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“Este tipo de campanha vai provocar grandes baixas em nosso núcleo organizado”. Estratégias e experiências de um militante da esquerda armada entre os desempregados de São Paulo na década de 1980
“This type of campaign will cause great losses in our core organized”. Strategies and experiences of a militant of the armed left among the São Paulo unemployed in the 1980s
Revista Tempo e Argumento, vol. 10, núm. 24, pp. 452-483, 2018
Universidade do Estado de Santa Catarina

Artigos



Recepción: 23 Septiembre 2017

Aprobación: 04 Mayo 2018

DOI: https://doi.org/10.5965/2175180310242018452

Resumo: Partido Comunista Brasileiro Revolucionário. Esquerda Armada Movimentos Sociais. Redemocratização. Lucas Porto Marchesini Torres Doutorando em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Bolsista FAPESP. Campinas - SP - Brasil lucaspmt@hotmail.com Para citar este artigo: TORRES, Lucas Porto Marchesini. “Este tipo de campanha vai provocar grandes baixas em nosso núcleo organizado”. Estratégias e experiências de um militante da esquerda armada entre os desempregados de São Paulo na década de 1980. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 24, p. 452 - 483, abr./jun. 2018. DOI: 10.5965/2175180310242018452 http://dx.doi.org/10.5965/2175180310242018452 “This type of campaign will cause great losses in our core organized”. Strategies and experiences of a militant of the armed left among the São Paulo unemployed in the 1980s

Palavras-chave: Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, Esquerda Armada Movimentos Sociais, Redemocratização.

Abstract: The article questions the insertion of Antonio Prestes de Paula in the São Paulo's unemployed movement in the 1980s, when he worked simultaneously in the Worker Party (PT) and in the Revolutionary Brazilian Communist Party (PCBR). The text is based on documents seized in the residence of Prestes de Paula, after his involvement in a bank robbery in Salvador/BA (1986), an event that constituted the paroxysm of a practice of the Brazilian armed lefts, of which Prestes de Paula is an exemplary personification, and which were in decline in the 1980s. These historical sources (party texts, personal letters, meeting notes, minutes, etc.) reveal details of Prestes' experience among the unemployed in São Paulo, among which he defended the principles of the PCBR, and show how much his insistence on strategies of conflicts typical of the armed lefts of previous decades contributed to his isolation. Against the social movements of the 1980s, Prestes de Paula and the PCBR defended principles and practices that often ignored the experiences and values of the subjects with whom they related.

Keywords: Brazilian Communist Party Revolutionary, Left Armed, Social Movements, Redemocratization.

Introdução

No final dos anos 1970, inspirado pela pergunta sobre se deveriam os pobres se organizar, Eric Hobsbawm escreveu que a esquerda mundial quebrava “recordes de derramamento de tinta”. Para ele, “a evolução do capitalismo veio a prover muito do que os socialistas mais velhos consideravam impossível” e este antegozo da utopia, atiçou, “também não é muito apetecível” a tais velhos socialistas. Para o historiador, vivia-se “um mundo de arranha-céus cheios de elevadores, eletricidade e coleta automática de lixo”, algo que, em 1898, anarquistas previram para um mundo pós-revolução e ainda distante. Às portas do século XX, segundo Hobsbawm, boa parte dos trabalhadores do mundo gozava desse padrão de vida – o que podia valer para a Europa –, e, “se a esquerda pode ser forçada a pensar sobre a nova sociedade com mais seriedade, isto não torna a nova sociedade menos atraente ou necessária, nem a argumentação contra a sociedade atual menos importante” (HOBSBAWM, 2000, p. 399-405).

No Brasil dos anos 1980, um militante sexagenário e tarimbado entre as esquerdas investia horas e mais horas na Olivetti que tinha no quartinho dos fundos de seu apartamento, transformado em escritório, a fim de conceber uma produção escrita pela qual nunca fora reconhecido. À época líder do movimento dos desempregados paulistas, Antonio Prestes de Paula se empenhava em formular análises sobre seu cotidiano de militante, dividido entre os desempregados, o Partido dos Trabalhadores (PT), ao qual se filiara havia pouco tempo, e o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), organização da qual foi dirigente no fim dos anos 1960 e que abrigava-se no PT como tendência. Morador do bairro da Liberdade, vizinho a uma estação de metrô, Prestes de Paula residia junto com sua esposa e dois enteados num edifício de quinze andares, onde era servido por elevadores elétricos, coleta de lixo regular e até uma empregada doméstica: segundo padrões brasileiros, Prestes gozava uma vida privilegiada. Porém, Prestes não deixou de se inserir nesse mundo que não fora criado por uma revolução socialista – ao contrário, sucedia uma ditadura civil-militar de direita – com vistas em sua transformação, que para ele deveria ser acelerada de acordo com princípios cada vez mais peculiares naquele contexto.

Em abril de 1986, Prestes de Paula e outros companheiros executaram uma controversa tentativa de assalto a banco em Salvador, para a qual alegariam sua militância no PT e uma pretensa solidariedade à Nicarágua sandinista: evitando reconhecer sua atuação no PCBR, terminaram presos e processados. Inicialmente, Prestes conseguiu escapar da polícia, mas não por muito tempo. Antecipando a defesa necessária ao Partido dos Trabalhadores, a deputada Irma Passoni (PT/SP), líder do partido na Câmara Federal, foi a primeira que cogitou publicamente a vinculação do PCBR ao episódio. Ela acusou a sigla de pregar a luta armada e disse estranhar que a polícia o tenha deixado escapar, “justamente o que armou tudo”, afirmou, colocando a polícia no encalço de Prestes, preso semanas depois[1].

No decorrer das investigações, a Polícia Federal vasculhou o apartamento de Prestes de Paula à cata de indícios de suas atividades e apreendeu farto material: documentos partidários, atas de assembleias, cartas pessoais, fotografias, textos e rabiscos do próprio Prestes, etc. Apesar de nunca ter sido reconhecido por sua produção intelectual e teórica, o fracasso dos planos de Prestes e do PCBR em Salvador fez a polícia descobrir um esmerado e prolífico redator: conforme consta em relatório – contribuindo para o derramamento de tinta aferido por Hobsbawm –, a maioria do material coletado durante as buscas “foi encontrada no interior de um quarto que fica na lavanderia daquele apartamento, que é usado para escritório”[2]. Tais fontes inspiram substancialmente este artigo porque descrevem o cotidiano de um militante ligado à esquerda armada e que nos anos 1980 vivenciava relações nem sempre harmoniosas com seus companheiros. Elas revelam diferenças com as quais Prestes convivia e que, amiúde, eram obstáculos aos seus planos pretensamente revolucionários.


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Figura 1

A Folha de S. Paulo registrou a apreensão policial feita no apartamento em que Prestes de Paula residia na cidade de São Paulo. Folha de S. Paulo, 25/4/86.

Folha de S. Paulo, 25/4/86.

A vinculação entre a tentativa de assalto ao Banco do Brasil em Salvador e o PCBR, assim como a relação do assalto com a esquerda armada das décadas anteriores, não é nova na historiografia brasileira, como esclarece Marcelo Ridenti (1993). Contudo, a partir das fontes aqui analisadas, é possível compreender o evento a partir da lógica de um daqueles que tomaram parte nele – na condição de comandante, inclusive. O artigo – cuja pesquisa apurou pelo menos outros dois assaltos realizados pelo mesmo grupo de militantes – se debruça sobre a militância de Prestes de Paula para demonstrar como princípios revolucionários típicos de grupos das esquerdas armadas das décadas de 1960 e 1970 estavam em pleno descenso nos anos 1980, sem que estivessem de todo superados (TORRES, 2017). O PCBR poderia não ser a única tendência petista a defender princípios vanguardistas, mas é notório que o fracasso do assalto em Salvador serviu para inibir ações semelhantes, sepultando em definitivo a crença na preponderância do partido de quadros sobre o partido de massas (DIRCEU; POMAR, 1986, p. 9-36).

