Resumo: Este artigo tem por objetivo geral discutir as relações entre imprensa e o golpe civil-militar de 1964. Nos últimos anos, pesquisadores investigaram as práticas e expedientes utilizados pela “grande imprensa” para desgastar a imagem do presidente Goulart, enfraquecer seu governo e pavimentar a chegada dos militares ao poder. Ao contrário, poucos estudos se ocuparam da posição editorial dos jornais produzidos na região Centro-Oeste do Brasil. Portanto, este artigo visa discutir o material jornalístico sobre João Goulart e seu governo veiculado pelo jornal O Estado de Mato Grosso entre agosto de 1961 e abril de 1964.
Palavras-chave:ImprensaImprensa, Golpe Civil-Militar de 1964 Golpe Civil-Militar de 1964, O Estado de Mato Grosso O Estado de Mato Grosso.
Abstract: This paper aims to discuss the relations between the press and the civil-military coup of 1964. In the last few years, researchers have investigated practices and expedients used by "the mainstream press" to erode the image of President Goulart, weaken his government and pave the military way to the power. On the other hand, few studies have dealt with the editorial position of newspapers produced in the Center-West region of Brazil. Therefore, this article aims to discuss the journalistic material produced about João Goulart and his government published by the newspaper O Estado de Mato Grosso between August 1961 and April 1964.
Keywords: Press, Civil-Military Coup of 1964, O Estado de Mato Grosso.
Artigos
João Goulart nas páginas d´O Estadode Mato Grosso (1961-1964)
João Goulart in the pages of O Estado de Mato Grosso (1961-1964)
Recepção: 18 Julho 2018
Aprovação: 12 Março 2019
De um salto no escuro, o Brasil o viu vice-Presidente da República pela 2ª vez. Um vice-presidente que não sabia manejar o garfo. [...] Esse grosso [...] viu-se Presidente da maior República da América Latina [...] Foi difícil sua posse [...] Falava, ele, na época em legalidade. Hoje, sua bandeira é vermelha, tal qual aquela bandeira que arde diariamente no topo do mastro do Kremilin (O ESTADO DE MATO GROSSO, 5 mar. 1964, p. 2).
Esse excerto é parte integrante do artigo intitulado “Jango e o jogo dos sete errinhos”, escrito pelo médico José de Araújo e publicado na coluna Política do jornal cuiabano O Estado de Mato Grosso. Além de questionar o processo que levou João Goulart à Presidência da República, colocar em xeque seus “modos” e ressaltar sua aproximação com o comunismo, o artefato jornalístico também possibilita construir a seguinte hipótese: a atuação da imprensa para desgastar a imagem do presidente e desestabilizar seu governo extrapola o campo de ação dos impressos de circulação nacional.
É inegável que a “grande imprensa”[1] atuou para derrubar Goulart, avalizou a intervenção militar e contribuiu “para configurar o notável apoio civil conferido ao Golpe de 1964” (MOTTA, 2013, p. 63)”.[2] À exceção do jornal Última Hora, de Samuel Wainer, periódicos tiveram participação relevante nos “acontecimentos que levaram ao golpe” e contribuíram de “maneira decisiva para a implantação da ditadura que dominaria o país por 21 anos” (DANTAS, 2014, p. 65). No enredo que culminou com a tomada do poder pelos militares, a imprensa foi “personagem político central no desenrolar da trama”, como fizera dez anos antes na crise política que culminou com o suicídio de Getúlio Vargas, à época presidente do país (BARBOSA, 2006, p. 226).[3]
A participação da mídia na queda do presidente Goulart tem sido frequentemente abordada em pesquisas acadêmicas. Já na década de 1980, Dreifuss (1987) demonstrou, dentre outras coisas, a operação midiática numa campanha ideológica multifacetada, coordenada pelo complexo Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad)/Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), visando “modelar as várias frações das classes dominantes e diferentes grupos sociais das classes médias em um movimento de opinião com objetivos a curto prazo amplamente compartilhados, qual seja, a destituição de João Goulart e a contenção da mobilização popular” (DREIFUSS, 1987, p. 232).
Nos últimos anos, ocorreu significativa ampliação do número de trabalhos acadêmicos acerca da atuação de jornais de circulação nacional no contexto do golpe civil-militar de 1964. São exemplos os estudos de Luiz Antonio Dias (1993), Marcio Santos Nascimento (2007), João Amado (2008), Cristiane Rodrigues Soares Almeida (2008), Aloysio Castelo de Carvalho (2010), Eduardo Zayat Chamas (2012), Larissa Cestari (2013) e Robson Leal Francisco (2014). [4]
O modo como a imprensa de circulação nacional retratou o governo Goulart também foi objeto de alguns trabalhos, como, por exemplo, os estudos de Fatima Cristina Gonçalves Campos (1996) e Renato Pereira da Silva (2015), além, é claro, do texto em que Eduardo Salgueiro (2011) discutiu o modo como a revista Brasil-Oeste pautou o tema da Reforma Agrária em princípios da década de 1960. Tem-se, ainda, outras importantes contribuições que abordaram o período do governo Jango (FERREIRA, 2006; BANDEIRA, 2010; MUNTEAL; VERTAPANE; FREIXAS, 2006) e o livro de Jorge Ferreira (2011), ocupado em desvelar a trajetória do político gaúcho.
Vale ressaltar que a relação entre a imprensa e o golpe de 1964, bem como seus desdobramentos nos primeiros anos da ditadura militar, foram temas analisados por Aquino (1999) e Motta (2013). Convém lembrar, por fim, que Beatriz Kushinir (2001) e Anne-Marie Smith (2000) examinaram a relação entre censura, censores e a produção jornalística.
Não obstante a qualidade das análises citadas, há ainda muito campo para pesquisa, como já ponderou Rodrigo Patto Sá Motta (2013, p. 64) ao acentuar que
há ainda poucas pesquisas sobre a grande imprensa durante o regime militar. Além disso, estudos dedicados aos grandes diários são menos numerosos do que as pesquisas sobre a imprensa alternativa, talvez mais atraente pelo charme de força de resistência à ditadura. Chama a atenção, também, a virtual inexistência de trabalhos que tentem dar conta, simultaneamente, do quadro carioca e paulista.
