Resumo: Este artigo tem como objetivo apresentar a ética do convívio ecossustentável, divulgada pelo engenheiro agrônomo brasileiro José Lutzenberger (1926-2002), ao longo de sua militância ambientalista. São analisados autores e obras lidos por Lutzenberger, considerados influentes na sua discussão sobre ética e meio ambiente. Argumenta-se que ele se apropriou dessas leituras, de forma a construir uma nova ética ecológica em contraponto às éticas antropocêntricas que compõem a corrente dominante. A partir do estudo da obra e da biografia de Lutzenberger, o artigo apresenta os dez princípios fundamentais dessa ética, que, mesmo apoiada em éticas ambientais biocêntricas já existentes, constitui, em seu conjunto, uma formulação original para guiar a humanidade em suas relações com a natureza.
Palavras-chave:LutzenbergerLutzenberger, José A José A, (José Antonio) (José Antonio), 1926-2002 1926-2002, Ética do Convívio Ecossustentável Ética do Convívio Ecossustentável, Ética Ambiental Ética Ambiental, História Ambiental História Ambiental, Biografia Biografia.
Abstract: The present paper aims at presenting the ethics of eco-sustainable coexistence, as promoted by the brasilian agricultural engineer José Lutzenberger (1926-2002) throughout his environmentalist militancy. The authors and works that influenced Lutzenberger in his discussion on ethics and the environment are here analyzed. It is argued that Lutzenberger appropriated these readings to create a new ecological ethics, to construct a new ecological ethics in counterpoint the dominant anthropocentric ethics. From the study of Lutzenberger’s works and biography, this paper presents the 10 fundamental principles of his ethics which, even if based on already existing biocentric environmental ethics, constitutes an original formulation to guide humanity in its relationship with nature.
Keywords: José Lutzenberger, Ethics of Eco-Sustainable, Environmental Ethics, Environmental History, Biography.
Dossiê
A construção da ética do convívio ecossustentável pelo ambientalista José Lutzenberger (1971-2002)
The construction of ethics of eco-sustainable coexistence by environmentalist José Lutzenberger (1971-2002)
Recepção: 24 Setembro 2018
Aprovação: 14 Fevereiro 2019
O engenheiro agrônomo José Lutzenberger (1926-2002) foi um importante personagem do ambientalismo brasileiro e global, com uma trajetória de vida muito intensa. Depois de ter sido funcionário da multinacional agroquímica BASF, cargo que exerceu em diferentes países durante treze anos (1957-70), tornou-se um dos grandes críticos do modelo de agricultura baseado na agroquímica. Em abril de 1971, ajudou a fundar a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), em Porto Alegre/RS, sua cidade natal. Na ocasião, foi eleito seu primeiro presidente, posição que ocupou até 1983, consolidando-se como pioneiro no combate ao uso de agrotóxicos na agricultura e na proposição de uma agricultura ecológica. Destacou-se também na defesa da Floresta Amazônica, luta que o tornou conhecido internacionalmente. Por sua atuação, recebeu importante prêmio, considerado o “Nobel Alternativo”, The Right Livelihood Award, em 1988. Ocupou o cargo de Secretário do Meio Ambiente no governo de Fernando Collor (1990-92), e criou a Fundação Gaia, na cidade de Pantano Grande-RS, para promover a agroecologia e a educação ambiental, em 1987. Foi empresário na área de tratamento de resíduos industriais, por meio da Vida Produtos e Serviços em Desenvolvimento Tecnológico Ltda., empresa por ele fundada em 1978, e atuou como paisagista em diversos projetos. Também foi autor de livros e artigos em que discutiu os principais problemas ambientais em que se engajou; entre essas obras, destaca-se o “Manifesto Ecológico Brasileiro Fim do Futuro?”, publicado em 1976, um dos primeiros livros a tratar a questão ambiental do ponto de vista da ética, no Brasil.
Lutzenberger deixou um rico acervo pessoal com textos de sua autoria e de terceiros, entrevistas, panfletos, matérias em jornais, correspondência, etc.[1] Na análise desse material, foi possível perceber o elemento que guiava toda sua atuação como militante ambientalista (entre 1971 e 2002): uma determinada concepção de ética humana em relação ao mundo natural. Entre as principais lutas e embates em que se envolveu, dos quais essa ética emergiu, estavam a luta contra o uso dos agrotóxicos e todo o pacote tecnológico da revolução verde[2] (cujos malefícios ele conhecia muito bem, devido à sua atuação na BASF); o combate à exploração irresponsável da Amazônia, sem considerar seus povos originários, aliado a diversas ONGs ambientalistas internacionais; a crítica ao dogma do crescimento econômico ilimitado; a luta contra o uso da energia nuclear, mesmo para fins pacíficos, pelos danos genéticos que poderia causar; a crítica à concentração de poder provocada pelas megatecnologias, etc. Todas essas problemáticas eram consideradas por Lutzenberger como resultados da ética dominante na maior parte do planeta, uma ética antropocêntrica, que não postulava direitos para os demais seres vivos e que estava embasada na superioridade humana.
Já no primeiro texto formulado por ele para o discurso de fundação da Agapan, a temática se revelou fundamental. Intitulado “Por uma ética ecológica”, criticava duramente o antropocentrismo ocidental e advertia que os “recursos naturais não são ilimitados” e que “não temos o direito à pilhagem, à destruição irreversível”. A destruição, de acordo com ele, seria global, atingindo todos os ecossistemas terrestres e aquáticos, e causada por diversos fatores. O primeiro deles, segundo o autor, era “nossa ignorância quanto à complexidade e vulnerabilidade dos sistemas naturais”. Outro fator era a “fé inabalável no progresso. Uma fé em que progresso significa crescimento eterno”. Essa crença levaria a um problema moral: “nossa quase total falta de amor e consideração pelos demais seres vivos” (LUTZENBERGER, 1971, p. 22).
Neste artigo, o objetivo é apresentar essa ética, aqui denominada “ética do convívio ecossustentável”, construída por Lutzenberger, a partir da participação em inúmeras lutas e interações com movimentos ambientalistas, no Brasil e no exterior, e de leituras de diversas obras por ele realizadas. O enfoque deste texto recairá sobre a parte teórica que a fundamenta, ou seja, a partir do mapeamento das leituras de Lutzenberger[3]. O artigo defende que, embora tributária de concepções trilhadas por autores do campo da ética ambiental anteriormente, trata-se de uma ética nova e original.
Muitos autores costumam dividir a ética ambiental em duas grandes perspectivas, opostas entre si: a antropocêntrica e a biocêntrica. Cada uma delas engloba uma série de tendências, de acordo com o ponto de partida das reflexões: a humanidade ou a natureza.
Nas éticas antropocêntricas, os humanos são a medida de todo o valor (NASH, 1989); elas partem do “ser humano em sua moralidade. Defendem que não existe ética sem antropocentrismo, pois somente o ser humano pode agir moralmente e tomar decisões” (JUNGES, 2010, p. 14). A chamada “ética do bote salva-vidas” de G. Hardin, que diante da crise ambiental compara a Terra a um mar tempestuoso com botes salva-vidas carregados de pessoas, e a “ética da nave espacial”, formulada por K. Boulding, que considera o planeta uma nave e os humanos seus astronautas/tripulantes, são exemplos de éticas antropocêntricas. Ambas são utilitaristas, pois se preocupam principalmente com a sobrevivência dos humanos, caso haja o “afundamento” dos botes, ou um problema com a “nave espacial” (JUNGES, 2010, p. 19-20). É importante frisar que Lutzenberger nunca se referiu, em suas críticas, a uma ética específica dentro dessa corrente, e sim ao antropocentrismo como um todo.
O “paradigma antropocêntrico” está associado à Revolução Científica cartesiano-newtoniana, que preconizava “a metáfora de conhecimento do mundo como uma máquina, do mecanicismo e do materialismo físico, compondo um grande reducionismo” (SIQUEIRA, 2002, p. 16). Essa concepção exige uma separação radical entre humanos e natureza; o distanciamento seria necessário, pois a natureza é vista como objeto a ser observado pelo ser humano.
O paradigma antropocêntrico, que domina o mundo ocidental “por várias centenas de anos”, alicerça-se também “na crença no progresso material ilimitado, a ser obtido por intermédio de crescimento econômico e tecnológico” (CAPRA, 2006, p. 25). As éticas ambientais antropocêntricas contemporâneas criticam esse ideal de progresso técnico e moral, mas aderem “à ideia do primado da racionalidade humana em sua capacidade de gestão ‘sensata’ dos problemas ambientais” (PARIZEAU, 2007, p. 597).
Já as perspectivas biocêntricas se alicerçam nos deveres diante da natureza. Para o biocentrismo, a natureza é titular de direitos (JUNGES, 2010). Ela possui valor intrínseco e, consequentemente, possui o direito de existir (NASH, 1989). O biocentrismo preconiza uma profunda mudança de visão de mundo, “da visão de mundo mecanicista de Descartes e de Newton para uma visão holística, ecológica (...) que concebe o mundo como um todo integrado, e não como uma coleção de partes dissociadas” (CAPRA, 2006, p. 24-25). Nessa linha de pensamento, o ser humano é somente mais um elemento dentro de um todo formado por inumeráveis vínculos entre os seres vivos: a Terra.
