Dossiê

Vinhos de Altitude no Estado de Santa Catarina: a firmação de uma identidade

Wines of Altitude in the State of Santa Catarina: the signature of an identity

Eunice Sueli Nodari
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil

Vinhos de Altitude no Estado de Santa Catarina: a firmação de uma identidade

Revista Tempo e Argumento, vol. 11, núm. 26, pp. 183-200, 2019

Universidade do Estado de Santa Catarina

Recepção: 30 Setembro 2018

Aprovação: 14 Fevereiro 2019

Resumo: No presente artigo será abordada a história recente da vitivinicultura no estado de Santa Catarina - Brasil, discutindo os territórios que trabalham com os, assim denominados, “Vinhos de Altitude”. Mostraremos que a vitivinicultura não pode mais ser percebida de forma idílica, como uma empresa de pequenos agricultores rurais. Atualmente, a produção de vinhos é vista como uma importante commodity, em que a conquista de prêmios em competições nacionais e internacionais abre os mercados para consumidores nacionais e internacionais. O estabelecimento de vinícolas com alto padrão de qualidade, visando as camadas sociais mais altas, tem crescido nos últimos anos.

Palavras-chave: História Ambiental, Vinhos de Altitude, Commodity.

Abstract: This article will discuss the recent history of vitiviniculture in the State of Santa Catarina - Brazil, discussing the territories that produce so - called "Altitude Wines". We will show that vitiviniculture can no longer be perceived as a small-farmer business, as it is often represented idyllically. Currently, wine production is seen as an important commodity, where winning prizes in national and international competitions can open markets to national and international consumers. The establishment of wineries with high quality standards, aiming at the highest social strata, has grown in recent years.

Keywords: Environmental History, Altitude Wines, Commodity.

Introdução

A produção e venda de vinhos é considerada, desde o século XX uma commodity importante em várias partes do mundo. O interesse para tal se deve tanto ao seu valor comercial quanto aos seus aspectos simbólicos, culturais e estéticos (BLACK; ULIN, 2013). E, nas últimas décadas, o vinho aparece associado a questões de saúde, pois pesquisas recentes têm demonstrado que o vinho possui efeitos positivos para evitar algumas doenças como, por exemplo, problemas cardíacos, além de estar associado à longevidade (GUILFORD; PEZZUTO , 2011).

Apesar de ser um dos cultivos mais antigos, a videira e o vinho ainda não receberam a devida atenção de pesquisadores das ciências humanas, especialmente da história ambiental. Talvez, por ser uma história difícil de ser pesquisada, pois existe uma grande diversidade da Vitis vinifera, e isso se reflete em uma gama de escalas, desde as variações globais entre os vinhos em diferentes continentes, às diferenças locais e regionais entre as vinhas adjacentes. Como exemplo dessas diferenças podemos citar a França, onde a classificação da qualidade dos vinhos, dá a uns o status de vinho Grand cru, enquanto que o de seu vizinho continua a ser um simples Appellation Communale (UNWIN, 1996). Esta diversidade, além das diferenças de geologia e do clima, em muitos casos, é resultado do trabalho de inúmeras gerações de viticultores e de produtores de vinho, cada um definido em um contexto humano distinto. É essa interação histórica entre as pessoas e o meio ambiente, criando uma identidade cultural específica, que está no cerne do nosso entendimento do surgimento e da propagação da viticultura e da produção de vinho.

A viticultura e o vinho desempenharam e continuam desempenhando importantes papéis econômicos, sociais, políticos e culturais em todas as partes do mundo ao longo da história. Dentro do contexto econômico, Unwin cita o uso do vinho como moeda de troca pelos romanos na Gália; o significado do comércio de vinho, no período medieval, com o norte da Europa para os habitantes de Bordeaux, na França. Mais recentemente, o papel do capital transnacional no desenvolvimento da indústria vinícola tem sido tema de debates. O que observamos atualmente são países sem tradição na vinicultura, despontando como produtores, como é o caso da China (THORPE, 2009).