Um acréscimo pode ser feito às formulações do professor Rodrigo Patto Sá Motta: é menor o número de trabalhos se voltarmos nosso olhar aos jornais da região Centro-Oeste do Brasil que fizeram campanha contra Goulart, apoiaram o golpe civil-militar de 1964 e seus desdobramentos.[5]
Especificamente sobre a atuação da imprensa mato-grossense, pode-se elencar a dissertação na qual Leonice Maria Meira (2011) abordou o noticiário veiculado pelo jornal O Estado de Mato Grosso[6], entre 1964 e 1974, acerca dos reflexos da ditadura militar no estado. Meira analisou, igualmente, as relações entre os governantes estaduais e os governos militares no recorte temporal proposto. Pouco escrutinou, porém, a atuação do jornal no período anterior à chegada dos militares ao poder. Já Luciana de Freitas Gonçalves (2012) estudou as diversas práticas discursivas presentes nos jornais produzidos em Cáceres entre 1969 e 1984. A despeito do seu recorte temporal, tratou brevemente da posição de jornais mato-grossenses sobre o “perigo” da “infiltração comunista no Brasil” e a oposição que estabeleceram ao governo João Goulart.
Dois trabalhos de cunho monográfico discutiram a atuação da imprensa campo-grandense. Sabrina Rodrigues Marques (2014) se dedicou à retórica anticomunista do Jornal do Comércio (JC) no período imediatamente posterior a março de 1964. Contudo, pouco explorou a posição editorial do periódico durante o governo Goulart. Já Edvaldo Correa Sotana (2015) analisou o apoio d’O Matogrossense ao golpe civil-militar de 1964 e o material veiculado nos dois anos iniciais do regime militar.
Trabalhos de maior fôlego foram produzidos por Suzana Arakaki (2003, 2015). Em sua dissertação, discorreu sobre a imprensa e o golpe na região de Dourados, dando foco às representações e as experiências de alguns atores sociais ― colonos da Colônia Agrícola Nacional de Dourados (Cand) e de lideranças partidárias. Particularmente, investigou as representações veiculadas pelo jornal O Progresso, que notadamente visava desqualificar João Goulart, além de conferir apoio aos homens da caserna e as ações arbitrárias do regime de exceção (ARAKAKI, 2003). Para ela, a atuação de O Progresso foi semelhança à grande parte da imprensa brasileira, construindo “uma imagem negativa do presidente João Goulart junto aos leitores douradenses, ao associar suas Reformas de Base à formação de uma República sindicalista e comunista” (ARAKAKI, 2003, p.135).
Na sua tese, Arakaki (2015) deu prosseguimento aos estudos sobre o golpe de 1964 e a ditadura militar instaurada no Brasil. Procurou mapear as implicações nas cidades fronteiriças com a Bolívia e o Paraguai, especialmente as que possuíam unidades das Forças Armadas, sem descuidar dos desdobramentos em Campo Grande, Três Lagoas e Dourados. No último tópico, examinou o “apoio da imprensa e seu conluio com os golpistas, fazendo-se, por vezes, porta-voz destes” (ARAKAKI, 2015, p. 27). Sobre o período anterior ao golpe, expôs a utilização dos jornais pela Ação Democrática de Mato Grosso (Ademat) para propagar suas ideias, engendrando representações que associavam o “avanço do comunismo” ao presidente Goulart (ARAKARI, 2015, p. 132). Sugeriu que o Correio do Estado e O Progresso “acompanharam a grande imprensa nacional no combate ao governo” (ARAKAKI, 2015, p. 158). Com relação ao jornal O Estado de Mato Grosso, abordou mais suas publicações no período posterior, como, por exemplo, o noticiário de setembro de 1966 referente à existência de “grupos de guerrilha” na região da Serra da Bodoquena (ARAKAKI, 2015, p. 156).[7]
Há, certamente, campo de estudo para os interessados na atuação da imprensa de Mato Grosso no contexto do golpe civil-militar de 1964. Portanto, este artigo tem por objetivo central analisar as publicações sobre João Goulart veiculadas pelo jornal cuiabano O Estado de Mato Grosso no período compreendido entre agosto de 1961 e abril de 1964.
Com relação aos elementos teórico-metodológicos que conferem sustentação à proposta, importa sublinhar que os jornais operam no campo político, criam produtos e engendram representações do mundo social (BOURDIEU, 2000), atuando, assim, como “parte integrante do jogo político e da própria construção do acontecimento histórico” (ABREU, 1996, p. 9) ― o que fica patente no jogo de forças que culminou na deposição de Jango.
Como postulou Tânia Regina de Luca (2008, p. 138), é relevante pensar a dimensão física de um impresso. Mas também é preciso considerar que as condições materiais e técnicas correspondem a “contextos socioculturais específicos”; além da historicidade que confere forma ao suporte, seu conteúdo “não pode ser dissociado do lugar ocupado pela publicação na história da imprensa”. Identificar os responsáveis pela linha editorial, os colaboradores mais frequentes, os “textos programáticos”, as “ligações cotidianas com os diferentes poderes e interesses financeiros” constitui caminho fecundo para tomar os jornais como “fonte e objeto de pesquisa historiográfica” (DE LUCA, 2008, p. 141).
Parece fundamental, assim, que o pesquisador investigue as “inter-relações entre o mundo da comunicação social e as demais esferas sociais específicas que constituem a sociedade” (BUSETTO, 2008, p. 11). E, como alertou Áureo Busetto (2008, p. 19), a mídia não deve ser tomada “apenas como uma caixa de ressonância da vida política”, mas como agente social que “influencia e é influenciada pela estrutura e dinâmica da política”, posto que
disputa com os demais agentes do mundo político o poder de impor, ao mesmo tempo e de maneira simbólica, uma visão social de mundo particular como geral e de dividir e classificar o mundo social, sempre mediante ao oferecimento cotidiano de uma série de bens políticos ― como acontecimentos, fatos, problemas, diagnósticos, projetos, propostas e soluções da ordem do político.
Em 1939, Archimedes Pereira Lima fundou O Estado de Mato Grosso. Diretor da Imprensa Oficial do Estado, a partir de 1937, e chefe do Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda (Deip) durante o período da intervenção estadual de Júlio Müller no Estado Novo, utilizou o periódico como instrumento para propaganda favorável a Getúlio Vargas e ao regime (ADÃO, 2017). Apesar disso, desde sua primeira edição, foi publicado pela editora Cuiabá com o slogan: “Órgão Independente a Serviço de Mato Grosso”. Na passagem dos anos 1950 para os anos 1960, segundo Keren Marques (2018), apresentava-se como um periódico liberal. No início da década de 1960, ficou evidente sua postura anticomunista e a aproximação com Carlos Lacerda, à época governador da Guanabara, ferrenho opositor de João Goulart e postulante à Presidência da República.
