Debates
Agradecimento
O texto contou com a colaboração ativa da Profa. Dra. Eunice Nodari (UFSC) e dos graduandos Iesmy Elisa Gomes Mifarreg (UNIVALE) e Clara Raiza Leal Souza (UNIVALE), integrantes do projeto de pesquisa "Território da Mineração: circunstâncias históricas, espaciais e socioterritoriais dos desastres", resultado da parceria entre a Universidade Vale do Rio Doce e a Universidade Federal de Santa Catarina.
Este trabalho tem vínculo com projeto que conta com o apoio financeiro e bolsa da FAPEMIG: APQ-00525-16 e UNIVALE: SHA 048910-17.
História Ambiental dos Desastres: uma agenda necessária
A História Ambiental oferece múltiplas possibilidades de pesquisa, com variadas opções interdisciplinares e usos de diferentes tipos de fontes, desde as tradicionais (documentos escritos e iconográficos) à observação da paisagem. A História Ambiental nasceu com compromissos políticos fortes e com a disposição de aprofundar a nossa compreensão de como os seres humanos foram afetados pelo seu ambiente natural e, reciprocamente, como eles afetaram o ambiente e, com que resultados (WORSTER, 1991). O enfoque dos historiadores ambientais pode variar da visão trágica à uma narrativa otimista sobre o passado e em relação ao presente e futuro, conformando diferentes enredos que escolhem seguir (CRONON, 1992).
As narrativas trágicas de grandes desastres naturais sempre estiveram presentes na historiografia, como a Peste Negra do século XIV, mas a História Ambiental trouxe para a agenda os impactos da atividade econômicas no ambiente ou para a vida humana, tais como poluição, ameaça nuclear e vazamentos industriais. Entretanto, na pauta da História Ambiental, os desastres ocupam pequeno espaço, como se constata no artigo de Drummod (1991), no qual a única menção se refere a obra de Donald Worster, de 1982, sobre as gigantescas tempestades de poeira nas planícies centrais dos EUA, na década de 1930, conhecidas como Dust Bowl. Mais recentemente, a História Ambiental colocou na agenda o debate sobre a era geológica do Antropoceno (ELLIS, 2010). Como nos lembra Pádua (2015), essa nova era geológica resultada do “conflito coletivo da humanidade com o planeta”, iniciado nos primórdios da Revolução Industrial, mas que teria entrado na sua segunda fase depois da Segunda Guerra Mundial, quando se deu a “grande aceleração”. A mudança climática ganha crescente destaque na agenda da História Ambiental, com muitos trabalhos sobre inundações que atingem as cidades.
A História Ambiental deve debruçar sobre o tempo presente e incluir na sua pauta a temática dos desastres socioambientais, ou seja, sobre os desastres provocados pela atividade humana. Mais do que incluir na pauta a temática dos desastres da era da “grande aceleração”, precisa revisitar a historiografia pós-Revolução Industrial, pois essa temática foi negligenciada, além de não ter participado da formação dos historiadores e professores de história. Nos últimos 100 anos, apesar dos avanços na ciência da história, essa não deixou de ser tributária da ideia de progresso, dominante no século XIX. Os historiadores centrados na ideia de desenvolvimento, transformação, mudança, revolução e surgimento do novo, não deram muita atenção àquilo que deu errado e provocou desastres.
Uma história dos desastres causados pela disrupção dos sistemas sociotécnicos associados a sistemas naturais ainda está para surgir e se institucionalizar. Os desastres provocados pelo complexo minerário na bacia do rio Doce e na bacia do rio Paraopeba (afluente do rio São Francisco) não foram eventos excepcionais. Na Colúmbia Britânica, província do Canadá, em agosto de 2014, ocorreu o rompimento da barragem de rejeitos do complexo minerário pertencente à Imperial Metals Corporation, causando o “desastre de Mount Polley” (MARSHALL, 2018). Quase 35 anos antes de Brumadinho, no dia 19 de julho de 1985, a barragem da Prealpi Mineraria se rompeu, provocando a morte de 268 pessoas da comunidade de Stava, que ficava abaixo da represa, além de devastar a bacia do rio do mesmo nome, na província de Trento, na Itália (TOSATTI, 2007). O desastre de Val di Stava tem muita semelhança com o de Brumadinho, não somente pela forma que a barragem se rompeu, como pela rapidez com que devastou o povoado, hotéis e propriedades, matando habitantes locais e turistas. A particularidade do desastre da Vale foi envolver estruturas da empresa e a morte de trabalhadores, no que é reconhecido como maior “acidente de trabalho” ocorrido no Brasil.