Para Unwin (1996, p. 6), entre os principais símbolos das sociedades que surgiram ao redor do Mediterrâneo se encontram as videiras e os vinhos. Ainda, de acordo com o referido autor, foi somente na década de 1980 que historiadores como Bordieu (1977), Darnton (1986) e geógrafos como Cosgrove (1984) começaram a explorar o sentido dos símbolos e rituais com mais profundidade. Na geografia, a maior parte dos trabalhos se concentra no simbolismo da paisagem (landscape), e na sua compreensão de que é um produto cultural muito complexo e com alta carga ideológica. As paisagens culturais da viticultura se encaixam bem em tal interpretação, mas o simbolismo do vinho e da videira deve ser analisado de uma forma mais profunda do que simplesmente sua expressão em diferentes tipos de paisagem. Na compreensão desse simbolismo, é essencial compreender as relações metafóricas entre o símbolo e o simbolizado. Precisamos considerar como, por exemplo, o consumo simbólico de vinho parte da Eucaristia cristã, da missa ou da comunhão, e seu papel fundamental na distribuição da viticultura em todas as partes do mundo, o que ampliou a importância social e ideológica do vinho (UNWIN, 1996, p. 7).

Vinhedos nas Américas

Não podemos, entretanto, atribuir somente à influência da Igreja a proliferação dos vinhedos pelas Américas. O vinho fez parte do cotidiano das comunidades europeias por séculos, dessa forma, é lógico pensar que, no período da conquista, o vinho seguiu na esteira dos europeus. A rapidez com que o cultivo da videira se espalhou pelas Américas é um bom testemunho da importância que o vinho teve para os conquistadores. Os vinhos espanhóis, muitos produzidos na região em torno de Jerez, eram ingeridos na maior parte das viagens de descoberta e quantidades consideráveis foram enviadas ao México durante as campanhas de Cortés contra os astecas entre 1519, e a destruição de Tenochtitlán, em 1521 (UNWIN, 1996, p. 188).

A primeira indicação do cultivo de videiras no México se refere à importação feita por Cortés, juntamente com outras culturas europeias, para Nueva España, na década de 1520. A partir do México, a viticultura se espalhou rapidamente por toda a América Latina na esteira das conquistas espanholas do Império Inca. É provável que as videiras tenham sido introduzidas logo após as primeiras vitórias de Pizarro na década de 1530. Por volta de 1556, as vinhas também foram introduzidas pelos jesuítas em toda a Cordilheira dos Andes, no espaço que se tornaria a Argentina. Em apenas trinta anos, portanto, a viticultura se espalhou do México por toda a costa ocidental da América Latina.

Já nas colônias portuguesas, como o Brasil, a videira foi introduzida por Martim Afonso de Souza, que trouxe as primeiras cepas para a capitania de São Vicente, atual Estado de São Paulo, em 1532. Nesse mesmo ano, Brás Cubas cultivou a videira no litoral de São Paulo, não obtendo muito êxito, em parte pelo protecionismo imposto pela Coroa Portuguesa que proibiu o cultivo da videira em 1789. No Rio Grande do Sul, as primeiras videiras foram introduzidas em 1626 pelos padres jesuítas e, posteriormente, outras foram trazidas pelos imigrantes alemães e italianos no século XIX (FERREIRA; FERREIRA, 2016, p. 9-10).

A explicação tradicional sobre a rapidez e extensão da introdução das videiras para as Américas se relaciona à importância do vinho como parte essencial dos rituais religiosos da Igreja Cristã. Todavia, essa visão está sendo reavaliada por pesquisadores que argumentam que a demanda religiosa total do vinho não era tão grande e poderia, facilmente, ser fornecida pelas frotas da Espanha e das ilhas atlânticas. Argumentos bem mais sustentáveis na explicação da propagação da viticultura são os fatores sociais e econômicos. Os líderes espanhóis da conquista estavam ansiosos para criar uma Nova Espanha no México e ao recriar simbolicamente sua pátria, eles introduziram o maior número possível de culturas europeias, incluindo a videira. O vinho era fundamental para manter o estilo de vida dos conquistadores espanhóis e portugueses.

Observa-se, que tanto para os espanhóis quanto para os portugueses que chegaram nas Américas, o vinho era imprescindível, de tal forma que levavam nas suas expedições centenas de barris da bebida. Assim, era de uma necessidade vital plantar as videiras nas novas terras, garantindo o vinho para consumos sociais e religiosos.