Uma gama de diferentes expedientes foi mobilizada para conferir destaque a Carlos Lacerda, desde matérias sobre o governador da Guanabara como “favorável às Reformas” até descrições pormenorizadas do périplo do “Campeão da Democracia” por Cuiabá, Três Lagoas e Campo Grande, apresentando seu itinerário na capital do estado e registrando expectativa de “comparecimento recorde” no comício marcado para a Praça da República. Menos de um mês depois da visita, Lacerda foi homenageado por políticos locais e o jornal destacou a cerimônia na qual recebeu o título de cidadão mato-grossense (O ESTADO DE MATO GROSSO, 29 set., 14 nov. e 03 dez. 1963, p. 1). A saga do político por outras regiões foi acompanhada pelo periódico, como demonstra o registro da “consagração popular” que recebeu em Uruguaiana (O ESTADO DE MATO GROSSO, 25 jan. 1964, p. 1). Mas o ápice da exaltação foi uma série especial contendo onze reportagens, publicada em dezembro de 1963, sobre o governador udenista, sugestivamente intitulada “Lacerda: Ideias sim; Ideologia, não!” (O ESTADO DE MATO GROSSO, dez. 1963).
Porém, o jornal não cantou loas apenas a Lacerda. Outros políticos foram igualmente elogiados. É o caso, por exemplo, de Filinto Müller, chamado de “protetor dos Matogrossenses pobres”. (O ESTADO DE MATO GROSSO, 24 nov. 1963, p. 1). Desde o fim do Estado Novo, os Müller articularam a formação do Partido Social Democrático (PSD) em Mato Grosso (NEVES, 1988). Em 1962, Filinto Müller foi reeleito senador pelo partido.[8] Com precisão, Bittar (1999, p. 110-111) caracterizou os embates políticos e situou a polarização entre o PSD e a União Democrática Nacional (UDN) no Estado:
A UDN era forte no sul de Mato Grosso e conhecida como partido “dos grandes fazendeiros”, contrários a Vargas. Já o PSD (...) tinha grande inserção no centro-norte, mais propriamente em Cuiabá, e um perfil governista: o seu maior representante no estado, Filinto Muller, era o homem forte de Vargas. Em Mato Grosso as maiores expressões dos dois partidos eram Fernando Corrêa da Costa (UDN), duas vezes governador do estado, e Filinto Muller (PSD), o chefe político que foi tudo em Mato Grosso, exceto governador
Se, de um lado, O Estado de Mato se aproximava de Filinto Müller, de outro, fazia campanha para o udenista Carlos Lacerda. Desse modo, o periódico cuiabano não apresentava posição unívoca e exclusivamente lacerdista. Aliás, estudar o noticiário veiculado pelo jornal sobre Carlos Lacerda em contraposição a relação estabelecida, em esfera regional, com políticos pessedistas, pode resultar em instigante e profícuo problema de pesquisa.[9]
Outro ponto relevante é sua matriz anticomunista, posição que pode ser observada em diferentes matérias, tais como: “União Soviética estaria preparando Plano Subversivo contra América Latina”, “Trabalhadores cubanos desafiam Fidel Castro contra a fome” e “Ruralistas de Camapuã são contra a legalização do Partido Comunista” (O ESTADO DE MATO GROSSO, 21 jun. 1963, p. 3, 6 out. 1963, p. 1, 17 mar. 1964, p. 1). Pode ser tomado como exemplar o texto intitulado “Cuidado: ocupação do Brasil pelos comunistas”. Seu conteúdo é uma explícita tentativa de “acusar” o presidente de nomear comunistas para postos-chaves no seu governo. Enviada pela Agência Planalto, a reportagem frisou:
Vai adiantado o processo de asfixia da liberdade do Brasil, através da ação comunista. Empoleirados em postos-chaves do Governo, de empresas estatais, de institutos oficiais, etc, aos vermelhos só resta aguardar a palavra de ordem para tomar o Poder. Tem-se mesmo a impressão de que, se até agora o Sr. João Goulart ainda exerce as funções de Presidente da República, é porque ele ainda pode ser extremamente útil à consolidação das posições conquistadas pelo comunismo internacional em terra brasileira (O ESTADO DE MATO GROSSO, 6 out. 1963, p. 2).
Não obstante o teor do texto, publicar uma convocação da Legião Brasileira Anti-Comunista (LBAC), sediada na Rua Francisco Cruz, 110, Vila Mariana, em São Paulo, para os interessados em representar a entidade em qualquer cidade do território nacional, reforçava ainda mais a posição editorial do órgão cuiabano. Confiante na “formação moral, democrática e cristã do povo brasileiro” e disposta a repelir “qualquer regime exótico contra nossos princípios democráticos”, a Legião convidou “todos os bons patriarcas” a se inscreverem no seu quadro social,
mostrando, assim, seu protesto e repulsa contra os maus elementos que pretendem através de falsas argumentações e agitações em todos os setores da vida nacional, implantar o regime de terror, o regime comunista, em nossa Pátria. Somente através da união de todos os brasileiros essencialmente democratas é que poderemos impor os nossos direitos de um povo livre e levar o nosso grito de veemente protesto por todos os recantos do Brasil, no sentido de mantermos inarredável o nosso propósito de defendermos a qualquer preço os sagrados princípios democráticos da Constituição Brasileira (O ESTADO DE MATO GROSSO, 18 fev. 1964, p. 1).