O desastre da Vale, em Brumadinho, Minas Gerais, teve uma grande repercussão na imprensa, tanto nacional como internacional. Do dia do ocorrido, 25 de janeiro de 2019, até o dia 25 de fevereiro, foram vários espaços ocupados nos veículos de comunicação, seja por meio de notícias, reportagens especiais, artigos de opinião, crônicas, charges, entrevistas, palavra do leitor, entre outros. O levantamento de questões pela imprensa foi feito sob um amplo espectro de perspectivas e teve fortes comoções, sobretudo em razão das mortes e desaparecidos. Nesse primeiro mês, o jornal The New York Times teve 16 publicações sobre o desastre da Vale; o jornal francês Le Monde publicou 11 matérias; na Inglaterra, a British Broadcasting Corporation - BBC publicou 24 matérias; e o jornal El País publicou, na Espanha, 16 matérias sobre o desastre da Vale. No Brasil, a BBC publicou 60 e o El País, 61 matérias.
A imprensa nacional, por meio dos veículos de comunicação (TV, rádio e jornais), deu ampla cobertura diária, acompanhando e noticiando em tempo real, por meio das páginas na internet. Para ilustrar o tamanho da repercussão na imprensa, tomaram-se como exemplos os jornais Folha de São Paulo e Estado de Minas, respectivamente de abrangência nacional e regional. O Jornal Folha de São Paulo publicou nesse período cerca de 600 matérias, repercutindo em todo o Brasil os eventos e, ao mesmo tempo, buscando contextualizar e relacioná-lo ao desastre da Vale/BHP/Samarco, que atingiu a bacia do rio Doce, em 2015. No jornal Estado de Minas, o de maior alcance no estado de Minas Gerais, foram aproximadamente 1400 inserções, se forem consideradas além da cobertura específica do desastre, todas as menções, colunas de opinião, depoimentos, entrevistas e charges sobre o assunto. O jornal mineiro manteve uma cobertura permanente, com atualização em tempo real da sua página na internet (em.com.br).
A grande tônica da cobertura que causa grave comoção na população esteve relacionada aos seres humanos, ou seja, aos mortos e desaparecidos, às operações de resgate, ao reconhecimento de corpos, à atuação do Corpo de Bombeiros, e até mesmo à tímida presença das tropas israelenses, que ajudaram nos resgates. Para além desse enredo dominante, especialmente nas duas primeiras semanas depois do rompimento, diversas outras questões foram tratadas, ora de forma mais profunda, como na matéria que o The New York Times publicou em sua página (A Tidal Wave of Mud), ora simplesmente sendo noticiados os eventos diários. Em seguida, apresentaremos uma visão geral das matérias publicadas nos veículos de imprensa mencionados acima e em outros sites que possam contribuir para traçarmos um quadro geral sobre o Desastre da Vale, iniciado com o rompimento da barragem da Mina do Córrego do Feijão, no município de Brumadinho, em Minas Gerais, no dia 25 de janeiro de 2019.
As questões econômicas, como o impacto da mineração na economia do país e das localidades, os impactos na bolsa de valores, na medida em que os dirigentes da Vale se pronunciavam sobre ações imediatas, bem como os pronunciamentos de agentes políticos sobre a questão, constam entre os principais temas. Observam-se ainda comparações com o desastre da Vale/BHP/Samarco, de 2015, em Mariana/MG, e suas medidas imediatas, tanto por parte da Vale, quanto medidas estatais, propriamente ditas. O Poder Judiciário brasileiro teve espaço na imprensa com o bloqueio de valores financeiros da Vale, e com a determinação da prisão de engenheiros e técnicos.
