro, da filosofia.

No início de sua carreira acadêmica, Rancière fazia parte do Cercle d'Ulm [Círculo de Ulm], grupo de estudantes que se reunia na Escola Normal Superior, situada na famosa Rue d'Ulm, para promover o movimento estudantil francês, nos anos 1960. Rancière alinhou-se a estudantes que, pela divergência com a União dos Estudantes Comunistas (UEC), fundaram, em 1966, a União da Juventude Comunista Marxista-Leninista (UJC-ml), organização de inspiração maoísta. Nessa época, os militantes da UJC (ml) e também a Juventude Comunista Revolucionária – outro grupo dissidente da UEC de inspiração trotskista – atacavam o que chamavam de “ideologia burguesa” que estaria contaminando o pensamento da esquerda francesa por meio de ideias conciliadoras, pacifistas e humanistas, as quais eram identificadas como ideologias pequeno-burguesas, em geral reunidas sob o nome de “revisionismo”. Em contrapartida, propunham o desenvolvimento de um “comunismo científico”, da autonomia do movimento estudantil em relação ao Partido Comunista Francês (PCF) e uma ligação mais direta com as massas operárias.

Este universo rico em ideias, ações políticas e embates teóricos, certamente pode ser considerado representativo do ambiente político e intelectual que redundou na greve geral, desencorajada pelo PCF, em maio de 1968 na França, e nos protestos estudantis que se seguiram dando origem ao que se convencionou chamar Maio de 68, um dos acontecimentos revolucionários mais importantes do século XX pela capacidade de questionamento do status quo. No seu conjunto, considerando seus fracassos e contradições, o Maio de 68 é reconhecido pela significativa capacidade de transformação comportamental desencadeada pelos problemas levantados pelos movimentos de revolta e agitação cultural que, na época, postulavam, entre outros, maior liberdade sexual, ampliação dos direitos civis e igualdade entre homens e mulheres. É no desenrolar desses acontecimentos pré e pós-Maio de 68 que se encontram os termos das divergências que resultaram no afastamento de Jacques Rancière do pensamento de Louis Althusser.

No começo dos anos 1960, na Escola Normal Superior, Louis Althusser organizava um seminário de estudos dedicado à obra O capital de Karl Marx. As produções dos estudantes que frequentavam os seminários, entre eles, Rancière, resultaram na publicação de Lire Le capital [Ler O capital], uma das mais importantes obras capitaneadas por Althusser. Na época dos seminários, Segundo Rancière, Althusser “havia dito que a filosofia de Marx se encontrava em um estado prático em O capital, mas que era necessário desenterrá-la, formulá-la teoricamente. [...] era preciso decidir-se a extrair esta filosofia de O capital” (RANCIÈRE, 2012a, p. 23).[1]

Desde quando integrou o grupo que frequentava os seminários de Althusser, Rancière foi decisivo para o desenvolvimento das discussões, mas, pouco tempo depois, o estudante que inaugurou os trabalhos falando duas horas “com uma precisão e um rigor extremos” – conforme reconheceu Althusser posteriormente (ESTOP, 2014) –, aos poucos, se afastaria do mestre. Na época dos seminários, por sugestão de Althusser, coube a Rancière, então especialista no jovem Marx, a tarefa de mostrar o “corte epistemológico”, estabelecer a diferença entre o jovem e o velho Marx. “A tarefa de resumir os Manuscritos de 1844 e mostrar por que não eram científicos era relativamente fácil, porém mostrar como O capital muda tudo era algo muito mais complicado”. Ainda assim, apesar de tudo, escreve Rancière, “alguém tinha que tomar iniciativa, o que era uma loucura total”. Embora especialista nos Manuscritos, Rancière admite que, em relação a O capital, apenas “conhecia, como todo mundo, o primeiro capítulo do primeiro livro e só”. Nem Rancière, nem seus colegas de seminário, sabiam muito bem o que encontrariam pela frente, como extrair essa filosofia de O Capital, por isso, Rancière relembra esses trabalhos como “um processo completamente louco” em que ele, devido ao tempo exíguo para uma tarefa tão exigente, “desembuchava à medida que ia descobrindo” (RANCIÈRE, 2012a, p. 23, 24).

Segundo Rancière, inicialmente não havia a intenção de publicação dos textos do seminário. Ao final de 1963, Robert Linhart sugeriu transformar o texto de Rancière em um fascículo para a formação teórica, “pois era a época em que no círculo da Rua Ulm discutia-se muito e ocupava-se de organizar a formação teórica para os militantes da UEC. Todavia não se falava em publicar. Só me inteirei, escreve Rancière, de que se ia converter em livro muito mais tarde” (RANCIÈRE, 2012a, p. 24). Finalmente, em fins de 1965, o livro Ler O capital viria a público pela editora François Maspero, em dois volumes, reunindo textos de Althusser, Étienne Balibar, Roger Éstablet, Pierre Macheray e Jaques Rancière, aparentemente sem alterações das versões originais apresentadas nos seminários da Rue d’Ulm. “Os textos foram publicados como estavam, pelo menos o meu”, disse Rancière (2012a, p. 25).

Quando, em 1967, Althusser informava os autores de que haveria uma segunda edição e que poderiam aproveitar para corrigir os erros teóricos que eventualmente tivessem cometido, Rancière retomou seu texto, suprimiu as “partes um tanto ingênuas de jovem estruturalista que descobre O capital” e trabalhou intensamente em uma nova versão. Contudo, seu texto O conceito de crítica e a crítica da economia política - Dos Manuscritos de 1844 ao Capital,que deveria ser antecedido por outro texto[2] elaborado para acompanhar a reedição, os dois textos, pois, foram “suprimidos pelo editor por pressão dos coautores” na edição de bolso de 1968 (RANCIÈRE, 1974a, p. 95). Rancière, entretanto, não parece ter feito disso um “cavalo de batalha”:

Decidiu-se que a segunda edição seria como a edição inglesa que já tinha sido publicada e que só conservava os textos de Althusser e de Balibar. Isso foi tudo. Nunca houve nenhum comentário sobre o fundo da questão. Devem ter comentado entre eles, porém eu estava completamente fora do círculo. Devem ter pensado que certos textos não eram o que se necessitava teórica e politicamente falando, e o meu, com seu aspecto estruturalista um tanto belicoso, já havia perdido realmente a atualidade. Nesse momento não me disseram nada. A única coisa que me disse Althusser foi que era assim, que haviam decidido que só entrariam esses dois textos. Eu não fiz nenhum comentário, pouco me importava, não disse nada. Não estava muito contente [...], porque no final das contas havia trabalhado dois meses nele [...], porém em um sentido quase me alegrava pelo fato de já não estar vinculado a esse assunto. (RANCIÈRE, 2012a, p. 25)

Mesmo alegando não fazer alarido sobre essas divergências, é interessante notar a persistência de Rancière na publicação dos textos suprimidos em outros periódicos e coletâneas, mesmo em versões traduzidas. De todo modo, os violentos conflitos políticos que marcaram a segunda metade da década de 1960 estão também ligados aos conflitos teóricos entre muitos daqueles jovens que se reuniam na Rue d'Ulm e os quadros do Partido Comunista Francês (PCF):

O primeiro texto de ruptura do círculo de Ulm: É preciso revisar a teoria marxista-leninista? tomava por único alvo político o humanismo. E sem dúvida sua crítica era mais centrada que a de Althusser porque ela atacava de frente a política cultural do revisionismo, a negação da luta de classes entre intelectuais e a subserviência aos valores existentes da cultura burguesa. Designando e caracterizando assim seu alvo, ela rompia com a prudência althusseriana. (RANCIÈRE, 1974b, p. 103)

Havia grande desapontamento com a intelligentsia parisiense de esquerda, acusada de praticar apenas o teoricismo. A crítica às estruturas desiguais na sociedade e às diferentes formas de poder e dominação, então, passaram a constar das principais demandas da sociologia e da filosofia no pós-Maio de 68.

Durante os anos 1960, estudantes e intelectuais comunistas, com suas tendências diversas, revisionistas, maoístas ou marxista-leninistas, eram desafiados a renovar e revigorar a interpretação dos textos de Karl Marx. Aquele clamor pela mudança, que tomava as ruas em diversas partes do mundo, reverberava na Rue d'Ulm e, da mesma forma, se retro-alimentava nas produções artísticas e intelectuais, nos manifestos e nos panfletos que resultavam dos congressos estudantis e de iniciativas como as de Althusser, que buscavam a renovação das interpretações do pensamento marxista, então em crise, por meio de diferentes proposições sobre a “prática social, o terreno teórico e a prática política” (RANCIÈRE, 1974b). Essa atmosfera conflitante no campo das ideias políticas também inspirava as divergências entre o jovem estudante Rancière e seu experiente mestre Louis Althusser.

A despeito do rompimento de Rancière com a teoria de Althusser nas polêmicas em torno de Ler O capital e suas reedições e das controvérsias do Círculo de Ulm, a crítica ao althusserianismo tem como marco fundamental o texto Sur la théorie de l'idéologie que, segundo Rancière, fora o “primeiro balancete crítico do althusserianismo ou o dia seguinte ao Maio de 68” (RANCIÈRE, 1974b, p. 16). Redigido em julho de 1969, a partir dos cursos que Rancière coordenava já como professor da Universidade de Paris VIII, o texto foi publicado somente no ano seguinte, na Argentina, com o título Sobre la teoria de la ideologia, numa coletânea de textos intitulada Lectura de Althusser (Ed. Galerna, 1970), para a qual colaboraram Alain Badiou, Saúl Karsz, Emilio de Ipola e Jean Pouillon. Em 1971, saiu uma edição em português, pela editora Portucalense, com o título Sobre a teoria da ideologia – a política de Althusser. O artigo só seria publicado na França, em 1973, no n. 27 do periódico L'homme et la société. Essa versão, que se diferenciou das anteriores, segundo Rancière, “apenas por um asterisco”, veio a ser integrada no livro La leçon d'Althusser, publicado em 1974 pela editora Gallimard.