Nos últimos anos do século XX, como propôs Hobsbawm, “o que os radicais e os socialistas desaprenderam é como se chega ao novo a partir do velho”. Para ele, quando trabalhadores deixaram de querer se organizar em grandes exércitos mundo afora, as forças e mecanismos históricos que abasteciam os socialistas com esperanças de produzir um proletariado cada vez mais militante e combativo “não estão funcionando como se supunha que funcionassem” (2000, p. 405-6). Em sintonia com Hobsbawm, Eder Sader (1988) explica que os movimentos sociais brasileiros dos anos 1980 eram compostos por sujeitos sociais que defendiam autonomia em suas práticas e tinham no cotidiano de suas experiências comunitárias as bases de sua organização, afastando-se da tutela e da cooptação por núcleos dirigentes.

Como se verá, Prestes de Paula é exemplo eloquente de militante com tarimba nas esquerdas brasileiras que se mostrava incapaz de chegar ao novo a partir do velho: quanto mais profundamente insistiu em práticas armadas e em estratégias de confronto direto, mais se viu isolado. Sua insistência em dirigir a classe trabalhadora para destinos indicados por uma teoria pré-concebida se mostrou insuficiente para garanti-lo em sintonia com os sujeitos com quem convivia. Em um dos textos encontrados em seu apartamento, ele previu uma possível consequência das práticas que desenvolvia em nome do PCBR: “Este tipo de campanha vai provocar grandes baixas em nosso núcleo organizado”, escreveu, esclarecendo que temia “prisões e enquadramentos na Lei de Segurança Nacional”[3]. Seu vaticínio – que dá título a este artigo –, demonstra num primeiro momento que Prestes considerava a possibilidade de companheiros serem presos, o que aconteceu de fato em 1986, com ele inclusive. Mas o sentido delas, conforme se verá, pode ser estendido às restrições que as “campanhas” do PCBR acarretavam a seus militantes e à própria organização, aprisionada em princípios e práticas armadas de pouca aceitação social.

As duas camisas: do PT e do PCBR

Em seu retorno ao Brasil, após ser anistiado em 1980, Prestes aterrissou primeiro em Pernambuco, reestabelecendo antigos laços e construindo novas relações (TORRES, 2016)[4]. Desde que ingressou no PCBR, Prestes era companheiro do pernambucano Bruno Maranhão: compuseram o comitê central do PCBR nos anos 1970 e conviveram também no exílio francês de ambos (GORENDER, 2003). No Brasil, eles prosseguiram com sua militância, trabalhando simultaneamente pela legalização do Partido dos Trabalhadores e pela reorganização do PCBR. Mesmo com aparentes conflitos, nesse período, Prestes encontrou espaço para manter sua dupla militância: “Gostei do PT porque o PT quando surgiu era extremamente democrático” – portanto, capaz de acolher o PCBR como tendência. Ele aponta um atrativo: “Tinha aquela combatividade dos sindicalistas, a combatividade dos setores da Igreja”, ressalvando, “apesar de serem anticomunistas, muitos setores são antiorganização”[5]. Para Prestes, a resistência à presença no PT de antigos militantes das esquerdas armadas – os “comunistas” – incomodava alguns setores do partido, mas não era impedimento definitivo.

Em Pernambuco Prestes também conviveu com militantes de gerações mais jovens e solidificou relações pessoais e políticas. No cotidiano de sua militância entre o PT e o PCBR se enamorou pela companheira Teresa, vinte e um anos mais jovem, desquitada e mãe de dois garotos. Teresa e Prestes passaram a viver uma relação para a qual convergiam suas atividades políticas e a paixão de ambos, mas a presença de Prestes ali não se estendeu por muito tempo: em 1981 ele migrou sozinho para São Paulo e, como sugerem diversas fontes encontradas em sua casa, a transferência não era uma decisão apenas pessoal.

Desde que foi fundado, o PCBR possuiu raízes mais sólidas no nordeste. Da Bahia ao Ceará, o também chamado BR era a dissidência mais bem consolidada do PCB, o que se repetia no Paraná, conforme informa Gorender (2003, p. 112). Por outro lado, como ele também, em São Paulo o BR esteve pouco representado desde sua primeira formação. De acordo com Lincoln Secco (2011, p. 59), em São Paulo, tendências ligadas a sindicatos e intelectuais eram mais expressivas no PT. A julgar pela composição do grupo envolvido em suas ações na Bahia, o PCBR parecia ter se reestruturado recorrendo às mesmas bases de antes: nelas tomaram parte um cearense, um pernambucano, dois paranaenses e dois baianos. Se para assaltar bancos o BR recorria às mesmas bases, talvez para superar suas deficiências, a organização tenha decidido manter em São Paulo um valorizado quadro, Prestes de Paula, que se valia do posto de comandante militar do PCBR.

Em 1981 Prestes passou a morar em São Paulo na condição de militante “profissionalizado”, se dedicando integralmente à organização e dela recebendo módico auxílio financeiro (TORRES, 2017). Numa carta enviada por Teresa, consta recado de Bruno Maranhão, dirigente nacional do BR e do PT pernambucano naquele período: “Ele acha que teu círculo de amizade não deve ficar restrito à colônia nordestina”, escreveu, “diz que deves ter um relacionamento mais amplo, lembrando ainda a importância de um aprofundamento na amizade com Lula, visto teres tido uma boa relação com ele quando esteve aqui”. Em seguida, Teresa advertiu: “Não é interessante, contudo, entrar em discussão sobre o jornal”, pois o próprio Maranhão, junto com Rubens Lemos, “estão tratando dessa questão”[6].

A carta revela os planos do PCBR que Prestes deveria executar em São Paulo, onde estava a serviço da organização. Rubens Lemos, mencionado nela, também era militante antigo do BR: natural do Rio Grande do Norte, tinha ex-esposa e filhos morando em Londrina (PR), um deles, Marcos Lemos, de 22 anos, estava entre os presos pelo assalto de 1986 em Salvador.


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Figura 2

Da esquerda para direita aparecem

Francisco Weffort, então secretário-geral do PT, ombreado por Lula.

Mais ao lado, Rubens Lemos (de bigode) e Bruno Maranhão.

Foto do acervo pessoal de Teresa Notari, sem identificação.

Portanto, entre Prestes, Teresa, Maranhão e Lemos havia antigos laços pessoais e políticos, costurados primeiro no PCBR e, a partir dos anos 1980, também no PT. Ao chegar a São Paulo, Prestes se aproximou dos desempregados paulistas sabendo que não poderia perder Lula de vista. Os planos para o jornal que Maranhão e Lemos pretendiam editar com apoio o líder petista, chamado O Povão, periódico do PT e com influência do PCBR, também vingaram. Maranhão registrou os termos do relacionamento que estabeleceu com Lula para editar O Povão: “Participamos das lutas sociais e logicamente, como todas as forças faziam, buscamos implementar uma política que achávamos que era mais avançada do ponto de vista dos trabalhadores”, revelou, “nós, por exemplo, tínhamos o jornal quinzenal O Povão que circulava em nove estados, era mais implantado no nordeste (...) Nosso compromisso com Lula foi que na medida em que o PT tivesse um jornal de massas fecharíamos O Povão” (HARNECKER, 1994, p. 150).

Dentro do PT, o PCBR pretendia se consolidar como tendência influente e implementar a política considerada mais “avançada” para os trabalhadores e, se em São Paulo Prestes cumpriria outras tarefas do PCBR, em nível nacional a edição de um periódico era bastante importante, sobretudo às vésperas das primeiras eleições que o PT disputaria em 1982. Nessas eleições, o PCBR tinha dois de seus militantes disputando governos do estado: Rubens Lemos (RN) e Edival Passos (BA). De acordo com Secco, a consolidação do PT no nordeste dependeu das viagens de dirigentes paulistas para essa região (2011, p. 59). Porém, o estabelecimento de Prestes em São Paulo, na contramão da direção petista, assegurou intercâmbio a serviço não dos planos de consolidação do PT como partido de projeção nacional, mas do PCBR como sua tendência: tratava-se de alçar o BR a uma posição de influência no PT, dividido entre muitas tendências.