Existem diversas éticas biocêntricas, que concedem diferentes graus de “direitos” à natureza. Alguns modelos são mais restritivos (biocentrismo mitigado), outros mais abrangentes, como o ecocentrismo: “trata-se de um biocentrismo mais radical, que parte dos conhecimentos científicos da ecologia, do reconhecimento da natureza como um conjunto interdependente e do lugar do ser humano nesse conjunto, para chegar a normas em relação ao meio ambiente” (JUNGES, 2010, p. 26).
Considera-se que a ética do convívio ecossustentável é uma ética ecocêntrica, pois está alicerçada nos princípios da ecologia, especialmente na interdependência entre os seres, para atingir uma situação sustentável – por isso, o uso do termo ecossustentável. Ela também prevê uma relação igualitária entre humanos e não humanos – daí a ideia de convívio.
Lutzenberger deu início a sua militância na década de 1970, quando movimentos ambientalistas eclodiram em diversos países[4]. As lutas desses grupos e a realização de conferências internacionais sobre meio ambiente são fatores importantes no surgimento da história ambiental, campo em que este texto se insere. Somado a isso, segundo Pádua (2010, p. 83), as mudanças no mundo do conhecimento consolidadas no século XX sobre o “entendimento do mundo natural e de seu lugar na vida humana” instigaram o interesse dos historiadores pelas relações entre seres humanos e natureza.
Entre as questões básicas colocadas pela história ambiental estão as próprias noções de “natureza”; as interações do domínio socioeconômico com o ambiente; o âmbito ético, de valores, na dinâmica humanos-natureza; e o pensamento crítico-ambiental. Uma das características mais marcantes dessa área de pesquisa é a interdisciplinaridade. O diálogo com a geografia, geologia, botânica, zoologia, paleontologia, agronomia, demografia, sociologia, antropologia e, principalmente, com a ecologia, dependendo do estudo proposto, normalmente é indispensável.
O tema da ética em relação ao ambiente é uma das possibilidades de pesquisa da história ambiental. Donald Worster (1991) acredita que o estudo das representações, percepções, ideias e éticas sobre a natureza faz parte de um domínio humano, mental ou intelectual, que deve ser objeto do historiador. O próprio surgimento da história ambiental esteve ligado a fortes compromissos morais e políticos, em virtude da generalização da crise ecológica. Com o desenvolvimento do campo, a história ambiental “transformou-se também num empreendimento acadêmico que não tinha uma simples ou única agenda moral ou política para promover” (WORSTER, 1991, p. 199). Mas ainda existe a possibilidade de que o conhecimento obtido por meio da pesquisa em história ambiental possa vir a subsidiar a elaboração de políticas públicas (CARVALHO, 2004).
Worster também defende que a história ambiental trabalhe com diferentes escalas, inclusive a da biografia (WORSTER, 2011a). A variação de escalas, do individual para o coletivo, permite uma análise mais completa dos processos históricos, pois é no indivíduo que melhor observamos como as alterações nas normas, as mudanças políticas e sociais, a apropriação de ideias e costumes se dão na prática. Por meio da biografia de um indivíduo – pensado como um agente – que tenha refletido sobre a interação humanos-natureza no passado, podemos, num sentido mais amplo, acessar algumas das ideias, percepções, éticas e representações sobre natureza de um grupo, uma rede, ou até, mesmo que parcialmente, de um determinado contexto. Além disso, ambas as perspectivas (biografia e história ambiental) convergem na interdisciplinaridade, no apoio de conceitos de outras áreas, sempre de acordo com a trajetória do personagem biografado.
É da articulação entre história ambiental e biografia que emerge o presente texto, pois o estudo da trajetória do personagem Lutzenberger, sua atuação prática e como intelectual do movimento ambientalista é que tornou possível compreender melhor as características da ética por ele concebida e difundida, ao longo de 31 anos de militância[5].
Para alcançar o objetivo proposto, na próxima seção do artigo, são abordados autores lidos por Lutzenberger, de cujas ideias se apropriou[6] na discussão de ética e ambiente. Após expor as principais referências teóricas do personagem, é possível adentrar na ética do convívio ecossustentável: aqui são apresentados os dez princípios que a norteiam. É importante dizer que essa abordagem não tem a pretensão de ser exaustiva; são privilegiados os intelectuais citados por Lutzenberger em diferentes momentos de sua vida e que foram importantes fontes de reflexão e conhecimento para ele.
A chamada “ética ambiental” envolve uma gama de questões que têm por objeto as relações que os seres humanos mantêm com a natureza. No centro das reflexões, encontra-se o desenvolvimento tecnocientífico, capaz de, por um lado, produzir mecanismos agressivos ao ambiente e, por outro, criar alternativas tecnológicas que não destruam a natureza. A decisão do tipo de tecnologia a ser utilizada em uma sociedade é discussão que se desenrola no âmbito da ética ambiental.
Entre as propostas que foram importantes para Lutzenberger, destacam-se “a ética da responsabilidade”, de Hans Jonas; a visão holística de Aldo Leopold; o primeiro alerta mundial contra o uso de agrotóxicos, escrito por Rachel Carson; a ecologia profunda, formulada por Arne Naess; a “ética da reverência pela vida”, de Albert Schweitzer; e a teoria de Gaia, desenvolvida por James Lovelock e Lyn Margulis.
Desenvolvida com profundidade por Hans Jonas, a ética da responsabilidade é uma proposição que visa instruir a ação num mundo onde a “promessa da tecnologia moderna se tornou uma ameaça física” (JONAS, 2006, p. 21). As éticas anteriores, que partiam da premissa de que o alcance da ação humana era limitado e se referia apenas às suas relações com semelhantes, não poderiam dar conta dos desafios colocados pela tecnociência. Rejeitando o imperativo de Kant, “aja de modo que tu também possas querer que tua máxima se torne lei geral”, Jonas apresenta seu imperativo ecológico: “aja de modo a que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra”. Ou em termos negativos: “aja de modo a que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura de tal vida”, ou “não ponha em perigo as condições necessárias para a conservação indefinida da humanidade sobre a Terra”. Para o autor, o primeiro imperativo é o da existência da humanidade: “nós não temos o direito de escolher a não existência de futuras gerações em função da existência atual, ou mesmo de as colocar em risco” (JONAS, 2006, p. 47-48).
O desenvolvimento da técnica e da ciência, ao longo do século XX, conferiu à humanidade o poder de transformar o mundo, como nunca antes fora possível. Para Jonas, esse poder confere, ao mesmo tempo, uma grande responsabilidade, para com as futuras gerações, de continuidade da vida na Terra. Lutzenberger expressou a preocupação com a relação entre desenvolvimento tecnológico e a vida das gerações futuras, em seu “Manifesto Ecológico”: “Estamos agindo hoje como se fôssemos a última geração e a única espécie que tem direito à vida. Nossa ética, que não abarca os demais seres, não inclui sequer nossos filhos (...). A tecnologia, cuja verdadeira função seria a de escravo do Homem, já se tornou seu soberano” (LUTZENBERGER, 1980, p. 37).
No livro “Pensar como uma montanha: A Sand County Almanac” [1949] (2008), Aldo Leopold desenvolveu uma visão orgânica, holística da natureza, e associou o conceito de “comunidade biótica”, introduzido pelo zoólogo inglês Charles Elton em Animal Ecology (de 1927), à ética. Para Medeiros (2008, p. 20), esse “é um conceito que modifica o sentido ético tradicional [e] que coloca o ser humano em interação com os outros seres”. Leopold era formado em Ciências Florestais, e sua concepção ética foi profundamente influenciada por Darwin (JUNGES, 2010; CALLICOTT, 2005), especialmente pelo livro The Descent of Man (1871), no qual consta um capítulo sobre o “senso moral”.
No capítulo “A ética da Terra”, Leopold afirmou que todas as formas de vida que partilham o planeta com as pessoas têm o direito de continuar existindo, independentemente da presença ou ausência de vantagens econômicas para os humanos (NASH, 1989, p. 70). Essa concepção superava o utilitarismo: ao considerar a Terra um todo indivisível, um organismo, Leopold afirmava que ela não era um “servo útil”, mas um ser vivo. Os abusos à terra aconteciam porque ela era percebida como uma mercadoria, pertencente aos humanos. Quando estes reconhecessem que a terra é uma comunidade a que os seres humanos pertencem, começariam a usá-la com amor e respeito (NASH, 1989, p. 66-69).
Para Leopold (2008, p. 190), a ética da Terra “alarga os limites da comunidade de forma a incluir nela os solos, as águas, as plantas e os animais, ou coletivamente: a Terra” e transforma o papel do Homo sapiens “de conquistador da terra-comunidade em membro e cidadão pleno dela. Implica respeito pelos outros membros seus companheiros, e também o respeito pela comunidade enquanto tal”.