Também foram levantadas questões de ordem técnica como reportagens e reflexões mais profundas sobre a segurança das barragens de rejeitos. Especialmente no que se refere ao modelo de armazenamento de rejeitos com barragens a montante próximas de localidades de habitação humana. Nesse ponto, tem-se um desdobramento interessante que deve ser entendido como uma consequência própria do desastre da Vale de 2019. Passados aproximadamente 30 dias, a Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais aprovou a Lei Estadual nº 23.291, que institui a Política Estadual de Segurança de Barragens que proíbe a sua construção pelo chamado método a montante – alteamento da barragem a partir da parte interna do reservatório original, sobre os rejeitos anteriormente depositados. O projeto de lei foi aprovado sem veto pelo governador do estado, o que foi comemorado pelos parlamentares. A lei que ainda precisa de regulamentação de decretos da Secretaria Estadual de Meio Ambiente Sustentável (SEMAD), determina a erradicação das barragens construídas pelo método de alteamento a montante até o ano de 2021.
Esse método de construção foi o utilizado nas duas barragens que se romperam, tanto em 2015, como em 2019. Importa ressaltar que depois do desastre da Vale/BHP/Samarco, em 2015, fora proposto um projeto de lei extremamente semelhante ao que só agora foi aprovado e que, na época, havia sido rejeitado. Pelo contrário, 20 dias depois do rompimento da barragem de Fundão, em 2015, a Assembleia Legislativa de Minas Gerais aprovou a proposta do executivo de Projeto de Lei (PL) nº 2.946/15 - Licenciamento Ambiental, que flexibiliza o licenciamento; sendo sancionada pelo governador Fernando Pimentel no dia 22 de janeiro de 2016. Para o Deputado Estadual João Vitor Xavier, proponente do projeto em 2016, a aprovação depois do desastre em 2019 foi em razão do número de mortos no desastre em Brumadinho.
Como consequência dessa preocupação com a segurança das barragens, percebeu-se que na primeira metade do mês de fevereiro, houve diversos alertas de instabilidade de barragens e risco imediato de rompimento em localidades diversas, como em Macacos, no município de Nova Lima; bem como em outras localidades dos municípios de Barão de Cocais, Itatiaiuçu e Ouro Preto, em que se localizam barragens da própria mineradora Vale, e que tiveram os habitantes dessas comunidades evacuados às pressas, em razão de supostos risco iminente de rompimento, gerando pânico e configurando um clima de incertezas muito mais forte, quando comparado ao pós-rompimento da barragem de Fundão.
No plano federal, ganhou destaque a Agência Nacional de Mineração (ANM), criada em julho de 2017, para substituir o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), autarquia federal criada pelo Decreto nº 23.979, de 8 de março de 1934, vinculada ao Ministério de Minas e Energias, em 1960. A ANM se comprometeu a fiscalizar de forma mais efetiva as barragens de mineração, e o Tribunal de Contas da União se manifestou no sentido de fiscalizar as ações da ANM com maior rigor. Tal atitude respondeu às manifestações de preocupação pelo fato da agência ter no seu quadro diretivo um engenheiro que é ex-gerente de meio ambiente do projeto Carajás da Vale, onde atuou entre 2007 e 2015. A imprensa deu relevância ao fato do pequeno avanço das investigações sobre o desastre da Vale/BHP/Samarco e de que, na prática, as multas aplicadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) não foram pagas, como se lê na manchete no portal da internet G1 - Minas/Rede Globo, de 29 de janeiro de 2019: “Samarco não pagou nenhuma multa aplicada pelo Ibama após rompimento de barragem em Mariana, há três anos”.