Para o PCBR, conseguir editar O Povão e ter nomes que representavam seus princípios indicados em eleições majoritárias eram sinais da consolidação de seus planos e influência no PT. E se Lemos e Maranhão alcançaram as metas que pretendiam, Prestes também demonstra ter sido bem sucedido na tarefa que recebera: nos comícios da campanha de 1982 ele era um dos responsáveis pela segurança de Lula – vínculo que se tornaria constrangedor em 1986, quando Lula precisou justificar a proximidade com o ex-sargento. Lula defendeu-se alegando “que o pessoal encarregado de sua segurança variava muito de comício para comício”, mas não negou que se lembrava de Prestes[7].


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Figura 3

Na fotografia aparecem Lula,

candidato ao governo de São Paulo em 1982, e na outra extremidade, de perfil,

Prestes de Paula, que trabalhara na segurança de Lula.

Foto do acervo pessoal de Teresa Notari, ? dez. 1982.

Em 1983 Prestes recompôs sua vida familiar com Teresa, que migrou para São Paulo junto com seus dois meninos e passou a trabalhar na Central Única dos Trabalhadores (CUT). Para residir no apartamento da Liberdade, o contrato de aluguel precisou ser assinado apenas no nome de Teresa, já que Prestes oficialmente não possuía trabalho nem renda, e o casal precisou recorrer a um fiador: Cândido de Melo, paraibano radicado no Recife e, segundo a Polícia Federal, “antigo militante do PCBR” – como se vê, a militância de Prestes se confundia com sua vida privada e a rede da organização, na qual seus militantes transitavam, mantinha fortes vínculos no nordeste[8].

O apartamento da família era sempre bastante frequentado por outros militantes do PCBR e do PT. Em uma carta escrita por Prestes a companheiros do BR de Londrina e manuscrita sob critérios de segurança e codificações, ele explicou o motivo de ser solicitado a emitir parecer sobre assuntos locais do PCBR: “O empenho dos companheiros em me entregar uma cópia do recurso se prende (...) ao fato de [eu] ter com um deles uma sólida relação pessoal e política e [ele] ter sido recrutado pela região aí com o meu aval”. Acrescentou outra razão: “Ser a minha casa a referência em Serpa [São Paulo] de quase todas as regiões quando passam por aqui” – a despeito das intenções de segurança, a carta identificava o local em que foi escrita, além de ter sido redigida à mão pelo próprio Prestes[9]. O mesmo foi confirmado à polícia por um dos militantes presos em Salvador: presença frequente na casa de Prestes, onde “esteve por diversas vezes, para conversar com o pessoal que ali se encontrava”, foi naquele apartamento que esse militante recebeu do anfitrião convite para participar de ação armada[10].

Na sua residência – quase um aparelho –, Prestes consolidava a sólida relação entre sua vida pessoal e sua militância político-partidária. Sua dedicação ao PCBR, sem dúvidas, lhe tomava bastante tempo, fosse nas atividades cotidianas, fosse no trabalho diante da máquina de escrever. Segundo Teresa, “pela idade, ele não conseguiu emprego formal. Eu, na realidade, era o provedor da família” e isso acontecia “de uma forma muito discutida, muito tranquila, sem nenhum problema”, revela Teresa com olhos retrospectivos[11]. Nesse período, a militância de Prestes ainda não havia se tornado um problema.

Quando vasculharam o apartamento, os policiais tomaram depoimento da empregada da família e também do porteiro do edifício: Nilza e Francisco eram nordestinos, ela baiana, 45 anos, declarada analfabeta; ele paraibano, alfabetizado e com trinta e um anos. Segundo Francisco, o casal “era frequentemente visitado por pessoas estranhas” e ele desconhecia a profissão de ambos, “mas pode afirmar que trabalham com política, ligados ao PT”[12]. Nilza, mais próxima do convívio familiar, disse que “seu patrão não possui nenhuma atividade profissional, apenas se dedicando a pequenos afazeres domésticos” e que “gastava bastante tempo a escrever na máquina”, sua patroa, por outro lado, trabalhava fora, “só retornando ao apartamento por volta de oito ou nove horas [da noite]”. Nilza também reconhecia a militância do casal no PT e que reuniões eram frequentes na residência durante os finais de semana: às segundas-feiras “quando ia limpar o apartamento percebia pelas pontas de cigarros” e pela “desorganização instalada” que muita gente estivera por ali[13].

Os depoimentos de Francisco e Nilza não revelaram à polícia detalhes comprometedores do cotidiano da família, mas demonstram como Prestes e Teresa eram percebidos por sujeitos da classe trabalhadora, que não esconderam seu estranhamento com a rotina do casal, cujo arrimo econômico era Teresa, mulher, bastante mais jovem que o marido e dedicada à longa jornada de trabalho fora de casa, enquanto ele passava boa parte do tempo a datilografar, numa dedicação tão intensa que não podia prescindir dos serviços de Nilza – para quem o empenho revolucionário de Prestes à máquina podia não parecer exatamente um ofício. A vida privada de Prestes, além de se confundir com suas atividades políticas, guardava sinais eloquentes de diferenças com as quais Prestes precisava conviver e entender – algo que nem sempre ocorreu de maneira harmoniosa. E tanto sua militância, quanto sua vida privada, sofreriam com as opções políticas de Prestes.

Primeiros conflitos no PT

O fraco desempenho do PT nas eleições de 1982 deu início a um ciclo de transformações que se encerraria apenas em 1985. Temas ligados à institucionalidade ganharam destaque nos seus debates internos na medida em que o movimento sindical paulista experimentou certo recuo em comparação com sua proeminência na cena política e social dos anos 1970. O PT experimentou conflitos entre o modelo de democracia direta sobre o qual se formou e o modelo de democracia representativa, para o qual se candidatava através das urnas (CHAUÍ, 1986, p. 43-99; Souza, 2008, p. 11-28). A partir de 1983, o PT lançou as bases do que viria a ser a Central Única dos Trabalhadores (CUT), fundada em agosto desse ano, ao passo que internamente teve início a consolidação de um grupo reunido em torno dos três pilares do PT em São Paulo (sindicalistas, católicos e intelectuais), a Articulação dos 113 (VIANA, 1991; COSTA, 2007, p. 595-635).

Lincoln Secco aponta grande variedade na composição das bases formadoras do PT nos estados brasileiros e afirma que a extrema esquerda só teve importância em locais onde era ínfima a movimentação social. Em estados como Rio Grande do Norte e Paraná, as organizações de esquerda assumiram a preponderância na formação do partido, o que não se repetiu em outras regiões. Em São Paulo, onde Prestes residia seguindo diretrizes do PCBR, o PT foi construído com apoio massivo dos setores que se reuniram na Articulação a partir de 1983 (SECCO, 2011, p. 43-61). A formação desse grupo, consolidado mais adiante como tendência, passou a oferecer grande resistência aos planos de Prestes em São Paulo e do PCBR em nível nacional.

O manifesto lançado pela Articulação em junho de 1983 propunha oposição firme àqueles militantes que “subordinam-se a comandos paralelos e priorizam a divulgação das suas posições políticas em detrimento daquelas do próprio Partido”, ironicamente chamados “iluminados”, porque possuíam a resposta infalível para chegar ao poder. Os primeiros signatários do manifesto, mais outros que se juntaram posteriormente, combatiam os iluminados do PT e os julgavam incapazes de traduzir os termos de uma luta política de organização e acumulação de forças. A proposta do manifesto incluiu maior atenção às bases do partido, “respeitando a sua autonomia” (VIANA, 1991, p. 121-2). Para o PCBR, especialmente para Prestes, o manifesto parecia um ultimato à sua permanência no PT.