Condizente com a concepção holística da ética da Terra, Lutzenberger (1980, p. 66) defendia que “uma política agropecuária e sanitária que visasse a saúde global da Vida, partiria do princípio ecológico fundamental de que a saúde do solo, da planta, do animal e do homem são uma só coisa indivisível” [maiúscula e itálico no original], como alternativa “aos métodos já demonstradamente insustentáveis da ‘revolução verde’”. Lutzenberger denominou “Ética da Terra” o subcapítulo de seu “Manifesto Ecológico” em que propõe “uma reorientação fundamental de nossa agricultura que, em suas formas atuais, é uma das principais causas da devastação” (LUTZENBERGER, 1980, p. 65).
De acordo com Leopold, para reverter a devastação em curso, a solução seria “alargar a consciência social das pessoas de forma a incluir a terra. Nenhuma alteração ética importante alguma vez se realizou sem uma alteração interna das nossas propriedades intelectuais, das nossas lealdades, afetos e convicções” (LEOPOLD, 2008, p. 194). Dessa forma, “o atual problema [da humanidade] é fundamentalmente um problema de atitudes e instrumentos (ibid., p. 207). Em outras palavras, Lutzenberger (1980, p. 16) afirmou, de forma muito semelhante a Leopold: “a causa profunda da crise não é tecnológica nem científica, é cultural, filosófica”.
Na ética da Terra de Leopold, a humanidade é apenas mais uma parte do todo, da comunidade maior, a Terra e, por isso, precisa amá-la e não destruí-la. Esse holismo, segundo Callicott (2005, p. 218-19), “é precisamente o que faz da ética da terra a ética de eleição dos conservacionistas e ecologistas”, no entanto, é também “a sua principal responsabilidade [...] a existência de uma grande população humana é errada do ponto de vista da ética da terra”, pois essa população se torna uma terrível ameaça à integridade, estabilidade e beleza da comunidade biótica.
Segundo Fox (1995), a ética da Terra é muito similar à visão da terra como Ecosfera, ou Gaia, como seria teorizado por James Lovelock e Lyn Margulis, nos anos 1970. Tanto a ética da terra, como a teoria de Gaia, compartilham de um holismo ético, enfatizando que o valor das entidades vivas é percebido como “inteiros”, ou seja, pelo “todo” que elas formam (FOX, 1995, p. 177). De acordo com essa teoria, o planeta Terra seria um grande ser vivo. Lutzenberger foi bastante influenciado pela ideia de Gaia; leu o livro no original de 1979 (Gaia: A new look at life on Earth - uso aqui a edição portuguesa Gaia: um novo olhar sobre a vida na Terra, de 1987) e passou a divulgá-la em suas palestras no Brasil e exterior. Conheceu pessoalmente Lovelock em uma de suas viagens a Europa e chegou a escrever um artigo de divulgação da teoria, publicado em seu livro “Gaia: O planeta vivo” (LUTZENBERGER, 1990). Na introdução da obra, afirmou: “Quando me vi confrontado com o conceito de Gaia como ele [Lovelock] o apresenta, me aconteceu o que várias vezes sucedeu com ouvintes em palestras minhas, os quais vinham me dizer ‘tudo o que o senhor falou eu já sabia, eu sentia, mas não conseguia articular tão bem e tão claro’” (LUTZENBERGER, 1990, p. 8-9).
O conceito de Gaia confirmava cientificamente o que Lutzenberger chamou de “unidade funcional” em seu primeiro livro: “A natureza não é um aglomerado arbitrário de fatos isolados (...). Tudo está relacionado com tudo” (LUTZENBERGER, 1980, p. 11), e afirmou de forma melhor elaborada no livro de 1990: “a biosfera, o conjunto dos seres vivos, está íntima e inseparavelmente integrada na Litosfera, na Hidrosfera e na Atmosfera. O todo constituiu uma unidade funcional, um organismo à parte, um sistema dinâmico integrado, equilibrado, autorregulado” (LUTZENBERGER, 1990, p. 95).
Autora importante para Lutzenberger, a bióloga marinha Rachel Carson publicou, em 1962, “Primavera Silenciosa”, livro que inspirou a conscientização ambiental global (WORSTER, 2011b, p. 347). Sua crítica aos agrotóxicos alertou o mundo sobre os riscos que essas substâncias provocam às pessoas, animais e ambiente. Aqui é importante enfatizar que uma concepção ética perpassa toda a obra: a relação dos humanos com a natureza está no caminho errado e precisa mudar. Para ela, estava “mais do que claro que estamos percorrendo uma estrada perigosa [...]. A vida é um milagre que fica além da nossa compreensão, e nós devemos reverenciá-la” (CARSON, 1964, p. 282-283).
Carson certamente queria destacar esse aspecto ético em seu livro, pois pensou, primeiramente, nos títulos Man Against the Earth (Homem contra a Terra), ou At War with Nature (Em guerra com a natureza). Sua amiga e agente literária, Marie Rodell, ao ler o capítulo sobre a morte dos pássaros, sugeriu Silent Spring (Primavera Silenciosa) (LEAR, 2009, p. 377).
Lutzenberger leu o livro quando ainda era funcionário da BASF e disse ter ficado profundamente chocado. Ele relatou em entrevista que fora seu chefe na empresa, na época (1962), quem apresentou a obra, “como se fosse um tremendo escândalo: onde é que já se viu escrever este monte de coisas contra nossos lindos produtos fitossanitários! Daí eu peguei o livro e o li de ponta a ponta e fiquei impressionado” (LUTZENBERGER, 1986, p. 6). Segundo ele, a leitura contribuiu, entre outros fatores, para sua conscientização sobre os produtos agroquímicos, chegando ao ápice, em 1970, ano em que resolve abandonar a BASF e voltar ao Brasil.
Carson foi influenciada pelo médico e ativista Albert Schweitzer (1875-1965), a quem dedicou o livro. Schweitzer foi o formulador da “ética da reverência pela vida”, citada por Lutzenberger inúmeras vezes.
A partir de uma visão de mundo cristã e de uma trajetória bem-sucedida como filósofo, músico, médico e ativista pela paz, Schweitzer queria contribuir para uma regeneração da cultura ocidental. Para ele, “a vida espiritual se encontra completamente em decomposição, porque está completamente imbuída de ceticismo. Por isso estamos vivendo num mundo que, sob todos os aspectos, está repleto de mentiras” (SCHWEITZER, 1995, p. 137).
No texto “O problema da ética na evolução do pensamento”, Schweitzer (1964, p. 166) afirma que a primeira “evolução da ética” ocorre quando o ser humano reflete “sobre si mesmo e seu comportamento para com os outros”, percebendo que “o círculo de suas responsabilidades se alarga até englobar todos os seres humanos com os quais está relacionado”. Para Schweitzer, essa ética evolui ainda mais quando “não permite mais preocuparmo-nos unicamente com entes humanos, mas nos obriga a nos comportarmos da mesma forma em relação a todos os seres vivos cuja sorte poderá ser por nós influenciada” (Ibid., p. 177). Schweitzer acreditava que a ética só se tornaria completa com “a exigência da compaixão para com [todos] os seres vivos” (Ibid., p. 179).
Schweitzer explicou a escolha de “reverência”, em vez de “amor”, porque o primeiro termo é mais lato, mas “traz em si as mesmas energias” (SCHWEITZER, 1964, p.181). Na ética de Schweitzer, o ser humano detém um lugar privilegiado, no entanto, ele não possui o direito de explorar os elementos naturais, e sim a responsabilidade de protegê-los. Sua perspectiva era evolutiva: ele previu, em 1923, que o círculo da ética continuaria se abrindo (NASH, 1989).
A ética da reverência pela vida foi mencionada várias vezes por Lutzenberger, e Schweitzer foi um dos poucos autores que ele citou em seus escritos. No único livro em que listou referências bibliográficas – o “Manifesto Ecológico Brasileiro” – consta “Die Lehre von der Ehrfurcht von dem Leben” (“A doutrina da reverência pela vida”, 1966). Para Lutzenberger, diante de toda a devastação provocada pela humanidade, era preciso uma mudança de atitudes. Em um texto que denominou “Reverência pela Vida”, ele afirmou que a humanidade precisava “de uma nova ética – na verdade muito antiga – holística e abrangente, uma ética que abraça toda a Criação, uma ética baseada no princípio fundamental, proposto por Albert Schweitzer, de reverência pela Vida em todas as suas formas e manifestações” (LUTZENBERGER, [199-]).
Assim como a formulação de Schweitzer, a ética divulgada por Lutzenberger se alicerçava numa visão mística, sacralizada, espiritualizada e num compromisso moral com a natureza. Essas posições também são características da deep ecology (ecologia profunda). Lutzenberger conhecia os principais autores, pois constam vários livros dessa tendência em sua biblioteca[7].