O vinho tem forte valor simbólico, comercial e artístico. Na literatura, encontramos romances, poemas e músicas de amor, como também de protestos, através do simbolismo. Entre as obras clássicas, podemos destacar As Vinhas da Ira, de John Steinbeck, depois transformado em filme. Entre as músicas, destacamos a letra e a música de Chico Buarque de Holanda e Gilberto Gil “Cálice”, que se tornou um dos mais importantes símbolos da resistência ao regime militar do Brasil.[1]

Ao comparar a vitivinicultura brasileira com a de outros países da Europa e mesmo da América, Argentina, Chile e Estados Unidos, mais tradicionais na produção de vinhos, observamos que ela é diferenciada e tem características distintas. Segundo Camargo et al, a marca da viticultura brasileira é a sua diversidade: as diferentes condições ambientais, variados sistemas de cultivo e os recursos genéticos com ampla variedade. O cultivo está difundido desde o Rio Grande do Sul, a 31o S de latitude, até o Rio Grande do Norte e Ceará a 05o S de latitude. Existe também, uma grande variedade de altitude, gerando uma considerável diversidade de ambientes entre as zonas de produção, com regiões de clima temperado, subtropical e tropical (CAMARGO et al, 2011, p. 145).

A expansão se deu em três biomas, na Mata Atlântica, no Pampa (RS) e na Caatinga (vale do rio São Francisco) no Nordeste do Brasil. A maior produção de uvas, de vinhos e derivados se concentra na Serra Gaúcha, no bioma Mata Atlântica, onde desde a vinda dos primeiros imigrantes italianos, na década de 1880, começou o cultivo de videiras e o processamento do vinho.

O nosso estudo está localizado no clima temperado que se caracteriza por um ciclo anual, seguido por um período de dormência induzido pelas baixas temperaturas do inverno; é a viticultura tradicional no Sul e em regiões de altitude do Sudeste do Brasil, nos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Minas Gerais. Como nas áreas de clima subtropical se tem invernos amenos e curtos, mas sujeitos a geadas, assim com um período de dormência natural em junho e julho, ela pode ser trabalhada de forma tradicional, similar ao clima temperado. A viticultura tropical ocorre em regiões onde não existem temperaturas mínimas baixas suficientes para induzir a videira à dormência. Com o crescimento contínuo e uso da tecnologia, é possível obter duas ou mais colheitas por ano no mesmo vinhedo. Os principais polos são o Vale do Submédio São Francisco, o noroeste paulista e o norte de Minas Gerais (CAMARGO et al, 2011, p. 145).

Todavia, independente da região onde os parreirais foram montados, assim como toda a estrutura industrial para a fabricação do vinho, ocorreram alterações drásticas no meio ambiente. As áreas de clima temperado, após um exaustivo e destrutivo extrativismo das enormes florestas nativas, passaram para a policultura e, no decorrer das décadas, algumas áreas se tornaram referência na fruticultura com destaque especial a vinicultura.

De acordo com Valduga, a vitivinicultura no Vale dos Vinhedos, e em toda a Serra Gaúcha, se fortaleceu no decorrer do século XX, tornando-se fonte de crescimento regional (VALDUGA, 2007 p. 84). A pesquisadora Ivanira Falcade, em sua tese de doutorado, fez uma análise das regiões que foram demarcadas para as Indicações de Procedência do Vale dos Vinhedos, Pinto Bandeira e Monte Belo (RS) assim como o uso da paisagem vitícola como imagem espacial dos seus vinhos (FALCADE, 2011).

Santa Catarina: Vinhos de Altitude

A vitivinicultura mais expressiva economicamente, em Santa Catarina, está localizada na Região do Alto Vale do Rio do Peixe, que abrange vários municípios. A viticultura dessa região apresenta grande similaridade com a da região da Serra Gaúcha quanto à estrutura fundiária, topografia e tipo de exploração vitícola (Figura 1). A mão de obra, geralmente familiar, é voltada à produção de uvas destinadas principalmente à elaboração de vinhos de consumo corrente e suco de uva, sendo uma parte menor da produção destinada ao consumo in natura (PROTAS et al. 2002). A vitivinicultura do Alto Vale do Rio do Peixe é responsável por cerca de 80% da produção de uva e vinho no estado. Muitas vinícolas mantêm sua tradição atrelada às origens de seus habitantes, como ocorre na Serra Gaúcha (NODARI, 2017). Uma parte dos produtores e industriais têm ascendência italiana, enquanto outros fogem desse padrão considerado pela literatura como tradicional.

