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Intelectuais africanos e pan-africanismo: uma narrativa pós-colonial[1]
African Intellectuals and pan-africanism: a postcolonial narrative
Revista Tempo e Argumento, vol. 10, núm. 25, pp. 212-242, 2018
Universidade do Estado de Santa Catarina

Dossiê



Recepción: 04 Agosto 2017

Aprobación: 28 Febrero 2018

DOI: https://doi.org/10.5965/2175180310252018212

Resumo: O presente artigo analisa algumas perspectivas do conceito de pan-africanismo com o intuito de ilustrar as movimentações dos escritores pan-africanos como modo de refletir brevemente o contexto de um debate pós-colonial, iniciado por eles. Seguindo apreciações de estudiosos preocupados com os temas da négritude, da solidariedade negra e da contestação à ordem colonial é possível mapear as manifestações de pensadores através dos quais se compreende os conceitos de cultura e unidade, elementos-chave para essa análise. Apesar da diversidade dos espaços nacionais, escritores afro-americanos e africanos foram responsáveis pelo surgimento da ideia e do conceito de pan-africanismo, bem como pela luta por direito dos povos negros a variadas esferas da vida política. Abordando análises importantes de pensadores como Edward Blyden, Marcus Garvey e W.E.B. DuBois, Léopold Senghor e Kwame Nkrumah há uma possibilidade de se delinear perspectivas teóricas pelas quais tais pensadores se debruçaram para constituir as definições do pan-africano e do pós-colonial, um debate ainda hoje importante para a historiografia atual.

Palavras-chave: Pan-Africanismo, Afro-Americano, Estudos Africanos, Negros, Estados Unidos.

Abstract: This paper analyzes some perspectives in the concept of pan-Africanism in order to illustrate the movements of Pan-African writers as a way of briefly reflect the context of a postcolonial debate initiated by them. According to the appreciations of scholars concerned with the themes of négritude, black solidarity and contestation to the colonial order, it is possible to map the manifestations of thinkers through which the concepts of culture and unity, key elements for this analysis. Despite the diversity of National African-american writers and African spaces were responsible for the emergence of the idea and the concept of pan-Africanism, as well as the fight for rights of black people the various spheres of political life. Addressing important analyses of thinkers such as Edward Blyden, Marcus Garvey and W.E.B. DuBois, Léopold Senghor and Kwame Nkrumah there is a possibility of outlining the theorical perspectives by which such thinkers poured in to the definitions of the Pan-african and the postcolonial debate even today important to contemporary historiography.

Keywords: Pan-Africanism, Afro-American, African Studies, Blacks, United States.

Palavras iniciais

O desafio na interpretação do pan-africanismo e de sua relação com o pós-colonial está justamente na dificuldade de se fugir de abordagem bibliográfica de seus principais expoentes, levando em conta a complexidade da temática do pan-africanismo. Nota-se a repetição de um padrão de narrativa dos textos, tendo em consideração uma abordagem cronológica e profundamente fundamentada nos personagens históricos responsáveis pela divulgação e crítica do conceito. Contudo, as análises mais atuais dos estudiosos do pan-africanismo atrelado ao pós-colonial auxiliam no rompimento dessa métrica (centrada nas personalidades) visando novas reflexões utilizadas para apresentar o conceito de pan-africanismo e, ao mesmo tempo, demonstrar uma rede intelectual que fez uso dos meios literários afro-americanos e africanos na busca por mais representação e por sua identidade cultural-racial.

Uma determinada configuração do pensamento africanista foi se fortalecendo na medida em que os autores africanos ou afrodescendentes buscavam romper com as métricas excludentes divulgadas pela civilização ocidental majoritariamente europeia. O negro-africano não pregava o ódio ao branco, mas ao modelo desenvolvido por esse branco/europeu. A superioridade do “homem branco” permeou durante muito tempo as produções intelectuais tendo penetrado ainda na forma de governo, ou nos modelos dos Estados recém-independentes (DAVIDSON, 1967, p. 54).

As ideias do Pan-africanismo, apesar de oriundas fora da África, não impossibilitaram a chegada da Independência. Muito menos foram esquecidas, de certo, que elas podem ter presidido o "grande ano da Independência", 1960, quando no menos que 16 colônias africanas atingiram as suas suberanias. (DAVIDSON, 1967, p. 64)[2]

Embora o texto de Davidson tenha sido produzido em um momento bastante próximo do pós-independência, ele aponta o esboço externo dos representantes africanos os quais muitas vezes não tiveram participação nesse pensamento pan-negro. Os conceitos de négritude, pan-africanismo e afrocentrismo aparecem em contextos muito específicos do pensamento ocidental contemporâneo e devem ser refletidos, analisados e interpretados.

Para muitos estudiosos como, por exemplo, Donizeth dos Santos, a reação pan-africana se deu no âmbito de um movimento “histórico-racial-social”, preocupado com as ideais raciais disseminadas pelo pensamento europeu. Assim como outros pensadores que estão se debruçando sobre o tema, o professor busca a trilha dos grandes nomes do pan-africanismo como Edward Blyden, George Padmore e Marcus Garvey, mas exalta o fator cultural que movimentou toda uma geração (SANTOS, 2007, p. 71).

“Foi contra essa ordem histórico-racial-social que os principais integrantes do movimento Pan-africano se insurgiram, propondo (muitas vezes com ideias divergentes) a união de toda a raça negra contra o preconceito a que estavam submetidos” (SANTOS, 2007, p. 71).

Nos seus recentes estudos, o professor Muryatan Barbosa faz importantes recortes dos mesmos autores, contudo, a preocupação com o enquadramento dos pensadores africanos ou afro-americanos em períodos específicos e em contextos de luta racial (até o tempo presente), parece acarretar algum desconforto entre os pesquisadores recém-chegados ao tema, principalmente por não diferenciarem o pan-africanismo ideológico das movimentações políticas (BARBOSA, 2016, p. 135).

Acredita-se que o pan-africanismo, em sua vertente histórica, tenha ganhado contornos mais claros a partir das manifestações culturais: poesias, ensaios, movimentos artísticos começados no trânsito entre América do Norte, ilhas do Caribe, e um tímido reflexo no continente europeu. Nesse sentido, é essencial “iniciar uma obra de interpretação de todas as manifestações artísticas, espalhadas por ‘todas as Áfricas do Mundo’” (LARANJEIRA, 2000, p. 7).

Outras reflexões buscam compreender a diáspora negra, caracterizando o pan-africanismo como um processo histórico, às vezes de reparação, ou algumas vezes resgatando as narrativas que ilustram os processos de libertação dos antigos escravizados (PAIM, 2014, p. 88). Essa temática se expandiu na medida em que os escritos dos pensadores negros se difundiram e, em paralelo, uma demanda por representação foi visível, sobretudo nos debates universitários e na luta pela igualdade de direitos das populações afrodescendentes.

O uso político do pan-africanismo remonta aos debates sobre escravidão, diáspora e participação dos negros na sociedade contemporânea. Recuperando a análise do sociólogo Alain Kaly, considera-se que os primeiros pensadores do pan-africanismo estavam realmente engajados na luta para provarem sua condição de humanidade e de igualdade intelectual, principalmente, diante de diversas produções do racismo científico a exemplo da obra de Arthur de Gobineau (KALY, 2007, p. 86).

Para, além disso, mesmo que a memória dos pensadores negros remetesse aos duros processos de escravização e do transporte desses indivíduos feita de forma desumana, o conceito de pan-africanismo foi se fortalecendo concretamente com o passar do tempo.