Importa observar que, em fins de 1963, a empresa jornalística se situava na Rua 13 de junho, 218. Redação, administração e oficinas ficavam no mesmo endereço. Em princípios de 1960, Pedro Rocha Jucá assumiu o posto de redator-chefe do jornal, permanecendo no cargo por quase 25 anos. Em 1962, transformou-o “na primeira empresa jornalística mato-grossense” (JUCÁ, 2009, p. 191). Jucá também estava vinculado a outros meios de comunicação mato-grossenses, sendo responsável, por exemplo, pela “nova linha” noticiosa da Rádio Difusora Bom Jesus de Cuiabá. Classificado como “um dos pouquíssimos jornalistas profissionais” de Cuiabá, com registro no Ministério do Trabalho, Jucá apresentava o Repórter Impex, todas as manhãs, além de iniciar o programa Repórter Ipemat[10]. Seu trabalho era destaque no periódico: “Para que possamos sentir a importância do trabalho executado pelo Jucá na Emissora que melhor informa temos que levar em consideração os grandes ‘furos de reportagem’ como vem fazendo” (O ESTADO DE MATO GROSSO, 31 out. 1963, p. 1). Sua atuação foi reconhecida, em duas ocasiões, na Câmara de Vereadores de Cuiabá. Em 1961, o vereador Manoel Miraglia apresentou “voto de louvor ao jornalista Pedro Rocha Jucá por ser um dos diretores da Agência de Notícias Rexpress”. Em fevereiro de 1964, por iniciativa do vereador e jornalista Emanuel Ribeiro Duabian, a direção do jornal recebeu congratulações por dar “aos fatos da vida pública e política de Mato Grosso, o realce que os mesmos merecem”. E Jucá foi lembrado pelos “serviços valiosos” desempenhados como representante do jornal e por “honrar” as “tradições” do jornalismo cuiabano (O ESTADO DE MATO GROSSO, 13 fev. 1964, p. 1) ― reconhecimento obtido, muito provavelmente, na defesa dos interesses da região norte do estado, como o fez em matéria que exigia, de Goulart, recursos para a construção da rodovia entre a capital do estado e Campo Grande (O ESTADO DE MATO GROSSO, 7 nov. 1963, p. 1).
Com referência à organização administrativa, ensaiou incipiente divisão de tarefas em princípios de 1960, expressada na criação de seis editorias: José de Araújo, responsável pela editora de Política; Celso Barcelos, Sociedade; Pedro Silva, Esporte; P. R. Jucá, Local; Fernando Borges, Rádio; Nivaldo Figueiredo, Ensino. Já a oficina era comandada por Libânio Leite da Silva (O ESTADO DE MATO GROSSO, 5 mar. 1964, p. 2).
Em fevereiro de 1964, Jucá conduziu uma reforma gráfica do periódico, visando apresentar “uma página mais moderna” aos leitores, a partir dali com sete colunas separadas por linhas verticais. As modificações impactaram na distribuição de notícias, nos títulos e na composição das colunas (O ESTADO DE MATO GROSSO, 16 fev. 1964, p. 1). Notícias em manchete, coluna por ele assinada, passou a ser publicada com a primeira letra de cada parágrafo em tipo maior e negrito. Até a reforma gráfica do jornal, a coluna intitulada Notas ocupava o canto esquerdo da primeira página. Quase sempre com temáticas relacionadas ao estado, era composta de quatro ou cinco parágrafos, cada qual precedido de um curto título (O ESTADO DE MATO GROSSO, 17 jan. 1964). Já a coluna intitulada Política, assinada por José de Araújo, figurava na segunda página do periódico.[11] Com as modificações de 1964, Raio X passou a ser intitulada Sem censura, ora publicada na segunda página e ora na quarta. Notícias em Manchete passou a ser intitulada Fatos de Ontem (O ESTADO DE MATO GROSSO, 16 fev. 1964, p. 1). As colunas Horóscopo do Dia, Esportes, TEL...EX... e Fatos Policiais figuraram como novidades do jornal a partir de fevereiro de 1964.
Diferentes anúncios integravam o impresso em princípios de 1960, mas raramente estampavam sua página inicial. Daniel Farias era responsável por captar patrocinadores locais e a Empresa Reprenaes, com sedes no Rio de Janeiro e em São Paulo, coordenava a carteira de anunciantes nacionais (O ESTADO DE MATO GROSSO, 5 mar. 1964, p. 2). Kombi, Aero Willys, Riachuelo, Motoniveladora Caterpillar, Valmet tratores e o Banco Nacional de Minas Gerais são exemplos de anunciantes nacionais e apontavam para a vocação econômica da região (O ESTADO DE MATO GROSSO, 15 set. 1961, 1 jul. 1962, 17 fev. e 29 ago. 1963, 19 mar. 1964). A maioria das peças publicitárias, porém, remetia ao comércio local. São exemplos de anunciantes locais o “Bar Internacional”, a loja revendedora de aparelhos de rádio “José Haddad & Irmãos”, Presidente Hotel, Farmácia e Drogaria Cuiabá e Casa Miraglia, especializada em joias, relógios e ótica (O ESTADO DE MATO GROSSO, 15 set. 1961, 17 fev. e 26 maio 1963). Já os resultados da loteria estadual ocupavam quase uma página do jornal (O ESTADO DE MATO GROSSO, 14 jun. 1963). Os horários de exibições do Cine Bandeirantes e do Cinema São João foram diariamente divulgados, anúncios estes que, frequentemente, apareciam ao lado dos editais das Centrais Elétricas Matogrossenses S/A, da Companhia Telefônica Cuiabaná, da Faculdade de Direito de Cuiabá e da Associação Profissional dos Trabalhadores em Empresas Telefônicas do Estado de Mato Grosso (O ESTADO DE MATO GROSSO, 15 set. 1961, 06 mar. 1964). Comunicados do Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado e do Instituto Brasileiro do Café também eram recorrentes (O ESTADO DE MATO GROSSO, 3 mar. 1964). Ofertar serviços de médicos, laboratórios e dentistas era outro expediente rotineiro, tanto que, em 1963, o periódico lançou a sessão “Indicador profissional”, espaço reservado para médicos, dentistas, advogados, contadores e outros profissionais às quartas, sextas e domingos (O ESTADO DE MATO GROSSO, 21 jun. 1963, p. 3).
Além dos recursos obtidos com publicidade, a venda de exemplares ajudava a custear a produção do periódico, podendo ser adquiridos “na Livraria Santa Terezinha e na Banca de Jornais em frente ao Banco do Brasil” (O ESTADO DE MATO GROSSO, 27 out. 1963, p. 1). No período, seu preço sofreu significativos reajustes. Em setembro de 1961, o exemplar custava Cr$ 5,00 e, em dezembro de 1962, saía por Cr$ 10,00. Aos domingos era mais caro. Em fevereiro de 1964, a edição dominical custava Cr$ 20,00. Já assinaturas anuais, inclusive para moradores de outras regiões, eram possibilitadas pela postagem via aérea, ao custo de Cr$ 2.000,00 em 1962 e Cr$ 3.000,00 em março de 1963. Diga-se de passagem, desde a década de 1940, publicações periódicas nacionais passaram a chegar com regularidade ao estado em decorrência de uma linha regular de transportes aéreos (ADÃO, 2017) ― conexão que permitia passar em revista outras publicações. Em nota, o próprio jornal informou que a “revista mais procurada e mais bem vendida em Cuiabá foi a edição de ‘O Cruzeiro’ que publicou a crônica de David Nasser sobre a agressão que sofreu do Deputado Leonel Brizola” (O ESTADO DE MATO GROSSO, 21 jan. 1964, p. 1)[12]. Desse modo, não descuidava de outros meios de comunicação e tampouco da situação política nacional, como demonstra o material publicado sobre o governo João Goulart.