Depois de sua publicação, Prestes datilografou carta àqueles companheiros[14]. Desabafou: “É estranha a maneira como me sinto dentro dessa articulação”. Para ele, o grupo “abriu uma linha muito importante de reflexão”, mas, “acho uma grande contradição a maneira como o núcleo de companheiros que dirigem nossa articulação encaminha de forma estreita e sectária a luta interna com as outras forças que compõem nosso partido”. Para o dirigente do BR, a forma verticalizada como a Articulação se estabeleceu era uma “opção pouco política e bastante administrativa, na medida em que não houve polarização de posições políticas anterior à sua montagem”. Ele sintetizou aquilo que extraiu como principal objetivo do manifesto: “Excluir desse campo as forças organizadas de esquerda e os setores mais desgastados da direita”, algo que para Prestes era o estreitamento da “luta interna com outras forças, que são tão partido como nós”. O missivista usou sempre a primeira pessoa para tratar da Articulação – “da qual faço parte”, garantia –, mas tal recurso estilístico não escondeu o desconforto de se sentir ameaçado no PT, talvez até excluído.

Se mesmo com ressalvas o seu ingresso no partido foi motivado pela democracia que outrora ele identificou ali – a mesma que o BR nem sempre conseguiu respeitar –, agora os setores que Prestes identificava como “antiorganização” se opunham de forma clara e direta à sua permanência. As fontes disponíveis na sua casa revelam que o período entre 1983 e 1986 foi decisivo para a manutenção dele e do PCBR no PT.

Inserção entre os desempregados a serviço do PCBR

Em abril de 1983, motivados pela crise econômica e pelo desemprego crescente, trabalhadores de Santo Amaro realizaram diversos saques a supermercados, açougues, padarias, lojas de vestuário. Eventos semelhantes prosseguiram na capital, sem que o movimento constituísse direção própria nem canais efetivos de representação, por isso seu diálogo com as autoridades foi prejudicado. Alguns sindicatos tentaram contribuir para o direcionamento das suas pautas, mas a repressão do governo cancelou negociações sem responder de maneira substantiva às suas demandas, dilatando a tensão entre os desempregados e o Estado. Para Nair Sousa, aquele tipo de ação coletiva almejava melhorias nas condições de vida de seus sujeitos e o estabelecimento de canais de negociação com o Estado, “tendo em vista certa identidade coletiva e de propósitos” (SOUSA, 1984, p. 1423-5). Tentando entrosar-se nessa coletividade, Prestes se empenhou para assumir sua dianteira.

Em setembro de 1983, quase quatrocentas famílias de trabalhadores sem serviço acamparam no Parque do Ibirapuera por algumas semanas e o movimento atraiu atenção de diversos setores sociais: pastorais ligadas à Arquidiocese de São Paulo, sindicatos, políticos como Teotônio Villela (ex-senador pelo PMDB) e muitos parlamentares do PT. Panfletos que circulavam entre os acampados terminaram recolhidos pela polícia e dão conta da variedade de bandeiras que circulavam no grupo[15]. Havia convite para “tarde de oração”, na qual bispos fariam “grande celebração”, reivindicações por salário justo e legalidade para o PCB, protestos “contra os assassinos russos” e “contra a opressão no Afeganistão”, etc. Tantas influências mostram que havia marcante ecumenismo político entre os desempregados, grupo que despertava interesse e solidariedade em diversos setores sociais, sem deixar de chamar atenção da polícia. À época, Prestes era indicado como coordenador do acampamento, mas ainda não era um líder de maior projeção[16].

Se comparado aos saques de abril, o acampamento demonstrou claro avanço no tocante à organização do grupo. Seu primeiro manifesto garantia: “O caráter pacífico de nossa luta não tira dela sua combatividade”, numa clara demonstração de que pretendiam superar os saques e que isso não representava retrocesso em sua luta[17]. “Nos organizamos e buscamos ocupar todo o espaço legal hoje existente”, avisavam, “queremos acumular força na direção da ampliação e da unificação na luta contra o regime e sua política econômica” – porém, ainda nesse mês ocorriam saques, como demonstram inúmeros registros policiais, sugerindo espontaneidade e diversidade do movimento[18]. O manifesto apontava o regime como obstáculo aos interesses dos desempregados e suas reivindicações (abertura imediata de postos de trabalho, auxílio para alimentação, transportes e contas de água e luz, liberdade de organização, congelamento de preços, reforma agrária, estabilidade no emprego) acionavam poderes das esferas municipal, estadual e federal.

Sobre a presença de Prestes ali, Eduardo Jorge, então deputado pelo PT, contou que “ele nunca escondeu sua condição de sargento da Aeronáutica cassado e ex-preso político (...) jamais, no entanto, disse que pertencia aos quadros do PCBR” – um segredo que o próprio Eduardo Jorge poderia preferir negar saber[19]. Em depoimento à polícia em 1986, Prestes alegou que se aproximou dos desempregados “pois sentia que ali (...) iria aprender de estruturação e organização de movimento”, preferindo não revelar o tanto que pretendia ensinar como dirigente revolucionário. Apenas reconheceu que houve um componente especial para seu entrosamento no grupo: “Em face do seu passado como ex-militante do PCBR (...) conseguiu angariar simpatia com muitos participantes”[20]. Depois de sua prisão pelo assalto em Salvador, a vinculação de Prestes ao PCBR era inequívoca, mas era algo que ele evitava assumir até então. Portanto, ao se aproximar do coletivo de desempregados, Prestes recorria com seletividade ao seu passado: sargento e preso político eram qualidades que podiam contar a seu favor; dirigente do BR, nem sempre. Por isso, os planos de atuação do PCBR no PT e, de Prestes entre os desempregados paulistas, não eram divulgados amplamente em panfletos como os que circularam no Ibirapuera, que terminaram coletados por policiais. Não fosse sua prisão em 1986, os planos mais sinceros de Prestes dificilmente seriam revelados.

Como apontou Eder Sader, muitos ex-militantes da esquerda armada reapareceram no interior de movimentos sociais distantes de organizações que se autodeclaravam vanguarda do proletariado, abandonando provisoriamente pressupostos revolucionários para facilitar seu entrosamento. Eles não negavam antigos referenciais ideológicos, apenas entenderam que não havia espaço para executá-los e recorreram às suas profissões para se reaproximarem de movimentos populares como médicos, professores, advogados (SADER, 1988, p. 167-78). No caso de Prestes de Paula, iniciado nos mundos do trabalho a partir da experiência militar, os “serviços” que ele podia oferecer acentuariam seu descompasso com os movimentos sociais, pois tais ideias causavam mais repulsa do que atração (TORRES, 2017). Por isso, suas insígnias de sargento estavam mais evidentes do que seus vínculos no PCBR, como depôs Eduardo Jorge.

Após o desmonte do acampamento, Prestes datilografou sua impressão sobre a experiência[21]. Mencionou conquistas, como uma associação de assistência às famílias dos desempregados e um órgão criado pelo governo do estado para tratar do tema, mas as reconhecia como parciais e não aceitaria qualquer engodo taxado por ele de populista, alertando que assistencialismos não deviam enganar os “setores mais atrasados do movimento”. Ele separava os acampados por “níveis distintos de consciência”: um primeiro formado por resignados e apáticos que esperavam pela caridade do Estado e da Igreja; outro formado por “setores mais combativos que, embora despolitizados, vão para os saques de forma espontânea e violenta”; e o “mais avançado”, composto pelos que enfrentam o desemprego “através da luta organizada das massas, inserida num processo mais amplo de acumulação de forças”.

Para ele, aquela era ocasião de os desempregados conquistarem autonomia em relação aos sindicatos, pois acreditava que estes possuíam “concepções pelego-reformistas”. Prestes, militante profissionalizado e sem vínculos em entidades de classe, não considerava disputas por salário e condições de trabalho algo genuíno: a seu ver, elas não geravam consequências profundas na sociedade. “Quando dizemos que a prática sindical tem um caráter econômico”, explicou, “não queremos chegar ao absurdo de negar que a luta sindical é também uma luta política”, porém, “dentro dos sindicatos a luta política não é o aspecto determinante”, concluiu. Para ele, a verdadeira luta política precisava se dirigir contra o regime.