Constata-se a diferença entre o comportamento das autoridades públicas e do poder legislativo após o desastre de 2015, quando comparado à reação causada pelo desastre minerário de 2019. Em 2015, mesmo sendo denominado como maior desastre ambiental do país[1], houve um movimento de flexibilização da legislação ambiental tanto no plano federal quanto no plano estadual. O debate estabelecido e as medidas de flexibilização e afrouxamento foram tratados de forma incisiva até o desastre de 2019. A imprensa deu destaque ao fato de o Conselho Estadual de Política Ambiental, em 11 de dezembro de 2018, ter aprovado o pedido de licença da empresa Vale para a expansão e continuação das operações das minas de Jangada e Córrego do Feijão, inclusive para recuperar os finos de minério de ferro da barragem que se rompeu. Agora, em 2019, houve um arrefecimento do movimento de flexibilização, tamanho o impacto das mortes provocadas pelo desastre e o clima de incerteza que se generalizou na área de mineração.
Entretanto, isso não impediu que o Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, no dia seguinte ao rompimento da barragem do Córrego do Feijão (26 de fevereiro), em pronunciamento, ainda buscasse preservar uma agenda de flexibilização. Segundo ele, era necessário mudar a legislação para endurecer a fiscalização das atividades de maior risco, porém era preciso “tirar questões simples” e “aprofundar nas questões complexas de maior risco”. Essa era uma saída para conciliar a proposta de flexibilizar o licenciamento ambiental que fez parte da campanha do presidente eleito, Jair Messias Bolsonaro, que afirmava que era preciso “desburocratizar o processo para conseguir licenças”, como noticiou a impressa à época da campanha eleitoral. Nas palavras do candidato vitorioso: “O maior incentivo que a gente pode dar ao setor produtivo é tirar o Estado do cangote do produtor”[2].
Ainda em relação aos desdobramentos políticos, foram encaminhados, tanto no âmbito do Estado de Minas Gerais, como em âmbito federal, requerimentos redigidos por deputados, para a criação de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) para esclarecer os detalhes das circunstâncias do desastre de 2019. Na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, o pedido foi feito logo no início do mês de fevereiro. Já no âmbito federal, há, inicialmente, um requerimento de instalação de CPI no Senado Federal, mas que ainda não foi acolhido (11 de março de 2019). Ao mesmo tempo, foi proposta a “CPI de Brumadinho” pela Câmara de Deputados, abrindo a possibilidade de a CPI ser mista. Entretanto, não houve ainda acordo político sobre a questão.
Além das dimensões humana e ambiental do desastre, o rompimento da barragem da Minas do Córrego do Feijão foi noticiado como o maior acidente de trabalho da história do Brasil, superando os 69 mortos e 50 feridos do desabamento do Pavilhão de Exposições da Gameleira, em 1971, na cidade de Belo Horizonte. O número de trabalhadores vitimados levou a várias reportagens na imprensa, que levantaram a questão do teto no valor das indenizações decorrentes das violações nas relações de emprego, a partir da reforma trabalhista aprovada no governo do presidente Michel Temer (2017). O site da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, em 29 de janeiro de 2019, trouxe a seguinte manchete: “Reforma trabalhista pode piorar tragédia de Brumadinho”. No dia 31 de janeiro, o Jornal Estado de São Paulo, no seu portal Estadão, estampava a manchete “Tragédia de Brumadinho: o maior acidente de trabalho do País e os limites da indenização”. Juristas, professores, analistas, cientistas políticos e colunistas se dedicaram a discutir a questão da adequação ou inadequação da norma no caso do desastre em Brumadinho. Entretanto, não foi possível identificar, a partir das análises, nenhuma atuação relevante de sindicatos e líderes sindicais de trabalhadores, e quando houve, teve tímida repercussão na imprensa.