O termo ecologia profunda surgiu no artigo “The shallow and the deep, long-range ecology movement” (NAESS, 1973). Worster (2011b, p. 360) afirma que o movimento da ecologia profunda começou a aparecer em vários países com o objetivo de promover o “igualitarismo biosférico” entre as espécies. O artigo de 1973, escrito pelo filósofo norueguês Arne Naess, consistia essencialmente em sistematizar uma série de sete princípios caracterizadores da ecologia profunda (deep, ecocêntrica), em contraponto à ecologia rasa (shallow, antropocêntrica).
Naess esclareceu que a ecologia profunda não era derivada da lógica ou indução, mas sim da observação das lutas ecológicas. A ecologia, para ele, era uma ciência limitada que fazia uso de métodos insuficientes para embasar as lutas políticas dos ecologistas. Por isso, defendia a filosofia como fórum mais geral do debate sobre os fundamentos do movimento, tanto no nível descritivo, quanto prescritivo, pois a política é uma de suas subseções. A ecologia profunda era, de acordo com Naess, uma “ecosofia”, ou seja, uma filosofia de harmonia ecológica ou de equilíbrio, abertamente normativa, que continha as normas, regras, postulados, valores e hipóteses sobre o estado de coisas em nosso universo; um tipo de sabedoria política, uma prescrição, e não somente uma descrição científica e uma previsão (NAESS, 1973).
A ecologia profunda propõe uma ética da inter-relação, “segundo a qual todas as formas de vida têm igual direito de viver e desabrochar. [...] os seres humanos não são moralmente privilegiados em nenhum aspecto, nesse esquema ecológico das coisas” (MATHEWS, 2005, p. 228). Além disso, rejeita a perspectiva dualista dos seres humanos e da natureza como separados e diferentes: “é preciso viver de acordo, e não em desarmonia, com os ritmos naturais” (PEPPER, 2000, p. 34).
Segundo a atitude antropocêntrica, ou centrada nos humanos, o mundo natural tem apenas valor instrumental – somente na medida em que serve como recurso para nós. De um ponto de vista não antropocêntrico, o mundo natural tem valor de seu próprio direito, como um fim em si, independentemente de seu valor utilitário para nós. Os seres humanos teriam direito de retirar da biosfera tudo que efetivamente precisam para uma vida culturalmente e materialmente simples, mas não mais. Isso se aplicaria também à humanidade como espécie: não temos o direito de nos multiplicarmos além do número necessário para sustentar culturas significativas. A mensagem é que a humanidade deve, tanto quanto possível, deixar a natureza em paz (MATHEWS, 2005).
Na mesma linha de pensamento, no “Manifesto”, Lutzenberger defendeu controles demográficos para conter a explosão populacional, denominada por ele “avalanche humana” (LUTZENBERGER, 1980, p. 46), influenciado pela leitura de The population bomb (de 1968, escrito pelo biólogo, ecologista e demógrafo Paul Ehrlich), livro que se tornou referência sobre o tema para os ambientalistas nos anos 1970.
Após a breve exposição das principais leituras realizadas por Lutzenberger, no campo da ética e meio ambiente, apresenta-se, nesta parte do artigo, uma sistematização dos princípios da ética do convívio ecossustentável. Convém esclarecer que, embora os princípios não tenham sido desenvolvidos por Lutzenberger dessa forma, os enunciados foram todos retirados de sua obra. Por isso, é possível afirmar que representam o núcleo de seu pensamento como ambientalista.
A ética defendida por Lutzenberger, nos seus últimos trinta e um anos de vida, era centrada principalmente nos conhecimentos da ecologia, ou seja, era uma “ética ecocêntrica”. Ele acreditava que tais saberes poderiam fornecer elementos para uma nova concepção de ética humana em relação à natureza.
Dessa forma, o princípio fundamental, inerente a toda a produção intelectual e militância de Lutzenberger, é que a humanidade deve inspirar-se no funcionamento dos sistemas naturais.
Princípio 1) Imitação da natureza: ela sabe melhor
Enunciado:
“Se nos inspirarmos na natureza, se imitarmos seus métodos inteligentes e elegantes, se nos aliarmos a ela – em vez de combatê-la sempre – encontraremos o caminho para um convívio rico e saudável. Para um convívio sustentável” (LUTZENBERGER, 2009, p. 171)[8].
Para Lutzenberger, se a humanidade observasse e adaptasse o funcionamento dos sistemas naturais às suas sociedades, elas funcionariam de forma a valorizar as interdependências entre humanos e não humanos, o que levaria a esquemas políticos, sociais e econômicos sustentáveis. Com isso, não haveria dilapidação dos elementos naturais, poluição em geral, envenenamento dos solos, acidificação dos oceanos, desmatamento e queimadas, explosão demográfica, uso inadequado de energia, consumismo, enfim, todos os motivos que o levaram a lutar como ambientalista.
A ideia da imitação da natureza já estava presente em obras lidas por Lutzenberger dos irmãos biólogos Howard e Eugene Odum e do economista Herman Daly. O objetivo da ecologia como ciência, na visão dos irmãos biólogos, era estudar a natureza como um modelo para a sociedade (WORSTER, 2011b). Já Daly defendia a posição da economia ecológica, baseada na “imitação à natureza, na qual todos os produtos usados são reciclados” (DALY, 1984, p. 35). De acordo com esses autores, era preciso estudar seu funcionamento como modelo para as sociedades humanas. Como os ecossistemas, as sociedades deveriam buscar um modo de produção que satisfizesse suas necessidades, focado na reciclagem e na economia de energia, sem a obrigação do crescimento econômico.
Esse princípio foi levado tão a sério por Lutzenberger que podemos dizer que foi materializado em seus trabalhos como paisagista. Entre eles, destaca-se a luta e a realização do Parque da Guarita (atualmente, em sua homenagem, chama-se Parque Estadual José Lutzenberger), em Torres-RS, no qual defendeu um diálogo entre a paisagem do parque com os elementos naturais ali presentes. Seu projeto realizou intervenções, como a construção de um lago e a reintrodução de plantas, mas Lutzenberger acreditava que essas interferências eram necessárias para contribuir com o desenvolvimento dos ecossistemas nativos, enfoque que representava, para ele, a materialização da ética ecológica, a partir da “imitação” das formas de funcionamentos desses ecossistemas (PEREIRA, 2016b, p. 82).
Princípio 2) Gaia
Enunciado:
“Tudo está relacionado com tudo” (LUTZENBERGER, 1980, p. 12).
Esse princípio enfoca o holismo e consta no “Manifesto” como “princípio fundamental da Ecologia” (LUTZENBERGER, 1980, p. 11). Tal ideia de unidade, de que “tudo” (vida e Universo) está relacionado e é interdependente, é tributária de uma das correntes da ecologia, desenvolvida desde o século XVIII, a qual enfatiza a dimensão holística da natureza. Segundo Worster (2011b), essa começou com o naturalista inglês Gilbert White. Estudando a natureza de Selbourne, onde nasceu, e embasado em leituras sobre o paganismo grego e romano, White chegou a uma concepção de harmonia arcadiana do mundo natural, que foi a raiz do vitalismo e de visões orgânicas e holísticas da natureza, uma tradição de pensamento que seria seguida por Henry Thoreau, John Muir, Aldo Leopold, Rachel Carson, Eugene Odum, entre outros, autores que Lutzenberger conhecia e admirava.
Entre eles, Aldo Leopold construiu uma metáfora para expressar o holismo que permeia as relações entre os seres. Ao narrar um episódio de caça de sua juventude, quando ajudou a matar uma velha loba, Leopold afirmou ter, na maturidade, compreendido a interdependência entre os lobos, os veados e as montanhas. Com a morte dos lobos pelos caçadores, aumentou o número de veados, no entanto, em vez de ser “o paraíso dos caçadores”, isso representou um desastre para a vegetação das montanhas: “vi todos os arbustos e plantas novas comestíveis serem roídos pelos veados, primeiramente ao ponto de ficarem anêmicos e inúteis, e a seguir até a morte!” (LEOPOLD, 2008, p. 131). Pensar como uma montanha, portanto, seria compreender que todos os seres estão entrelaçados e dependem uns dos outros para sobreviver, desde o inseto, a grama, até o predador.
Também Rachel Carson inicia o segundo capítulo de “Primavera Silenciosa” aludindo a essa concepção holística: “a história da vida sobre a Terra tem sido uma história de interação entre as coisas vivas e o seu meio ambiente” (CARSON, 1964, p. 15). E era justamente por essa interdependência entre os seres que ela criticava o uso do que chamou biocidas (os agrotóxicos), capazes de contaminar toda a cadeia alimentar, bem como solos, rios, lagos, enfim toda a vida.
A visão holística é cara ainda à corrente da ecologia profunda, considerada por Frijof Capra (2006, p. 25) como “um novo paradigma”:
A percepção ecológica profunda reconhece a interdependência fundamental de todos os fenômenos, e o fato de que, enquanto indivíduos e sociedades, estamos todos encaixados nos processos cíclicos da natureza (e, em última análise, somos dependentes desses processos) (...). A ecologia profunda não separa seres humanos — ou qualquer outra coisa — do meio ambiente natural. Percebe o mundo não como uma coleção de objetos isolados, mas como uma rede de fenômenos que estão fundamentalmente interconectados e são interdependentes. A ecologia profunda reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos e concebe os seres humanos apenas como um fio particular na teia da vida.