Grande parte dos estudiosos do pan-africanismo situa o seu começo a partir do primeiro encontro de 1900 acontecido em Londres e destaca DuBois como mentor intelectual. [...] Assim, no século XIX, na Europa Ocidental, originou-se uma nova produção de conhecimento tida como científica particularmente direcionada aos não brancos. Estes estudos visavam “cientificamente” comprovar que estes eram seres inferiores e que precisavam do amparo europeu para chegarem à civilização. (KALY, 2007, p. 86-7)

Os estereótipos foram alvos de lutas inglórias por parte dos intelectuais africanos profundamente comprometidos com noções de liberdade, autonomia e união. Essas bases ideológicas do pan-africanismo impactaram no campo do saber majoritariamente europeu. Tanto os governos representativos que surgiam, quanto um processo de balcanização no continente africano foram responsáveis por revisões dos parâmetros da cultura e civilização propagados pelos representantes das metrópoles (Davidson, 1967, p. 57).

Sob esse prisma, o surgimento do Primeiro Congresso Pan-africano organizado em Trinidad, por Sylvester Williams e pelo professor W. E. B. DuBois, em 1900, representou um momento da gênese de importantes definições para os pensadores negros do século XX. Naquele contexto, a movimentação pan-africana pensava a união dos diversos povos africanos apesar das diferentes línguas, culturas e tradições como algo natural. Isso bastava naquele momento para que se iniciasse uma contraposição de um governo estrangeiro cuja posse dos territórios era indevida. Nesse sentido, a constatação de DuBois de que o problema daquele século era a “divisão da linha de cor”, as relações entre África, Estados Unidos, Caribe e Ásia deveriam se fortalecer e realizar algo de concreto contra essa realidade (DAVIDSON, 1967, p. 62).

Durante algum tempo, as movimentações pan-africanas de DuBois foram tratadas com certa cerimônia, contudo, compreende-se que para o início do século XX a própria constatação de que o negro estava à margem dos sistemas hegemônicos de construção do saber já seria algo extremamente revolucionário. Todas as interlocuções do momento eram válidas, pois não havia uma divisão tão acentuada dos fatores nacionais ou políticos, o elemento que unia os debates entre pensadores africanos e afro-americanos eram muitas vezes a exclusão e o preconceito – experiências comuns vividas por eles (JAMES, 2012, p. 2).

É preciso ressaltar ainda que a palavra pan-africanismo foi criada no contexto do pan-germanismo, do pan-eslavismo e do pan-arabismo, sendo, como seus análogos, uma representação da aspiração dos africanos a se unirem em uma nação única sobre o símbolo de um só Estado, para justamente apagar as situações ultrajantes de violência escravista, de diáspora e de domínio colonial. O conceito de pan-africanismo teve um grande peso político para os pensadores negros do século XIX e XX, inclusive por carregar consigo a esperança de restaurar uma dignidade negra, realizando uma “revanche sobre a história” (BETI; TOBNER, 2007, p. 188 – tradução livre do autor).

No campo das ideias é impossível falar de pan-africanismo e não inserir a história dos pensadores africanos ou afro-americanos, mas também inserir essa perspectiva em um movimento mais geral da História da Humanidade. E o pan-africanismo é, ao mesmo tempo, a História dos negros da diáspora, das independências africanas, dos movimentos literários, do “Back to Africa” e, ainda, da unidade africana (BOUKARI-YABARA, 2014, p. 12). Mas uma perspectiva pós-colonial recupera parte das biografias desses pensadores, fornecendo novos elementos de análise para compreensão do passado e da experiência dos homens no mundo.

Os precursores do pan-africanismo

Um exemplo da complexidade envolvendo o conceito de pan-africanismo está no seu caráter polissêmico, pois foi utilizado tanto para caracterizar as lutas pela solidariedade racial, quanto para expor um modo ideal de luta política comum aos povos negros em diversos contextos e servindo a diversas causas. O livro de C. L. R. James, “A History of Pan-african Revolt”, é um exemplo disso, visto que buscava caracterizar tanto as lutas pela independência política na África, quanto uma defesa às ações visando o fim da segregação racial nos Estados Unidos.

Para James, o conceito de pan-africanismo estava atrelado a três fatores fundamentais: o primeiro era a movimentação contra a colonização na África, o segundo se debruçava sobre o problema da inexistência de direitos para os negros afro-americanos, e o último fator do conceito era relativo aos conflitos existentes nas ilhas do Caribe (JAMES, 2012, p. 24). Os pensadores pan-africanistas fundamentavam o pensamento deles de forma universal e mais ou menos essencializada e, no caso de James, isso era acentuado por uma perspectiva militante de esquerda.

Mas o que é o pan-africanismo? Ele pode ser interpretado como um movimento político-ideológico ou como uma imaginação coletiva de união que desconsidera as especificidades culturais dos povos negros, levando em conta a necessidade de união diante das injustiças pelas quais passaram. O mal-estar pan-negro foi algo que mobilizou os movimentos de libertação nacional, e também deu alguma legitimidade ao campo cultural para esses pensadores negros.

Pode-se ver que os congressos foram os principais definidores das balizas do conceito de pan-africanismo e a figura de William Edwards Burghardt DuBois foi essencial para a divulgação da noção de pan-africanismo. Nos anos de 1900, 1919, 1921, 1923, 1927 e 1945, americanos, antilhanos e militantes da causa negra de uma maneira geral, se reuniram nesses congressos para discutir e (re) elaborar os espaços de identidade e pertencimento dos negro-africanos. Considera-se que as perspectivas iniciais eram debater sobre a estrutura da colonização e da condição da comunidade negra transnacional, contudo, o último congresso demandava a emancipação dos países no continente africano (BETI; TOBNER, 2007, p. 188).

Um pensador preponderante do pan-africanismo foi George Padmore: personagem central na militância da esquerda pan-africanista. Ele influenciou muitos pan-africanistas e publicou o jornal “Negro Worker” (James, 2012, p. 5). Em 1935, a Etiópia foi invadida pela Itália e então houve uma grande movimentação do pensamento pan-africano visando à mobilização de sua libertação. O mito de que o Imperador Menelik II retornaria, contribuía para que alguns líderes africanos tivessem a esperança de libertação da dominação europeia. A Etiópia tinha uma tradição religiosa voltada ao Cristianismo, sendo um dos primeiros países a adotá-lo oficialmente no país.

Dois nomes importantes para essas primeiras manifestações foram Sylvester Williams, o responsável por lançar a noção de solidariedade negra para os descendentes de africanos e o seu sobrinho, George Padmore, foi quem esteve à frente das alianças que uniriam África e grande parte da América (SANTOS, 2007, p. 72). Iniciados nos primeiros anos do século XX, esses congressos pan-africanos iam recuperar os ideais pan-africanos de Marcus Garvey, Edward Blyden e Alexander Crummell como forma de se pensar o continente africano e o fator de pertencimento do elemento negro ao espaço geográfico específico. Nas palavras de Appiah:

Em 26 de Julho de 1860, Alexander Crummell, afro-americano de nascimento, liberiano por adoção e padre episcopal com formação na Universidade de Cambridge, discursou para os cidadãos de um condado de Maryland, Cape Palmas. Embora a Libéria só viesse a ser reconhecida pelos Estados Unidos dois anos depois, a ocasião, segundo a estimativa de Crummell, foi o décimo terceiro aniversário de sua independência. [...] Crummell, considerado por muitos como um dos pais do nacionalismo africano, não tinha a menor dúvida de que o inglês era uma língua superior às várias línguas e dialetos” das populações nativas africanas; superior em sua eufonia, seus recursos conceituais e sua capacidade de expressar as “verdades mais elevadas” do cristianismo. (APPIAH, 1998, p. 19)

Embora alguns analistas sejam reticentes em relação ao trabalho de Appiah, na obra “Na casa de meu Pai” é possível encontrar diversas caracterizações desse pensamento pan-africano. Como é o caso de sua descrição sobre Alexander Crummell (1819-1898), um americano que, entrando em contato com as descrições sobre a África, encantou-se com a Libéria elegendo o país como sua terra natal. E em seu livro “O futuro da África”, Crummell utilizou um capítulo para falar da língua inglesa na Libéria, que deu origem ao seu discurso de 1860.