Prestes esperava uma crescente para o movimento e escreveu: “Temos que reconhecer o pioneirismo dos companheiros de Cubatão”, onde se formou a primeira associação contra o desemprego, porém considerava “inegável” o papel desempenhado pelos saques realizados em Santo Amaro, que a despeito do pioneirismo de Cubatão, “funcionaram como acelerador para que os setores avançados de nosso movimento investissem nas tarefas de montagem dos comitês”. Aos olhos do revolucionário Prestes, o pioneirismo em prol da formação de comitês era menos importante do que a iniciativa dos saques, que deveria ser aproveitada. Nesse movimento dividido em atrasados e avançados, ele via portas abertas para o desenvolvimento de sua política supra sindical e intrapartidária, na qual o PCBR às vezes se protegia pelas siglas PT e CUT, às vezes era revelado aos ditos mais avançados.

Prestes entendeu que o acampamento representou para os desempregados o mesmo que as greves de 1978, 1979 e 1980 para o sindicalismo brasileiro, por isso apostava na sua ofensiva: se a luta sindical podia ser arrefecida por ganhos parciais, como aumento de salário, os desempregados estavam imunes a tais “enganos”. Ele acreditava fortemente na “facilidade com que as massas desempregadas rompem com a legalidade existente e imposta pelas classes dominantes”, uma ruptura crucial para quem almejava, como ele, a revolução. Arrematou: “Quando o estômago ronca de fome entram em crise os valores sociais que até hoje serviram de freio ideológico para conter o descontentamento popular”, por isso “a derrubada do regime militar é hoje o objetivo que deve ser agitado”. Seus escritos demonstram um raciocínio bastante mecânico sobre o funcionamento dos movimentos sociais e igualmente raso no tocante ao funcionamento da ordem política do Estado e à dominação de classes, mas ilustra com eloquência a forma com que alguns setores das esquerdas ainda pensavam o papel do lumpesinato na construção do processo revolucionário. E nisso, Prestes e o PCBR eram bastante minoritários.

Reflexões contemporâneas aos saques de 1983, elaboradas por Eder Sader, permitem uma comparação com as ideias de Prestes – e vale dizer que as ideias de Sader, a quem se juntavam influentes intelectuais de esquerda, como Marilena Chauí, por exemplo, emudeciam socialmente a pregação dita revolucionária da esquerda armada, da qual os textos pouco lidos de Prestes são exemplos representativos. Para Sader, se o Estado negava a legitimidade do movimento, tratando-lhes como bandidos, as organizações de esquerda encaravam o movimento como massa informe e sem identidade, que por isso estava pronta para ser moldada. Tal visão seria igualmente deslegitimadora do movimento, por colocar suas ações a serviço de teorias pré-concebidas e desconectadas da realidade. Ainda de acordo com Sader, tais grupos “não pensam que possa haver uma dinâmica própria nesse povo (...) não pensam que possa haver uma fala própria dos trombadinhas, dos Office-boys, dos punks, dos evangélicos”. Para Sader, aqueles que compreendiam os saques como categórica afronta à ditadura, ou que para isso deveriam ser direcionados, precisariam responder porque deputados petistas foram vaiados durante manifestação dos desempregados: “Será que esses têm apenas um vazio na cabeça, esperando sua vanguarda?”, provocou (SADER, 1983, p. 15-16). Se para Sader o PT precisaria encontrar meios de conseguir representar esses grupos, para o dirigente do PCBR eles precisariam ser dirigidos conforme sua estratégia de dilatar conflitos.

A complexidade das relações que se desenvolviam entre os desempregados fica ainda mais nítida ao se observar a progressão de Prestes de Paula no grupo.

Apenas em abril de 1984, Prestes foi eleito membro efetivo da coordenação do movimento durante um encontro em que os desempregados recorreram à sede do sindicato dos químicos, como indica relatório da Polícia Federal[22]. Portanto, a despeito de sua pregação radical, ele galgou destaque no grupo depois do acampamento, quando já dava sinais de querer exacerbar seus planos, e quando os desempregados não conseguiam romper totalmente com sindicatos. Os sujeitos desse movimento ainda tinham certa tolerância com aquilo que Prestes representava e essa aparente contradição sugere que o militarismo de Prestes, nem sempre demonstrado claramente, ainda podia angariar eventual simpatia. Mas seus passos seguintes demonstram que tais sujeitos, demarcando sua vontade, não acompanhariam Prestes na crescente que ele projetava.

Em agosto de 1984, acreditando na onda exponencial que vivia o movimento, Prestes e outros companheiros coordenaram uma ocupação à sede do Serviço Nacional de Emprego (SINE), ligado ao Ministério do Trabalho[23]. Quase mil homens, mulheres e crianças ocuparam o prédio propondo uma pauta de reivindicações similar às do Ibirapuera (passe-livre nos ônibus, distribuição de cestas básicas, etc.). A principal delas era a abertura imediata de postos de trabalho – portanto, tratava-se de protesto contra a carestia, pela sobrevivência e pelo direito ao trabalho[24]. Dessa feita, os ocupantes enfrentaram grandes dificuldades durante uma semana – o acampamento do Ibirapuera durou dois meses – e, a partir de um dado momento, o edifício foi cercado pela polícia, que impediu entrada e saída de pessoas e mantimentos. No fim da ocupação, a pauta atendida pelo governo era drasticamente menor do que as reivindicações[25]. Naqueles dias o PT foi fustigado pelo Estado de S. Paulo, que noticiou que “centenas de crianças, mulheres e homens passavam fome e sede, manipulados por políticos do PT”, dizendo estranhar que Prestes “até hoje não se inscreveu no SINE para arranjar um emprego”[26]. O jornal desconhecia, mas Prestes tinha sua militância financiada não pelo PT, mas pelo PCBR, que custeava suas atividades em regime de dedicação quase exclusiva, e, no PT, Prestes se tornava uma voz cada vez mais solitária.

A experiência do SINE motivou debates posteriores entre os ocupantes, e Prestes reteve uma ata bem detalhada de plenária do grupo[27]. A transcrição das falas esclarece o quão diverso era o movimento e como Prestes, apesar de líder eleito e coordenador da ocupação, não encontrava ali ressonância para extremar suas ideias de confronto e ruptura institucional. As falas – que podem sofrer influência de quem as datilografou, talvez o próprio Prestes – são esclarecedoras da diversidade do movimento e da agência daqueles trabalhadores sem serviço, que já se mostravam menos tolerantes aos princípios defendidos por Prestes.

Para um dos falantes, que entendia que “nós começamos com os saques de abril”, a organização dos desempregados era vitoriosa não apenas pelos donativos e passes de ônibus que receberam, até porque “deu muito pouco para cada um”; o principal era o apoio político alcançado pelo grupo – tratava-se, pois de alguém que não se bastava apenas com ganhos materiais. Outro deles calculou saldo positivo: das quase trinta pessoas que seu comitê levou ao SINE, somente duas ou três haviam estado no Ibirapuera, o que indica contínua entrada, e também saída, de pessoas. Outro disse: “Eu jamais estou reclamando da fome que passei porque eu passo fome em casa” e por isso entendia que, assim como ele, “o pessoal tava amadurecendo a luta”. E fez suas críticas: “Agora vou dizer uma coisa grave”, anunciou, “se continuar a haver infiltração perigosa e a coordenação não tomar pé firme e tirar para fora estas infiltrações eu sou dos primeiros, não é por covardia não, mas vou partir da luta”. Ele não pretendia se sacrificar (“não tenho aqui minha cara para ser quebrada à toa”) para depois alguém “bagunçar e bater na cara de um pobre”. E prosseguiu,

Se não tiver posição firme a esse respeito e eliminar este tipo de pessoa que infiltra e fica provocando a coordenação de caciques, todos os coordenadores são caciques. Se a coordenação não tomar esse ponto de vista unida eu não vou ficar aqui brigando com marginais por aí que está acompanhando a luta. Eu quero apenas contribuir com o coletivo, mas não quero ficar aqui levando pancada a torto e direito sem que haja uma posição.