Todas as lutas travadas por Lutzenberger levavam esse princípio em consideração, com destaque para a luta na área da agricultura. Essa abrangia dois aspectos: 1) a crítica à revolução verde, também chamada por ele de “paradigma convencional da agricultura”, em especial ao uso de agrotóxicos e fertilizantes químicos, pois causavam uma série de desequilíbrios nos ecossistemas, mortes e envenenamento de pessoas e animais; 2) a defesa da agricultura ecológica/orgânica. Para Lutzenberger, ao contrário do paradigma convencional, que compartimentava a produção em “gavetas” (solo, praga, inço e capital genético), a agricultura ecológica prezava a interação de todos os elementos naturais; ela conectava tais gavetas, ou seja, partia da interdependência entre os seres e os ecossistemas, do princípio de que “tudo está ligado com tudo”.
O conceito de Gaia foi, de certa forma, materializado por Lutzenberger em sua Fundação, ou “Rincão Gaia”. Trata-se de uma área de 30 hectares, localizada em Pantano Grande-RS, recebida por doação de um admirador de seu trabalho, em 1987. Era uma área bastante degradada pela agricultura convencional e duas pedreiras desativadas. Lutzenberger investiu o valor do prêmio Nobel Alternativo no local, recuperando-o. As pedreiras hoje são lagos com muita vegetação em suas margens e todo o espaço abriga animais e plantas nativas, assim como paisagismo com cactáceas e outras plantas de lugares áridos, uma das grandes paixões de Lutzenberger. No Rincão Gaia, ocorrem trabalhos de educação ambiental e incentivo à agricultura regenerativa. O local foi utilizado por Lutzenberger para comprovar que uma paisagem degradada pode ser recuperada, a partir de uma visão ecológica, holística.
A ética do convívio ecossustentável, portanto, alicerça-se na visão de que a interdependência entre todos os seres é fundamental. Essa ideia também está presente na teoria de Gaia, como visto acima. Segundo Lutzenberger (e também para os autores que defendem formulações semelhantes, biocêntricas), ela diverge da ética antropocêntrica que o mundo ocidental desenvolveu em relação à natureza ao longo dos séculos, segundo a qual os humanos teriam o direito de usar os elementos naturais como recursos para seu enriquecimento material. Para as éticas ambientais embasadas no holismo, no momento em que os humanos interferem nas interações dos demais seres, seriam causadores de desastres que, com o tempo, acabariam atingindo também a própria humanidade. Por isso, essa ética preconiza que todas as formas de vida merecem ser respeitadas em seu direito de viver e relacionar-se, o que nos leva para seu terceiro princípio.
Princípio 3) Reverência e respeito por todas as formas de vida
Enunciado:
Nós, seres humanos, devemos parar de agir como um câncer nesse superorganismo. Portanto, precisamos de uma nova ética – na verdade muito antiga – holística e abrangente, uma ética que abraça toda a Criação, uma ética baseada no princípio fundamental, proposto por Albert Schweitzer, de reverência pela Vida em todas as suas formas e manifestações. (LUTZENBERGER, [199-])
Como é possível perceber, esse terceiro princípio decorre do segundo: por viverem em dependência e em relação constante, todos os elementos naturais mereceriam respeito e até mesmo reverência. Tal ideia foi apropriada de Schweitzer, como Lutzenberger deixa claro. Para o autor alemão, a ética só se tornaria “completa com a exigência da compaixão para com [todos] os seres vivos” (SCHWEITZER, 1964, p. 179).
Após reconhecer a vontade de viver em si mesmo, o humano precisaria dar o passo além, reconhecer que outras formas de vida também possuem o mesmo direito. Seria meditando sobre a própria vida que homens e mulheres chegariam à compreensão de que todos os demais seres vivos precisam ser reverenciados e respeitados no seu direito de viver. Segundo Schweitzer, a renúncia é a própria base da ética. Leopold (2008, p. 188) concorda: “uma ética, em termos ecológicos, é uma limitação da liberdade de agir na luta pela existência”. De acordo com esses autores, os humanos precisariam recuar, quando percebessem que suas ações poderiam causar danos às demais formas de vida.
O respeito, a reverência, o cuidado com a natureza, segundo a ética do convívio ecossustentável, precisariam ser atitudes humanas fundamentais. Dessa forma, acreditava Lutzenberger, a humanidade deixaria de representar “um câncer” a adoecer o planeta e passaria a ser “um companheiro” a interagir de forma positiva com o mesmo. Como veremos a seguir, para essa ética, não seria a ciência a causadora da crise ecológica, mas a moral adotada pela humanidade em relação à vida ao seu redor.
Princípio 4) Sobrevivência: A causa da crise ambiental é filosófica, moral, e não científica ou tecnológica
Enunciado:
A causa profunda da crise não é tecnológica nem científica, é cultural, filosófica. Nossa visão incompleta do Mundo nos faz querer agredir o que deveríamos querer proteger. Achamos que devemos ‘dominar a natureza’, lutar contra ela para não sermos por ela dominados. Acontece que a alternativa ‘senhor ou escravo’ não corresponde à realidade das coisas. O caminho que a Ecologia nos indica é o de sócio da Natureza. (LUTZENBERGER, 1980, p. 16, grifo do autor.)
Em seu texto “Ecologia, ciência da sobrevivência”, definiu a Ecologia, justamente, como “a ciência da sobrevivência, uma vez que ela estuda os sistemas de suporte da vida na Terra” (LUTZENBERGER, 1972, p. 18). Para Lutzenberger, o dilema da sobrevivência da espécie humana levava “a outro aspecto da Ecologia, o mais importante, o aspecto moral. A Ecologia é uma ciência revolucionária porque ela nos obrigará a uma revolução, a uma reviravolta radical em nossa atitude diante do mundo em que vivemos”. O problema, de acordo com ele, havia sido causado por uma moral estreita do homem ocidental, que “não inclui demais seres nem seus descendentes”, ou seja, uma moral antropocêntrica.
Lutzenberger entendia que a moral vigente era a causa de uma série de problemas. Por exemplo, uma das lutas em que mais expressou esse argumento foi a luta contra o uso da energia nuclear, que ele considerava “imoral: prejudicamos as gerações futuras para daqui a centenas, milhares, milhões de anos” (LUTZENBERGER, 1977, p. 8). Isso se dava porque, para ele, o problema não estava na ciência ou “na tecnologia em si nem nas suas intenções. Essas intenções são consequência de determinados enfoques, de determinados esquemas mentais, [expressos em] agir hoje para pensar depois!” (LUTZENBERGER, 1977, p. 11).
Também o modelo econômico, baseado no crescimento ilimitado, era, de acordo com nosso personagem (inspirado pela leitura de Herman Daly), a justificativa para um comportamento humano destruidor: “estamos derrubando, envenenando, destruindo todos os sistemas vivos do planeta. Não podemos prosseguir nessa corrida por muito tempo ainda” (LUTZENBERGER, 1988, p. 2). Segundo ele, tal “corrida” ocorreria por motivos econômicos e éticos,
por causa dos dogmas básicos, por causa das premissas básicas, dos postulados fundamentais de nossa atividade econômica. Trata-se de um problema verdadeiro verdadeiramente filosófico, religioso, não técnico. A atitude predominante é que basta estabelecer alguns padrões técnicos, por exemplo, controlar a poluição aqui e desenvolver uma agricultura um pouco mais saudável alhures, e então todos os nossos problemas se solucionarão, mantendo-se o sistema inalterado. Mas não é assim. Ou mudamos nossa filosofia de vida ou de fato extinguiremos toda a vida do planeta.
Nossa tradição judaico-cristão nos legou como herança uma cosmovisão em frontal oposição às leis da vida. Essa cosmovisão é antropocêntrica. Pensamos ser a única espécie importante no planeta, a única espécie que tem o direito a decidir o que fazer com esse planeta. (LUTZENBERGER, 1988, p. 3)
Já no “Manifesto”, Lutzenberger havia defendido que a humanidade precisava inverter a dessacralização da natureza. Em sua opinião, o problema era que a cultura ocidental se alicerçava num erro filosófico desde os tempos bíblicos:
Enquanto no idioma indu não existe palavra para designar o que chamamos de ‘profano’, para o silvícola animista tudo é sagrado e para o budista Deus e Natureza são a mesma coisa, nós, na Cultura Ocidental, fazemos questão de excluir de nossa ética tudo o que não se relaciona com o Homem. Quando somos ainda crentes cristãos, judeus ou muçulmanos e acreditamos num deus pessoal, nossa ética se cinge às relações Deus/homem e homem/homem, se somos ateus ou comunistas, sobra apenas o segundo desses relacionamentos. Em nossa ética e na nossa jurisdição não há lugar para a relação homem/natureza. A natureza como um todo e cada um dos seres que ela contém são para nós simples objetos, recursos, matéria-prima, palco para nossas obras, mas ela não participa da nossa moral, nenhum remorso sentimos quando destruímos a mais magnífica e irrecuperável de suas obras! (Lutzenberger, 1980, p. 80-81)
Embora não frequentasse nenhuma igreja ou seita quando adulto, Lutzenberger defendia a adoção de uma espécie de moral religiosa, que transcenderia as relações entre humanos, e entre esses e Deus, e alcançaria também os demais seres vivos que habitam o planeta. Para ele, a culpa da dessacralização da natureza atual seria da cultura ocidental, embasada em valores judaico-cristãos, responsáveis por excluir a natureza da moral humana. Ele tomou emprestado essa ideia do artigo “The historical roots of our ecological crisis”, do historiador Lynn White Jr., publicado na revista Science em 1967, uma das referências bibliográficas do “Manifesto”.