É aqui que reside o perigo do livro de Appiah, pois, em um ambiente onde o conhecimento sobre a História da África e outras temáticas relacionadas é reduzido ou, praticamente inexiste, um livro como o dele, que sugere o pan-africanismo (uma das ideologias centrais de resistência das descolonizações africanas), como uma ideologia racista, apresenta-se como uma “bomba-relógio” no sentido de formar um “pensamento equivocado” (e por que não racista) em relação aos teóricos africanos e da diáspora. (PAIM, 2014, p. 111)

É preciso esclarecer a necessidade de fazer uma história crítica do pensamento africano, como mostra Márcio Paim (2014), não reificando o conceito de pan-africanismo de Appiah, visto que ele pode ter impregnado o mesmo com noções racistas dos opositores ao governo pan-africanista de Kwame Nkrumah, pensador que ventilou o conceito para suas articulações políticas mais adiante. Contudo, mesmo desconfiando das definições partidárias de Appiah, serão abordadas as suas análises dos precursores do movimento pan-negro para ilustrar as circulações destes em um mundo ainda bastante eurocêntrico.

Abordando a justificativa pan-africana, Alexander Crummell Apppiah aponta:

Para ele, o que tornava a África unitária era ela ser a pátria dos negros, assim como a Inglaterra era a pátria dos anglo-saxões, ou a Alemanha, a dos teutões. Crummell foi uma das primeiras pessoas a falar como negro na África, e seus textos inauguraram o discurso do pan-africanismo. É que ele pensava no povo da África (em termos que o nacionalismo do século XIX tornava naturais) como sendo um único povo, a ser concebido, à semelhança dos italianos ou anglo-saxões, em certo sentido, como uma unidade política natural. (APPIAH, 1998, p. 22)

Vista de maneira torta pela opinião pública francesa, as manifestações pan-africanas representavam um direcionamento para os povos negros, diante de um passado carregado de uma carga dolorosa na memória dos povos negros da diáspora. Os diálogos proporcionados por Sylvester Williams e DuBois foram divisores de águas nas associações entre os pan-africanistas dos Estados Unidos e das ilhas do Caribe. A Conferência Pan-africana de 1900 gerou repercussões, mas colocava em contato diversas personalidades com afinidades em comum. “Depois da Conferência, em muitas partes, os movimentos organizados e dirigidos por negros foram se espalhando em prol da conquista da cidadania e da dignidade humana” (KALY, 2007, p. 95).

Uma “solidariedade racial imaginada” também foi envolvendo o pensamento dos pensadores negros, fossem eles afro-americanos, afro-caribenhos ou africanos. A própria noção de uma civilização africana, de sociedades originárias da África, as quais teriam identidades, tradições e características culturais mais ou menos semelhantes disseminava uma ideia de valorização do negro, como também posicionava seu local de origem comum (DAVIDSON, 1967, p. 65).

Ainda hoje em voga, o conceito de pan-africanismo pode ter um uso geopolítico, historiográfico e mesmo racial (tal como fez Kwame Appiah). Cabe perceber ainda como no campo geopolítico ele foi usado de maneira a estabelecer um projeto político-econômico para o continente. Contudo, o seu peso histórico está na comprovação de que cada vez que pensadores usaram a palavra ela tinha um peso político-ideológico capaz de reanimar os valores de liberdade e unidade alçando os povos à valorização de suas identidades e de sua condição diaspórica (JAMES, 2012, p.32).

Cada geração pôde aproveitar o melhor dessa condição de unidade que carregava consigo o ideal de união e de libertação nacional. De acordo com os divulgadores do conceito, ainda havia a necessidade de luta, de movimentação e de se propagar mais e mais o debate pan-africano.

Edward Blyden – Pai do Pan-africanismo

Edward Wilmot Blyden foi um pastor e defensor do ideal de personalidade africana, ideal que ele atrelava a uma noção de solidariedade racial de todos os povos negros. Influenciou o conceito de négritude que surgiria anos mais tarde e foi um dos primeiros escritores a defender uma unidade africana ocidental. Desse modo, Blyden foi um pensador múltiplo, pois ao mesmo tempo lançou o ideal pan-africanista, tanto por conta de seu recorte no âmbito da negritude (debate do ser-negro) quanto do afrocentrismo, reanimando o debate sobre a ressignificação ao conceito de raça do século XIX (AMSELLE, 2001, p. 85; MUDIMBE, 2013, p. 129)[3].

Blyden nasceu nas Antilhas em 1837 e, após vivenciar o racismo na sociedade norte-americana, idealizou a África como um espaço que reuniria os negros espalhados ao redor do mundo. A Libéria era esse lugar idealizado por Blyden e apesar da admiração pelo capitalismo e dos avanços tecnológicos da virada do século XIX, ele não incluiu os Estados Unidos no seu projeto pan-africano (CARRILHO, 1975, p. 67).

Blyden propôs a África, e isto pela primeira vez, como referência imediata para o homem negro. Não mais um povo sem história, mas uma ‘civilização africana organizada à volta de um sistema corrente de situações e de costumes, animada de valores morais e espirituais. O africano não era portanto inferior ao europeu, era simplesmente diferente, tinha uma personalidade própria’. (CARRILHO, 1975, p. 68; IRELE, 2008, p. 115-40)

Segundo Amselle, a personalidade de Blyden tinha três dimensões: um homem de religião, um filósofo-linguísta e um raciologista. Edward Wilmot Blyden teve uma atitude mimética em relação às teorias raciais do século XIX e acreditava que era preciso “regenerar a África” (AMSELLE, 2001 p. 86). Essa reflexão pode ter sido herdada de parte do pensamento missionário europeu cuja maior preocupação era “civilizar a África”, levando todo um aporte cultural europeu responsável por essa regeneração.

A segunda metade do século XIX estava sendo fortemente influenciada por uma igreja católica que tinha na África um local ideal para a sua expansão pela “fé e pela Pátria”, sobretudo, na sua vertente francesa. O projeto imperial de nação ganhava escopo com os incentivos da Igreja Católica e uma aliança ainda tácita entre o poder do Estado e do clero tornara isso viável (SANTOS, 2002, p. 137). Com isso, esperava-se restaurar parte do antigo domínio católico em parte do continente africano denotando um duplo desejo: de “regenerar” o continente e ainda retomar a glória da presença cristã na África.

Ainda no caso francês, percebia-se um grande investimento na escola colonial em que os Padres Brancos buscavam não só inserir os valores cívicos, mas os valores morais e culturais no bojo da ideologia católica. Essa influência dos Padres Brancos (assim chamados por usarem túnicas brancas de tecido mais leve) reverberou no projeto do Estado francês que não pretendia realizar uma assimilação real dos indivíduos (SANTOS, 2002, p. 138-141)[4].

Para muitos religiosos e missionários, as noções de colonização e de cristianização caminhavam juntas visto que poderiam incentivar os recursos “espirituais, militares e tecnológicos” (SANTOS, 2002, p. 142). Assim, torna-se possível pensar como esses pensadores compreendiam a escola como uma ramificação da missão de civilizar esses indivíduos cuja ajuda seria muito útil aos quadros dos colonizadores durante os processos de ocupação.

De modo similar, Blyden era um religioso inserido no pensamento missionário desse tempo, sendo difícil um posicionamento essencialmente científico para as suas teorias, muitas vezes combinadas com as suas crenças pessoais. Para ele, algumas das causas do empobrecimento dos africanos estavam associadas ao clima, ao isolamento, ao tráfico de escravos e isso demonstrava que pretendia construir as condições para tirá-los desse atraso (AMSELLE, 2001 p. 88)[5].