2 Críticas de Jacques Rancière ao conceito de ideologia de Althusser

O projeto dessa coletânea de artigos de forte crítica ao pensamento althusseriano, como se vê, só tomou corpo tempos depois da elaboração das primeiras críticas ao conceito de ideologia de Althusser. Portanto, antes de avançar na análise desse livro, é importante deter-se um pouco mais na crítica de Rancière ao conceito de ideologia de Althusser anunciada em 1969.

Em linhas gerais, Rancière acusa Althusser de não ter apresentado a ideologia como o lugar de uma luta, de uma divisão, mas como uma totalidade unificada. A luta de classes na ideologia, isto é, a ideologia como lugar de disputa, será esquecida por Althusser e “aparecerá sob uma forma fantástica, fetichizada, como luta de classe entre a ideologia (arma da classe dominante) e a ciência (arma da classe dominada) na articulação de duas teses: a ideologia como o contrário do conhecimento e a ideologia a serviço de uma classe dominante”. Aquilo que Althusser definia como ideologia, era apenas certa ideologia da classe dominante. “Para pensar uma função geral da ideologia, Althusser coloca a dominação de uma ideologia como dominação da ideologia”. Assim, a ideologia tornou-se o Outro da ciência. Essa oposição ideologia/ciência apenas restabeleceria “um espaço homólogo ao que pensa toda a tradição metafísica”, aquela que opõe a ciência a seu outro e institui um universo fechado de discurso dividido “entre o domínio do discurso verdadeiro e o domínio do discurso falso, entre o mundo da ciência e seu outro (opinião, erro, ilusão, etc.)”. (RANCIÈRE, 1974b, p. 237-241, passim).

Ocorre que, para Rancière, tal discurso marxista de ciência justificaria o conhecimento acadêmico e a autoridade do Comitê Central do PCF face à prática revolucionária dos estudantes tida como mero reflexo dos interesses da ideologia burguesa. Desse modo, a diversidade de ideias, de questionamentos, a pluralidade das manifestações teóricas e práticas estudantis e proletárias ficavam reduzidas à pura ideologia. Esse rigor teórico, isto é, a busca de uma teoria revolucionária, que Althusser perseguia ao afirmar que “sem teoria revolucionária, não há ação revolucionária”, convertia-se, segundo Rancière, num rigor pequeno burguês ao separar a teoria da prática, ao separar o saber acadêmico e a autoridade do Partido do saber dos estudantes e dos proletários. Reagindo a essa lógica althusseriana, Rancière finalizará sua crítica à concepção de ideologia de Althusser dizendo que, “separada da prática revolucionária, não há teoria revolucionária que não se converta em seu contrário” (RANCIÈRE, 1974b, p. 276, 277 passim).

Apesar de contundente, essa crítica ao conceito de ideologia de Althusser, como vimos, terminaria dispersa nas traduções em português e espanhol publicadas em lugares distantes da efervescência do debate pós-Maio de 1968 na França, pelo menos até aparecer no periódico L'homme et la société, cinco anos depois, em 1973. O interesse em trabalhar mais detida e rigorosamente na crítica ao pensamento de Althusser tornou-se mais premente, segundo Rancière, em razão do aparecimento do importante texto de Louis Althusser “Réponse a John Lewis”, publicado naquele mesmo ano de 1973. Trata-se do famoso texto em resposta ao filósofo inglês John Lewis, que publicara, no ano anterior, um artigo de forte crítica ao pensamento althusseriano no periódico Marxism Today, intitulado The Althusser Case (LEWIS, 1972). Nesse texto, John Lewis expõe o “anti-humanismo marxista” de Althusser que recusa a noção de alienação enfatizada por Lukács “como parte do hegelianismo essencial de Marx”. Principalmente em Pour Marx, Althusser combatia a influência crescente dos textos do jovem Marx no pensamento existencialista de Sartre e no marxismo humanista. Além disso, Althusser ainda teria abandonado as noções que estão nos termos do debate sobre a crítica da dialética e da filosofia de Hegel que gravitam em torno das noções de “alienação”, “negação da negação”, “superação”, “evolucionismo hegeliano” e os conceitos de “homem” e “humanismo” que emergem dos Manuscritos de 1844 e de textos como A Ideologia Alemã e Crítica da Economia Política. Esses textos do jovem Marx só foram amplamente conhecidos após 1932, os quais, para Althusser, apresentavam “termos que Marx nunca mais pensou”, mas que para marxistas como Lewis, o ineditismo e a própria rejeição de parte daqueles escritos por Marx, alegando problema de estilo, ausentes, portanto, nos escritos posteriores, notadamente n’O Capital, não representavam um corte no pensamento marxista, especialmente a partir de 1845, como queria crer Althusser (LEWIS, 1972, passim).

Para Lewis, o hegelianismo de Marx se expressaria em três noções: a noção de que ao criar seu próprio mundo pelo trabalho, o homem se cria; a teoria da alienação de Hegel; e a ideia de que no devido tempo o homem supera ou transcende a alienação. São conceitos hegelianos que Marx teria mostrado como deveriam ser entendidos em relação à vida material do homem no mundo real. Pra Lewis, “Marx nunca abandona esses três princípios. Enunciados nos Manuscritos de 1844, eles são expandidos e desenvolvidos na Ideologia alemã, e concretizados em O Capital” (LEWIS, 1972, p. 23, 24 passim). Lewis também recorre aos próprios escritos de Marx, em O Capital e nos Manuscritos, para dizer que, ao contrário da interpretação althusseriana, Marx afirmava que “toda a história do mundo não é mais que o engenho dos homens através do trabalho humano" e que "por atividade no mundo e mudando, ele, ao mesmo tempo, muda sua própria natureza e desenvolve as potencialidades que dormem dentro dele" (LEWIS, 1972, p. 28). Ao final, a acusação é a de que Althusser, contradizendo os escritos de Marx, afirmava que não é o homem que faz a história. Isso gerou a ideia de que a filosofia de Althusser girava em torno de uma noção de história como uma espécie de “processo sem sujeito”. Essa concepção foi exemplarmente resumida por Elisabeth Roudinesco:

Althusser pregava a autonomia da teoria marxista, da qual pretendia fazer uma ciência da política articulada ao princípio do materialismo dialético. Assim, distinguia essa teoria de uma filosofia da consciência fundada no sujeito [...] assinalava que a prática revolucionária, e portanto o engajamento subjetivo, era irredutível à consciência de si. Daí sua crítica ao humanismo clássico. Daí sua valorização de um “anti-humanismo teórico” e de uma concepção da história como um “processo sem sujeito nem fim”. [...] apoiando-se em uma teoria do inconsciente freudiano revisitada por Lacan, fustigava todas as formas de psicologia do comportamento para ressaltar que a prática política só fazia sentido por ser a expressão de uma filosofia do conceito capaz de se desvincular da metafísica especulativa para se tornar, pela luta, o instrumento da luta de classes na teoria [...] sob o risco [...] de destruir a própria noção de sujeito e asfixiá-la em uma estrutura lógica de tipo totalitário”. (ROUDINESCO, 2007, p. 164-165).

Num dos textos que compõem a Réponse a John Lewis, redigido em 1º de Maio de 1973, Althusser irá assumir a “fórmula”, “processo sem sujeito nem fim”, ao concluir que

a história é certamente um ‘processo sem Sujeito nem Fim(s)’, donde as circunstâncias dadas em que “os homens” agem como sujeitos sob a determinação das relações sociais, são o produto da luta de classes”. A história não tem, no sentido filosófico do termo, um Sujeito, mas um motor: a luta de classes. (ALTHUSSER, 1973, p. 76)

Essa contenda Lewis/Althusser tomou proporções significativas e, no final, Althusser saíra até mesmo fortalecido. Isso parecia aborrecer Rancière que acabaria por dar continuidade às críticas a Althusser, iniciadas em 1969, com a publicação, em 1974, desta coletânea de textos de forte crítica ao pensamento althusseriano reunidos em La Leçon d’Althusser. Rancière reputa, como vimos, ao aparecimento do texto Réponse à John Lewis como sendo o estopim de sua reação crítica:

O fato de que um texto tão ruim produzisse um efeito semelhante era sintoma de algo. Eu disse que, aparentemente, tudo estava como antes: havia uma aparência de torção, mas em substância foi não apenas idêntico, como também regressivo e denegatório em relação ao que tinha acontecido, ou seja, aos efeitos políticos do althusserianismo. Pareceu-me que eu tinha que chutar o balde, dizer exatamente o que havia sido o althusserianismo, quais seus efeitos, o que representava a suposta conversão de Althusser à política em 1973.

Se falarmos do efeito de Para ler O Capital, ele havia sido profundamente ambivalente. Por um lado, ele teve como consequência uma certa ordenação, posto que todas as tendências um tanto dissidentes, todas as perguntas em todos os sentidos, de repente sofreram uma freada brusca, pois Althusser afirmava que tudo isso era ideologia, papo furado, que o que necessitávamos era de ciência. A dita ciência tinha sido posta em prática a serviço da ortodoxia comunista. [...] essa autonomia da teoria que Althusser havia proclamado entregou o marxismo mais ou menos a todo mundo.

[...] De fato, o althusserianismo era ao mesmo tempo completamente dogmático e se submetia, ao fim e ao cabo, a toda uma ideia clássica do movimento proletário, de sua direção, de sua ciência, etc. e ao mesmo tempo, havia criado um objeto não identificado, a teoria de Marx, com tudo que isso implicava, o gesto de arrancar Marx de seus guardiões, do patrimônio dos partidos comunistas autorizados e permitir extrair dele todas as conseqüências. (RANCIÈRE, 2012a, p. 26-27)

Em La leçon d'Althusser, Rancière reconhece que aquelas teses fundaram, de uma maneira bastante paradoxal, a possibilidade de uma ruptura com o revisionismo. “Empresa teórica cujos fundamentos reacionários” Rancière alegava já ter se “esforçado por assinalar”, em 1969, em Sobre a teoria da ideologia (RANCIÈRE, 1974a, p. 95).