Nesse artigo, White Jr. afirmou que a causa profunda da crise ecológica contemporânea estaria enraizada na mencionada herança judaico-cristã, componente importante na formação da cultura ocidental[9]. O grande problema dessa herança seriam seus “ensinamentos” a respeito do ambiente:
o cristianismo herdou do judaísmo o conceito de tempo linear e uma surpreendente história da criação. Deus criou todas as plantas, animais, etc., e o homem. Deus planejou tudo explicitamente para uso e benefício do homem. (...) ainda que o corpo do homem seja feito de argila, ele não é simplesmente parte da natureza, é feito à imagem e semelhança de Deus. Nos padrões ocidentais, é o cristianismo a religião mais antropocêntrica que o mundo já viu. O Cristianismo estabeleceu que é do desejo de Deus que o homem explore a natureza para suas necessidades. (WHITE Jr., 1981, p. 16)
Para Siqueira (2002, p. 36), o problema dessa visão seria a interpretação isolada de versículos da Bíblia, o que geraria “falsos silogismos e conclusões errôneas”. Muitos autores teriam atribuído ao versículo “crescei e dominai a terra”, presente no Livro de Gênesis (1,28), o sentido de “um domínio explorador e irresponsável do homem ocidental da Natureza”. Em sentido oposto, o autor interpreta que o “domínio” bíblico “supõe administrar, zelar, preservar e cuidar, é bem diferente do domínio predador, destruidor e devastador, proveniente dos modelos histórico-econômicos existentes na sociedade”. Os autores por ele criticados esqueceriam de observar o capítulo 2 do Gênesis, versículo 15: “Javé Deus tomou o Homem e colocou-o no jardim paradisíaco do Éden de delícias para o cultivar e o guardar”.
Como a ética do convívio ecossustentável, as éticas profunda e da reverência pela vida revelam um caráter místico em suas propostas. Segundo Capra (2006, p. 26),
a percepção da ecologia profunda é percepção espiritual ou religiosa. Quando a concepção de espírito humano é entendida como o modo de consciência no qual o indivíduo tem uma sensação de pertinência, de conexidade, com o cosmos como um todo, torna-se claro que a percepção ecológica é espiritual na sua essência mais profunda.
Já a ética da reverência pela vida, de acordo com Schweitzer, fundamenta-se na constatação de que O “Absoluto” tem um caráter “de tal modo abstrato que não podemos comunicarmo-nos com ele (...). Mas entramos em contato espiritual com a [vontade criadora infinita] quando nos sentimos sob o impacto do mistério da vida e nos dedicamos a todos os seres vivos” (SCHWEITZER, 1964, p. 182).
Enunciado:
“Decisões técnicas são sempre políticas. Não [devemos] cometer erros cujas consequências são irreversíveis e inaceitáveis. Podemos e devemos cometer erros, desde que as consequências não sejam irreversíveis e inaceitáveis” (LUTZENBERGER, 1977, p. 13).
O questionamento político da tecnologia estava presente já nos primeiros textos de Lutzenberger. Durante os anos 1970, ele criticou muito o exercício do poder por tecnocratas (técnicos, gerentes, à frente de grandes empresas ou departamentos oficiais do estado). Por exemplo, numa palestra em Santa Catarina, em 1977, criticou a dessalinização das lagoas do Sul desse estado, temática em debate naquele momento, como mais uma expressão da “Ditadura da Tecnocracia”. Em suas palavras,
O tecnocrata parte de enfoque reducionista. Ele persegue um alvo limitado e usa dos métodos mais fáceis que estão à sua disposição para alcançá-lo e da maneira mais fácil e mais barata, mas simplesmente não quer saber quais os estragos que está causando à direita ou à esquerda. E aqueles poucos que se levantam em protesto diante desses absurdos são, simplesmente, considerados fanáticos, saudosistas, meio loucos, “dom quixotes”. (LUTZENBERGER, 1977, p. 2)
Nos anos 1990, quando escreveu “Garimpo ou Gestão” (2009), no auge das discussões sobre a globalização, o domínio da tecnologia na vida das pessoas seria tamanho que inibiria o que considerava a “verdadeira democracia”:
A essência da nossa cultura atual, da Sociedade Industrial Moderna, que se encontra na sua fase final e conquista do globo, é a tecnologia. Nossas vidas estão completamente determinadas e dominadas por ela. Por isso, nos consideramos todos muito modernos, nem pensamos em questionar. Regozijamo-nos por estar, finalmente a democracia tomando conta do mundo. Não nos damos conta de que a verdadeira democracia, a liberdade e a autonomia individual, familiar, local, regional e nacional estão sempre mais corroídas por imposições intransponíveis de necessidades criadas por decisões técnicas que são tomadas à revelia do cidadão, da comunidade e mesmo dos governos, em todos os seus níveis e poderes. Os governantes, imbuídos da ideologia da tecnocracia e dela dependentes, acabam sancionando e reforçando essa ideologia. (LUTZENBERGER, 2009, p. 40)
Carson (1964, p. 285-6) aborda o assunto, clamando pelo “direito de saber” a respeito das decisões no âmbito das inovações tecnológicas (no caso, os agrotóxicos), porque elas envolveriam riscos aos cidadãos, seus consumidores. No âmbito da ética, Jonas é quem propõe um princípio para a civilização tecnológica: o “Princípio responsabilidade”. Com a tecnologia moderna, a humanidade teria adquirido um poder de destruição muito grande sobre o mundo natural (inclusive de autodestruição). Diante desse poder, entende que as pessoas deveriam ser responsáveis em suas ações para evitar que a vida na Terra desaparecesse.
Para o filósofo austríaco Ivan Illich, também lido por Lutzenberger, o problema era a crença na tecnologia: “o homem moderno crê que só os especialistas podem compreender o porquê das ‘características técnicas’” (ILLICH, 1985, p. 46), sendo então levado a uma cega submissão a esses especialistas. Na obra “Tools for conviviality” (1973), Illich elaborou a teoria da “convivialidade”, definida por ele da seguinte forma: “chamo de convivial aquela sociedade em que as tecnologias modernas estão ao serviço da pessoa integrada à coletividade e não a serviço de um corpo de especialistas. Convivial é a sociedade em que o homem controla a tecnologia”.
Além da questão política e decisória que envolve a esfera da tecnologia, Lutzenberger enfocou a concentração de poder que ela proporciona, aspecto abordado a seguir.
Enunciado:
O problema central de toda a sociedade humana é como conseguir controle efetivo do poder, como evitar sua usurpação. Se quisermos realmente fortalecer a democracia, não é permitindo que cresça o poder dos governos que vamos consegui-lo. A liberdade só aumenta à medida que aumentam a autossuficiência, a autonomia local, a autogestão, e se descentralizam todas as formas de poder de decisão. (LUTZENBERGER, 1985, p. 102)
No objetivo de buscar poder, Lutzenberger não via diferença entre sistemas político-econômicos, governos, religiões ou empresas. No artigo “A tragédia do poder”, publicado como capítulo de seu livro “Ecologia: do jardim ao poder” (1985), ele afirmou: “Quer seja em esquema democrático ou totalitário, o que toda burocracia persegue é sua própria sobrevivência e ampliação. Realmente não interessa que se chame General Motors ou Partido Comunista Soviético, ou mesmo igreja católica ou federação mundial do voodoo”. Em cada um desses casos, as regras do jogo seriam diferentes, “mas em todo jogo os participantes querem ganhar” (LUTZENBERGER, 1985, p. 97).