O debate sobre Blyden ser ou não o precursor do conceito de négritude é bem longo e complexo, contudo, ele definia a existência de um sentido de africanidade com o qual muitos pensadores posteriores a ele se identificaram. Debatido brilhantemente pelo filósofo da República Democrática do Congo, Valentin Yves Mudimbe, o legado de Blyden ainda se confunde com as interpretações da negritude francesa ou do pan-africanismo anglófono que persistem se apropriando das suas noções de africanidade ou mesmo de unidade (MUDIMBE, 2013, p. 129-130).

O posicionamento de Blyden foi similar ao Volksgeist e, bebendo da água da raciologia poligenista do século XIX, postulou a especificidade da “raça” negra que, segundo ele, era igual às outras raças, não tendo tantos traços distintivos em relação aos outros grupos étnicos (AMSELLE, 2001, p. 88). A obra “Christianity, Islam and the Negro Race” acabou sendo o seu maior indício de que havia uma interpretação particular sobre a colonização e ainda da condição de ser negro. O ambiente histórico e intelectual no qual sua obra foi produzida auxilia a demonstrar como Blyden se apropriava das clivagens realizadas pela colonização visando invertê-las para uma lógica negro-africana (MUDIMBE, 2013, p. 130)[6].

Para Blyden, a África era um objeto de idealização, o continente e a raça eram a mesma coisa. Ele valorizava os aspectos culturais “a cultura africana, sobretudo, aquela dos povos do interior que não foram assimiladas pelos europeus (Fulas e Mandingas) está assim sadia e deve ser preservada” (AMSELLE, 2001, p. 88-9 – tradução livre do autor).

Na caracterização de Amselle, há uma série de estereótipos dos quais Blyden se serve para caracterizar a África e os africanos. O interessante dessa caracterização é ser realizada de modo completamente parcial (por vezes romântico) e isso é o que mantém as análises instigantes[7]. Contudo, no seu “aspecto religioso a posição de Blyden é mais original e a mais contraditória” (AMSELLE, 2001, p. 89). Apesar de apoiar a colonização em seus fundamentos, Blyden rejeitava a noção de que o branco deveria estar presente na Libéria, defendendo a retomada do espaço africano pelos negros, assim como lhes era de direito (MUDIMBE, 2013, p. 131).

Através das análises do pan-africanismo de Blyden, percebe-se a sua idealização do continente africano aliada às variadas teorias europeias das quais se munia naquele momento. Era uma idealização de África muito comum com uma tentativa de remodelar o passado e inserir as tradições africanas na “modernidade”; essa seria a característica mais ou menos comum entre esses primeiros pan-africanistas. Como se percebe na análise de alguns africanistas:

As tradições inventadas das sociedades africanas – inventadas pelos europeus ou pelos próprios africanos, como reação – distorceram o passado, mas tornaram-se em si mesmas realidades através das quais se expressou uma incrível quantidade de conflitos coloniais. (RANGER; HOBSBAWM, 2008, p. 220)

O projeto de Blyden era o de adotar a língua inglesa para a educação dos jovens e adultos liberianos. Essa tática garantiria a presença de afro-americanos e antilhanos no continente, iniciando o seu processo de restauração. Apesar do contexto de divisão da África iniciado de modo mais incisivo em 1888-9, o autor preconizava o protagonismo dos negros no continente (MUDIMBE, 2013, p. 134)[8].

A dimensão particular da teoria de Blyden sobre a colonização reside na suposição de que a abertura e o desenvolvimento do continente devem ocorrer através de uma iniciativa negra. Em 1885, numa longa carta dirigida a Sir Samuel Rowe, governador de Serra Leoa, Blyden comentou o essencial da sua teoria sobre a colonização. O interesse europeu “agora direccionado para a África” é positivo em termos de suas premissas, uma vez que é, segundo a sua visão, “causa da civilização e da evolução. (MUDIMBE, 2013, p. 135)

A originalidade do pan-africanismo de Blyden era iniciar uma identificação de pertencimento do negro que, antes de estar enraizado em seu território, dava-se conta de um espaço originário comum. Com isso, percebe-se uma noção de povo negro espalhado pelo mundo que poderia ser ao mesmo tempo “nativo” ou “cidadão”. Essa espécie de mitologia criada por Blyden agrega essa noção de africanidade tão inovadora para o início do século XX e o continente africano é o ponto de chegada e ao mesmo tempo lugar “natural do povo negro”, separado pela escravização e pela diáspora (MBEMBE, 2001, p. 185).

A Libéria era o ponto de chegada para os negros da diáspora, mas ainda era possivel ocupar um local que representaria a possibilidade de expressão estética negra e, sob esse aspecto, o Harlem foi, no início do século XX, esse local da cultura negra por excelência. Compreendendo o protagonismo do Harlem Renascence e dos autores como Alain Locke e Claude Mackay também é possível perceber como racismo, segregação e assimilação começavam a ser questionados tanto pela Négritude que se seguiria, quanto pelo pan-africanismo em seu aspecto mais geral (HERNANDEZ, 2014, p. 203).

A inovação de Blyden e parte do seu legado foram apropriados por muitos pensadores como Kwame Nkrumah e Léopold Senghor, o que garantiria uma divulgação e ampliação do conceito de pan-africanismo. Como lembra o filósofo Yves Mudimbe:

Se comparada com a negritude de Senghor, a relevância do compromisso de Blyden ainda é evidente, embora o conceito de raça seja geralmente considerado uma armadilha ideológica. Apesar de as discrepancias devido às diferenças dos contextos sociopolíticos, situações psicológicas e referências filosóficas, Senghor, no global, seguiu a tese ambigua de Blyden. As suas declarações salientam a identidade cultural e histórica africana em termos de raça e consideram este conceito essencial. (MUDIMBE, 2013, p. 168)

Desse modo, seria necessário um maior espaço para se compreender os caminhos pelos quais o conceito trilhou, levando em consideração a parte francófona do Movimento da Négritude e a vertente anglófona do pan-africanismo. Nessa segunda vertente, teve impacto o conceito de “personalidade africana”, ficando cada vez mais em evidência. Fosse considerado pai do pan-africanismo ou da Négritude, Blyden iniciou um debate fundamental sobre identidade, cultura e unidade transnacional dos povos negros.

Assim, a trajetória de Blyden se mistura com as investidas de Garvey e de DuBois na medida em que movimentaram reflexões no campo da cultura e das artes, além da investidura na valorização do “ser negro” e em direção à revalorização de uma africanidade. Para Garvey, foi o trânsito dos povos negros da diáspora; para DuBois, foi a luta contra a institucionalização do racismo e; para Blyden, foi um diálogo mais linear em relação ao papel que os povos negros deveriam ocupar no mundo (HERNANDEZ, 2014, p. 203).

Marcus Garvey & W. E. B. DuBois – conscientização da hereditariedade africana

A noção de pan-africanismo surgiu nesse momento inicial em que o negro norte-americano questionava seu papel na sociedade norte-americana. Graças às primeiras reflexões nesse sentido, os negros norte-americanos enfrentavam o início de uma luta por conquista de direitos, luta que ocorreria por todo o século XX e na qual W. E. B. DuBois, por exemplo, foi um dos ativistas políticos que mais buscava inserir o negro no “sonho americano”, pois em suas produções ele trabalhava para que os afro-americanos deixassem de ser cidadãos de segunda classe, tendo a perspectiva de maior participação na sociedade americana.

Entre 1919 e 1926, alguns nativos pan-africanos se organizaram em um movimento conhecido como “Movimento Garvey” ou “Garveyismo”. Os negros norte-americanos não tinham condições para votar, muito menos para entrar nos quadros universitários de Harvard ou Yale, portanto, ao norte e no sul dos Estados Unidos emergiam homens de negócios, profissionais, artistas, escritores, músicos, alguns se saindo supreendentemente bem, e crescia o círculo da intelligentsia negra do início do século XX (JAMES, 2012, p. 91).