Esse integrante alertava contra infiltrações de pequenos marginais – ou lúmpens – e também não admitia que “caciques” verticalizassem as relações no movimento. Houve relato de outros incômodos que os “infiltrados” causavam à ética do grupo: “Passaram a mão numa menina ali na Praça da Sé e entraram no SINE e a menina foi atrás e eu conversei com ela. Havia o risco de ela chamar a polícia e dar consequências sérias para gente”. Outro companheiro insistiu que “realmente tem pessoas que vêm para a luta mais para aprontar do que para assumir”, e acusou:

Tem pessoas que inclusive estão aqui e que eu surpreendi eles no domingo tentando roubar coisas dos outros (...) estas pessoas tem que serem barradas porque não estão na luta. Elas vêm mais para aprontar e para levar coisas do movimento e que continua até hoje comitês brigando por botijões de gás, as facas que sumiram, problemas desse tipo.

Note-se que, para Prestes de Paula, aqueles que convergiam para o movimento de forma espontânea e violenta, talvez dispostos a pequenos furtos e contravenções, possuíam “nível de consciência” maior do que aqueles que, pacíficos, esperavam caridade. Portanto, Prestes divergia de companheiros que falaram na plenária, para quem Prestes podia ser um “cacique”.

Outro dos presentes criticou o planejamento porque a coordenação, esperando confronto imediato com a polícia, previra que ficariam ali apenas por um dia. Sem repressão e surpreendidos, os ocupantes ficaram sem infraestrutura básica: faltou água, luz, colchões, cobertores, comida. Para esse ocupante, não apenas o governo e a polícia tinham responsabilidade nisso (“eles usaram outra estratégia conosco”), mas também os coordenadores. “Como é que a gente ia para essa luta com esquema de auto-defesa montado, priorizando muito a questão da segurança?”, questionou, para depois proferir fala notável:

Eu creio que o relacionamento urbano entre as pessoas pode se resolver bem mais do ponto de vista fraterno, quando as pessoas tiverem um nível de consciência mais avançado (...) no início da luta havia mais homens que mulheres, mas com o tempo isso se inverteu. Qual foi a participação das mulheres dentro dessa luta? Eu levo sempre isso dentro de uma concepção ideológica. A mulher hoje é discriminada duas vezes. Se nós trabalhadores desempregados já somos discriminados socialmente a companheira é várias vezes. Para nós desempregados não pode existir diferença entre o desempregado mulher e o desempregado homem.

Houve ainda referência a uma certa “questão dos cigarros”:

Quando chegaram os cigarros tinha gente que queria jogar os cigarros para cima para o bolo de gente. O [coordenador] Mario Caziuca disse que aquilo era errado e pediu que todos entregassem os cigarros para serem distribuídos entre todos. Companheiros já com três carteiras no bolso devolveram para que se distribuísse igualmente para todos. Isso é saldo político que não sai em jornais e não se escreve sobre eles (...) na assembleia se distribuiu os cigarros e mostrou o saldo de distribuição social que tem hoje no movimento. Para garantir esse saldo político nada melhor do que promover a formação política destes elementos.

Homens e mulheres que se envolveram na ocupação do SINE, sensíveis a conquistas miúdas do coletivo, se interessavam por questões que nem sempre estavam na pauta dos coordenadores, alguns chamados caciques. Não pareciam desejar práticas clandestinas: laços de fraternidade satisfaziam interesses de muitos ocupantes, que devotavam sua crença no movimento e que podiam não se interessar por teorias revolucionárias – talvez consideradas desordeiras. Mas tais sujeitos não se sentiam inconscientes, muito pelo contrário: a seu modo, demonstravam torcer por um nível de consciência que validavam como avançado, por certo divergindo de Prestes. Se a coordenação se preparou para o confronto imediato com a polícia – quiçá desejando isso –, se esqueceu do que muitos consideravam crucial: as condições materiais da ocupação e os laços que uniam os ocupantes. A experiência política e militar de Prestes, que contou a seu favor para alçá-lo à liderança do grupo, passou a distanciá-lo desses sujeitos.

O balanço da plenária que sucedeu o SINE demonstra que a estratégia de confronto tão cara a Prestes não atendia aos planos de parte significativa dos desempregados, que fizeram críticas de maneira clara e sincera (apenas a companheira Baixinha, falando muito pouco, considerou “que os coordenadores gerais trabalharam muito bem”). Se o saldo do acampamento do Ibirapuera foi considerado positivo, o mesmo não aconteceu no SINE, quando coordenadores em declarações à impressa não esconderam sua frustração com metas não alcançadas[28]. Entre os que concederam entrevistas não estava Prestes, que pouco tempo depois rabiscou descontente em seu escritório: “Sete meses de refluxo, o SINE foi em agosto do ano passado”[29].

Nos planos esperançosos de Prestes de Paula, porém, não havia espaço para retrocessos, sua marcha revolucionária precisava avançar sempre, ainda que a ata da plenária indicasse que ele já experimentava significativas objeções. Por isso, Prestes se dedicou a formular meios de superação de seu refluxo. Segundo ele, a crise e o desemprego galopantes atingiam milhões de pessoas “que já não têm mais onde recuar” e “o agravamento da situação só tem um caminho: a fuga para frente”, sentenciou. O que para ele,

Ainda não se deu de forma organizada e massiva porque o nível de consciência e organização dos desempregados é ainda incipiente (...) mudar esta dinâmica implica para nós em traçar uma tática de luta que redunde numa maior conscientização e organização do nosso movimento (...) temos que levar em conta as características de confronto.

Para Prestes, “o que nos ajudar a capitalizar e atrair os desempregados são ações mais agressivas”, afinal, “toda a grande maioria de desempregados são simpáticos aos saques e aos quebra-quebras”, imaginava ele, que prosseguiu:

Qualquer proposta de luta onde esse caráter não esteja presente é um erro político (...) existe uma única contradição que temos que respeitar enquanto não atingimos um nível superior de consciência e organização. É a do confronto armado direto, no momento atual. Isso deve ser evitado por razões táticas e não por razões de princípios (...) para melhorar nossa organização temos que avançar o caráter de confronto de nossas ações globais. É isso que tira a letargia das grandes massas e aponta para elas qual o caminho da solução de suas penas.

Prestes, pelo visto, não dispensou muita atenção ao balanço que os ocupantes fizeram do SINE, ou era incapaz de perceber suas nuances, e seguia reafirmando sua cantilena sobre falta de consciência dos desempregados e necessidade de organizá-los para o confronto – confirmando provocação de Hobsbawm, para quem nesse período “os estrategistas da esquerda” estavam “às tontas” (2000, p. 406). Em seu esforço para conceber estratégias, Prestes apontou para conflitos crescentes e anteviu: “Este tipo de campanha vai provocar grandes baixas em nosso núcleo organizado (prisões e enquadramentos na LSN de alguns)”. Por isso, sugeriu: “Na clandestinidade as condições de sobrevivência da direção estarão comprometidas também do ponto de vista material. Isso implica em desenvolver um setor logístico para garantir ações de tipo Guerrilha Urbana”.

A seu ver, ainda inconscientes, os desempregados eram incapazes de acionar o gatilho da revolução, que por razões táticas era adiada, e tal espera exigia o que chamou de “ações globais”. Entre elas constavam, decerto, os assaltos que o PCBR realizou na Bahia, que nunca tiveram caráter político anunciado. Ao contrário disso, em 1985, o gerente do banco assaltado ouviu de um dos militantes: “Queremos valores pois somos da Falange Vermelha”[30]. Ao ser preso em 1986 pelo assalto em Salvador, Prestes e os outros envolvidos nas ações da Bahia chegaram a responder na Justiça Militar por crime contra a Lei de Segurança Nacional, mas terminaram condenados nos rigores da legislação comum[31].