O Estado de Mato Grosso foi consultado na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional. No processo de pesquisa, optamos por investigar a produção do jornal, sua posição político-ideológica e o noticiário sobre João Goulart entre 25 de agosto de 1961 e 8 de abril de 1964. No decorrer do trabalho, os dados extraídos do material jornalístico foram registrados em fichas de leitura. Com relação ao procedimento, anotamos a data da edição, tipo de material (coluna, editorial, manchete ou reportagem), resumo do conteúdo, autor e página da publicação. No total, foram encontradas 184 matérias jornalísticas sobre João Goulart e seu governo. Desse montante, tem-se 115 manchetes de página inicial ou reportagens e 69 colunas. Com relação às colunas, verificamos que a temática foi mais debatida em 1964, com 42 ocorrências nos três primeiros meses. No ano anterior, 26 colunas se referiram a Jango e apenas uma foi publicada em 1962. Notícias sem manchete, TEL... EX..., Política e MEGATOON foram os espaços que mais trataram do tema, com 23, 14, 12 e 9 ocasiões, respectivamente.
No que diz respeito ao conteúdo do conjunto documental, foi possível observar quais assuntos foram relacionados ao presidente e ao seu governo. Com base no material copilado, organizamos a tabela 1.
Material sobre João Goulart no jornal O Estado de Mato Grosso
Fonte: O Estado de Mato Grosso (agosto de 1961 a abril de 1964)Para além dos dados, interessa-nos apresentar a postura do jornal nos primeiros meses da administração Goulart. Em outubro de 1961, o articulista Dolor de Andrade registrou a situação política decorrente da renúncia do presidente Jânio Quadros, o papel do primeiro-ministro no parlamentarismo brasileiro e o comportamento do recém-empossado:
É um vulcão em efervescência na disputa de cargos, de reivindicações partidárias de recursos financeiros, de indagações parlamentares [...] que deixam a pessoa do primeiro-Ministro em série de dificuldades, sem tempo de raciocinar ou estudar os problemas [...] E o próprio presidente João Goulart quem apela para a paz política, por que sem ela se torna difícil a paz social (O ESTADO DE MATO GROSSO, 27 out. 1961, p. 1, grifos nossos).
Embora tenha destacado a “luta incessante e total do presidente contra o Parlamentarismo” (O ESTADO DE MATO GROSSO, 6 jul. 1962, p. 1 e 4), o jornal estampou na capa uma manchete elogiosa a Jango por aceitar “todas as restrições que lhe foram impostas para assumir o governo. Assim fez e assim venceu. Homem obstinado que forjou seu caráter nas lutas diárias [...]” (O ESTADO DE MATO GROSSO, 3 dez. 1962, p. 1).
No entanto, a posição da publicação mato-grossense começou a modificar-se com a realização do plebiscito. Em janeiro de 1963, foi dirigida uma consulta à população com a seguinte pergunta: “Apoia o Ato Adicional que instituiu o parlamentarismo?” Os eleitores que apoiavam o retorno do presidencialismo deveriam assinalar NÃO. Alguns jornais fizeram campanha em favor do presidencialismo. Dentre eles, O Globo e Correio da Manhã. Já O Estado de S. Paulo foi veementemente contrário (FERREIRA; GOMES, 2014, p. 127-8). Por sua vez, o impresso mato-grossense expressou a posição da União Democrática Nacional (UDN) e publicou o slogan: “Por você, por seus filhos, pela Pátria, Vote Não!” (O ESTADO DE MATO GROSSO, 11 dez. 1962, p. 1 e 4). Contudo, em primeira página, reproduziu texto enviado pela sucursal do Rio de Janeiro que apresentava João Goulart contando vitória antes da hora, por tratar da composição ministerial e das emendas constitucionais antes mesmo de conhecer o resultado final do plebiscito, numa “atitude”, segundo a publicação, “tipicamente ditatorial”. Intitulada “Nova crise paira sobre a Nação”, a matéria especulou, igualmente, as consequências do retorno ao presidencialismo:
[o presidente] pretende desencadear nova crise sobre a Nação a fim de que possa sair mais fortalecido para a formação da sua desejada República Sindicalista. Por outro lado, caso haja uma volta imediata ao Presidencialismo, antes do prazo constitucional, uma guerra civil abalará os alicerces democráticos do país, arruinando-o ainda mais tanto política quanto financeiramente. (O ESTADO DE MATO GROSSO, 8 jan. 1963, p. 1, grifos do autor).
Para Alzira Alves de Abreu (2006, p. 108), a imprensa de circulação nacional apoiou o plebiscito, somente começando “a se distanciar do governo Goulart e a apresentar como solução para a crise política o impeachment do presidente e sua substituição dentro da legalidade” após a Revolta dos Sargentos, em setembro de 1963. A despeito da periodização apresentada pela pesquisadora, o Estado de Mato Grosso já veiculava posição contrária a João Goulart à época do plebiscito, embora tenha seguido orientação da UDN e feito campanha favorável ao presidencialismo.[13]
Além dos atos administrativos, outro tema foi mais noticiado pelo periódico. Desde fevereiro de 1963, 23 peças jornalísticas se referiam a Jango e às Reformas de Base[14], sendo que em 13 ocasiões o jornal abordou especificamente a posição e as ações do presidente sobre a Reforma Agrária. Em março de 1963, o presidente enviou mensagem ao Congresso Nacional com a proposta de Reforma Agrária. Dois meses depois, o projeto foi rejeitado pela Comissão Parlamentar. Realizar uma reforma ministerial, abrindo mais espaço para o Partido Social Democrático (PSD), foi o recurso utilizado para aproximar-se do Congresso e “avançar na questão da reforma agrária” (FERREIRA; GOMES, 2014, p. 169). Contudo, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) reagiu ao plano apresentado pelo PSD. Em outubro, foi a vez de o projeto petebista ser derrotado no Congresso. Segundo Ferreira e Gomes (2014, p. 175), “um resultado terrível para o futuro do governo”, pois, “sem conseguir controlar a inflação e sem aprovar a reforma agrária, Jango começou a sofrer ataques das direitas e das esquerdas. A partir de setembro de 1963, seu governo perdeu o rumo”.