O seu livro “As almas da gente negra” (1902) indicava erudição e uma dose de provocação em relação ao sistema de exclusão promovido pela política americana. Devemos lembrar também que esses primeiros anos reservavam aos negros um lugar de cidadãos de segunda categoria. Os empregos eram geralmente de serventes, mordomos, arrumadeiras, motoristas, etc. A influência de Garvey no pensamento de DuBois ainda não foi totalmente explorada, mas defende-se que, desde o começo do século XX, o ideal de “diáspora negra” tenha sido esboçado pelo primeiro e defendido mais enfaticamente pelo segundo autor (NDIAYE, 2008, p. 362-3).

Para compreender melhor a atuação de Garvey na gênese do pan-africanismo é possível recuperar alguns elementos biográficos de sua atuação enquanto militante da causa negra. Entre os anos de 1914 e 1918, centenas de afro-americanos migraram do norte para o sul dos Estados Unidos em busca de melhores empregos e de uma maior aceitação sociocultural. Somente durante a Primeira Guerra os soldados negros compreenderam realmente o nível do preconceito pelo qual passavam na América (JAMES, 2012, p. 90).

Foi justamente em agosto de 1914 que Marcus Garvey, um negro jamaicano, um trabalhador de uma gráfica e Amy Ashwood, sua amiga, fundaram a UNIA (Universal Negro Improvement Association) em Kingston – Jamaica. Eles eram os únicos integrantes, e ela o colocou como presidente e ele a indicou como secretária. Eles levaram adiante a propaganda na Jamaica, assim, Garvey foi para os Estados Unidos – a meca de todos os negros das Índias Ocidentais, pelo menos antes da grande crise (JAMES, 2012, p. 91).

O movimento popular encabeçado por Garvey assume no primeiro pós-guerra uma extraordinária dimensão coletiva. Conseguiria atrair milhares e milhares de negros, de Harlem e de todo o país, explicando-lhes que nos Estado Unidos jamais obteriam a igualdade completa: a terra prometida era uma vez mais a África-mãe, para onde era preciso partir em conjunto. (CARRILHO, 1975, p. 71-2)

Marcus e Amy casaram-se e a senhora Garvey foi para Nova Iorque para encontrá-lo em 1918, quando a UNIA chegava então a 17 membros. Em 1919, a UNIA já contava com 5000 membros ligados a sua organização. Quando ele foi preso por caluniar o assistente do distrito de Attoney, em Nova Iorque, quase todos os negros da América se mobilizaram pela sua soltura. A “revolução” estava no ar e os afro-americanos estavam prontos para ela. Em 1920, a UNIA já era proporcionalmente o mais poderoso movimento de massas na América. Nesse ano, ela já contava com 5 milhões de membros. Graças a isso, o tamanho da penetração dos ideais de Garvey entre representantes negros do mundo todo foi aumentando (JAMES, 2012, p. 91-2).

Pode-se definir Garvey ainda como um dos primeiros pensadores a abordar o pensamento anticolonial, pois a sua noção de retorno ao continente buscava um projeto de modernização e emancipação com o qual se rompia a perspectiva hierárquica da colonização. Através de suas ideias podem ter surgido os primeiros rasgos da diáspora africana, essa preocupação em se reencontrar as raízes e suas especificidades culturais e raciais ligadas a um ideal de africanidade (SANCHES, 2012, p. 15).

Mesmo com as contradições de seu pensamento, Garvey incentivou um movimento que ficou conhecido como o “Back to Africa”. Essa foi uma maneira idealizada para dar ao descendente de africano a possibilidade de retomar a sua dignidade, inclusive reconectando-o com suas raízes geográficas. Essa foi uma das maiores contribuições de Garvey, pois o “retorno ao continente” não era um discurso vazio, fortalecendo a necessidade de revisitar as heranças africanas de modo significativo.

Os negros tinham que pegar a África de volta para eles mesmos. Eles deveriam viver felizes por lá, como os europeus do continente e os americanos na América. Contudo seu projeto tinha problemas. Como “devolver” o continente de maneira concreta aos afro-americanos? Em tese, esperava-se dele que adotasse posturas anti-imperialistas e Garvey poderia ter feito isso, mas ele atacava temas como o linchamento dos negros nos Estados Unidos, formulava demandas dos militantes, pedia direitos iguais para os negros, liberdades democráticas e todo tipo de demanda voltada aos afro-americanos. Paradoxalmente, seu programa era o “Back to Africa”.

Empenhado em devolver a dignidade subtraída dos negros, Garvey defendeu o slogan de volta ao continente centrando nas autoridades americanas o seu diálogo, pois ele precisava ainda de incentivos financeiros para realizar o financiamento das suas viagens para a Libéria (JAMES, 2007, p. 349-50).

Alguns feitos concretos de Garvey eram: a organização das tropas negras (marchavam uniformizados nas paradas organizadas pela UNIA), a construção do Liberty Hall: um local voltado para os congressos e demonstrações públicas e a criação da Black Star Line: uma linha de navios temática que fez na realidade uma ou duas viagens. Essa linha buscava levar os afro-americanos direto para o continente africano materializando o projeto de volta ao continente (JAMES, 2012, p. 93).

O que Garvey não fez: atacou pouco o Imperialismo, manteve fidelidade à bandeira e aos elementos cívicos. Defendeu o capitalismo atacando constantemente o comunismo, tentando separar os trabalhadores negros das lutas sindicais que envolvessem os brancos. Passou por muitos enfrentamentos com a polícia que frequentemente o prendia. Havia agentes americanos que tinham fortes ligações com a Libéria, contudo, não levavam a fundo o projeto de retorno ao continente de Garvey (JAMES, 2012, p. 92).

Graças à circulação do pensamento de Garvey, DuBois e Blyden, a valorização do “ser negro” tinha atingido as condições propícias para uma percepção mais generalizada (e coletiva) da descendência africana. Foi no coração do Harlem que intelectuais com a sensibilidade desse problema, tais como Alain Locke e Langston Hughes conseguiriam incentivar essa condição de um “novo negro” incentivando seus valores, sobretudo, suas capacidades intelecto-morais (CARRILHO, 1975, p. 72).

Ocorrido entre 1920 e 1930, o Harlem Renascence foi incentivado pela antologia de Alain Locke, a qual preconizava a necessidade de um despertar cultural do afro-americano, percebendo ainda que a “raça” negra deveria voltar a ser protagonista do campo cultural, filosófico e se espraiar para toda a sociedade americana (Carrilho, 1975, p. 72). Fruto das movimentações desses precursores do pan-africanismo, o Movimento do Harlem teve consequências bastante positivas e, embora não tenha conseguido se manter por mais de uma década, iniciou uma série de debates que colocariam em xeque as teses da inferioridade do indivíduo negro.

Tomaram consciência do facto de entre todos os grupos étnicos que povoaram os Estados Unidos – anglo-saxões, italianos, franceses, alemães, judeus – só os negros sofreram lavagem de cérebro que lhes fazia acreditar serem naturalmente inferiores e não terem uma História. Para combater este profundo complexo de inferioridade era preciso restabelecer a verdade. (COOK, 1971, p. 12)

O caminho percorrido por Garvey foi paralelo ao dos artistas do Renascimento do Harlem e demonstrou a sua ligação com os ideais afro-americanos. Já em 1926, foi acusado de usar o correio dos Estados Unidos para uma tentativa de fraude, razão pela qual foi preso e deportado para a Jamaica. Quando fechou um acordo com imperialistas britânicos, a UNIA se desintegrou por fim. Contudo, o garveyismo continuou influenciando a mentalidade dos negros no mundo todo (JAMES, 2012, p. 93).