Descompasso do PCBR no PT e nos movimentos sociais

A inspiração revolucionária que Prestes de Paula encontrava nos desempregados era uma peculiaridade sua que talvez não se repetisse na mesma intensidade com outros militantes e dirigentes do PCBR, mesmo assim ilustra a peculiaridade dessa organização no período aqui analisado, afinal, Prestes era um dirigente. Àquela época, a influência das organizações da esquerda armada, ainda marcadas por incontornável vanguardismo, era ínfima, especialmente nos espaços em que competiam com tendências do PT ligadas ao sindicalismo e à Igreja – a sanha acusatória de Irma Passoni contra Prestes, em 1986, é indício do incômodo que ele e o PCBR podiam causar em outros setores do partido. A ocupação do SINE foi a última grande mobilização dos desempregados paulistas, que alcançaram completo esgotamento em 1986, o que se justificaria não pela desistência de sua luta, mas por alguma melhora na sua condição de vida, permitida pelo Plano Cruzado (DOIMO, 1995, p. 109-110). O descenso da mobilização popular nos movimentos sociais de São Paulo coincidiu com a projeção da Articulação como tendência no PT e estes dois ambientes eram importantes para atuação do PCBR e de Prestes de Paula.

De acordo com Emir Sader, os desempregados estavam mais sensíveis às oscilações da economia, que os teria mobilizado ante a crise de 1983-1984, mas também os fez arrefecer diante de breve recuperação nos dois anos seguintes. Para Sader, “programas governamentais abriram um espaço novo de intervenção e tentativas de solução de problemas”, atendendo aos mais necessitados, o que não aconteceu com os movimentos operários, que não atendidos em suas demandas principais, continuaram combatendo situações similares àquelas existentes até 1983 (1987, p. 8-9). Sader descreve situação que inquietava Prestes: os riscos de os desempregados se desmobilizarem aos primeiros benefícios que ele taxava de populistas. Atendidos em seus interesses mais imediatos, o grupo se desmobilizou em vez de insistir no confronto que ele esperava. Essa desmobilização – na contramão dos planos de Prestes – coincidiu com a projeção da Articulação como tendência forte no PT, e tanto o PT, quanto o movimento dos desempregados, eram ambientes importantes para o PCBR e Prestes de Paula. O descenso de um e a ascensão da outra reduziram sobremaneira a interação social de Prestes e do BR.

Afligido por tais restrições, entre 1984 e 1986 o PCBR investiu crescentemente em ações armadas, todas executadas na Bahia: um carro pagador (1984), um banco na cidade de Cachoeira (1985) e a frustração na capital (1986). Prestes comandou todas elas e à medida que seus planos se frustravam entre os desempregados e crescia a influência da Articulação no PT, o PCBR investia célere na busca por recursos financeiros que pudessem superar sua fragilidade social – assim esperava a organização. A crescente aposta do BR em assaltos para abastecer suas finanças revela o quanto seus vínculos com teorias e práticas armadas implicaram na sua retração política e social. Isolado, o BR passou a acreditar que valiosos – e até 1986, fáceis – recursos materiais provenientes dos assaltos lhe serviriam como capital político e compensariam sua fragilidade social. Os dois primeiros assaltos foram bem-sucedidos e indícios do destino dos recursos obtidos com eles foram encontrados na residência de Prestes: pelo menos parte desse dinheiro se destinava ao financiamento das atividades cotidianas da organização, algo que outras tendências poderiam alcançar a partir de suas relações com sindicatos, por exemplo. A tese central que sustentei, a partir do contato com essas e outras fontes, é a de que as ações armadas do PCBR atendiam a necessidades bastante pragmáticas da organização, cujo isolamento social encontra, na presença de Prestes entre os desempregados, significativo exemplo (TORRES, 2017).

As Teses sobre a construção do partido revolucionário, documento lavrado pela direção do BR nos anos 1980, são bastante ilustrativas das contradições que o marcavam naquele período, sobretudo quando cotejadas com os escritos de Prestes[32]. Consta nelas que “é indispensável lutar para construir instrumentos próprios dos trabalhadores, totalmente independentes do controle da burguesia”, como era o caso do PT e da CUT, mas essas tarefas serviam “à própria construção do partido revolucionário”. Noutro trecho dela consta que,

É necessário preparar-se com antecedência para enfrentar em condições mais favoráveis, o surgimento de uma crise revolucionária que coloque na ordem do dia essa guerra de classes (...) os organismos partidários devem dominar as regras da vida clandestina e (...) combinar o trabalho legal com o ilegal (...) é necessário recrutar os melhores lutadores da classe operária e do povo, os mais firmes, mais conscientes e abnegados.

O documento é claro ao defender a necessidade da construção do partido de quadros, que funcione na clandestinidade e seja capaz de conduzir a luta armada. O paralelismo entre a atuação legal e clandestina ainda era uma realidade factível segundo a lógica do BR, mas sua aplicação não parecia encontrar ressonância entre os ocupantes do SINE nem em outros segmentos do PT. Longe de demonstrar interesse pela “guerra de classes”, alguns desempregados – entre os quais, por exemplo, Irma Passoni transitava e obtinha votos para seu mandato legislativo – pareciam mais interessados na sua sobrevivência imediata. E nisso, eles demonstravam firmeza, consciência e dedicação, o que não tornava muitos deles aptos ao recrutamento do PCBR, interessado, à sua maneira, nos mais “firmes, conscientes e abnegados”, como consta nas Teses. Por sua vez, a via institucional, defendida cada vez mais claramente pelo PT, afastava do campo majoritário do partido as tendências consideradas radicais.

Dias antes de partir para a ação contra o banco em 1986, Prestes redigiu carta para Teresa[33]. Nela, se dizia magoado e tenso, reclamou da relação que para ele já não era a mesma e se justificou: “Uma das grandes contradições da nossa vida hoje é, sem dúvida, o teu relacionamento com a CUT”, para ele, “ambos admitimos o grande papel da CUT no processo de luta de classes no Brasil”, mas se comparada ao PCBR, esclareceu, “tens a consciência da importância desse instrumento revolucionário, sem o qual a CUT não terá a menor consequência estratégica”[34]. Para Prestes, o problema não estava na CUT, mas na relação de Teresa com ela, “porque dilui a olhos vistos o teu compromisso com a O.” Suas cobranças demonstram que a dedicação de Teresa à CUT poderia e até deveria ser reduzida, mas ao PCBR, nunca.

Por mais que as Teses do PCBR valorizassem a CUT e o PT, Prestes demonstra que sem o tal “instrumento revolucionário”, eles valeriam muito pouco. As cobranças de Prestes à esposa ilustram as intenções que ele e o PCBR tinham para sua atuação dentro do PT, da CUT e do movimento dos desempregados. Nesses espaços, ele e o BR continuavam demonstrando traços característicos de sua primeira formação, quiçá universais às autoproclamadas vanguardas revolucionárias. Na análise de Daniel Reis, em toda experiência comunista “existe um denominador comum: os comunistas vivem a iminência da revolução e isto não tem, em princípio, nenhuma relação com a marcha dos acontecimentos” [grifo no original] (REIS FILHO, 1990, p. 185). Os planos revolucionários do PCBR para sua existência no PT e entre movimentos sociais não foram bem-sucedidos: o assalto em Salvador fracassou e quase todos os envolvidos terminaram presos e processados. Mesmo antes disso, as duas outras ações realizadas na Bahia, financeiramente bem-sucedidas, não parecem ter sido capazes de contornar o crescente isolamento da organização, tanto entre os desempregados, onde Prestes enfrentava resistência progressiva e proporcional à sua paulatina radicalização, como no PT, em que a Articulação assumia a dianteira do partido. Tanto o PT, quanto o movimento dos desempregados eram formados por sujeitos diversos (em gênero, etnia, idade, origens sociais, etc.) e que se agrupavam em torno de princípios que nem Prestes, nem o PCBR conseguiam representar com suas “campanhas”.

Pouco tempo depois, quando Prestes estava preso, Teresa o acompanhou e mudou-se para a Bahia, onde passou a residir. Quando Prestes e seus companheiros do PCBR fizeram uma greve de fome, Teresa esteve ao seu lado no presídio.


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Figura 4

Na área externa do presídio,

Teresa pôde se juntar os presos durante uma greve de fome.

No primeiro plano, aparece o casal.

Foto do acervo pessoal de Teresa Notari, ? nov. 1987.