A rigor, concepções marxistas de caráter reformista são identificadas como revisionistas desde a virada do século XIX para o século XX.[3] Contudo, o revisionismo que Althusser passou a atacar é outro, além de que se tratava de outro momento, porém com elementos de fundo semelhantes. Com a edição integral dos Manuscritos de 1844, em língua russa, em 1956, rapidamente traduzidos em francês e em outras línguas na Europa, os textos do jovem Marx, mais uma vez, alimentavam novas interpretações que acirravam uma disputa que tinha, de um lado, os “marxistas ortodoxos”, acusados de praticar um marxismo economicista e, de outro, “marxistas reformistas”, “revisionistas”, estes últimos, em contrapartida, eram criticados pelos primeiros, por driblarem a radicalidade da revolução por meio de uma leitura humanista dos escritos de Marx. Os revisionistas eram, em sua maioria, pensadores não comunistas, muitos dos quais, membros de partidos de orientação social-democrata. Ao destacar o conteúdo humanista dos Manuscritos que, conforme alegavam, oferecia as bases para o entendimento das obras econômicas posteriores, os “revisionistas” eram acusados de praticar apenas manobras dirigidas a “salvar a propriedade privada e com ela a ordem ou a desordem social existente” (LLORENTE, 2010, p. 41).

Se na época dos seminários e congressos da Rue D'Ulm e na época da publicação de Ler O capital, o pensamento de Althusser encarnava a renovação da interpretação do pensamento de Marx e configurava-se como alternativa ao revisionismo, algum tempo depois, no entanto, para Rancière, esse encantamento havia sido quebrado:

em maio de 1968, as coisas clarearam-se brutalmente. Enquanto a luta de classes explodia de maneira declarada na cena universitária, o status do teórico foi posto em questão: não pelo habitual palavrório sobre a práxis e o concreto, mas pela realidade de uma revolta ideológica de massas. Nenhum discurso “marxista” pôde mais sustentar-se apelando à simples afirmação de seu próprio rigor. A luta de classes, que levou a desafiar o sistema burguês do saber, nos colocou o problema de sua última significação política, do seu caráter revolucionário ou contra-revolucionário.

Nesta conjuntura, a significação política do althusserianismo revelou-se totalmente diferente daquela que nós havíamos pensado. Não somente os pressupostos teóricos althusserianos nos impediram de compreender a significação política da revolta estudantil, mas também vimos, a partir de então, o althusserianismo servir aos mini-pensadores do revisionismo como justificação teórica da ofensiva “anti-esquerdista” e da defesa do saber acadêmico. Assim ficou claro algo que até então quiséramos ignorar: a ligação entre a interpretação althusseriana de Marx e a política revisionista não era simplesmente uma coexistência equívoca, era uma solidariedade teórica e política efetiva. (RANCIÈRE, 1974b, p. 228)

Nos cinco textos que compõem La leçon d’Althusser, mais a reedição de Sobre a teoria da ideologia, o autor tece inúmeras críticas a diversos conceitos relativos à teoria e à política “que é o centro da empresa Althusseriana” (RANCIÈRE, 1974b, p. 15), ora apresentando suas contradições no cotejamento com o próprio pensamento de Marx, ora suas contradições internas, ou ainda, relacionando essas contradições ao próprio devir dos movimentos sociais, intelectuais e políticos no decorrer dos anos que se sucederam ao Maio de 68 “em função dos efeitos da luta de classes no duplo lugar de onde ele [Althusser] falava: a Universidade e o PCF” (RANCIÈRE, 1974b, p. 15). Analisando diversos textos de Althusser, nesse livro, Rancière pretendeu realizar uma “desconstrução sistemática de sua problemática” que pôs em jogo “um certo número de personagens: a burguesia, a pequena burguesia, Feuerbach, o Marxismo-Leninismo” (RANCIÈRE, 1974b, p. 15). Nessas análises das “aventuras do ‘homem’ e das ‘massas’”, que Rancière destinava mais uma vez a serem ouvidas pelos leitores de Pour Marx, são retomados os termos de divergência da época da Revolução Cultural e das contestações dos estudantes à autoridade do saber. Nesses textos são apresentadas as limitações da teoria da ideologia de Althusser e são avaliadas as suas lições de “ortodoxia” ou de “autocrítica” (RANCIÈRE, 1974b, p. 15).

Não obstante não serem todos os termos das divergências entre Rancière e Althusser objetos centrais do presente estudo, é lícito destacar mais alguns aspectos de maior relevância nessa contenda, pois podem funcionar bem para a análise em proposição. Para Rancière, o que estava em jogo, entre outras questões, era a concepção de sujeito, ou de sujeito da história. Na sua interpretação, ao estabelecer uma divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual, Althusser ensejaria uma ideia de que as massas não fazem história, elas apenas conhecem a natureza: “As massas, diz Althusser, conhecem melhor a natureza, por que elas têm na produção uma relação direta com ela. Mas para a história, elas são separadas pela ideologia imposta pela classe dominante” (RANCIÈRE, 1974b, p. 31); é como se Althusser dissesse que a história não seria conhecida pelos operários senão pela mediação dos intelectuais; assim, a história seria mais difícil de conhecer que a natureza e a política mais difícil que a produção (RANCIÈRE, 1974b, p. 35). A prática social estaria contaminada pela máquina despótica dos Aparelhos Ideológicos de Estado e aos estudantes não caberia outra coisa senão conhecer as teses marxistas, as novas formas de sua interpretação e as condições de sua aplicação nos diferentes domínios, contudo, segundo Rancière, esses procedimentos de análise e aplicação só seriam possíveis, naquelas teses, “pela disciplina da ciência”, instaurando-se assim outra autoridade, isto é, a autoridade do cientista, a autoridade acadêmica de um saber que pretendia se colocar como única forma de problematização da “ideologia burguesa” em oposição à prática alienada da revolta estudantil e operária. Toda essa teorização que, para Rancière, não passava de “conversa fiada” (bavardage), não tinha outro objetivo que não o de introduzir uma falsa simetria, isto é, “a ideia de que, concernente à história, há muitas ilusões que necessitam a intervenção da filosofia” (RANCIÈRE, 1974b, p. 29). A ideia bastante discutida na Réponse a John Lewis de que os homens fazem ou não a história, segundo Althusser, remete-se ao que foi dito por Vico de que “a história é mais fácil de conhecer que a natureza porque tudo seria humano”. No entanto, o Marxismo-Leninismo, segundo Althusser, era categórico ao dizer que a história é mais difícil de conhecer do que a natureza,

porque as massas não têm a mesma relação prática direta que elas têm com a natureza (no trabalho da produção) porque elas são sempre separadas pela ilusão de a conhecer, pois cada classe exploradora dominante lhes oferece ‘sua’ explicação de história: sob a forma de sua ideologia que é dominante [...] e mantém as massas sob sua exploração. (ALTHUSSER, 1973, p. 36, 7)

Nesse ponto, Rancière objeta a interpretação althusseriana de Vico recorrendo ao próprio Marx d’O Capital. A referência citada por Rancière é aquela em que Marx retoma os estudos de Darwin como um exemplo de história da tecnologia natural da formação dos órgãos de plantas e animais considerados como meios de produção pela vida e que a história dos órgãos produtivos do homem social, por outras vias, seriam dignos de estudo semelhante. Assim, Rancière destaca o trecho em que Marx faz o seguinte questionamento: “e não seria mais fácil levar este negócio a bom termo, pois, como diz Vico, a história do homem se distingue da história da natureza no sentido de que fazemos aquela e não esta?” (MARX apud RANCIÈRE, 1974b, p. 30). Na sequência da citação, Marx afirma algo que parecia diferente do processo sem sujeito defendido por Althusser: “a tecnologia expõe o modo do homem de ação vis-à-vis a natureza, o processo de produção da vida material e, por consequência, a origem das relações e idéias sociais ou concepções intelectuais que resultam” (MARX apud RANCIÈRE, 1974b, p.30).

Althusser, nesses termos, estabeleceria uma oposição entre saber acadêmico e prática estudantil ou operária alienadas, entre teoria/ciência e ideologia, concebendo um marxismo denominado teoricista que nega o sujeito da história, que nega a vida material, a realidade social em nome de um rigor teórico supostamente fundamentado em uma “ciência” d’O Capital que poria em prática um motor exterior ao homem: a “luta de classes”. Para Lewis, “em todo O Capital, a emancipação do homem contra a alienação e o cumprimento de sua personalidade é o tema constante” (LEWIS, 1972, p. 26). Para Rancière, essa oposição entre ciência e ideologia, entre história e natureza, entre teoria e prática, contribuiu para um estado de coisa em que não importava mais o conteúdo das teses, mas a “oposição de uma autoridade à outra” (RANCIÈRE, 1974b, p. 97,98).[4]

Depois da publicação de La leçon d’Althusser, poucas vezes Rancière retomará as críticas a Althusser e, quando o fez, foi nos momentos em que fora questionado a respeito, como em entrevistas, ou em situações em que fora convidado a colaborar em colóquios e coletâneas “comemorativas” sobre o pensamento de Althusser.[5] Rancière não dá continuidade à crítica a Althusser em anos posteriores, apenas em momentos pontuais, não constituindo, portanto, uma obra de crítica do pensamento althusseriano. Mas alguns termos do debate, que já estavam colocados nos anos que se seguiram ao Maio de 68, seriam significativos no desenvolvimento posterior do pensamento de Jacques Rancière, especialmente no que diz respeito ao seu interesse pelo combate à hierarquia das competências e pela análise das condições da emancipação social ou individual, que o fez declarar o poder dos ignorantes ou a ascensão do “qualquer um” aos templos da arte, da literatura, do cinema e da história. Essas concepções podem ser percebidas, hoje, quando Rancière ainda propõe o reconhecimento da força política de um “espectador emancipado”, ou, como afirmou recentemente em entrevista, a defesa do amador diante de um mundo dominado pelos especialistas: “O amadorismo também é uma posição teórica e política, a que recusa a autoridade dos especialistas” (AUGUSTO, 2017).