Uma coisa Garvey fez. Ele fez o negro americano consciente de sua origem africana e criou pela primeira vez um sentimento de solidariedade internacional entre africanos e pessoas de ascendência africana. Na medida em que é direcionado contra a opressão, é um passo progressivo. Mas o movimento foi em muitos aspectos absurdo e em outros completamente desonesto. (JAMES, 2012, p. 94 – tradução livre do autor)[9]

Desse modo, considera-se Garvey como uma personalidade complexa, porque lançou um movimento de massas protagonizado por negros e ainda materializou alguns dos anseios de parte dos intelectuais pan-negros do mundo todo: “Marcus Garvey será visto na História como um herói, cuja ação, pela primeira vez, quis traduzir em realidade o mito fascinante e inelutável reunindo as frações do povo negro disperso pelo tráfico e pela escravidão” (BETI; TOBNER, 2005, p. 119 – tradução livre do autor). O peso da trajetória desse pensador para o negro americano foi realmente muito grande, contudo, suas contradições ainda merecem ser estudadas e interpretadas no contexto das conquistas dos povos afro-americanos.

A Négritude – revisitando o debate

Algumas conexões presentes na história da África e do pensamento social africano acabaram sendo pouco exploradas pelos pensadores do século XX. Contudo, o mundo conectado aliado à propagação de um “essencialismo da diferença” gerava a necessidade de ampliação desses debates. O antropólogo francês Jean-Loup Amselle (2013) fez uma série de questionamentos acerca dos estudos africanos buscando compreender as trocas culturais levando em consideração as especificidades das etnias, das “raças” e das estruturas coloniais ainda hoje presentes nas relações da França com suas antigas colônias.

Grande parte da movimentação pan-africanista foi animada pela atividade intelectual dos pensadores preocupados com o desenvolvimento da cultura e da política dos povos negros, mas essas demandas foram se tornando mais urgentes no campo prático. Devido a isso, é necessário compreender um pouco dessa trajetória da teoria para uma perspectiva mais ampliada dos ideais pan-africanos.

Como define Amselle, os dualismos foram um grande entrave para as análises do pensamento africano e as narrativas sobre a raça ocuparam grande parte do tempo e do fôlego dos autores negros. As diferenças só podem ser percebidas levando em consideração o contexto histórico que compôs os processos de construção das identidades modernas: se antes foram moldadas em contextos geopolíticos bipolares, depois em contextos raciais bem divididos, contudo, em ambos os casos se pautavam na raça e isso pode ter sido a pior apropriação que os pensadores da diáspora realizaram, mas a necessidade daquele momento. Utilizando-se das métricas ocidentais, eles acabaram reproduzindo as dicotomias que não abordavam a complexidade do humano e das identidades constituídas de modo múltiplo (AMSELLE, 2001 p. 98; GILROY, 2007, p. 25).

Grande parte dessa responsabilidade pode ser atribuída à força de penetração do discurso colonial às suas realidades e necessidades dentro do contexto de cada país. Por isso, a linguagem dos missionários e o Garveyismo foram tão importantes nos debates iniciais desse período. Como aponta Cooper (2008, p. 46), esses pensadores buscavam desestruturar parte das dinâmicas coloniais e aliado a um projeto inicial de nacionalismo ocorrido internamente no continente, já que havia uma percepção de que as colônias começavam a ficar pesadas para a administração da metrópole, sobretudo, após 1950 (COOPER, 2008).

Nessa movimentação intelectual surgiram, com maior intensidade, as perspectivas defensoras de uma négritude, ou de uma creolidade, segundo as quais já que o pensamento africanista não era inserido no mundo, ele deveria criar um espaço próprio do qual se afastaria definitivamente da civilização, tal como Prometeu, do mito, mantendo-se acorrentado. Em oposição ao pensamento europeu, os afrocentristas acabavam utilizando-se das mesmas métricas dos colonizadores para realização desse distanciamento da teoria (AMSELLE, 2001, p. 82).

Influenciados pelo Harlem Renaissance, tanto Léopold Senghor (1906-2001) quanto Aimé Césarie (1913-2008) estabeleceram no conceito de négritude um caminho literário e filosófico para se pensar a identidade negra. Encontros, saraus e debates acadêmicos fizeram do Quartier Latin o espaço de diálogo de um novo grupo de pensadores negros animados, inicialmente, pelas irmãs Paulette e Jane Nardal (SANCHES, 2012, p. 20).

O salão literário das irmãs Nardal foi o espaço em que as obras de célebres escritores como Alain Locke, Langston Hughes e Claude Mackay eram traduzidas e circulavam amplamente no debate intelectual na metrópole onde realizavam seus estudos universitários. A Revue du Monde Noir foi o berço da Négritude, demonstrando um espaço legítimo e profícuo para as análises englobando as produções norte-americanas e das Antilhas (SANCHES, 2012, p. 20-1).

Pouco tempo depois, o movimento da Négritude já possuía um espaço de atuação consolidado e a amizade de Senghor e Césaire traria frutos para o debate do período entre guerras:

Senghor e Césaire cruzar-se-ão pela primeira vez em Paris, no liceu Louis Legrand, no ano de 1931. É aí que descobrirão a necessidade de afirmar a sua identidade negra, inspirando-se em modelos literários alternativos, como os que lhes chegavam de Harlem e dos seus poetas, vindo ambos a fundar o primeiro órgão da negritude, L’Étudiant Noir, em 1934, depois de Légitme Défense, publicação de curta duração (1932) que agrupara estudantes das Antilhas que contestavam já as políticas de assimilação da República Francesa, em nome de sua negritude que, de característica humilhante, adquiria conotações positivas. (KESTELOOT, 1967, JULES-ROSETTE, 1998 apud SANCHES, 2012, p. 21)

Entre as duas guerras, tanto Senghor quanto Césaire não poderiam imaginar o quanto o discurso do colonizador iria se modificar e as narrativas de ambos os pensadores pode ter reproduzido a dinâmica da colonização para desestabilizá-la. Seria somente no pós-Segunda Guerra que os dois autores se engajariam mais fortemente nas esferas políticas dos respectivos países. Fica bastante claro o tempo em que o conceito se circunscrevia e, ainda, a necessidade de criação de uma narrativa na qual fosse possível fugir dos paradigmas eurocêntricos-racialistas.

Os textos de Senghor e de Césaire carregavam esse desejo de reapropriar as narrativas coloniais e, sob esse aspecto, o francês foi preponderante. Contudo, acredita-se que a Négritude tenha atingido outros espaços e ganhado características transnacionais (SANCHES, 2012, p. 23). Nas zonas falantes do inglês, os ideais da Négritude[10] não tiveram tanta penetração e o conceito de African Personality (divulgado por Blyden) ganhou os espaços pan-africanos de grande parte da África. Era uma maneira de se compreender um lugar conjunto e, nesse sentido, talvez tenha feito mais sentido para as atividades políticas de final da década de 1950 (CARRILHO, 1975, p. 90).

Nesse momento, o conceito-négritude abre espaço para uma noção mais vasta de pan-africanismo e líderes importantes como Jules Nyerere e Kwame Nkrumah utilizaram essa “personalidade africana” em benefício de um projeto mais amplo de unidade. De acordo com Carrilho (1975, p. 90): “Já no segundo pós-guerra, a expressão ‘African personality’, usada por Nkrumah, tinha conotações pan-africanas mais do que pan-negras. Com a independência do Gana (1957), Nkrumah torna-se o líder mais apaixonado do pan-africanismo.”

Em linhas gerais, percebe-se o quanto o pan-africanismo foi objeto tanto dos autores afro-americanos, como de antilhanos, passando ao discurso dos intelectuais diaspóricos da Négritude, sendo fundamental para a concepção de Estado no continente africano, incentivando ainda os processos de descolonização (COOPER, 2008, p. 47). Essas conexões e desconexões acabaram por mostrar a necessidade de contraposição do eurocentrismo ao afrocentrismo mais afeito ao pensamento negro-africano.