Lutzenberger tinha uma visão muito crítica ao acúmulo de poder – motivo pelo qual sempre defendeu esquemas descentralizados:
Todo poder corrompe (...). As burocracias facilmente degeneram em burrocracias. Esta tendência é diretamente proporcional ao crescimento em tamanho e centralização administrativa. É melhor ou traz um mal menor o poder dividido entre muitos bandidos do que o poder na mão de um só Jesus Cristo. (...) Sempre que o poder estiver em uma só mão, por mais virtuosa que seja, todo aquele que tiver ideias e alvos diferentes inevitavelmente sofrerá. Distribuído entre muitos detentores, mesmo mal-intencionados, o poder se torna menos envolvente, deixa muitas frestas, e os diferentes centros de poder se combatem ou se freiam mutuamente. [grifo do autor] (LUTZENBERGER, 1985, p. 99)
Ele associava concentração de poder à falta de liberdade: “a liberdade só aumenta à medida que aumentam a autossuficiência, a autonomia local, a autogestão, e se descentralizam todas as formas de poder de decisão” (LUTZENBERGER, 1985, p. 100). Essa ideia possivelmente foi apropriada de sua leitura do livro “O negócio é ser pequeno”, do economista Ernest Schumacher. Segundo Moraes e Serra (2005, p. 1022), os elementos-chave da obra de Schumacher são “a descentralização, a atenção para com os recursos naturais e a avaliação da tecnologia adequada ao desenvolvimento” – todos seriam trabalhados por Lutzenberger em suas obras também. Para Schumacher (1983, p. 34), apesar de a humanidade sofrer “de uma idolatria universal do gigantismo”, é necessário “insistir nas virtudes da pequenez”.
Além da descentralização do poder, Lutzenberger defendeu incessantemente o fim do dogma do crescimento econômico infinito, segundo ele, uma das mais importantes causas morais da crise ecológica.
Enunciado:
“a economia humana é um aspecto parcial da economia da natureza. As ciências econômicas, portanto, deveriam ser encaradas como aquilo que realmente são – um capítulo apenas da Ecologia” (LUTZENBERGER (1980, p. 13). [O modelo econômico] “está em contraposição diametral com as leis básicas do funcionamento dos seres vivos. Só um modelo tão desvinculado da realidade da Vida pode permitir a aceitação e manutenção do dogma (...) da necessidade indefinida do ‘crescimento econômico’, da maneira como ele é definido e medido” (LUTZENBERGER, 2009, p. 83).
Na palestra “O modelo liberal-consumista perante o desafio ecológico”, proferida em Wollaston (Inglaterra), no dia 24 de setembro de 1988, aos membros da Associação Scott Bader, Lutzenberger afirmou que “a moderna sociedade industrial se lançou numa carreira totalmente suicida”. Segundo ele, o sistema econômico mundial estava embasado numa escala de valores invertida: “quanto mais destruo, quanto mais detritos produzo, quanto mais material preparo para o lixo, tanto melhor, tanto mais produtivo sou considerado, por dar uma contribuição maior para o produto nacional bruto (PNB). E tanto mais faço crescer a economia” (LUTZENBERGER, 1988).
Daly é um dos principais críticos do índice então vigente para medir o crescimento, o PNB. De acordo com os critérios desse,
crescimento simplesmente significa a satisfação de cada vez mais triviais necessidades enquanto simultaneamente se cria mais poderosas externalidades que destroem cada vez mais importantes recantos naturais. Para nos defender dessas externalidades, produzimos mais, e ao invés de subtrair a despesa puramente defensiva, somamos! Por exemplo, as contas médicas pagas para o tratamento de câncer produzido por cigarro ou enfisema produzido por poluição são adicionadas ao PNB, quando num sentido sadio deveriam ser claramente subtraídas. Isso deveria ser rotulado de inchaço e não crescimento. [grifos do autor] (DALY, 1984, p. 46)
A ética divulgada por Lutzenberger defende uma mudança no modelo econômico mundial, de forma a chegar à economia de estado estável, na qual não haveria a obrigação do crescimento, mas sim a busca pela estabilidade: um mesmo nível de entradas e saídas, preferencialmente a partir da reciclagem dos materiais e de trocas em âmbito local – uma forma de economia que imitaria o funcionamento da natureza, portanto. Isso levaria, em sua opinião, à garantia de que os elementos naturais não fossem exauridos e, ao mesmo tempo, seria uma forma mais justa do ponto de vista social, aspecto de sua ética que abordaremos a seguir.
Enunciado:
“o caminho brando que a ecologia propugna é, justamente, o caminho da justiça social. Justiça social e justiça ambiental são as duas faces da mesma moeda” (LUTZENBERGER 1980, p. 71).
Um aspecto importante da crítica de Lutzenberger às tecnologias “duras”, especialmente às megatecnologias, além da concentração de poder, são suas consequências sociais. Na palestra “A visão global do saneamento nas cidades”, proferida em Recife em 11 de julho de 1984, nosso personagem conectou a perspectiva ambiental com a problemática social, afirmando que
as soluções megatecnológicas são sempre ecologicamente e socialmente profundamente indesejadas. Elas devastam o meio ambiente, contaminam o ambiente, e dão o número mínimo de empregos. Mas movimentam muito dinheiro e propiciam também muita corrupção.
Nós temos que reverter esse enfoque. (...). Se nós queremos soluções que sejam ecologicamente boas, racionais, e socialmente aceitáveis, ou pelo menos neutras, que não pisem em ninguém, de preferência devem ser soluções que fazem bem à comunidade, que dão mais emprego, que integram o homem em seu ambiente. Então nós temos que partir não para o centralismo, mas para a descentralização. (LUTZENBERGER, 1984, p. 26)
Para resolver o problema do lixo e do esgoto na cidade, Lutzenberger oferecia uma solução ecológica: “RECICLAGEM dos materiais sólidos e COMPOSTAGEM para produzir matéria orgânica para a agricultura [grifos do autor]”. Propunha assim um caminho descentralizado e local para resolver a questão, pois acreditava que “não há problema que não tenha solução simples, barata e localmente acessível, e que se possa resolver com recursos locais” (LUTZENBERGER, 1984, p. 27).
No “Manifesto”, relacionou o progresso com as questões sociais ao criticar a ideia de que “progresso é tudo aquilo que economiza salários e aumenta os lucros”. Nessa perspectiva, segundo ele, a vantagem estaria somente do lado do empresário: “privatiza-se o lucro e os custos ambientais são socializados. O público paga na poluição e na futura escassez” (LUTZENBERGER, 1980, p. 39).
Esse princípio esteve muito presente em sua luta em defesa da Floresta Amazônica, nos anos 1980. A forma como a Amazônia foi tratada pelos governos militares do ciclo 1964-85 foi duramente criticada por ele. Ao inverso do que era divulgado pelo governo, para Lutzenberger e muitos outros ativistas ambientais, a Amazônia não era uma “terra sem homens”, ou um “vazio demográfico”. Muito pelo contrário, era vastamente habitada por povos indígenas, ribeirinhos, seringueiros, os quais, em sua opinião, ao contrário dos megaprojetos apoiados pelos militares, sabiam conviver de forma sustentável com a floresta. A luta pela Amazônia assumiu as duas dimensões, inseparáveis: ambiental e social.
Não se quer, com isso, alçar Lutzenberger como um precursor do movimento de justiça ambiental nem relacionar suas declarações com os debates atuais sobre o tema. É bom ressaltar também que não integrou em sua ética a contribuição da “ecologia dos pobres”, como formulado por Martínez-Alier (2007). Aqui é importante enfatizar, contudo, que ele tinha ciência das implicações sociais dos danos ambientais e elaborou crítica nesse sentido.
Enunciado:
a agricultura, fundamental para a sobrevivência de nossa espécie, junto com a indústria e o transporte, é o fator de maior impacto no equilíbrio químico e térmico da atmosfera e, portanto, nos processos vitais do Planeta. Esse impacto pode ser positivo ou negativo. Hoje predominam os impactos negativos. Mas a reorientação necessária é relativamente fácil, bem mais fácil do que a drástica reorientação que, muito em breve, terá que acontecer na indústria, no transporte e no estilo de vida. (LUTZENBERGER, 2009, p. 153)
Em 1981, em palestra proferida no seminário “Energy in the least developed countries”, realizada na cidade de Haia, Lutzenberger afirmou que percebia “as grandes monoculturas” e “hipermonoculturas agora em voga”, bem como o uso de pesticidas, como um “estupro da terra”, um “estupro do solo”. Segundo o personagem, “os modernos métodos agrícolas, além de causar problemas políticos, sociais e ecológicos, tinham balanço energético negativo”. Ele defendeu, como solução, a “descentralização da energia, no uso de tecnologias brandas, tecnologias em escala humana, preocupadas em ajudar o indivíduo e a comunidade, não os poderosos” (LUTZENBERGER, 1981).
A temática da agricultura foi privilegiada em toda a militância de Lutzenberger, por sua formação como Engenheiro Agrônomo e a vivência dentro da BASF. No subcapítulo “Ética da Terra” do “Manifesto”, inspirado em Aldo Leopold, Lutzenberger (1980, p. 65) propôs “uma reorientação fundamental de nossa agricultura que, em suas formas atuais, é uma das principais causas da devastação”. Para ele, se não se deixasse de praticar a coivara e a “hipermonocultura supermecanizada e quimificada”, teria início, acreditava, uma “grande fome”. Dada a emergência do problema, o melhor caminho, segundo ele, seria a adoção da ética da Terra, ou seja, uma agricultura mais intensiva de mão de obra (em que o camponês seria orientado ao amor e apego à terra, respeito e cuidado com o solo) e mais independente do capital e das estruturas megatecnológicas.