3 Palavra operária e emancipação intelectual

Interessado neste debate sobre o sujeito e sobre as formas de sua emancipação ou as formas da emancipação social, ou, ainda, interessado mesmo no encontro deste sujeito da história, Rancière sairá em busca do protagonismo de indivíduos e grupos que compõem as massas e suas ações políticas.No começo dos anos 1970, durante os trabalhos na Universidade de Paris VIII, como militante da esquerda proletária – “sobretudo como militante de base que vai à porta das fábricas e aos bairros operários distribuir panfletos, colar cartazes de madrugada [...] e participar em ações coletivas” – e participando discretamente do Grupo Informação sobre as Prisões (GIP), liderado por Michel Foucault, Rancière lembra que o que era fundamental, referindo-se mais diretamente à famosa conversa de Foucault e Gilles Deleuze, Os intelectuais e o poder, publicada em 1972 (FOUCAULT, 1979), era a preocupação com o fato de que o prisioneiro falava, que não dependia mais de porta-vozes. Entretanto, Rancière marca certo distanciamento crítico, pois embora partilhasse do combate à hierarquia entre os discursos, ele defendia que era igualmente importante problematizar a “tirania do autêntico” (RANCIÈRE, 2012a, p. 36, 37passim).

A partir da metade dos anos 1970, então, Rancière mergulha no arquivo operário do começo do século XIX em busca desta “palavra operária”, dos momentos de “encontros e desencontros entre Marx e o pensamento político operário” (RANCIÈRE, 2012a, p. 43). Dessas inquietações e da intensa pesquisa nos arquivos, resultaram dois trabalhos: o primeiro, La parole ouvrière [A palavra operária], publicado em 1976, é uma reedição de uma seleção de textos apresentados em colaboração com Alain Faure, composto de brochuras republicanas e manifestos corporativos, textos e regulamentos de associações operárias, proclamações socialistas e apelos à união de classes; o segundo é exatamente o estudo dessa produção intelectual dos operários do começo do século XIX, que resultou em sua tese de doutorado, publicada em 1981, pela Editora Fayard, sob o título “La nuit des prolétaires – Archives du revê ouvrier”, [A noite dos proletários: arquivo do sonho operário, (RANCIÈRE, 1988)]. Nesse texto, Rancière examina os periódicos populares e os papéis das associações operárias que participaram também do debate das teorias e utopias socialistas e coletivistas nos tempos do crescimento industrial na França. Nesse estudo, observa-se que os grandes projetos humanistas, socialistas e saint-simonianos, já não convenciam os operários. As promessas desses “engenheiros da utopia” tornaram-se objeto de desconfiança e de crítica dos trabalhadores que, de alguma forma, cada vez mais, passavam a se colocar em outros lugares, em lugares que não lhes era dado ocupar, como a política, a filosofia e a poesia. Por empregarem a maior parte do dia no trabalho árduo das fábricas, só lhes restavam as noites para alimentar o sonho de escritor, poeta ou filósofo. Em A noite dos proletários, o autor de O ódio à democracia, apresenta aqueles anônimos que ousaram fazer uso, muito além do martelo, da pena e da palavra; ousaram organizar associações operárias e contribuir para uma imprensa periódica operária, ousaram desenvolver ações políticas e insistirem fazer do pensamento e da arte instrumentos de combate às condições da exploração fabril e de reflexão sobre as injustiças da vida a que estavam submetidos. Era preciso sair dos limites circunscritos pela hierarquia das competências.

O que Rancière encontrou, afinal de contas, “não foi a autêntica palavra operária, não foi uma afirmação identitária”. Havia, escreve Rancière, “toda uma retórica, todo um jogo sobre as identidades, sobre a identidade que o outro percebe”, oposta à palavra oficial do movimento operário e, ao contrário do que buscava certa “nova história”, no sentido da procura das “autênticas tradições do movimento operário”, o que os arquivos permitiam dizer sobre a palavra dos operários, por conseguinte, era algo que “não tinha nada a ver com a cultura operária tradicional, as festas populares, senão que queriam apoderar-se do que até aquele momento era a palavra do outro, o privilégio do outro”. Portanto, não foi uma forma de identificação com a tradição operária que Rancière encontrou nos arquivos, mas o contrário, isto é, formas de “desidentificação” que concorriam para sua crítica ao identitarismo, no sentido de que não se tratava da “ideologia operária contra a burguesa [...] mas fenômenos deflagradores do conflito ideológico e social [...] que ocorrem na fronteira” (RANCIÈRE, 2012a, p. 41-43passim). Para Rancière, conforme assinalou recentemente em entrevista,“a questão para os operários que procuravam emancipar-se era a de sair de um mundo onde deviam agir como operários” (AUGUSTO, 2017).

Foi nesse arquivo que Rancière descobriu o pedagogo francês Joseph Jacotot (1770-1840), professor, doutor em letras e matemáticas, capitão de artilharia das frentes revolucionárias que chegara ao posto de deputado em 1815. Como relator da Comissão que avaliou a abdicação de Napoleão, com a reação da Segunda Restauração, suas posições lhe custaram o exílio na Bélgica. Nos Países Baixos, Jacotot inventara um método de ensino da língua materna bastante peculiar pelo qual, além de uma abordagem analítica, defendia que é possível ensinar o que se ignora, que as inteligências são iguais e que a emancipação intelectual depende do pressuposto da igualdade intelectual.[6]

Mas o pensamento de Jacotot, apresentado por Rancière em “Le maître ignorant: cinq leçons sur l’émancipation intellectuelle”, (FAYARD, 1987), [O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual (RANCIÈRE, 2002)] é desenvolvido muito mais no sentido de uma análise política e filosófica da emancipação intelectual do que da proposição de métodos analíticos para o ensino. A emancipação intelectual, escreve Rancière, não depende de um método em particular, ela depende de uma questão filosófica, na medida em que é preciso “saber se o ato mesmo de receber a palavra do mestre – a palavra do outro – é um testemunho de igualdade ou de desigualdade” e de uma questão política: “saber se o sistema de ensino tem por pressuposto uma desigualdade a ser ‘reduzida’, ou uma igualdade a ser verificada” (RANCIÈRE, 2002, p.11).

4 O “Efeito Bourdieu” e as críticas ao reprodutivismo

Em O mestre ignorante, não há uma referência mais direta à crítica ao reprodutivismo. Essa crítica se depreende de uma leitura do texto completo. Uma das assinalações mais diretas dessa crítica está no prefácio à edição brasileira de 2002:

é por isto que o discurso de Jacotot é o mais atual possível. Se acreditei dever fazê-lo ouvir ainda na França dos anos 80, é porque me pareceu que ele era o único que poderia libertar a reflexão sobre a Escola do debate interminável entre [...] estratégias de “redução das desigualdades”. [...] a chegada ao poder do Partido Socialista havia inscrito na ordem do dia as proposições da sociologia progressista que a obra de Pierre Bourdieu, em particular, encarnava. (RANCIÈRE, 2002, p. 12-13)

Mas, mesmo antes de aparecer o livro que retomou o pensamento de Jacotot, em 1987, que, no todo, até aquele momento, consistia na mais contundente crítica ao reprodutivismo bourdieusiano, Rancière já havia, em meados dos anos 1970, começado a direcionar suas análises críticas às concepções reprodutivistas de Pierre Bourdieu, à história social e a certa impregnação de uma sociologia denuncista no pós-Maio de 68. Mas antes de entrar na apresentação dessas críticas, vejamos em resumo em que consiste a sociologia progressista e reprodutivista de Pierre Bourdeieu.

Em busca de uma espécie de “teoria geral das classes sociais”, Pierre Bourdieu constitui uma extensa obra sobre os processos de diferenciação entre as classes sociais em correspondência com as práticas culturais. Nesses estudos, há um amplo esforço de reconstrução dos modos de distinção entre as classes, permeados por relações de poder e de dominação ideológica que denotam que as desigualdades sociais, em grande medida, são produtos de uma herança social, ou cultural. Essa obra atravessa três décadas: o primeiro importante texto, Les héritiers. Les étudiants et la culture [Os herdeiros. Os estudantes e a cultura] foi escrito ainda em 1964, depois, em 1970, aparece La Reproduction: éléments pour une théorie du système d’enseignement [A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino], ambos escritos em parceria com Jean-Claud Passeron. Em 1979, Bourdieu publica La distinction: critique sociale du jugement [A distinção: crítica social do julgamento]. Nos anos 1980, dois textos merecem destaque Homo academicus, de 1984 e La noblesse d’État [A nobreza do Estado], de 1989. É no interior desses textos, principalmente, que se encontram as teorias que se convencionou chamar de reprodutivistas ou, associadas a outros autores, também chamadas no Brasil de teorias crítico-reprodutivistas. Essa “escola de pensamento da reprodução”, por assim dizer, é caracterizada por esse conjunto de teóricos franceses dos anos 1960 e 1970 que, “por diversos caminhos, chegam à mesma conclusão: em vez de democratizar, a escola reproduz as diferenças sociais, perpetua o status quo e, por isso, é uma instituição altamente discriminadora e repressiva” (ARANHA, 1996, p. 188, grifos do autor). Além de Bourdieu e Althusser, nas teorias crítico-reprodutivistas são também incluídos Roger Establet, ex-aluno e colaborador de Althusser, co-autor em Ler o Capital, e Christian Baudelot, os quais, juntos, no livro L’école capitaliste en France (1971), retomaram a noção de escola como aparelho ideológico de Estado de Althusser para afirmar que a “escola tem a função de reproduzir as divisões sociais já existentes” (ARANHA, 1996, p. 192).