Figura 1:
1
Figura 1:

Parreiral e casa de um colono de origem italiana, 1965 – Videira (SC)

Fonte: https://biblioteca.ibge.gov.br/bibliotecacatalogo.html?id=422460&view=detalhes. Acesso em: 10 de julho de 2018.

Santa Catarina, em comparação ao Rio Grande do Sul, teve um processo mais tardio na produção de vinhos de alta qualidade para o mercado consumidor. A ideia de vinhos diferenciados, com um terroir distinto, se desenvolveu a partir de experimentos de pesquisadores da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina - EPAGRI e surgiram os vinhos de altitude, com a boa adaptabilidade da espécie vitis viníferas ao clima das regiões pesquisadas. Assim, desde 1991, pesquisadores da EPAGRI, das Estações Experimentais de Videira e de São Joaquim e pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina, acompanham os vinhedos nos municípios que apresentam altitudes acima de 900 metros, como Água Doce, Bom Retiro, Campos Novos, Videira, Iomerê, Campo Belo do Sul, São Joaquim e Tangará. Esses locais, por apresentarem clima ameno, latitude elevada e altitudes acima de 1.000 metros são propícios à produção de vinhos diferenciados (SAMPAIO, 2016). Os resultados obtidos com os primeiros vinhos demonstraram um grande potencial da região para o cultivo dessas uvas.

Como a nossa intenção, no presente artigo, é discutir uma região vinícola específica denominada de “Vinhos de Altitude”, cujo próprio nome contém um apelo social, cultural e econômico, iremos conectar relatos e análises de histórias das vinícolas que ali estão estabelecidas. As histórias, muitas vezes, persuadem quando os argumentos não o fazem. Somos contadores de história e somos movidos a criar imagens ao redor das coisas pelas quais somos apaixonados. Com a história do vinho não é diferente (LA FORS, 2017, p. 8).

O fato de cada vinho, de cada vinícola ter a sua própria história, a sua própria marca ou grife pode ser o elo entre o consumidor e a referida marca. Quando se olha para uma única garrafa, esta pode ser uma história individual e única. Mas, quando se observa o vinhedo, centenas de histórias de pessoas que lá trabalham ou o visitam, e os próprios terroirs, podemos imaginar quantas histórias estão ligadas àquele vinho específico ou à vinícola. Poderemos citar, como exemplo, a Vinícola Panceri, que traz consigo toda uma história de família e com ela cria o seu merchandising a partir dessa identidade familiar. Utilizando as suas raízes familiares italianas e também um modelo de empresa familiar, destaca que praticam “por gerações a arte de vitivinicultura”. Em seus relatos, conectam a emigração da família originária da Lombardia, Itália, e seu estabelecimento no Rio Grande do Sul. No século XX, um ramo da família migrou para o meio-oeste de Santa Catarina, sempre mencionando a sua ligação com o plantio de uvas e a fabricação de vinho. Em 1990, Nilo Panceri junto com seus filhos, Luiz e Celso, fundaram a Vinícola Panceri, no município de Tangará, SC. Inicialmente produzindo vinhos para consumo próprio, se estabeleceram gradativamente no mercado e, no ano de 2000, deram um passo maior com o plantio de uvas viníferas, elaborando vinhos de alta qualidade (MARX, 2010, p. 7). Um dos proprietários da Vinícola, o senhor Celso Panceri, mostra o que considera importante para a vinícola, e como a identifica:

É um negócio de família. Meu avô e meu pai sempre trabalharam com isso. A única coisa que aprendi foi cultivar uvas e fazer vinhos. Somos descendentes de italianos. A gente conserva as tradições italianas. O vinho está na nossa vida como um filho. A gente até emprestou o nome nosso para os vinhos, Panceri. (DIÁRIO CATARINENSE, 13 jun 2016: online)

A criação de uma identidade para a vinícola faz com que ela se torne familiar também para quem degusta o vinho que traz o nome da família ou da empresa que o produz. Os nomes escolhidos para os vinhos podem trazer um significado para quem o produz e, talvez, passe a ter importância para quem o compra para momentos especiais. Algumas vinícolas trazem como identidade, quase única, o nome da vinícola, no rótulo da garrafa, que é uma forma de identificação, como é o caso da Abreu Garcia e de várias outras. Enquanto algumas escolhem, por outro lado, formas de identificação nos rótulos dos seus vinhos que, além do nome da vinícola, trazem outras lembranças, como é o caso da Villa Francioni, que apresenta rótulos distintos como: Aparados, lembrando o Parque Nacional da Serra dos Aparados, ou o artista catarinense Juarez Machado, que criou rótulos a partir do seu nome e de suas pinturas para essa linha exclusiva, entre outras.