É interessante constatar a apropriação que Lutzenberger realizou da ética da Terra de Leopold. Para esse autor, em vez de despejar “carradas de fertilizantes” no solo, seria preciso considerar as cadeias de interdependências entre os seres vivos, pois, de acordo com ele, a terra não seria somente solo, “mas uma fonte de energia que flui através de um circuito de solos, plantas e animais” (LEOPOLD, 2008, p. 199).
Enquanto Leopold entende sua ética da Terra como uma orientação para as atitudes humanas em relação ao ambiente natural como um todo (a comunidade biótica), Lutzenberger apropria-se do termo para enfocar especificamente o tema da agricultura, em suas articulações políticas, econômicas e sociais. Ou seja, ele utilizou a expressão de Leopold, adaptando-a à sua crítica ao modelo agrícola moderno, defendendo em contraponto “uma agricultura realmente sã e sustentável”, que proporcionaria mais independência e autonomia pessoal aos produtores (LUTZENBERGER, 1980, p. 66-67).
Essa crítica também foi realizada por Carson no que tange ao uso dos agrotóxicos. Ela igualmente apresentou a dimensão ética envolvida no uso desses produtos, questionando o fato de que “substâncias químicas venenosas, biologicamente potentes” foram colocadas nas mãos de pessoas sem conhecimento quanto à capacidade dessas de produzir danos (CARSON, 1964, p. 22). Por isso, alertava: “as gerações futuras não nos perdoarão, com toda probabilidade, a nossa falta de prudente preocupação a respeito da integridade do mundo natural que sustenta a vida toda” (Ibid., p. 23).
Enunciado 1:
Os problemas ambientais e sociais da moderna cultura industrial não são problemas meramente técnicos, suscetíveis de solução com simples remendos técnicos. Se todas as fábricas fossem limpas, a agricultura não mais usasse venenos, o transporte fosse mais eficiente e não poluidor, as cidades tivessem seus problemas sanitários resolvidos, tivéssemos energia ilimitada e limpa e tivéssemos suficiente medicina para curar todas as nossas doenças, mas continuássemos a perseguir os atuais alvos consumistas, com crescimento material e demográfico, a insustentabilidade seria a mesma. Somente mudanças fundamentais em nossas atitudes, somente uma revolução ética, baseada em cosmovisão diferente da que hoje predomina, poderá devolver-nos [o] futuro. (LUTZENBERGER, 2009, p. 142)
Enunciado 2:
“Nós não somos contra ninguém mas somos a favor da promoção da vida. Não sou contra a indústria, mas contra a poluição. Não podemos só criticar, temos de trazer soluções” (RIBOLDI , 1988).
Nas citações acima, é possível constatar dois pontos de vista, aparentemente contraditórios: na primeira, Lutzenberger afirmou que soluções técnicas não seriam suficientes; na segunda, ele as defende. No entanto, não há aí uma contradição, e sim uma estratégia de luta ambiental.
Para que o objetivo da sustentabilidade fosse atingido – no sentido de um convívio harmônico entre humanidade e natureza –, esse princípio preconiza duas atitudes diferentes, dependendo da esfera de atuação: pensar criticamente na perspectiva de Gaia, em âmbito macro, ou seja, a adoção de uma atitude mais radical, e agir pragmaticamente, dentro do que é possível realizar, na perspectiva micro.
Essa foi, na verdade, a tônica de toda a atuação de Lutzenberger: ao mesmo tempo em que disseminava uma crítica radical ao industrialismo e divulgava a necessidade urgente de uma nova ética em seus livros e nas conferências pelo mundo, prestava serviços de reciclagem e paisagismo para indústrias, oferecendo as “soluções ecológicas” na esfera das ações concretas, do dia-a-dia de sua empresa. Sua atuação, nas duas diferentes esferas, tinha o mesmo objetivo: conscientizar o maior número possível de pessoas a compreenderem que somente uma nova atitude em relação aos elementos naturais – uma atitude de convívio, de encontro – poderia garantir, em sua visão, a sobrevivência da espécie humana e a manutenção da Vida como um todo.
Como, para Lutzenberger, a causa dos problemas ecológicos era a ética dominante nas relações entre a humanidade e a natureza – antropocêntrica –, a solução teria que ser proposta na forma de uma nova ética. Não somente ele, mas também Leopold, Carson, Schweitzer, Jonas, Naess, Capra, entre outros, realizaram esse esforço.
Jonas formulou seu “princípio responsabilidade” na tentativa de criar um freio para a “sociedade tecnológica”, dotada de um poder de destruição tão grande que poderia comprometer a vida no planeta. Contra isso, ele preconizava: “Aja de modo a que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra” (JONAS, 2006, p.47).
Carson defendeu que os humanos parassem de agir como inimigos da natureza, apenas focados em consumir seus “recursos” e aniquilar as “pragas”, as “ervas daninhas” e qualquer outro elemento natural que atrapalhasse o “progresso”. Ela argumentava que seria na compreensão da vida, de seu funcionamento, que surgiriam as melhores formas de interação sociedade-natureza: “somente levando em conta essas forças de vida e procurando cautelosamente orientá-las para dentro de canais favoráveis para nós mesmos, é que poderemos esperar conseguir uma acomodação razoável entre as hordas de insetos e nós mesmos” (CARSON, 1964, p. 305).
A solução proposta por Leopold preconizava que as ações humanas só seriam corretas se levassem em conta a integridade da vida como um todo. Segundo tal perspectiva, seria preciso transcender o aspecto utilitário, meramente econômico, das interferências humanas na natureza; afinal, um sistema de conservação que ignora e elimina “numerosos elementos da comunidade da terra desprovidos de valor comercial, mas que são tão essenciais para que ela funcione saudavelmente” seria “forçosamente desequilibrado” (LEOPOLD, 2008, p. 198). Por isso, ele defendia o respeito aos demais seres, companheiros da comunidade da Terra, da vida.
Já a ecologia profunda foi proposta como “o novo paradigma (...) uma visão de mundo holística, que concebe o mundo como um todo integrado, e não como uma coleção de partes dissociadas” (CAPRA, 2006, p. 25). Essa visão propõe que não haveria diferença absoluta entre o meio e o “eu”; dessa forma, a destruição do ambiente seria, em realidade, a destruição de si mesmo (CALLICOTT, 2007, p. 161).
Schweitzer argumentou que “a moral não é unicamente a conduta de um para com os outros, para possibilitar um convívio social mais feliz, mas um imperativo da experiência interna, que estabelece de modo absoluto a responsabilidade para com tudo que é vivente”. Nessa perspectiva ética, “o bem é conservar a vida, promover vida (...); o mal é destruir a vida, oprimir a vida, impedir o livre desenvolvimento da vida” (SCHWEITZER, 1964, p. 16).
Em sintonia com todas essas perspectivas, a ética do convívio ecossustentável expressa a reorientação de valores defendida por Lutzenberger ao longo de trinta e um anos de militância ambientalista. É importante frisar que essa ética não se construiu apenas em torno de suas leituras das obras citadas, mas também do engajamento nas lutas em que se envolveu ao longo desse período. Além disso, Lutzenberger se preocupou em materializar essa ética em seu paisagismo e, especialmente, na Fundação Gaia. No entanto, essas leituras foram importantes ao fornecerem aporte teórico para a prática ambientalista; na verdade, teoria e prática se retroalimentaram na construção da referida ética.
O estudo da biografia de Lutzenberger, entendido como um agente com grande capacidade de difusão no ambientalismo brasileiro e com expressiva interlocução internacional, proporcionou uma abordagem diferenciada, variando entre as escalas micro e macro da história recente. Por meio dessa interação entre história ambiental e biografia, foi possível compreender as apropriações realizadas por Lutzenberger, capazes de construir uma nova ética de cunho ecológico.
Trata-se de uma ética focada na importância da vida e de sua manutenção, mas não apenas nisso. Além de propor a continuidade da vida na Terra, defende o respeito e reverência para com ela. Desde essa ótica, o funcionamento dos sistemas naturais deveria ser o modelo para as sociedades humanas. Nesse sentido, em sua fundamentação teórica, Lutzenberger seguiu a corrente holística da ecologia iniciada por Gilbert White, dialogou com éticas contemporâneas à sua, como as de Jonas e Naess, apropriou-se de elementos das éticas elaboradas por Schweitzer e Leopold; da sensibilidade apaixonada de Carson; do pensamento econômico de Daly e Schumacher; das ideias de Illich; dos conceitos trabalhados pelos biólogos irmãos Odum; da proposta de Gaia, de Lovelock e Margulis; e das ideias de outros possíveis autores que não conseguimos mapear. Mas o fez de maneira original, selecionando e articulando ideias de acordo com a realidade em que vivia e com as lutas que travava. Por isso, acredita-se, é possível falar de uma ética do convívio ecossustentável.