Especialmente nos textos Os herdeiros e A reprodução, Bourdieu e Passeron fazem uma denúncia das desigualdades de acesso à universidade francesa. Nesses textos são apresentados e discutidos os fatores sociais e culturais da desigualdade, a herança social, a hierarquia social, o capital cultural, o habitus, a ideologia legitimadora dos privilégios de classe, que determinam as condições do acesso ao conhecimento. Esses estudos serão ampliados em Homo academicus e em La noblesse d’État, por exemplo, mas também em diversos outros artigos, muitos dos quais podem ser consultados no livro Escritos de educação, importante coletânea de artigos publicados por Bourdieu em diferentes periódicos dos anos 1960 aos anos 1990 selecionados por Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani (BOURDIEU, 2012). Em certa medida, todo esse léxico de conceitos originais e métodos de análise elaborados por Bourdieu, influenciaram grande parte da produção sociológica mundial, inclusive no Brasil. Já A distinção, considerado um dos textos centrais da sociologia de Pierre Bourdieu e apontado como síntese dos estudos sobre a reprodução das desigualdades, é essa “crítica social do julgamento”, isto é, uma sociologia do gosto, das formas de distinção de classe, da produção e do consumo de bens cultuais.

A grande maioria desses estudos são devidamente amparados em rigorosas análises de dados estatísticos produzidos por importantes instituições francesas de pesquisas sociais e em dados empíricos e enquetes produzidas e analisadas em parceria com colaboradores e colegas de Pierre Bourdieu. No conjunto, constituem uma autêntica pesquisa sociológica de análise quantitativa e qualitativa desenvolvida coletivamente que revela a desigualdade socialmente condicionada de acesso ao conhecimento e os condicionantes das práticas culturais, essas, para Bourdieu, ao contrário da ideologia carismática do dom natural do gosto, são “o produto da educação” (BOURDIEU, 2013, p. 9). Além da constatação do privilégio das classes burguesas no acesso ao ensino e a determinados bens culturais e da apresentação do caráter social das distintas formas de gosto, de senso estético e de apropriações de bens culturais, simbólicos e intelectuais, nesses textos, observa-se também uma crítica à inculcação ideológica arbitrária da cultura das classes dominantes no sistema de ensino e sua reprodução que determina o próprio processo de violência e exclusão dos filhos dos operários desse sistema e revela sua perpetuidade, uma vez que, entrando nesse sistema, quer seja por mérito, quer seja por meio de de “políticas de inclusão”, os filhos da classe trabalhadora, meramente reproduziriam a sua lógica e as suas ideologias já que “para os filhos de camponeses, de operários, de empregados ou de pequenos comerciantes, a aquisição da cultura escolar é aculturação” (BOURDIEU; PASSERON, 2014, p. 40).

Para Bourdieu, o sistema de ensino não é neutro, pois possui uma autonomia relativa e é dependente da estrutura das relações de classe. Enquanto aparelho de Estado relativamente autônomo, presta um serviço de forma dissimulada às classes dominantes ao impor uma identidade entre a cultura escolar e a cultura das classes dominantes, por meio da autoridade pedagógica, do doutrinamento ideológico e do poder político. A autonomia relativa desse sistema de ensino é justificada pelas “funções externas”, as “funções de classe”, funções dissimuladas que ele cumpre, além de sua “função própria”. Bourdieu subordina, portanto, a dependência relativa desse sistema à estrutura das relações de classe. Os mecanismos através dos quais esse sistema de ensino dissimula suas funções externas, em última instância, é sua condição ideológica, uma vez que seu caráter ideológico é esta “dissimulação da relação entre a função própria e as funções externas da função própria” (BOURDIEU; PASSERON, 2011, p. 229, 230 passim).

A esse sistema, Bourdieu contrapõe o que denomina de “pedagogia racional”:

na ausência de uma pedagogia racional que coloque tudo em prática para neutralizar metodicamente e continuamente, da escola maternal à universidade, a ação dos fatores sociais de desigualdade cultural, a vontade política de oferecer a todos chances iguais diante do ensino não consegue vencer as desigualdades reais, ainda que se arme de todos os meios institucionais e econômicos; e, reciprocamente, uma pedagogia realmente racional, isto é, fundada numa sociologia das desigualdades culturais, sem dúvida contribuiria para reduzir as desigualdades diante da escola e da cultura, mas somente poderá concretizar-se efetivamente se forem oferecidas todas as condições de uma democratização real do recrutamento dos mestres e dos alunos, a começar pela instauração de uma pedagogia racional. (BOURDIEU; PASSERON, 2014, p. 101, grifo nosso)

Assim como o reprodutivismo, as teorias progressistas partem também dessa constatação de uma realidade desigual e do reconhecimento de que o acesso ao saber tem sido sistematicamente negado às classes mais pobres, contudo, se a escola é reprodutora de uma ideologia dominante, ela também pode ser igualmente o caminho para romper com essa desigualdade a partir do reconhecimento político da educação que pode permitir transformar essa realidade, já que se exige que “o professor tenha, aliado à competência técnica, um compromisso político a orientá-lo na escolha das prioridades em educação, não só quanto ao conteúdo transmitido, mas também quanto à maneira de ensinar, tendo em vista objetivos que não se separam da realidade concreta vivida” (ARANHA, 1996, p. 213, grifos do autor).

A essa denúncia do caráter ideológico da educação, da pedagogia e do processo de ensino e suas funções reprodutoras das desigualdades sociais, a sociologia das desigualdades de Bourdieu contrapõe alternativas que visam, como se vê, a “redução progressiva dessas desigualdades” mediante uma “neutralização metódica e contínua” dos “fatores sociais de desigualdade cultural” e pela democratização do recrutamento de estudantes e mestres. No caso das teorias progressistas, é proposta a transformação da realidade desigual que pesa sobre os estudantes excluídos por meio da ação política do professor que, contrariamente às pedagogias autoritárias, ou “não-diretivas” da “educação renovada”, não separa a realidade social da realidade política e, ao não recusar o papel organizador do professor, “na medida em que existe uma desigualdade inicial entre os dois” (ARANHA, 1996, p. 217), pressupõe encontrar essa sensibilidade e essa competência do professor no processo de redução progressiva das desigualdades, inclusive essa suposta desigualdade entre professor e aluno. Deste modo, ao fim e ao cabo, o papel do professor ou a forma de enfrentamento da realidade desigual do sistema de ensino, nas lógicas reprodutivistas e progressistas, termina sugerindo a realização de um trabalho ad infinitum de redução progressiva dessa “desigualdade inicial” causada pelo caráter reprodutivista do sistema ou pela pressuposição de uma desigualdade primeira.

Mas, como dito antes, essas críticas ao reprodutivismo e ao progressivismo têm seu início, alguns anos antes do aparecimento de O mestre ignorante em 1987. Elas se encontram no contexto, já acima assinalado, dos trabalhos que Rancière desenvolvia em meados dos anos 1970 que resultaram na sua tese de doutorado e na publicação de documentos sobre o movimento operário da primeira metade do século XIX e no contexto da criação do Centre de Recherche sur les Idéologies de la Révolte fundado em 1974 a partir de um grupo de trabalho animado por Jean Borreil e Jacques Rancière. O Centro estava também ligado à Cadeira de História dos Sistemas de Pensamento do Collège de France ministrada por Michel Foucault entre 1970 e 1975 e à Universidade Paris VIII e contou com apoio de importantes pesquisadores como Geneviève Fraisse, Pierre Saint-Germain, Michel Souletie, Patrick Vauday e Patrice Vermeren, a partir do qual foi criado o Collectif Révoltes Logiques [Coletivo Revoltas Lógicas] que passou a publicar, em dois números anuais, a revista Les Révoltes Logiques, entre 1975 e 1981.

Formado principalmente por historiadores e filósofos, o Coletivo tinha como inspiração para o nome da Revista o poema “Démocratie”[7] de Rimbaud, composto logo após o fim da Comuna de Paris. O poema vinha estampado na contracapa do primeiro número da revista e reapareceu em alguns dos números seguintes:

Nesse poema, Rimbaud parodia o discurso de uma classe burguesa móvel e imperialista, expandindo-se da metrópole para as “terras lânguidas e perfumadas”, “alimentando”, como diz o poema, “a prostituição mais cínica” e “destruindo toda revolta lógica”. Após a sangrenta derrota da Comuna, confrontado agora com o “pântano”, como Rimbaud definira em outro lugar, da classe média francesa consolidando o ímpeto colonial que a impulsionaria nas próximas décadas, como se poderia imaginar um futuro diferente? [...] a “Democracia” evoca as conseqüências emocionais da repressão da revolução, a experiência vivida das possibilidades políticas que se fecham, o desmantelamento da concepção utópica da mudança – um conjunto de percepções e experiências, sem dúvida compartilhadas pelo coletivo Révoltes Logiques quando, após Maio de 68, voltaram-se para Rimbaud por um título. [...] O próprio título de Rimbaud, “Démocratie”, alude ao deslizamento ideológico do termo em seu próprio tempo: sofreu uma profunda modificação durante o Segundo Império quando foi apropriado pelo regime imperial em oposição ao regime burguês – o imperador afirmou ter devolvido às pessoas a sua soberania. As “revoltas” do título anunciam objetivos abertamente políticos da revista (em oposição a objetivos históricos ou filosóficos), sua tentativa de prolongar de outras formas as energias revolucionárias e democráticas da revolta recente em que haviam participado e um posicionamento contrário à forma como se deu a reabsorção da política na sociologia que dominava então a cena intelectual em curso no pós-Maio de 68. (ROSS, 2002, p. 125)