A sátira foi recurso usual no tratamento da temática. Por exemplo, matéria originalmente publicada no Correio da Manhã e veiculada pelo jornal cuiabano sugeriu o pontapé inicial da Reforma Agrária com Jango vendendo antigas propriedades para comprar novas (O ESTADO DE MATO GROSSO, 17 fev. 1963, p. 4). Na coluna intitulada MEGATOON: Uma Sessão que é uma BOMBA[15], o colunista questionou: “― Quando será feita a Reforma Agrária? ― Depois que Jango e Brizolla venderem as suas Fazendas”. Quase três semanas depois, anotou a viagem de João Goulart a Roma antes de realizar a reforma agrária: “Ele acende uma VELA à DEUS e outra ao DIABO”. E sentenciou: “Sabemos que JANGO vai iniciar uma grande reforma agrária em Roma. Vai propor venda de uma de suas FAZENDAS, que não são poucas, ao presidente italiano Antonio Segni” (O ESTADO DE MATO GROSSO, 6 e 26 jun. 1963, p. 4).
Apresentar Goulart como um abastado fazendeiro também foi expediente usual do jornal. Sete das treze matérias que trataram das visitas presidenciais a Mato Grosso remetiam à estada de Jango em suas fazendas. Consta na coluna MEAGATOON: “O bom de Jango comprar fazendas é que ele vai construir estradas para valorizar suas terras em Mato Grosso” (O ESTADO DE MATO GROSSO, 26 jul. 1963, p. 4). Inclusive, foi objeto a aquisição de novas áreas no estado, com Jango comprando mais uma fazenda para ligar outras duas propriedades suas. Localizada no Pantanal, seu preço foi estipulado em 1 bilhão e 800 milhões de cruzeiros, formando uma “enorme estância [...] possivelmente a maior área sob o domínio de apenas um proprietário no Estado”. O jornal ainda especulou que, afora a nova propriedade, Jango manteria a fazenda Três Marias, situada em outra região e com “enorme extensão” (O ESTADO DE MATO GROSSO, 11 mar. 1964, p. 1). Cabe registrar que uma nota anterior havia insinuado que o presidente utilizava “aviões da FAB [Força Aérea Brasileira] para transportar, de suas fazendas do Rio Grande do Sul até as suas de Mato Grosso, grande quantidade de gado, carneiros e cavalos” (O ESTADO DE MATO GROSSO, 17 jan. 1964, p. 1).
Paralelamente, o jornal veiculava a posição das “classes produtoras”. Sem fornecer dados precisos, informou que integrantes dessas classes se encontraram com o presidente para “fazer denúncias a respeito de atividades subversivas empreendidas no país” e comunicar a decisão de paralisarem “todas as suas atividades” caso o governo não desse “garantias contra os agitadores comunistas” e combatesse “as investidas contra a democracia”. De acordo com o jornal, “denunciaram a ação do governador Miguel Arraes que aparece em comício ao lado do comunista Gregório Bezerra e concita os camponeses a realizarem a reforma agraria ‘NA MARRA’” (O ESTADO DE MATO GROSSO, 22 out. 1963, p. 1).
No mês seguinte, veiculou reportagem especulando sobre nova linha política do presidente. Com base numa entrevista concedida por Goulart a uma revista carioca, a publicação ressaltou que a tática do presidente consistiria, a partir daquele momento, em “criticar severamente o Congresso Nacional pela não aprovação das reformas, notadamente a agrária, cuja fórmula petebista nunca se coadunará com a do PSD”. A mesma fonte alimentou a discussão na coluna Notícias em manchete (O ESTADO DE MATO GROSSO, 22 nov. 1963, p. 1 e 4). Dois dias depois, o jornal estampou a manchete: “Brasil Bate Record Mundial de Inflação” (O ESTADO DE MATO GROSSO, 24 nov. 1963, p. 1).
Em fevereiro de 1964, o jornal subiu o tom de críticas. Novamente, destacou a posição das classes produtoras ― agora denominando-as “classes conservadoras” ― frente às ações do presidente. O texto enviado pelo correspondente de Campo Grande informou sobre uma reunião de produtores, pecuaristas e proprietários de imóveis para combater a “desordem oficial e o sistema posto em prática pelo Presidente da República e pelos órgãos que lhe são subordinados”. Eram objetivos do grupo fazer oposição aos que “inquietavam o país” ― “SUPRA, PUA e CGT”[16] ―, segundo o texto, e firmar um “protocolo de ação contra a intervenção do Estado na iniciativa privada” com vistas a estabelecer “a paz capaz de dar ao homem que trabalha e produz a tranquilidade e as garantias contidas em nossa constituição” (O ESTADO DE MATO GROSSO, 23 fev. 1964, p. 1).
Outros expedientes foram utilizados pelo jornal para atacar Goulart. De acordo com a publicação, Jango orientou o PTB a pautar a legalização do Partido Comunista após o recesso de Carnaval ― posição repudiada pelo PSD e pela UDN, agremiações que se mostravam contrárias à “instalação de partidos totalitários no país”. Mostrar que não era possível confiar no presidente foi outra estratégia. “Jango Não Cumpre Sua Palavra” foi título de matéria acerca do adiamento de publicação do Decreto referente ao novo salário mínimo (O ESTADO DE MATO GROSSO, 6 e 13 fev. 1964, p. 1). Ainda em fevereiro, o jornal recorreu a entrevista do deputado Bilac Pinto, presidente da UDN, para “denunciar” supostas manobras do presidente: “revelar os propósitos golpistas de João Goulart, sobre quem pesa a grave acusação de armar milícias com o objetivo de se perpetuar no poder” (O ESTADO DE MATO GROSSO , 20 e 21 fev. 1964, p. 2). Enfim, o jornal construiu um enredo que aproximava Jango dos comunistas e do comunismo, além de lançar suspeição sobre sua palavra e salientar sua intenção de perpetuar-se no poder.