Analisando o processo todo de construção dos conceitos, tanto de négritude quanto do pan-africanismo, percebe-se uma perspectiva romântica/idealizada de unidade e de busca da identidade, contudo, na esfera cultural eles são bem-sucedidos e um espaço efetivo de militância acabou refletindo o que era ser africano e pertencer a “raça negra”. A grande parte dos pensadores aqui trabalhados pensaram suas raízes africanas, e com isso acabavam divulgando uma certa “essencialização” do que era ser negro; por exaltarem suas especificidades, foram criticados e, por vezes, excluídos das narrativas de libertação nacional (CARRILHO, 1975, p. 91; SANCHES, 2012, p. 33).

Por outro lado, as bases do pan-africanismo foram responsáveis pelos processos de maturação da necessidade em se atingir o nacional. Frantz Fanon e Amílcar Cabral sendo os principais pensadores cujas obras foram certamente resultado da reflexão crítica acerca do conceito-négritude. O processo de libertação nacional na África aconteceria de modo peculiar, pois primeiramente era construída uma rede de solidariedade entre os pensadores e as afinidades ideológicas, raciais ou continentais foram o elã pelo qual se movimentaram a négritude e o pan-africanismo (SANCHES, 2012, p. 40).

O pan-africanismo: um declínio?

O pan-africanismo foi associado durante muito tempo ao ideal de raça tal como defendido por Appiah (1998, p. 43), mas também ocupou um lugar imprescindível na análise dos autores das últimas décadas, ainda em períodos de colonização. O legado colonial não pode ser deixado de lado nessa abordagem, sobretudo, porque em grande parte foi devido às perspectivas pós-coloniais que houve o interesse pelo retorno às trajetórias dos pensadores negros. O pós-colonial entra justamente na crítica literária capaz de recuperar as falas dos pensadores negros tidos, durante muito tempo, nas margens dos discursos ocidentais (APPIAH, 1998, p.105).

Em um contexto mais concreto, o pan-africanismo aparecia nos congressos e os pensadores pan-negros articularam o pensamento de libertação entre os escritores da diáspora.

[...] estas tentativas de libertação processadas na África e na diáspora culminaram, entre 1900 e 1935, no movimento pan-africanista; os anos 1920, particularmente, conheceram uma intensa atividade, especialmente, graças aos esforços de Marcus Garvey e W. E. B. Du Bois, nos Estados Unidos da América do Norte, e àqueles dos estudantes africanos, na França e na Grã-Bretanha. (HARRIS, 2010, p. 850).

O espaço transnacional do pan-africanismo foi fundamental para que houvesse a circulação dos ideais de unidade e de liberdade para os Estados africanos. Com isso, vê-se o quanto a circulação dos estudantes africanos nas respectivas metrópoles foi fundamental para a percepção do papel de subalternidade deles. Era inevitável essa troca entre a metrópole e os habitantes das colônias, visto que a colonização também teve seu aspecto envolvente para os colonizadores, encantados com o exotismo ou mesmo desencantados com a retórica colonial, “O número de estudantes africanos inscritos nas universidades europeias e americanas cresce de modo intenso, entre 1935 e 1960, e muitos dentre eles não mais retornam ao seu país de origem” (HARRIS, 2010, p. 851).

Mas qual contribuição os africanos dos diferentes países da diáspora teriam trazido ao pan-africanismo, desde os anos 1930? A década de 1930 foi importante por conta do conflito da Etiópia com a Itália, com o qual ficava evidente o descompromisso da Sociedade das Nações com o colonialismo.

Para a África, a crise etíope assinalou uma virada, pois suscitou uma condenação unânime das elites e dos povos da África, e constituiu um dos tempos fortes do pan-africanismo; para a Europa, nunca foi mais do que uma anedota; para a história, foi a prova flagrante da ineficácia da Sociedade das Nações em fazer-se respeitar a paz, assim como da pouca consideração que os europeus tinham pelos povos africanos; além disso, parecia dar corpo à convicção ainda hoje vivaz, de que as sanções visando as agressões colonialistas – e os regimes racistas – nunca são aplicadas na África. (M’BOKOLO, 2011, p. 448)

Dez anos depois, no congresso de Manchester, em 1945, esse tema foi retomado lembrando a vitória contra a Itália em 1941, o que representaria o início da luta contra os abusos colonialistas em outros espaços do continente. Compreende-se que a primeira crítica ao fascismo pode ter-se originado dos pan-africanistas do congresso de 1945, atentos aos mecanismos de dominação que se perpetuavam no pós-Segunda Guerra. Sendo assim, durante o Congresso Pan-Africano de Manchester, começaram a surgir alguns dos questionamentos para a derrubada do sistema colonial e para a conquista das independências, nos anos de 1950 e 1960.

Em última instância, as discussões no campo da cultura não se encerravam, pois o senegalês Alioune Diop cuidou de reascender o debate através da revista Présence Africaine. Ele uniria pensadores como o já citado Aimé Césaire, mas também Frantz Fanon, Patrice Lumumba, Amílcar Cabral e toda uma gama de autores para os quais os temas como liberdade, identidade e militância eram caros (SANCHES, 2012, p. 23). No entanto, as relações com a África não seriam interrompidas. Diop, representante de uma elite negra em Paris, fundou a Présence Africaine, consagrando-a à cultura africana e voltando-a ao grande público.

Diop esteve à origem da reunião, em 1957, em prol da realização de uma conferência mundial de escritores negros que daria origem à Société africaine de culture (SAC), cuja seção americana, a American Society of African Culture (AMSAC), dirigida por John A. Davis, empreendeu a publicação da African Forum. A SAC e a AMSAC participaram de conferências, exposições e publicações, contribuindo assim para a reaproximação dos africanos mundo afora. (HARRIS, 2010, p. 861)

No limiar dos anos 1950, a Négritude tinha deixado muitos frutos, contudo as exigências políticas ficavam mais fortes e o prefácio de Jean-Paul Sartre (Orfeu Negro) era lido e comentado entre os intelectuais tanto das colônias quanto da metrópole. Essa definição “filosófico-crítica” do movimento levantou-o e destroçou-o ao mesmo tempo; era chegada a hora de se repensar o movimento em perspectivas mais concretas. A ideologia da négritude estava sendo questionada por uns e utilizada por outros, mas o grupo original do L’Étudiant Noir acabou atuando na política dos seus respectivos países (CARRILHO, 1975, p. 86).

O pan-africanismo mais concreto pode ter surgido dos projetos da Confederação do Mali (1959) ou dos planos do deputado da Costa do Marfim, Houphoët-Boigny, cuja intenção era criar uma federação de comércio conjunta de países francófonos na África. Contudo, eles falharam de modo semelhante e foram sonhos efêmeros que esbarravam nas fronteiras e disputas pela identidade nacional (CARRILHO, 1975, p. 90).

O conceito de pan-africanismo teve uma trajetória interessante, pois começou como uma percepção das raízes africanas e da necessidade dos pensadores afro-americanos se enquadrarem na sociedade a qual pertenciam, depois passou para uma crítica ao colonial e aos métodos utilizados, para finalmente ser o instrumento para líderes e intelectuais africanos compreenderem a união do continente, apesar da sua enorme heterogeneidade (KHAPOYA, 2015, p. 217).