O objetivo do Coletivo era construir “uma outra memória” da revolta operária, diferente daquela “dos mestres”, das “representações de história construídas sobre o tema do crepúsculo dos heróis” que oferecia, em contrapartida, a afirmação da “incapacidade das massas e sua sede de servidão”. Era um objetivo que se contrapunha a uma história da “longa duração”, das “grandes regularidades de uma história imóvel, limitada pela natureza e pelas epidemias” como “memória do trabalho e dos dias do povo” que “reserva às elites o cuidado da mudança”. Nesses textos inaugurais, impressos nos versos da capa e da contracapa do primeiro número de Les Révoltes Logiques, é claramente perceptível que o alvo era a Escola dos Annales. Em contraposição, pretendia-se constituir uma memória que reagisse à imposição do Estado de uma “história de mestres que não conhecem a revolta operária nem a camponesa” ou certos “esquerdistas [gauchistes] do Partido que tinham no discurso histórico a auto-justificação de suas políticas”. O Coletivo Revoltas Lógicas procurava restituir ao debate o “pensamento de baixo” e, diferentemente das “genealogias oficiais da subversão”, ele propunha afirmar as “reais formas de elaboração, circulação, reapropriação e ressurgimento” da revolta operária, suas “características contraditórias e os fenômenos internos de micro-poderes” a ela inerentes. Tratava-se de interrogar “a história a partir da revolta e a revolta a partir da história” (LES REVOLTES LOGIQUES, n. 1, 1975; ROSS, 2002, p. 126, 127). O adjetivo “logiques” no título da revista, entretanto, suscitava outro conjunto de problemas:

aqueles que surgem na interação na escrita histórica entre duas lógicas interdependentes: a lógica do historiador e a lógica de seu objeto de estudo. De acordo com a lógica do historiador, a verdade está em dados sobre o passado transformado em conhecimento, e no conhecimento, em seguida, transformado em lições (“as lições da história”) para hoje. De acordo com a lógica do objeto (que é realmente apenas uma outra versão da lógica do historiador), a verdade estaria em uma autêntica “cultura da classe trabalhadora” que os marxistas e empiristas tanto acreditavam[...] uma verdade embutida em trabalhadores que não sabem ou articulam esta verdade mais do que podem evitar encarnando-a e manifestando-a ao olho treinado do historiador. (ROSS, 2002, p. 126)

Nas publicações dos números da revista que se seguiram até o começo dos anos 1980, apresentou-se o discurso das mulheres do século XIX, dos trabalhadores e dos intelectuais e, correndo o risco de “perder-se nos arquivos”, seus autores, de certa forma, perseguiram este “desejo utópico, ressonante com um maoísmo anterior, de verificar ‘outra memória’, uma memória popular ou o ‘pensamento de baixo’, livre de mediação e vinculado à capacidade do povo de se representar ou de escrever sua própria história” e opuseram-se aos “‘tipos’ sociais antropológicos e econômicos através dos quais a classe trabalhadora foi identificada e classificada, louvada ou denegrida”; a verdade, portanto, não estaria nem no sujeito, nem no objeto, pois, tal como o que é visto como influência de Hegel no pensamento de Marx, o saber não estaria separado do objeto e inclusive se transforma na relação com ele. O Coletivo, ao propor investigar “as particularidades do discurso dos trabalhadores”, teve de desenvolver um trabalho “excessivamente paciente e demorado no desembaraçar dos arquivos na busca de especificidades” que exigiu “uma leitura cuidadosa dos textos, muitas vezes obscuros” e teve também de “enumerar os tipos de empresas históricas ou escavações de memória popular que não se assemelham, nem se realizam” desfazendo estereótipos para rejeitar qualquer “relação pedagógica entre passado e presente” e “reconhecer o momento de uma escolha, do imprevisível” de “tirar da história nem aulas nem explicações, mas o princípio de uma vigilância em direção ao que é singular em cada chamada à ordem e em cada confronto”, já que “o passado permite certa vigilância no presente, a capacidade de saber quando se deve fazer uma escolha, uma escolha contingente e singular, e não o produto de estruturas ou determinações repetitivas”. Para o Coletivo era importante estabelecer “rupturas em vez de continuidades, indivíduos singulares ao invés de aglomerações estatísticas” e verificar “o que as pessoas disseram em vez do que foi dito em seu nome: ‘O que nos interessa... [diziam os editores] é que a história seja sempre um intervalo, para ser interrogada apenas aqui, apenas politicamente’”. Tratava-se de reagir a uma “história social” que procurava a correspondência ou o conflito das verdades estatísticas com as supostas naturezas essenciais do trabalhador e defender que “foi o encontro com pessoas diferentes de si mesmas – e não o brilho da identidade compartilhada – que permitiu que um sonho de mudança florescesse”(ROSS, 2002, p. 128-130, passim).

Se os trabalhos do Coletivo Revoltas Lógicas permitiram uma nova “memória” da revolta ou o esboço de uma concepção de história que Rancière iria desenvolver em trabalhos posteriores como, por exemplo, em Les noms de l’histoire (1992) [Os nomes da história] ou em Sens et figures de l’histoire (1996) [Sentidos e figuras da história], eles também revelaram essa busca por vozes negligenciadas e, pelas mesmas ambições teóricas que os impediam de seguir o caminho empirista factual, tentaram construir uma espécie de “hiper-empirismo: a recusa de conceituar ou generalizar” (ROSS, 2002, p. 130). Essa recusa da generalização ou da verdade estatística e mecanicista, práticas recorrentes na história social e na sociologia, foi novamente posta em prática nas críticas ao reprodutivismo bourdieusiano alguns anos depois, em 1984, num dossiê intitulado L’empire du sociologue [O império do sociólogo] assinado pelo Coletivo Revoltas Lógicas no número 384 da revista Cahiers libres. Aí se percebe como essas concepções políticas sobre a história de caráter antiestruturalista, antigeneralista e antiessencialista converteram-se também numa concepção antirreprodutivista.

Em L’empire du sociologue, são assinaladas fortes críticas à condição estruturalista e reprodutivista dos textos bourdieusianos ao se defender que “a crítica das ilusões dos Herdeiros acompanha em sua origem a grande batalha althusseriana pela ciência revolucionária contra a ideologia”.“A teoria da reprodução”, escreve Rancière [Et al.],“mistura a austeridade estruturalista de seus axiomas aos acentos da Revolução cultural e da luta contra a ‘escola de classe’” (COLLECTIF “REVOLTES LOGIQUES”, 1984, p. 6). Percebe-se aí uma ligação entre a crítica que Rancière endereçou ao estruturalismo althusseriano na primeira metade dos anos 1970 e, uma década depois, as críticas a um estruturalismo em forma de reprodutivismo progressista, notadamente aquele que emerge de uma parte da obra de Pierre Bourdieu.

Vê-se aí uma clara reação à obra de Bourdieu, mas também a outros autores que faziam coro a certa prática denuncista da sociologia. Reagindo a essa crítica social “desmistificadora” e “conscientizadora” que se ocupava exclusivamente de denunciar o consumismo cego preso à onipotência da “indústria cultural” e à imperiosa ideologia dos aparelhos de Estado ou da dominação da ideologia burguesa, que tinham como resultado a instituição de um operário/estudante/espectador/consumidor passivo e sem consciência, doravante manipulado pela ideologia burguesa, os autores chegam a acusar Adorno de ter retomado essa crítica como “denunciação do consumo conspícuo”. O pensamento da reprodução “permite denunciar ao mesmo tempo os mecanismos da dominação e as ilusões da libertação”. Em síntese, o Coletivo que assina o texto reconhece o problema dessas abordagens sociológicas com a seguinte questão: “a crítica social ‘desmistificadora’ das grandes palavras e das vanidades estéticas não se tornará, ela também, pouco a pouco, o pensamento ordinário de assentimento à ordem existente?” (COLLECTIF “RÉVOLTES LOGIQUES”, 1984, p. 7-9 passim).

Essas críticas passaram a ser definidas por Jacques Rancière como uma reação a duas estratégias de “redução das desigualdades”, isto é, a estratégia “Republicana” que circulava no revisionismo e na social democracia e a estratégia progressista de inspiração reprodutivista que levara François Mitterrand ao poder em 1981:

ora, as duas posições se punham de acordo quanto a um ponto fundamental, que serve de referência comum para a ideologia “progressista”: nos dois casos, o saber é entendido como instrumento de igualdade – diretamente, para os republicanos; por meio do saber acerca das desigualdades transmitidas pelo saber, no caso do sociólogo. Mas, em definitivo, é sempre o saber que se faz instrumento de igualdade: um mesmo modelo estava na base das duas posições. A ideia de emancipação intelectual era, justamente, o questionamento desse modelo comum. Nenhum saber, por si próprio, traz a igualdade como efeito. A igualdade, nela mesma, não é nem um efeito produzido, nem uma finalidade a ser atingida, mas um pressuposto que se opõe a um outro. Por trás da polêmica entre “republicanos” e “sociólogos”, há de fato a oposição entre aqueles que tomam a igualdade como um ponto de partida, como um princípio a ser atualizado, e aqueles que a concebem como um objetivo a ser atingido por meio da transmissão de um saber. (RANCIÈRE apud VERMEREN; CORNU; BENVENUTO, 2003, p. 186-187).

E as políticas progressistas que se concretizaram em anos posteriores, no governo de Mitterrand e em muitos governos socialistas e, por outros meios, em tantos outros governos republicanos, ratificaram a racionalidade da pedagogia bourdieusiana de recrutamento dos bons mestres para “conscientizar” os pobres de sua “condição desigual”, por meio do saber.