Em princípios de março, a publicação da série intitulada “Jango e o jogo dos sete errinhos”, em quatro edições, na coluna Política, não deixava mais dúvidas sobre a posição do periódico. Nos textos, José de Araújo criticou a trajetória de Goulart, apresentando-o como um político que, desde o governo Kubistchek, “manobrava a massa dos trabalhadores, gritava, unia os estudantes e namorava as forças de esquerda”. Também alvejou sua relação com Getúlio Vargas, acusando-o de explorar politicamente o suicídio do padrinho gaúcho: “explorou o seu cadáver em todas as praças públicas do País. Do seu mestre, um grande brasileiro, nada herdou, a não ser a megalomania. Jamais passou de aprendiz de feiticeiro. Mau aprendiz, por sinal. Nota zero” (O ESTADO DE MATO GROSSO, 1 mar. 1964, p. 2).
Outrossim, a reprimenda de Araújo abordou o modo como Jango assumiu a Presidência da República, a campanha do plebiscito que culminou no retorno do presidencialismo e a escolha dos ministros, rotulados, pelo articulista, como a maioria sendo “comunistas, cripto ou fili-comunistas” (O ESTADO DE MATO GROSSO, 4 e 5 mar. 1964, p. 2).
Duas imagens sobressaem na série. A primeira do presidente próximo do comunismo e dos comunistas. Segundo o articulista, no “embalo das reformas de base”, Jango “esquecia-se que o povo gritava de fome, que o cruzeiro aviltava. Entretanto, o pior, os comunistas viriam mais tarde” (O ESTADO DE MATO GROSSO, 4 mar. 1964, p. 2). Outra imagem delineava o presidente como agitador, posto que
ameaçava, rugia, balia, e sua claque acirrava os ânimos e a agitação continuava. Destino trágico do presidente. Sempre agitando. De greves o assunto passou a grave. Era necessário inventar uma panaceia capaz de servir de pano de boca para mais um ato do drama brasileiro (O ESTADO DE MATO GROSSO, 5 mar. 1964, p. 2).
Araújo salientou, por fim, que a administração Jango havia provocado o “maior estrangulamento” da história do país, pois: “Da república (sonhada) sindicalista ao estado atual das coisas o Brasil é que sofreu o maior impacto” (O ESTADO DE MATO GROSSO, 6 mar. 1964, p. 2).
Alguns dias depois, o jornalista assinou “O JOGO DOS MIL ERRÕES DE JANGO”. Veiculado com título em caixa alta na sua coluna Política, Araújo agradeceu a repercussão positiva obtida, segundo ele, pelos textos críticos a Goulart. Assegurou ter recebido cartas e telegramas, dos quais destacou trecho da missiva enviada por José Paulo Pereira Passos. Mesmo acreditando ser pseudônimo, sublinhou o conteúdo da correspondência: “seu artigo sobre o inefável Goulart deveria ter sequência e chegar aos mil errinhos. São tantos e tão conhecidos que não seriam errinhos e sim enormes errões”. E concluiu: “A juventude de Mato Grosso deveria ter os seus ‘sete errinhos’ como leitura de cabeceira. Só assim aprenderiam eles, o princípio do fim da democracia” (O ESTADO DE MATO GROSSO, 10 mar. 1964, p. 2).
O Comício da Central do Brasil foi outro capítulo do ataque impresso a Goulart. Os preparativos para sua realização foram acompanhados pelo jornal (O ESTADO DE MATO GROSSO, 14 fev. 1964, p. 1). Por um lado, demonstrou que Lacerda tentava proibir a realização de comício organizado “por líderes sindicais” (O ESTADO DE MATO GROSSO, 27 fev. 1964, p. 6). Por outro lado, informou que faltou público, em Cuiabá, para a tentativa de manifestação em Cadeia com Comício da Central do Brasil (O ESTADO DE MATO GROSSO, 15 mar. 1964, p. 1).
Planejado e organizado por sindicalistas de filiação comunista ou trabalhista, tendo a CGT à frente, o comício da Central do Brasil ficou conhecido como Comício das Reformas. Apesar do esforço de Carlos Lacerda para esvaziar a atividade, decretando ponto facultativo para o funcionalismo público e atacando a ação dos militares para garantir a segurança do evento, aproximadamente 200 mil pessoas compareceram no horário marcado em 13 de março. Após diversos oradores, Goulart se pronunciou. Defendeu abertamente a necessidade de rever a Constituição e de fazer as reformas de base, “imprescindíveis”, segundo ele, para “uma nova redistribuição de poder e de renda”. Também anunciou dois decretos: de encampação das refinarias particulares e de reforma urbana. Ademais, comprometeu-se a enviar mensagem para o Congresso, estabelecendo a regulamentação de aluguéis de imóveis urbanos e rurais (FERREIRA; GOMES, 2014, p. 265). Para Ferreira e Gomes (2014, p. 275), é possível constatar o alinhamento da imprensa na cobertura:
Comuns, em diversos jornais, eram as referências negativas à convocação do Exército para garantir um comício. Os oradores também foram criticados, inclusive João Goulart. Mas o alvo maior foi Leonel Brizola e suas propostas de fechar o Congresso Nacional e realizar um plebiscito para a convocação da Assembleia Nacional Constituinte.
Em O Estado de Mato Grosso, o articulista da coluna TE...LEX... garantiu: Jango “fará, a qualquer custo, ‘as reformas que o povo está exigindo’” (O ESTADO DE MATO GROSSO, 20 mar. 1964, p. 4). De maneira mais detalhada, o comício foi abordado na coluna Política. Afora criticar os pronunciamentos de Doutel de Andrade, líder do PTB, e Miguel Arraes, quem, segundo o texto, possuía “ideias importadas da Rússia”, José de Araújo salientou: “Quase morremos de rir ouvindo o comício ambulante da última 6ª feira. Não pelo comício propriamente, mas pelas besteiras ‘uivadas’ aos ouvidos de todo o Brasil num acidente quase que as instituições e ao próprio povo”. E assim prosseguiu:
O resto do “comicho” foi triste e trágico. Os espiroquetes e inconsequentes disseram tudo o que quiseram. Tudo no mesmo diapasão. Palavras e fraseologias conhecidas demonstrando que o que querem mesmo é agitar, agitando sempre. Parecem aquelas bulas de remédio que mandam agitar antes de usar. Entre os espiroquetes mais notórios estiveram presentes os senhores Leonel Brizola e João Belchior Marques Goulart (O ESTADO DE MATO GROSSO, 15 mar. 1964, p. 1).