No que se refere aos impactos ao meio ambiente, percebe-se que a repercussão na imprensa e, consequentemente, a ressonância do debate por colunistas, comentadores, especialistas, de certa forma foi simplesmente tangenciada ou destinada a um papel secundário nas notícias e reportagens. Nesse aspecto, o desastre da Vale/BHP/Samarco apresentou maior cobertura dos impactos ambientais e, inclusive, continua a ser tratado pela imprensa como o “maior desastre ambiental da história do Brasil”. No caso do desastre da Vale, em Brumadinho, verifica-se uma abordagem secundária ou tangencial quando se trata dos impactos ao ambiente, causados pela lama de rejeitos. Isso não significa que não se fez presente a questão ambiental, como se lê na reportagem publicado pelo jornal Estado de Minas em seu portal na internet, do dia 4 de fevereiro de 2019, com a manchete: “Após tragédia, fundação considera Rio Paraopeba como ‘completamente morto'. A constatação foi feita depois que integrantes da SOS Mata Atlântica percorreram o manancial”. A cobertura do impacto sobre a captação de água no rio Paraopeba também mereceu atenção, porém não teve a mesma presença que no caso do desastre que atingiu o rio Doce, em 2015. Isso porque não ocorreu a falta de abastecimento de água potável nas cidades ribeirinhas, nem as cenas de saques de caminhões carregados de água mineral. As reportagens não deixaram de mencionar o risco para a captação, tratamento e distribuição de água do rio Paraopeba. As preocupações ficaram centradas nos seres humanos, com uma presença muito pontual e secundária dos outros coabitantes da bacia do rio Paraopeba, ou seja, os aspectos bióticos e abióticos do desastre foram negligenciados. Como noticiou a British Broadcasting Corporation - BBC, em 29 de janeiro de 2019: “Com o número cada vez maior de mortes confirmadas em Brumadinho (MG), o Brasil pode vir a se tornar a sede da pior tragédia humana provocada por rompimento de barragens de minério das últimas três décadas”, houve cobertura dos danos para ecossistemas, porém mais restritos. O Jornal O Globo deu manchete à questão: “Dano ambiental em Brumadinho ameaça centenas de espécies”, em 3 de fevereiro de 2019. O Canal FishTV, em 7 de fevereiro de 2019, trouxe a matéria: “ Como rejeitos de minério afetaram os rios da região”.
Já com relação às ações imediatas tomadas pela mineradora Vale S/A, pouco se assistiu nos canais de televisão ou se leu nos veículos de comunicação. As falas do presidente da corporação Fabio Schvartsman, ao afirmar que se tratara de um acidente, provocaram repercussão negativa, inclusive no exterior. A imprensa noticiou que o comportamento da empresa prejudicou o valor das suas ações e motivou reação negativa dos acionistas no exterior (as manchetes diziam que escritórios dos EUA entraram com ação coletiva contra a Vale). O discurso da empresa foi de que ela tomaria todas as medidas necessárias para reduzir os impactos, mas acabou por não ter nenhum protagonismo nesse processo. Por um lado, tem-se uma movimentação econômica e financeira destinada às famílias das vítimas, mas por outro lado, é possível observar uma grande movimentação da mineradora em articulação política e pronunciamentos públicos com o objetivo de diminuir as medidas sancionatórias do Estado frente às irregularidades constatadas na atuação da empresa.
Uma análise que se pode fazer em relação à cobertura da imprensa é a entrada de outros assuntos trágicos, ocupando o espaço dos veículos de comunicação e provocando grande comoção no público. O incêndio que aconteceu na madrugada do dia 08 de fevereiro deste ano no alojamento dos jogadores da equipe de base do Flamengo, maior clube de futebol do Rio de Janeiro e do Brasil, vitimou 14 adolescentes que sonhavam em ser jogadores de futebol profissional. Esse evento ganhou espaço e, ao mesmo tempo, ocorreu uma diminuição da cobertura do desastre da barragem. Do dia 25 de janeiro até o dia 08 de fevereiro, o Jornal Estado de Minas, em sua página na internet, publicou 1119 matérias sobre o desastre. Já num período de 17 dias após o incêndio, entre o dia 09 de fevereiro até o dia 25 de fevereiro, o número total de matérias publicadas caiu para 342 inserções. No caso da Folha de São Paulo, a queda foi de 459 para 134 matérias, respectivamente. O mesmo ocorreu com a BBC, El País e The New York Times, que deram grande espaço ao incêndio, diminuindo a cobertura do desastre da barragem.