Novamente, o pan-africanismo na sua vertente política carregava consigo uma grande dose de esperança. Era 1957, e o primeiro ministro de Gana (antiga Costa do Ouro) lançava o ideal de “personalidade africana” em um projeto ambicioso para os países africanos. Em 1958, Nkrumah tornava-se presidente e o pan-africanismo aguçou a curiosidade de políticos como Frantz Fanon (Martinica), Patricie Lumumba (Congo) e Tom Mboya (Quênia) quando o representante de Gana promoveu a Sexta Conferência Pan-africana. O planejamento dos líderes era lançar uma ajuda comum para os países africanos que iam atingindo a independência, pois, sabia-se que era tudo uma questão de tempo (KHAPOYA, 2015, p. 217-8).

Em 1963, graças aos esforços de Hailé Selassié (Etiópia), Nkrumah (Gana) e Gamal Abdel Nasser (Egito), foi fundada a Organização da Unidade Africana (OUA) com a promessa de que haveria uma comunidade atuando na economia, na política e, em certa medida, com força militar para atuar em conjunto (KHAPOYA, 2015, p. 218). Contudo, não foi possível a utopia de um pan-africanismo tal como idealizado pelos primeiros pensadores responsáveis por lançar e incentivar a divulgação do conceito. Como se pode perceber no comentário a seguir:

Tornando-se o joguete de competições que transbordam na África, desviada de seus ideais por ambições mesquinhas, degradada pelas bases intrigada de deslizes e os cálculos sórdidos o pan-africanismo, utopia outrora radiosa, se tornou sobre a OUA (Organização da Unidade Africana) onde geralmente a confusão dispõe-se a falta de poder. (BETI; TOBNER, 2007, p. 189)[11]

Considerações conclusivas

Para a percepção de como se perdeu o pan-africanismo, ainda seriam necessárias outras análises dos pensadores com os quais seria possível nem mesmo falar de independência, unidade ou mesmo filosofia africana. Em linhas gerais, o problema aparece quando se encontra o pan-africanismo substituído completamente pela noção geopolítica da OUA, silenciando completamente sua história de amplas produções culturais.

A continuidade da Organização da Unidade Africana na década de 1960 deixa claro um dos grandes frutos do ideal pan-africano, mesmo que ainda tenha havido tantas divergências entre os líderes, devido à permanência das instituições e sistemas de controle coloniais. As especificidades políticas, o racismo e o legado do colonialismo ainda eram as principais dificuldades para as nações independentes, e paulatinamente o pan-africanismo foi substituído pela palavra unidade (KHAPOYA, 2015, p. 324-31).

O neocolonialismo foi algo muito presente nas relações políticas e as perspectivas culturais foram também influenciadas, abrindo espaço para uma nova empreitada nas relações entre Europa e África, levando em conta as produções literárias dos pensadores africanos. Por isso, optou-se pela análise mais cultural do conceito, para compreender como ele foi idealizado e em que contexto intelectual foi concebido.

De maneira geral, imaginou-se ser possível compreender as ambivalências nas quais o pan-africanismo esteve envolto. Não pode haver uma única narrativa para a trajetória pan-africanista, pois ela representa uma série de produções, reflexões e organizações sem as quais os pensadores negros não seriam tão fortemente projetados no debate intelectual. Nesse espaço, a escolha foi por pensadores negros pouco conhecidos do público acadêmico, mas que certamente contribuíram com inúmeras reflexões que fazem parte de uma história recente. As suas experiências demonstram que existem “pan-africanismos” e que há diferentes abordagens para se trabalhar essa “essencialização” do mundo negro, mas em geral esses escritores contribuíram com a crítica ao colonial e se inseriram no pensamento pós-colonial.

O pan-africanismo foi uma etapa geral da História da África Contemporânea relacionando-se ao mesmo tempo com o pensamento antirracista e o nacionalismo africano em suas amplas vertentes. A presença de pensadores como Blyden, Garvey, Senghor, Césaire e Fanon auxiliam a entender as diversas formas nas quais o pan-africanismo se manifestou e como por serem, em sua maioria, escritores do “Terceiro Mundo” – tidos à margem da produção de saber ocidental, hoje são alocados nos estudos pós-coloniais (SANCHES, 2012, p. 36-41). Assim, o pan-africanismo é esse vasto campo de interpretações transnacionais e anticoloniais, identitárias e libertárias, experiências talvez idealizadas, mas profundamente relevantes para as análises históricas de nosso tempo.

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SANTOS, Donizeth. Pan-Africanismo e movimentos culturais negros. Analecta, Guarapuava, Paraná, v.8, n.1, p.67-77, jan./jun., 2007.

SANTOS, Patrícia Teixeira. Dom Comboni profeta da África e santo no Brasil: catolicismo e islamismo no Sudão do século XIX, milagres no Brasil e no mundo no século XX. Rio de Janeiro: Ed. Maud, 2002.

Notas

[1] O presente artigo foi fruto de uma série de reflexões surgidas no curso de extensão ministrado no ano de 2016 e de pesquisa referente ao mesmo período na PUC-Rio, sob a supervisão da professora Dra. Regiane Augusto de Mattos (PUC-Rio) e resultado da pesquisa do Pós-doutorado na mesma instituição.
[2] The ideas of Pan-Africanism, though budded outside Africa, were not allowed to wither the coming of Independence. So little were these ideas forgotten, indeed, that they may even be said to have presided over the “great year of Independence”, 1960, when no fewer than sixteen African colonies won their sovereignty (DAVIDSON, 1967, p.64).
[3] Apesar de continuar seguindo a ordem cronológica dos pensadores pan-africanistas, será importante percorrer adiante (de maneira profunda) o debate teórico, demonstrando o recorte e as análises realizadas pelos intelectuais contemporâneos sobre eles.
[4] Paradoxalmente, o projeto administrativo francês para as colônias chamava-se assimilation (assimilação).
[5] A obra de Blyden elabora uma ruptura radical com os seus antecessores e inicia esse novo espaço de reflexão que, desde a época contemporânea imprime essas “marcas de anunciação” do nacionalismo negro nas ilhas do Caribe, na América e no Norte da África. De certo modo, muito do pensamento de Blyden foi retomado pelos pensadores afro-americanos imbuídos do desejo de igualdade racial pelo menos no campo político.
[6] Blyden defenderia ainda a colonização francesa, defendendo o “gênio da raça celta” (MUDIMBE, 2013, p. 133).
[7] O mesmo ocorre de modo similar em algumas análises de Senghor, talvez esse seja o motivo de Lynch comparar os dois.
[8] Optou-se pela escolha teórica epistemológica de não aprofundar nas especificidades do pensamento religioso de Blyden, contudo, percebe-se que atravé de sua erudição, Blyden (ele falava hebreu, grego, latim, além do inglês, espanhol e árabe) era claro que seu conhecimento de várias línguas com as quais realizaria seu desejo de fazer a “regeneração da África”.
[10] Optamos grafar Négritude em itálico por ser uma palavra original do francês e, sempre diferenciando “N” maiúsculo que é sempre referente ao Movimento e “n” minúsculo, dizendo respeito ao conceito.
[11] Devenu l’enjeu de compétitions qui débordent l’Afrique, détourne de ses idéaux par des ambitions mesquines, dégradé par les basses intrigues de coulisse et les calculs sordines, le panafricanisme, utopie jadis radieuse, a débouché sur l’OUA (Organisation de l’unité africaine) où généralement la confusion le dispue à l’impuissance (Beti ; Tobner, 2007, p.189).
[9] “One thing Garvey did do. He made The American Negro conscious of his African origin and created for the first time a feeling os international solidarity among Africans and people of African descent. In so far as this is directed against oppression it is a progressive step. But his movement was in many respects absurd and in others thoroughly dishonest. (JAMES, 2012, p.94).” – Nas análises de C.L.R. James percebe-se uma grande decepção em relação a Garvey. Acredita-se que por sua orientação marxista o autor tenha visto com extrema desconfiança e desapontamento a trajetória de Garvey, sobretudo, por ter se aliado a extrema direita no fim de sua vida.


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