Dois movimentos foram realizados pelo periódico na sequência. Primeiro, informou que a UDN acenava com a possibilidade de entrar com pedido de impeachment de Goulart, atitude que, segundo Araújo, faria o Brasil pegar “fogo nesta última semana da quaresma” ― constatação que o levou a indagar: “Será o início da Revolução?” (O ESTADO DE MATO GROSSO, 17 mar. 1964, p. 2). Outro recurso foi utilizado para decretar o fim do governo. Na matéria intitulada “Derzi: Jango perdeu a Autoridade de Falar em nome de TODOS os brasileiros”, o impresso reproduziu o pronunciamento no qual o deputado federal Rachid Saldanha Derzi, médico, com carreira política na região de Ponta-Porã e à época filiado à UDN, avaliou a conjuntura como das “mais graves para a política brasileira e para a democracia”, pois, segundo seu comentário, Goulart “descambou” para “anarquia”, “agitação” e “inquietação”. Como solução, propôs a “união de todos os democratas do país” para evitar “sérios prejuízos para o desenvolvimento nacional”. E conclamou “todos os brasileiros para que esqueçamos todas as siglas partidárias e todos juntos defendemos o Brasil verdadeiramente democrático” (O ESTADO DE MATO GROSSO, 24 mar. 1964, p. 1).
Após 1º de abril de 1964, o nome João Goulart praticamente desapareceu do periódico. Não obstante, o termo “Revolução” passou a ser utilizado para tratar da derrubada do presidente e do regime militar iniciado (O ESTADO DE MATO GROSSO, 11 jun. 1964, p. 2), como “profeticamente” indagou José de Araújo dias antes do desfecho do golpe. Ainda nos primeiros dias de abril, Pedro R. Jucá publicou reportagem para tratar da participação de “Mato Grosso” no “esquema” dos governadores para derrubar Goulart (O ESTADO DE MATO GROSSO, 8 abr. 1964, p. 2). Não raro, o periódico celebrou o acontecimento: “Brasil Inteiro Comemora Hoje o Aniversário da Revolução” (O ESTADO DE MATO GROSSO, 31 mar. 1965, p. 1). Enfim, a atuação do periódico durante o regime militar, investigando o noticiário acerca dos anos Castelo Branco e, principalmente, o período após a intensificação da censura com a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), constitui, certamente, tema para pesquisas futuras.
A atuação da mídia no cenário político é tema bastante atual e pode ser observada nos acontecimentos que fragilizaram o segundo mandato presidencial de Dilma Rousseff. As posições editoriais de jornais, emissoras de rádio e de televisão contribuíram para a derrubada da presidenta eleita em 2014 com quase 55 milhões de votos. Situação semelhante foi vivenciada em outra conjuntura. Em 1961, o parlamentarismo foi acionado para viabilizar a posse de João Goulart. Transcorrido pouco mais de um ano, a população avalizou o retorno do presidencialismo e conferiu força ao mandatário. Contudo, diversificados agentes sociais trabalharam para enfraquecer seu governo. Com raras exceções, a “grande imprensa” criticou a proposta de reformas de base, procurou desacreditar a palavra do presidente e rotulá-lo de comunista. De um lado, opôs-se ao Comício na Central do Brasil e, de outro, apoiou a Marcha da família, com Deus e pela Liberdade. Inegavelmente, teve papel ativo na queda de Jango e na instituição do regime militar.
Contudo, tal posição editorial não foi costurada apenas pela “grande imprensa”, como procurou demonstrar a pesquisa realizada com o jornal O Estado de Mato Grosso. Entre agosto de 1961 e abril de 1964, o periódico veiculou 184 manchetes, reportagens e colunas assinadas sobre João Goulart e seu governo. Num quadro geral, publicou textos sobre os atos e a rotina administrativa, a relação do presidente com seus ministros, com partidos e seus filiados, apontando, principalmente, para o contato com políticos mato-grossenses e para o seu relacionamento com Leonel Brizola, Miguel Arraes e Juscelino Kubistchek.
Já outros assuntos foram abertamente criticados pelo periódico. Pelo menos metade do material publicado tratou dos seguintes temas: reformas de base, especialmente da Reforma Agrária; visitas de Jango a Mato Grosso, particularmente às suas fazendas; o Comício da Central do Brasil; os preparativos para a eleição de 1965; sua posição frente à revolta dos sargentos; o especulado apoio à legalização do Partido Comunista Brasileiro (PCB). João Goulart foi, inclusive, classificado como responsável por crises e articulador da república sindicalista no Brasil. De certa forma, a defesa dos interesses das “classes produtoras” e o anticomunismo do jornal podem ajudar a entender a posição editorial impressa.
Mais do que os dados quantitativos, o material empírico permitiu entrar em contato com os signos e símbolos utilizados para criticar, fragilizar e enfraquecer o mandatário e um projeto de país. Expressões como “manobrar os trabalhadores” e “agitar” integravam a pauta jornalística. Jango também foi chamado de “espiroquete” e “inconsequente”, causador de “desordem” e algoz da democracia, adjetivos diversos daqueles costumeiramente atribuídos a Carlos Lacerda ou a Filinto Müller. Em princípios de 1964, a posição do jornal estava clara. Com a série “Jango e o jogo dos sete errinhos”, não restou espaço para dúvidas. Portanto, o periódico cuiabano selecionou, recortou, editou, construiu e estampou noticiário que contribuiu para o desfecho do golpe civil-militar de 1964.
Num próximo estudo, faz-se necessário aprofundar o escopo de investigação tendo em vista produzir um painel ainda mais amplo sobre a relação do periódico com a política e com os políticos, voltando-se tanto para os agentes que participavam do jogo político nacional quanto aqueles que atuavam na escala local.
Por último, parece estratégia relevante comparar sua posição com a posição veiculada por outros jornais produzidos no estado e na região Centro-Oeste, além, é claro, de apontar semelhanças e diferenças para o noticiário publicado na “grande imprensa”, bem como possíveis conexões na construção da pauta jornalística ― tarefa para os interessados em escrutinar as relações entre mídia e política no Brasil contemporâneo. Afinal, tanto lá quanto cá tivemos um(a) presidente(a) apeado(a) do poder com a participação ativa dos meios de comunicação.
Material sobre João Goulart no jornal O Estado de Mato Grosso
Fonte: O Estado de Mato Grosso (agosto de 1961 a abril de 1964)