Juntando a commodity à história do vinho, quando a própria identidade é colocada como parte integrante, ela se torna parte de uma herança cultural maior e se engaja em uma história separada de si mesma.

O capital cultural que é associado com aquela localidade, isto é, terroir nessa instância, é sustentável mesmo quando o produto é global em alta demanda. La Fors (2017) afirma que, nesses casos, um produto é mercantilizado para exportação global ao mesmo tempo em que o patrimônio local é utilizado para fins políticos, econômicos e culturais. Mesmo que o vinho seja classificado como uma commodity elitista, é apreciado por todas as classes sociais.

Diferentemente de outras commodities agrícolas como a soja, por exemplo, o vinho tem toda uma história que se inicia desde a classificação do tipo, marcando os principais terroirs, em vez de uma simples área agrícola. Só isso já bastaria para ver a influência que a sociedade coloca no fazer o “vinho” sendo mais do que uma commodity de consumo. A pergunta que nos fazemos é: que tipo de história queremos comunicar por meio do vinho?

O poder simbólico que damos ao vinho, atribuindo um status de elite a um produto proveniente da agricultura, é um fenômeno único. A proteção da terra, o significado dado ao lugar onde as uvas são produzidas é único para o vinho. Isso não se encontra em nenhuma outra commodity. Sem dúvida, é uma história interconectada, pois antes de mais nada, temos que olhar mais de perto o terroir para então entrar na história em si, pois sem o senso de lugar, não pode haver sentido de gosto. Conhecer o território onde os vinhedos estão localizados, a paisagem que os rodeia, o que existia antes naqueles espaços, são aspectos importantes a serem considerados para termos uma dimensão mais real da história do vinho de determinada região.

Uma paisagem idílica nas vinícolas, com seus parreirais emoldurando um cenário também gera conexões. Onde, no passado, havia uma floresta com araucárias, hoje as videiras são predominantes. Nas bordas do horizonte ainda temos as araucárias e uma região de campos. Essa imagem nos traz uma perfeita integração entre o cultivo humano e a natureza (Figura 2).

Figura 2:
2
Figura 2:

Paisagens Integradas

Fonte: Vinícola Suzin. Fotografia de Rubens Nodari. 15 fev.2017. Acervo LABIMHA.

Esse sentido de lugar, contudo, também pode ser construído culturalmente, como foi o caso dos “vinhos de altitude”. Demonstrando a importância da pesquisa, mas também apelando para o lado de uma commodity cultural e econômica, são apresentados os vinhos ali produzidos:

Degustar os melhores vinhos finos de altitude é mais um ótimo motivo para você visitar Santa Catarina. Após anos de investimentos e pesquisas, o estado conquistou um espaço merecido na produção de vinhos finos de qualidade. Aqui, o ambiente perfeito, uvas selecionadas e vinhedos localizados entre 900 e 1.400 metros acima do nível do mar, garantem um alto padrão de produção. O Vale do Contestado e a Serra são as duas grandes regiões produtoras, repletas de belezas naturais, onde o clima frio permite que as variedades de uva amadureçam de forma lenta e completa.

As excelentes condições geográficas, aliadas ao uso de modernas tecnologias e o trabalho de enólogos qualificados, resultou em espumantes, brancos, rosados, tintos e vinhos doces naturais, com características intensas e marcantes, próprias dos terrenos de altitude. A Rota dos Vinhos de altitude espera sua visita e oferece as belas paisagens catarinenses como acompanhamento perfeito para você degustar essa produção rica e variada. Uma produção que levou Santa Catarina a ocupar um lugar de destaque na vitivinicultura nacional. (http://www.vinhodealtitude.com.br/sobre)