Nesse sentido, a escola progressista acabava propondo uma pedagogia de redução das desigualdades que é, a rigor, o objeto central da crítica de Jacques Rancière à obra de Bourdieu:

esta obra, como se sabe, instalava no âmago da desigualdade escolar a violência simbólica imposta por todas as regras tácitas do jogo cultural, que asseguram a reprodução dos “herdeiros” e a auto-eliminação dos filhos das classes populares. Mas ela retira dessa situação, e segundo a própria lógica do progressivismo, duas consequências contraditórias. Por um lado, ela propõe a redução da desigualdade pela explicitação das regras do jogo e pela racionalização das formas de aprendizagem. De outro, ela enuncia implicitamente a vanidade de qualquer reforma, fazendo dessa violência simbólica um processo que reproduz indefinidamente suas próprias condições de existência. (RANCIÈRE, 2002, p. 11, 12, grifo nosso)

Essa reprodução indefinida e a inocuidade de seu enfrentamento são, para Rancière, a condição segundo a qual a onda de denuncismo das ilusões do consumismo, a desmistificação das ideologias enclausurantes do sistema educacional, dos sistemas de mídia e de consumo, a onipresença dos Aparelhos Ideológicos de Estado como responsáveis diretos da sujeição indefectível do sujeito ao poder alienante do sistema vigente, levou ao “fervor órfão de denunciar o sistema com a certeza desencantada de sua perpetuidade” (COLLECTIF “RÉVOLTES LOGIQUES”, 1984, p. 7).

Tais concorrências para essa espécie de paradoxo, em que se aponta um problema e, ao mesmo tempo, a inutilidade da tentativa de sua resolução, foram consubstanciadas por Kristin Ross na introdução que elaborou para sua tradução de Le maître ignorant. A professora de Literatura Comparada da Universidade de Nova Iorque define essa tautologia como uma espécie de paradoxo e a denomina de “Efeito Bourdieu” [Bourdieu effect] e ilustra o efeito dessas ideias por meio de duas passagens[8] retiradas dos dois textos clássicos da parceria de Bourdieu e Passeron. Para ela, esse paradoxo é uma situação aporética que forma um “círculo perfeito” no qual os membros da classe operária, ou, numa apropriação mais ampla, os membros da classe excluída do sistema de dominação, “são excluídos porque eles não sabem que são excluídos; e eles não sabem que são excluídos porque são excluídos” (ROSS, 1991, p. X). Em Rancière, o problema da exclusão da classe trabalhadora da universidade não se resolveria através do modelo bourdieusiano em que o sistema de ensino visa reduzir uma desigualdade. Por meio das concepções de Jacotot, Rancière assinala que a igualdade deve ser colocada antes, como um pressuposto, como um axioma, não como um objetivo a ser atingido:

a prova da igualdade é uma prova prática, em ato. É claro que se pode afirmar que sua teoria [de Jacotot] é uma negociação teórica meio complicada, um pouco claudicante, entre duas coisas; a teoria dos elementos simples da ideologia e a contra-teoria do movimento de espírito, que se elabora no início do século XIX. O caminho analítico dos signos é assimilado a uma espécie de potência interior algo inverificável, algo obscura, que é a da vontade. [...] Mas a hipótese da igualdade das inteligências não é fundada em uma teoria do conhecimento. É uma pressuposição, no sentido de axioma, é algo que deve ser pressuposto para ser verificado. (RANCIÈRE apud VERMEREN; CORNU; BENVENUTO, 2003, p. 190)

O problema da igualdade continuará sendo objeto de análise de Rancière em seus estudos filosóficos sobre política e estética que desenvolveu nos anos 1990 e, mesmo na atualidade, esse problema é amplamente por ele considerado. Para Rancière, a “ordem social”, isto é, aquela em que “uns mandam e outros obedecem” é historicamente sustentada por fundamentos baseados ou numa ordem natural ou em convenções. Contudo, para ele, a política não é natureza, nem convenção, “é ausência de fundamento, é a pura contingência de toda ordem social” e existe política quando essa “ordem social” é perturbada, quando essa suposta “ordem natural” hierárquica é “interrompida por uma liberdade que vem atualizar a igualdade última na qual assenta toda a ordem social”. Essa suposta “ordem natural” na qual as “pessoas de posse”, “bem nascidas”, detentoras de um título positivo para governar (riqueza ou virtude), é justificada por “um logos que ordena e confere o direito de ordenar”,

mas esse logos primeiro já está mordido por uma contradição primeira. Há ordem na sociedade porque uns mandam e outros obedecem. Mas, para obedecer a uma ordem, são necessárias pelo menos duas coisas: deve-se compreender a ordem e deve-se compreender que é preciso obedecer-lhe. E, para fazer isso, é preciso você já ser o igual daquele que manda. É essa igualdade que corrói toda ordem natural. [...] A desigualdade só é, em última instância, possível pela igualdade. (RANCIÈRE, 1996a, p. 31)

A pressuposição da igualdade perturba a lógica da dominação. Por isso, a noção de igualdade que aparece no pensamento de Rancière – noção ainda obscura no contexto do afastamento crítico de Althusser e mais aparente nas críticas a Bourdieu e que atravessa quase toda a sua obra – parece estar sendo considerada cada vez mais central no pensamento de Rancière chegando a ser admitida como método.[9] Em nome de uma igualdade futura, Althusser e Bourdieu tiveram de pressupor uma desigualdade primeira. A desigualdade entre o intelectual e as massas operárias e estudantis para um e a desigualdade entre os distintos herdeiros e os estudantes filhos de operários, para outro. O método da igualdade em Rancière é a inversão das lógicas althusseriana e bourdieusiana, é a pressuposição de uma igualdade primeira. Contra uma história sem sujeito, Rancière buscou na história da revolta a história daqueles sujeitos que perturbaram a “contingência da ordem social”, a contingência da ordem causal histórica; contra um sujeito dominado, mero fantoche dos efeitos da reprodução das estruturas ideológicas, Rancière apresentou um “sujeito intelectual”, isto é, aquele que “participa da potência comum dos seres intelectuais” (RANCIÈRE, 2002, p. 45) e uma “emancipação intelectual”, essa “tomada de consciência, por parte de cada homem, de sua natureza de sujeito intelectual” (RANCIÈRE, 2002, p. 47).

5 Maio de 68: o dia seguinte ainda não terminou

Considerando a extensa obra de Jacques Rancière e sem pretender atribuir continuidade à trajetória de seu pensamento, que registra, naturalmente, nuances desde seu rompimento com o marxismo althusseriano até suas contribuições mais recentes no campo da política, da história e da estética, umas e outras aqui não discutidas em profundidade, é possível verificar o seu esforço em demonstrar a busca por outros fundamentos da política e por outras concepções de história diferentes dos modelos interpretativos estruturalistas e reprodutivistas. Ao reconhecer a alienação, a dominação, a desigualdade e a exclusão como problemas e tentar propor o seu enfrentamento, esses últimos, acabaram por sustentar as distâncias entre mestres e aprendizes, entre intelectuais e operários, entre os que supostamente conhecem os males da ideologia dominante e os meios de denunciá-la ou até, de forma melancólica, enfrentá-la, e aqueles que estariam simplesmente alienados às promessas desse sistema ideológico.

Esta “divisão policial de lugares” da democracia consensual (RANCIÈRE, 1996a), em que a cada um é atribuído um papel, um destino, termina por reiterar a antiga manutenção de uma promessa da igualdade futura em resposta à desigualdade presente. É um projeto que encontra lugar, como vimos, tanto entre republicanos, quanto entre progressistas, afinal, para ambos essa igualdade viria por meio de uma proposta de redução progressiva das desigualdades presentes. Essa crença estruturalista e progressivista que parte dessa divisão entre superiores e inferiores, portanto, acaba por criar um novo distanciamento a cada momento em que, pedagogicamente, pretende “conscientizar” os ignorantes de sua situação desigual. Um empreendimento como esse “só pode reduzir a distância com a condição de recriá-la incessantemente” (RANCIÈRE, 2012b, p. 13). É a “tarefa interminável de reduzir a distância irredutível” (RANCIÈRE, 2012b, p. 23). Em sua obra, Rancière buscou a abolição desta “divisão entre os que estão submetidos à necessidade do trabalho dos braços e os que dispõem da liberdade do olhar.” Alternativamente a essa divisão, Rancière propõe o reconhecimento dessa condição de sujeito intelectual que se conquista pela emancipação intelectual, como uma apropriação política da ação de insurgir-se contra a hierarquia dos lugares, de revoltar-se contra o lugar de cada um na ordem social hierárquica e de reivindicar a igualdade como pressuposto político e filosófico. Essa apropriação define, escreve Rancière, “a constituição de outro corpo que já não está 'adaptado' à divisão policial de lugares, funções e competências sociais” (RANCIÈRE, 2012b, p. 61).

Rancière reivindica a importância de certa desordem social, que é desordem dos lugares, quebra das hierarquias que desafia a cômoda interpretação sociológica, aquela em que tudo se reduz à luta de classes, aquela em que o rigor teórico de sua condição determinante, senão determinista, muitas vezes, não encontra correspondência na realidade vivida e corrói a tentativa de romper com visões dicotômicas entre dominantes e dominados. Essa desordem é o rompimento da ordem social em que cada um tem um lugar definido, é a recusa de um mundo dividido entre sábios e ignorantes, é o questionamento da voga progressista de “conscientização” dos pobres, operários e estudantes em relação aos efeitos dos mecanismos da dominação, “pois para os dominados a questão nunca foi tomar consciência dos mecanismos de dominação, mas criar um corpo voltado a outra coisa, que não a dominação” (RANCIÈRE, 2012b, p. 62).

Em nome de uma igualdade futura, o progressivismo e o reprodutivismo acabaram tornando-se elementos do próprio sistema que pretendiam denunciar de forma desencantada por meio de sua interpretação crítica. Assim, a problematização da igualdade, empreendimento certamente bastante caro aos franceses desde a Revolução Francesa, a Comuna de Paris ou o Maio de 68, continuam sendo fundamentais para Rancière.