O número de mortes em Brumadinho deixou inseguros aqueles que residem próximos a barragens, como se lê na manchete da BBC Brasil, de 2 de fevereiro de 2019: “Tragédia em Brumadinho: medo de rompimento de barragem tira sono em outra cidade mineira”. Conforme o Relatório de Segurança de Barragens de 2017, da Agência Nacional de Águas (ANA), das 24.092 barragens no Brasil, 3.545 foram classificadas na Categoria de Risco (CRI) e 5.459 na de Dano Potencial Associado (DPA). Das barragens cadastradas, 723 (ou 3%) foram classificadas simultaneamente como de CRI e DPA altos. Desse total, 45 barragens apresentavam risco de rompimento, a maioria composta por reservatórios de água no Nordeste. As barragens de mineração que se romperam não constam nessa relação de risco; ao contrário, estão classificadas como de baixo risco. Em Minas Gerais, 27 barragens de mineração se localizam a montante de vilas e cidades, ameaçando cerca de 100 mil pessoas. A página na internet da Folha de São Paulo estampou a manchete, no dia do desastre, às 17h45: “MG concentra 63% das barragens de minérios do país com ‘alto risco estrutural’”.
Ao se estabelecer um paralelo entre o desastre de 2015 e o de 2019, considerando o noticiário sobre a reação da população, pode-se afirmar que para além da percepção de risco e sentimento de incerteza (BECK, 2010), no último sobressai o medo da morte, o pânico de outro rompimento e um quadro geral de insegurança social. Em 12 de fevereiro de 2019, o Jornal Estado de Minas destacava a manchete: “Conheça as oito barragens mineiras com ‘risco severo de rompimento’”. Segundo o jornal, desde outubro de 2018, a Vale tinha conhecimento sobre os riscos de rompimento das barragens 1 e 4-A da Mina Córrego do Feijão. A matéria informa que a barragem que se rompeu era classificada com risco “cinco vezes menor do que o de outras três estruturas da lista, localizadas em Nova Lima”. A insegurança se generaliza, a partir da percepção de que barragens de mineração podem romper e matar centenas de pessoas.
Um outro fantasma começou a deixar a população apavorada: o medo do fechamento das minas e, consequentemente, do desemprego. Não é somente o medo do desemprego, mas a população se pergunta: qual será nosso futuro? O sentido do “nosso” aqui pode ser o emprego, o movimento no comércio, a renda do turismo, os tributos dos quais depende a prefeitura, entre outros. Esse cenário de insegurança não está apenas ligado ao número de vítimas, mas tem relação com o fato de se repetir o que já ocorreu três anos antes, na bacia do rio Doce. A imprensa (incluindo as grandes redes de televisão) recuperou a memória dos eventos de 2015 e, ao mesmo tempo, realçou a baixa ou nenhuma resolução das ações de reparação e restauração, bem como o fato de não terem sido condenados os culpados e nem as empresas terem pago os milhões de reais em multas. Como mostra a manchete da revista semanal Isto É, publicada em sua página na internet, no dia seguinte ao rompimento da barragem da Minas do Feijão (26/01/19): “Brumadinho mostra que pouco se aprendeu com Mariana”.
O desastre da Vale, em Brumadinho, confirmou o prognóstico dos “pessimistas” de que novos desastres poderiam ocorrer. O sentimento de incerteza deu lugar à insegurança e consolida uma “paisagem do medo”: sentimento generalizado de que a força portadora da desgraça tem vontade própria e que não pode ser controlada (TUAN, 2005). A insegurança cresceu pela falta de informação e pela desconfiança em relação às corporações e às autoridades públicas. A imprensa deu ampla divulgação ao esforço do governo mineiro, em dezembro de 2018, para garantir que o Conselho Estadual de Política Ambiental de Minas Gerais (Copam) aprovasse a autorização de licença solicitada pela Vale. O jornal El País, em 28 de janeiro, estampou a manchete: “Peso da mineração se impõe em Minas e trava regulação mesmo após Mariana.” A matéria informa sobre o único voto contrário da ambientalista Maria Teresa Corujo, entre os oito favoráveis; também destaca a abstenção do representante do IBAMA, Júlio César Dutra Grillo, apesar de ter se manifestado sobre o risco de rompimento da barragem da Mina do Córrego do Feijão.