A junção de uma bela paisagem com vinhos de qualidade, assim como a tentativa de mostrar o diferencial desses vinhos, desde os seus proprietários até as suas opções para o enoturismo, ajudam a entender, como se junta no marketing, uma commodity econômica e cultural. Segundo Flores, na obra que faz um diagnóstico do enoturismo brasileiro:

Novas áreas baseadas no conceito de altitude, paisagens e amor ao vinho, levam diferentes empresários de segmentos de sucesso (cerâmica, têxtil, fruticultura, madeira, metal mecânica, embalagens plásticas, entre outros) a entrar neste mercado, focados em altíssima qualidade. Grandes inversões, seja em vinícolas lindíssimas, ambiciosos projetos de marketing e posicionamento passam a acontecer, elevando a categoria do terroir catarinense como um dos mais promissores do país. Propõem vinhos considerados topo da pirâmide em preço e posicionamento, sem medir investimentos em qualidade. (2012)

O clima também é outro fator de atração para pessoas visitarem e se identificarem com a região e suas vinícolas, com os vinhos propícios a serem consumidos. Sob o título “Produção de vinhos de Santa Catarina tem safras promissoras em regiões da serra catarinense”, a repórter do jornal Diário Catarinense, descreve o lugar com termos elogiosos e como se observa a seguir:

Uma das mais frias regiões do Brasil é famosa internacionalmente pela alta qualidade dos seus vinhos. Nas cidades de São Joaquim e Lages, as condições climáticas e a altitude formam um conjunto perfeito para vinhos tintos minerais e longevos, roses bem estruturados, bem como brancos de muita personalidade. As uvas amadurecem lentamente, a colheita pode acontecer entre março e junho. Há até um vinho ao estilo IceWine, cujas uvas são colhidas parcialmente congeladas. (DIÁRIO CATARINENSE, 13 jun. 2012)

Em novembro de 2005, como forma de fortalecer as atividades vitivinícolas na região dos denominados Vinhos de Altitude, foi criada a Associação Catarinense dos Produtores dos Vinhos Finos de Altitude - ACAVITIS. Essa entidade abrange todo o estado e abrigava inicialmente 37 associados distribuídos pelos municípios que compreendem as regiões de São Joaquim (abrangidas pelas cidades de São Joaquim, Urupema, Urubici, Bom Retiro, Painel e Campo Belo do Sul), Campos Novos (abarcando as cidades de Campos Novos e Monte Carlo) e Caçador (incluindo as cidades de Caçador, Água Doce, Salto Veloso, Treze Tílias, Videira e Tangará). Juntos, cultivavam 279 hectares com uvas do tipo vitis vinifera (espécie de videira cultivada para produção de vinho na Europa) em altitude entre 900 a 1.400 metros (ACAVITIS, 2015). Para fazer parte do quadro de associados, o produtor precisa preencher três requisitos: produzir em Santa Catarina uvas do tipo vitis vinifera; produzir em altitude acima de 900 metros e; a produção máxima não pode exceder a 6 mil litros de vinho por hectare de uva plantada, além de produzir com rigoroso controle de qualidade, que inclui a proibição da adição de açúcar ao mosto, denominado como processo de chaptalização (ACAVITIS, 2015).

No dia 22 de julho de 2015, a denominação passou para “Vinho de altitude: produtores e associados”, ou simplesmente “Vinho de Altitude”. A associação, de acordo com o site, conta com 19 vinícolas associadas (http://www.vinhodealtitude.com.br/vinicolas).

Como no presente artigo não estamos discutindo as razões da formação de associações e, sim, estamos voltados às vinícolas que se enquadram no padrão dos “vinhos de altitude”, faremos uma rápida análise dos aspectos que consideramos importantes para conhecimento dos leitores e para a nossa pesquisa. Na Figura 3, temos a localização das vinícolas que estão sendo analisadas e suas respectivas localizações.

Figura 3:
3
Figura 3:

Vinícolas - “Vinhos de Altitude”

Fonte: ACAVITIS, EPAGRI. Elaborado por Ana Cristina Peron.