Se não ficou tão evidente, neste texto, a demonstração de uma linha bem definida das concepções que caracterizariam o “método de igualdade” no pensamento de Rancière e as concepções sobre política, estética e história, que são as concepções que certamente mais se destacam em sua obra, buscou-se, no contexto de seu afastamento do pensamento de Althusser, das críticas a Bourdieu e mesmo das críticas à “história social”, apresentar e discutir passagens que denotam elementos de uma busca por “essa equivalência dos lugares, essa igualdade de estatuto das vozes, dos modos de fazer e de dizer” em que “a constituição das identidades deve ser pensada em relação às multiplicidades (de lugares, de pertencimentos, de experiências possíveis) e não remetida ao enraizamento em um lugar e em uma cultura” (SALOMON, 2013, p. 230).

Por isso, acredita-se que, para os estudiosos da obra de Rancière e talvez para boa parte dos Soixante-huitards, o dia seguinte ao Maio de 68 ainda não terminou. Não por um impulso meramente comemorativo do seu cinquentenário que se avizinha, tampouco pela defesa da existência escamoteada de um círculo vicioso que põe em funcionamento estruturas históricas que se repetem no presente, mas,como reconhecimento de um acontecimento passado que não teve a análise dos seus efeitos suficientemente esclarecida ou esgotada e de que a revolta contra qualquer forma de desigualdade ou submissão hierárquica é uma realidade que se presencia, sob múltiplas e novas formas, no presente. Portanto, não se trata de estabelecer uma relação de continuidade com um fato que aconteceu há meio século, mas de considerar o que nos tornamos depois desse fato, o que temos a dizer, considerando o passado, sobre as revoltas do presente.Trata-se de pensar menos os fatos do Maio de 68 e mais os múltiplos significados desses fatos, pensar quais problemas podem ser colocados no presente a partir desses eventos.

A ruptura da ordem hierárquica, o problema da igualdade, a emancipação, portanto, são problemas atuais; estavam colocados, de outras formas, pelos Quarante-hitards e pelos Communards e permanecem colocados no presente porque são problemas da ordem do desejo de apoderar-se do privilégio do outro, o privilégio sustentado pela fábula da desigualdade do mundo dividido entre superiores e inferiores que pode ser remetida a uma “injunção bem mais antiga”, isto é, a velha ordem platônica das histórias “de ouro e de ferro”, como evocou Rancière em 2006, em prefácio à reedição de Le philosophe et sès pauvres [O filósofo e seus pobres], isto é, a instrução que assevera que “cada um faça seu próprio trabalho e desenvolva a virtude de sua própria condição”. Trata-se de uma fábula admitida por Platão na República, mas uma fábula que é eficaz quando se crê estar na posição que ela legitima, a posição daquele que não tem tempo e, portanto, não tem mais escolha senão acreditar na fábula de sua inferioridade (RANCIÈRE, 2010, p. IV). Os eventos de Maio de 68, as análises de seus significados, isto é, as suas “afterlives” como diz Kristin Ross (2002) e a história desse afastamento crítico de Rancière do pensamento estruturalista e progressista, certamente contribuem para melhor compreender o significado das revoltas trabalhista e estudantil, de ontem e de hoje, contra a fábula de um mundo dividido entre superiores e inferiores, que reserva somente aos especialistas, aos privilegiados, o direito de fazer e de dizer.

Trata-se de um percurso, portanto, de meio século que pode dizer muito sobre o presente da revolta, sobre o presente das condições de enfrentamento do problema da identidade e do problema da igualdade. Em síntese, um passado que permite certa vigilância no presente diante das escolhas contingenciais como defendiam os editores de Révoltes Logiques. As revoltas do presente e suas contradições sugerem que esse dia seguinte ao controverso Maio de 68 – dia seguinte que é o próprio balanço de suas significações e que marca o desenvolvimento da obra de Jacques Rancière –, esse dia, pois, ainda não terminou, dura quase 50 anos, não pela suposta capacidade exemplar dos fatos passados, mas pela necessidade de continuar avaliando esses fatos a partir do presente e continuar a pensar o presente pelo ponto de vista político da memória e da história.

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Notas

[1] Todas as citações dos originais em espanhol, francês ou inglês são traduções livres do autor.
[2] Trata-se de um texto de avaliação crítica dos trabalhos realizados durante os seminários de Althusser que serviria de intróito ao texto revisado sobre os Manuscritos de 1844para a edição de bolso da Maspero. Uma tradução para o português desse texto foi publicada, em 1974, sob o título “Modo de usar – Para uma reedição de “Lire Le Capital”, na Revista Estudos CEBRAP, n. 7, [fev. mar.], 1974.
[3] Vide o debate levantado por Rosa Luxemburgo, em fins do século XIX, ao atacar a postura reformista e revisionista da social-democracia e de Eduard Bernstein. Esse debate foi travado por meio de textos publicados na imprensa da época e depois foram reunidos no livro Reforma ou revolução publicado em 1899 (LUXEMBURGO, 2015). Alguns textos do jovem Marx eram conhecidos já naquela época, o que motivava parte dos teóricos marxistas a questionar tanto o marxismo economicista praticado por uma filosofia marxista ortodoxa como a de Kautsky, quanto o reformismo da social democracia que recusava um dos principais pivôs do socialismo científico: o de que as contradições do capitalismo o levariam ao seu fim inevitável; portanto, para marxistas como Bernstein, reformar o capitalismo poderia ser uma maneira de se chegar a uma sociedade igualitária, socialista. É no questionamento dessa hipótese que reside a crítica de Rosa Luxemburgo ao revisionismo.
[4] Já no prefácio de La leçon d’Althusser, Rancière anuncia essa espécie de disputa pela autoridade sobre o outro que então já lhe incomodava. Essa autoridade do saber acadêmico sobre os pobres, sobre a desigualdade, que pretendia dizer o que deveriam ou não fazer os estudantes e os operários, considerados iludidos pelas ideologias pequeno-burguesas. E o Maio de 68 frustrou em grande medida aqueles que rezavam as cartilhas dos centros de formação política. De forma irônica e dura ele chama a atenção para grupos que denomina de “esquerdistas cansados” e “leninistas ossificados” que tomaram as máquinas deleuzianas à sua maneira dizendo para abandonar Marx, as velhas ilusões e os velhos livros, diluindo A genealogia da moral de tal forma que a revolução, o proletariado, tudo era libido reativa, ressentimento. Se Marx não funcionasse, que se ensaiasse Nietzsche, se não estivesse contente com Althusser, pois que tentasse Deleuze. “Assim, os discursos da impotência ecoavam: ‘tudo é luta de classe’ dizia Althusser, ‘tudo é libido’ respondia Lyotard [...]. “Era como se a educação recebida nos bancos da Universidade ou nas fileiras das organizações políticas”, escreve Rancière, “nos tornasse incapazes de falar de nossa história além das fantasias da especulação” (RANCIÈRE, 1974b, p. 13-14).
[5] É o caso de La scene du texte que foi apresentado em um colóquio sobre a obra de Louis Althusser na Universidade de Paris VIII e publicado pelas Presses Universitaires de France. RANCIÈRE, J. La scène du texte. [S. Lazarus (éd.)]. Politique et philosophie dans l’œuvre de Louis Althusser, Paris, PUF, 1993. Este texto foi traduzido com o título “Althusser: a cena do texto” e incluído no livro RANCIÈRE, J. Políticas da escrita. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995, p. 171-190. Ver também a coletânea de entrevistas com ex-alunos e colaboradores de Althusser em LASOWSKI, Aliocha Wald. Althusser et nous. Paris: PUF, 2016.
[6] Já realizamos um estudo sobre as ideias de Jacotote e a circulação de seu pensamento no Brasil: VOJNIAK, Fernando. O sujeito intelectual: leituras de Joseph Jacotot (1770-1840) no Brasil. In: _______. História e linguagens: memória e política. Jundiaí: Paco Editorial, 2015.
[8] Os excertos são: 1. Working-class youth are excluded from the University because they are unaware of the true reasons for which they are exluded (Les Héritiers); Tradução livre: “Os jovens da Classe Operária são excluídos da Universidade porque eles não têm conhecimento das verdadeiras razões pelas quais são excluídos”. 2. Their ignorance of the true reasons for which they are excluded is a structural effect produced by the very existence of the system that excludes them (La Reproduction). Tradução livre: “Sua ignorância das verdadeiras razões pelas quais são excluídos é um efeito estrutural produzido pela própria existência do sistema que os exclui.” ROSS, Kristin. Translator’s Introduction. RANCIÈRE, Jacques. The ignorant schoolmaster. Califórnia, Sanford University Press, p. XI.
[7] “Le drapeau va au paysage immonde, et notre patois étouffe le tambour. / “Aux centres nous alimenterons la plus cynique prostitution. Nous massacrerons les revoltes logiques. / “Aux pays poivrés et détrempés! – au service des plus monstrueuses exploitations industrielles ou militaires. / “Au revoir ici, n’importe ou. Conscrits du bom vouloir, nous aurons la philosophie féroce; ignorants pour la science, roués pour le confort; la crevaison pour le monde qui va. C’est la vraie marche. En avant, route!” RAMBAUD, Arthur. Démocratie. Iluminations. Poésies. [S. l.]: Maxi-Livres, 2002, p. 180.
[9] “O método da igualdade” é o próprio título do livro de entrevistas concedidas por Rancière a Laurent Jeanpierre e Dork Zabunyan,(RANCIÈRE, 2012a), sugerindo, portanto, uma síntese metodológica e conceitual de seu pensamento. É interessante notar a significativa frequência com que Ranciére retorna ao tema da igualdade intelectual de Jacotot na maioria de seus textos.


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