Conclusão

Ao analisar o mundo no último quarto do século XX, Hobsbawm exclamou: “Como são muito mais modestas as verdadeiras aspirações dos grandes partidos socialistas de massa!”. Para ele, “poucos líderes de partidos significativos e politicamente eficazes da esquerda do mundo ocidental ainda acreditam na vitória através de ofensiva frontal”, o que promovia uma rejeição a “deuses e teorias que falharam” (2000, p. 406). No Brasil, o PT se consolidava como maior partido de massas, que disputava votos e representação em diversos movimentos sociais. Lula, seu principal líder e de quem Prestes de Paula fez toda questão de se aproximar, tinha opiniões diferentes das do seu segurança. Para o sindicalista, “um movimento social, popular, só será efetivamente do povo, se todos tivermos coragem de não permitir que esse movimento se torne vaca de presépio dentro de um partido político”, para ele, “não é ser autônomo apenas perante o Estado ou partidos políticos”, mas “perante qualquer instituição” (BETTO, 1984, p. 61). Não era isso que Prestes de Paula parecia pensar sobre autonomia e organização do movimento popular, mas ele e o PCBR sabiam que sua capacidade de atração a partir de um discurso dito revolucionário era ínfima se comparada ao alcance social do PT e de Lula. Não é coincidência que o BR, personificado nesse texto pela militância de Prestes, tenha insistido tanto para se consolidar como tendência petista, afinal, o partido garantia espaços utilíssimos à sua sobrevivência.

Os papéis encontrados com Prestes de Paula – autor pouco conhecido e igualmente pouco lido – são bastante reveladores de um traço marcante das práticas armadas que caracterizaram o PCBR e, como se viu, o empenho de Prestes em sua militância revolucionária não foi capaz de torná-lo mais sensível às demandas daqueles que ele pretendia representar e com quem ele, bem como o PCBR, nem sempre conseguiram se manter em sintonia. As fontes utilizadas neste artigo enriquecem com vigor uma história social das esquerdas, buscando entender a interação de um sujeito que vivia premido por um ideal revolucionário que nem sempre o legitimava no contato com outros sujeitos e organizações da classe trabalhadora. A análise das experiências de Prestes de Paula a partir de seus próprios escritos, extrapolando, portanto, o uso de fontes policiais e documentos partidários, apresenta nuances pouco acessadas da interação do PCBR no PT e entre os desempregados.

Segundo classificação de Hobsbawm, modestas também eram as intenções dos sujeitos desse movimento, pouco afeitos ao tipo de confronto planejado por Prestes. Suas investidas como comandante de ações armadas foram contraproducentes e sua pregação revolucionária não parece ter sido prolífica, exceto para o trabalho policial e também para a pesquisa histórica que nele se pauta. Prestes não parecia ter abjurado deuses e teorias que inspiravam seu pendor revolucionário: para ele, nem o PT nem o movimento dos desempregados poderiam se limitar a aspirações tão modestas como as que Hobsbawm apontou. Com isso, Prestes se mostrou incapaz de superar fracassos e decepções que marcaram as esquerdas brasileiras nas décadas de 1960 e 1970 e experimentou crescente descompasso social. Sua presença entre os desempregados não é representativa de como a maior parte das esquerdas entendiam aquele grupo, ao contrário disso, Prestes era rara exceção – às tontas, como também classificou Hobsbawm. Os efeitos do assalto de 1986 foram devastadores para o BR e para os militantes envolvidos nele: enquanto a organização praticamente deixou de existir no PT, Prestes e outros militantes cumpriram longa pena no presídio de Salvador, onde passaram a contar com um núcleo organizado bem restrito. E como anteviu Prestes de Paula – dessa vez com inusitada razão – aquele tipo de campanha provocou grandes baixas no núcleo organizado do PCBR, reduzindo ainda mais seu alcance social.

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Notas

[1] Para declarações de Passoni, Folha de S. Paulo, 15 jun. 1986.
[2] Autos de apreensão, 23 abr. 1986. Processo 860372816, Salvador, Fórum Rui Barbosa, 7ª Vara Crime, v. 8, fls. 145. Como durante todo o texto apenas esse processo é utilizado, doravante será citado como Processo, seguido pelas indicações de volume e número de folhas.
[4] Neste outro artigo desenvolvi de maneira mais completa uma trajetória de Prestes de Paula, de seu envolvimento juvenil com o PCB e formação como sargento da Aeronáutica, até sua participação na luta armada contra a ditadura.
[5] Entrevista de Prestes de Paula realizada pelos historiadores Sandra Souza e Muniz Ferreira, 4 ago. 2001 (Salvador/BA). Essa mesma entrevista é utilizada ao longo do texto.
[6] Carta, 15 nov. 1981. Processo, v. 7, fls. 463.
[7] Folha de S. Paulo, 23 abr. 1986.
[8] Para o fiador do contrato de aluguel, ver Processo, v. 7, fls. 455-6. Para identificação do fiador, ver Relatório da Polícia Federal, 22 mai. 1986. Processo, v. 7, fls. 583.
[9] Carta, 22 out. 1985. Processo, v. 7, fls. 393.
[10] Depoimento de Jari Evangelista, 16 abr. 1986. Processo, v. 1, fls. 104.
[11] Entrevista com Teresa Notari realizada pelo autor, 23 mai. 2012 (São Paulo/SP).
[12] Depoimento de Francisco Silva, 22 abr. 1986. Processo, v. 5, fls. 135.
[13] Depoimento de Nilza dos Santos, 22 abr. 1986. Processo, v. 5, fls. 132.
[14] Carta, 10 ago. 1983. Processo, v. 7, fls. 530-2, usada nos parágrafos seguintes.
[15] Dossiê 13-S-6, Fundo DEOPS, Arquivo Público do Estado de São Paulo (doravante APESP).
[16] Fundo BR.FPA/JPJ, Fundação Perseu Abramo (doravante FPA).
[17] Manifesto, s/d. Fundo BR.FPA/JPJ, FPA.
[18] Dossiê 13-S-6, Fundo DEOPS, APESP.
[19] Jornal do Brasil, 20 abr. 1986.
[20] Depoimento de Prestes de Paula, 26 jun. 1986. Processo, v. 6, fls. 690.
[22] Relatório, 22 mai. 1986. Processo, v. 7, fls. 574.
[23] Folha, s/d. Fundo BR.FPA/JPJ, FPA.
[24] Folha, 21 ago. 1984. Fundo BR.FPA/JPJ, FPA.
[25] Folha, 27 ago. 1984. Dossiê 17-D-13, fls. 2714, Fundo DEOPS, APESP.
[26] Estado de S. Paulo, 25 ago. 1984. Dossiê 17-D-13, fls. 2701, Fundo DEOPS, APESP.
[28] Folha de S. Paulo, 27 e 28 ago. 1984. Dossiê 17-D-13, 2714 a 2725, Fundo DEOPS, APESP.
[29] Manuscrito, s/d. Processo, v. 7, fls. 411, usado nos parágrafos seguintes.
[30] Depoimento de Antonio Valença, 16 mai. 1986. Processo, v. 1, fls. 89.
[31] Inicialmente julgados nas Justiças Comum e Militar, em agosto de 1986, o julgamento dos presos seguiu apenas na Comum, após a Justiça Militar declinar de sua competência.
[33] Entrevista com Teresa Notari realizada pelo autor, 23 mai. 2012 (São Paulo/SP).
[34] Carta, ? mar. 1986. Processo, v. 7, fls. 393, usada nos parágrafos seguintes.
[3] “A situação do desemprego em São Paulo”, ?/? 1985. Processo, v. 7, fls. 415-6.
[21] “Movimento de luta contra o desemprego”, ? dez. 1983. Processo, v. 7, fls. 394-410, usado nos parágrafos seguintes.
[27] “Balanço da invasão do SINE”, ?/? 1984. Processo, v. 7, fls. 520-3, usado nos parágrafos seguintes.
[32] “Teses sobre a construção do partido revolucionário”, s/d. Processo, v. 7, fls. 497-502, usada nos parágrafos seguintes.


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