É praticamente impossível abordar o tema sem fazer uma análise de alguns dados das vinícolas, assim como de seus proprietários. Dessa forma, a partir de fontes diversificadas e da análise nos sites das vinícolas, conseguimos apurar dados para as presentes análises. Foram pesquisadas dez vinícolas localizadas no município de São Joaquim, sendo que nove delas iniciaram as suas atividades entre 2000 e 2008. As origens dos proprietários são diversas. A tradição de praticar a vinicultura anteriormente provém de três vinícolas cujos proprietários são de descendência italiana (Vinícola Suzin, Vinícola Bassetti e Vinícola Leone di Venezia). As demais pertencem a empresários e profissionais liberais (Villa Francioni, Quinta da Neve, Hiragami, SANJO, Vinícola Pericó, Vinhedos de Monte Agudo). Para ampliar o circuito da nossa pesquisa, foram incluídas mais quatro vinícolas de outros municípios (Figura 3). No município de Água Doce está localizada a Vinícola Villagio Grando, cujos proprietários são originários de Caçador, onde a família atuou também no ramo madeireiro. A vinícola é de porte médio, com início de atividades em 1998 e, atualmente, tem uma área de cultivo de uvas de 45 hectares. Em Videira, a Vinícola Santa Augusta, cujos proprietários, Família de Nardi, assim como os da Villagio Grando são de descendência italiana. Em Tangará, se localiza a Vinícola Panceri, mencionada anteriormente. Numa região mais distante, se localiza a Vinícola Abreu Garcia, estabelecida em 2006, no município de Campo Belo do Sul, com uma área de 10 hectares de uva. O seu proprietário, assim como outros já mencionados, não é do ramo da vitivinicultura. Isso não significa que o médico oftalmologista, Ernani Garcia, não tenha paixão pela vinicultura, como pode ser conferido na reportagem abaixo:

Sou filho de comerciante do interior de Biguaçu. Meu pai distribuía bebidas na região e sempre manifestei o desejo de além da Medicina, ter alguma atividade no campo. Iniciei com pecuária de corte, gado Hereford, e há 10 anos começamos com a vitivinicultura. Ou seja: carne nobre e vinhos finos – conta ele orgulhoso da produção. (DIÁRIO CATARINENSE, 17 jun. 2017)

Na análise de dados coletados, ficou evidente que, apesar da importância dos municípios como Campo Belo do Sul, Videira, Água Doce e Tangará, a maior concentração de vinícolas de Vinhos de Altitude se concentra em São Joaquim, com a maior área plantada com uvas viníferas em Santa Catarina. Os dados da sua produção podem ser observados no Gráfico 1. Em 2004, houve as primeiras colheitas nas vinícolas que já estavam estabelecidas e os dados se mantiverem estáveis até 2006. A partir de 2007, temos um crescimento das áreas plantadas, mas o maior incremento acontece em 2009: de 143 hectares plantados, passam a 196 hectares. Esse numero permanece estável até o ano de 2013, quando tem um pequeno acréscimo.


4
Fonte: IBGE, Produção Agrícola Municipal 2004-2016. Rio de Janeiro: IBGE.

Considerações finais

A região dos Vinhos de Altitude era tipicamente composta por pequenas e médias propriedades rurais, com produtos variados, onde a uva e a produção de vinhos eram alguns dos componentes. O que se observa desde o início do século XXI, é que essas paisagens foram alteradas e, atualmente, se encontram paisagens de monocultivo de uvas. Além disso, assim como em outras regiões de vinícolas do mundo, surgem lugares de degustação, pousadas, incentivando assim o enoturismo. Provavelmente, outras alterações irão ocorrer, se levarmos em conta as mudanças climáticas que estão acontecendo e que colocam a fruticultura, incluindo os vinhedos em clima temperado, em risco nos atuais locais de cultivo. Os parreirais, em clima temperado, dependem de períodos de frio nos meses de inverno para que haja a produção de uvas de qualidade para a produção de vinhos, dentro do padrão pretendido. A tecnologia nem sempre é suficiente quando são envolvidos aspectos relacionados à natureza, além do fato de que o vinho é um produto cultural que exige a intervenção humana em todo o processo.

Não podemos esquecer, também, que uma das características mais marcantes da agricultura industrial – monocultura – é onipresente na produção de uva, e seus benefícios e riscos não são diferentes de qualquer outro cultivo. Assim como acontece com todas as monoculturas, uma variedade de pragas e doenças pode atingir os vinhedos e a maioria dos produtores continua a achar o uso de agrotóxicos o método mais fácil e efetivo para controle.