Pode-se afirmar que se instalou um quadro de insegurança socioambiental. De um lado é social, porque a população que mora próximo às barragens está apavorada, porque prevalece a incerteza sobre os perigos para a saúde das pessoas, nas áreas afetadas e porque existe o medo em relação ao futuro que é reservado às famílias, ao comércio e à vida dos municípios no caso de as mineradoras deixem de operar no estado. O jornal Estado de Minas, em 30 de janeiro de 2019, expressou esse sentimento na manchete: “Decisão da Vale de desativar minas no estado reduzirá arrecadação em cerca de R$ 300 milhões”. Por outro lado, a insegurança é ambiental porque não se sabe como ficará o ambiente, os riscos para a flora e a fauna, os riscos de doenças; também não se sabe se haverá a recuperação e restauração dos ambientes devastados e se os rios irão se recuperar. Também fica a pergunta: se as empresas fecharem as minas, será que continuarão a atuar para reparar os prejuízos que causaram?
Talvez pudéssemos avançar um pouco mais para tratar a questão como insegurança biocultural, isto é, considerar as dimensões humana (cultura) e não humana (bióticas e abióticas) como indissociáveis e possuidoras de igual valor ético (ROZZI, 2013). As inter-relações entre habitats, hábitos e coabitantes podem parecer óbvias para os ecologistas, mas não se apresenta assim para as outras áreas de conhecimento nem para os diferentes setores da sociedade. O conceito de biocultura talvez possibilitasse avanços para além da concepção antropocêntrica, mesmo que seja no viés ambientalista. Na verdade, o que se assiste com os grandes projetos de investimento de capital, tais como mineração industrial, represas hidrelétricas, indústria madeireira, monoculturas como as de eucalipto e soja, extensas pastagens para engorda de gado bovino, é a expulsão de populações tradicionais e alterações drástica do ambiente. Os diferentes habitats e seus coabitantes são impactados, resultando na redução drástica da diversidade biológica e cultural. Nessa perspectiva, é igualmente crítica a questão da segurança, identidade e bem-estar dos coabitantes humanos e das outras espécies vivas, havendo a necessidade de assegurar, igualmente, a conservação dos habitats e o acesso de todos os espécimes a eles, não apenas dos indivíduos e famílias humanas.
Referências
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BECK, Ulrich. Sociedade de Risco – rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010.
CRONON, William. A Place for stories: Natureza, History, and Narrative. The Journal of American History: v. 78, n. 4, p.1347-1376. March/1992.
DRUMMOD, José Augusto. A História Ambiental: Temas, fontes e linhas de pesquisa. Estudos Históricos, v. 4, n. 8, p. 177-197, 1991.
ELLIS, E. C., et. al. Anthropogenic transformation of the biomes, 1700 to 2000. Global ecology and biogeography, v. 19, n. 5, p. 589-606, 2010.
MARSHALL, Judith. Tailings dam spills at Mount Polley and Mariana. Chronicles of disasters foretold, agosto de 2018. Disponível em https://www.policyalternatives.ca/sites/default/files/uploads/publications/BC%20Office/2018/08/CCPA-BC_TailingsDamSpills.pdf. Acessado em 28 de agosto de 2018.
PÁDUA, J. A. Vivendo no Antropoceno: incertezas, riscos e oportunidades. In: Oliveira, L. A. Museu do amanhã. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2015. Disponível em: . Acesso em: 12 de março de 2019.
ROZZI, Ricardo. Biocultural Ethics: From Biocultural Homogenization Toward Biocultural Conservation. In.: Rozzi R. et al. Linking Ecology and Ethics for a Changing World. Values, Philosophy, and Action. Dordrecht, The Netherlands. Springer, 2013, p. 9-32.
TOSATTI, Giovanni. La catastrofe della Val di Stava: cause e responsabilità. Geoitalia, n. 20, giugno 2007, pp. 1-5.
TUAN, Yi-Fu. Paisagem do Medo. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
WORSTER, Donald. Para fazer História Ambiental. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 4, n. 8, 1991, pp. 198-215
Notas