No estudo que estamos realizando, observamos que ainda não temos grandes corporações da vitivinicultura de outros estados e países envolvidos, até o momento, na região dos “Vinhos de Altitude”, como acontece, por exemplo, no Rio Grande do Sul, onde as vinícolas acabaram perdendo a sua identidade inicial.

Agradecimentos - Eunice Nodari agradece ao CNPq pela Bolsa Produtividade em Pesquisa e auxílio financeiro ao projeto: Da terra à mesa: uma história ambiental da vitivinicultura nas Américas.

Referências

BLACK, Rachel; ULIN, Robert.(orgs.) Wine and Culture: vineyard to glass. London: Bloomsbury Academic, 2013.

CAMARGO, U.A. et al. Progressos na viticultura brasileira. Ver. Bras. Frutic., Jaboticabal – SP. Vol. Especial 144-149. Out. 2011.

DARNTON, Robert. 1986. The symbolic element in history. Journal of Modern History 58(1), 1986, 218-234. http://nrs.harvard.edu/urn-3:HUL.InstRepos:3403043

DIÁRIO CATARINENSE, 13 jun. 2012, 13 jun. 2016, 17 jun. 2017.

EPAGRI. Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina. Fruticultura Catarinense em Números- 2102-2013. Florianópolis, 2013.

FALCADE, Ivanira. A paisagem como representação espacial: a paisagem vitícola como símbolo das indicações de procedência de vinhos das regiões Vale dos Vinhedos, Pinto Bandeira e Monte Belo (Brasil). Tese de Doutorado em Geografia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2011.

FERREIRA, Valdiney C.; FERREIRA, Marieta de M. (coord.) Vinhos do Brasil: do passado para o futuro. Rio de Janeiro: FGV, 2016

FLORES, Maria Amélia Duarte. Diagnóstico do enoturismo brasileiro: um mercado de oportunidades. Brasília, DF : SEBRAE ; Bento Gonçalves, RS : IBRAVIN, 2012

GUILFORD, Jacquelyn M.; PEZZUTO John M. Wine and Health: A Review. American Journal of Enology and Viticulture. July 2011; DOI: 10.5344/ajev.2011.11013

LA FORS, Danielle. Class, classification and Classism: The Story of Wine. Master of Arts in Communication Thesis. California State University, 2017.

MARX, Naira. Relatório de Estágio Vinícola Panceri – safra 2010. Trabalho de Conclusão de Curso Superior. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul - Campus de Bento Gonçalves, 2010.

NODARI, Eunice Sueli. Entre florestas e parreirais: a vitivinicultura no Alto Vale do Rio do Peixe/SC. In: Gerhardt, Marcos; NODARI, Eunice Sueli; MORETTO, Samira Peruchi. (orgs.) História Ambiental e Migrações: Diálogos. São Leopoldo: Oikos; Chapecó: UFFS Ed., 2017.

PROTAS, J.F.S.; CAMARGO, U.A.; MELLO, L.M.R. A vitivinicultura brasileira: realidade e perspectivas. Bento Gonçalves: Embrapa-CNPUV, 2002, Artigos Técnicos. Disponível em: http://www.cnpuv.embrapa.br/publica/artigos/ vitivinicultura/

SAMPAIO, Gustavo Cristiano. Capital social e ações conjuntas: um estudo de caso no arranjo produtivo local de vinhos de altitude catarinense. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional - Universidade Tecnológica Federal do Paraná. v. Pato Branco, PR, 2016.

THORPE, Michael. The globalisation of the wine industry: new world, old world and China, China Agricultural Economic Review, 2009. Vol. 1 Issue: 3, pp.301-313,https://doi.org/10.1108/17561370910958873.

VALDUGA, Vander. O processo de desenvolvimento do enoturismo no Vale dos Vinhedos. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Turismo, Universidade de Caxias do Sul, 2007.

UNWIN, Tim. Wine and the Vine: an Historical Geography of Viticulture and the Wine Trade. London and New York: Routledge, 1996.

Notas

[1] Através de metáforas e duplos sentidos, protesta contra a repressão e a violência do regime militar. Foi escrita em 1973, mas devido à censura, foi liberada somente em 1978. Foi gravada por Chico Buarque de Holanda e Milton Nascimento. Nesta música, a sonoridade de “cálice” tem semelhança com “Cale-se”.
HMTL gerado a partir de XML JATS4R por