Resumo: Este artigo se desenvolve a partir da pauta feminista do acesso das mulheres ao letramento. As mulheres em foco são as que, por algum delito ou contravenção penal, foram para cadeias e penitenciárias de Mato Grosso. A pena, na cultura machista, se dá também por serem mulheres. O campo de investigação enfoca projetos desenvolvidos no sistema prisional feminino desse estado nos últimos anos. Destaca-se o projeto de remição pela leitura como instrumento de libertação de mulheres privadas de liberdade.
Palavras-chave:Sistema PrisionalSistema Prisional,Mulheres Privadas de LiberdadeMulheres Privadas de Liberdade,LetramentoLetramento,RemiçãoRemição.
Abstract: This article unfolds in the feminist agenda of women’s access to literacy. The women in focus are those who, due to some criminal offense or misdemeanor, went to jails and prisons in Mato Grosso, Brazil. The penalty, in a sexist culture, is also due to the fact of being women. The research field focuses on projects put into practice in the female prison system in that Brazilian state in recent years. The remission by reading project as an instrument for liberating imprisoned women stands out.
Keywords: Prison System, Imprisoned Women, Literacy, Remission.
Resumen: Este artículo se desarrolla en la agenda feminista del acceso de las mujeres a la alfabetización. Las mujeres en foco son aquellas que, debido a algún delito o alguna contravención penal, fueron a cárceles y prisiones en Mato Grosso, Brasil. La pena, en una cultura machista, también se debe al hecho de ser mujeres. El campo de investigación se centra en proyectos puestos en práctica en el sistema penitenciario femenino en ese estado brasileño en los últimos años. Se destaca el proyecto de remisión mediante la lectura como un instrumento de liberación de mujeres privadas de libertad.
Palabras clave: Sistema Penitenciario, Mujeres Privadas de Libertad, Alfabetización, Remisión.
Dossiê
Ler, escrever e libertar: experiências que promovem a diminuição de pena para mulheres privadas de liberdade em Mato Grosso
Recepção: 11 Agosto 2019
Aprovação: 13 Março 2020
Este estudo está relacionado a um projeto de pesquisa institucional, da Universidade Federal de Mato Grosso, e contou com o auxílio de uma bolsista de Iniciação Científica[1]. O objeto de investigação principal consiste nas práticas educativas e de letramento que contribuem com a reintegração social e a diminuição de pena para mulheres em situação de privação de liberdade. O recorte empírico que apresento destaca as experiências de letramento investidas da intenção de redução de pena. A remição pela leitura é o principal foco da pesquisa, realizada em Mato Grosso. Em especial, analiso o andamento e os resultados da aplicação do projeto de remição pela leitura em unidades prisionais femininas desse estado.
Segundo o Provimento n. 24/2013, da Corregedoria-Geral de Justiça de Mato Grosso, parte da pena pode ser diminuída pela leitura de obras literárias. A remição por trabalho está prevista desde a década de 1980, por meio da Lei n. 7.210/1984 (Lei de Execução Penal). Todavia, a partir de 2011, também se passou a considerar a possibilidade de remição de pena por estudo. O ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa apresentou uma proposta, por meio da Recomendação n. 44, de 26 de novembro de 2013, que explicita como se pode fazer a remição pela leitura. Entre a letra da lei e a prática existe um caminho complexo e tortuoso para pôr em andamento tal reivindicação social, que vem de longa data. No estado de Mato Grosso, investigando unidades prisionais femininas, pôde-se constatar que a remição de pena por estudo vem sendo praticada há cerca de 10 anos e, pela leitura especificamente, há 2 anos, para as mulheres em privação de liberdade.
Este artigo mostra um pouco dessas experiências, traduzidas no trabalho da Escola Nova Chance e nos projetos que contam com a parceria da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), em Cáceres-MT, e da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), em Cuiabá-MT e Rondonópolis-MT. A análise está embasada, sobretudo, na epistemologia feminista proposta por feministas negras (HOOKS, 2018; NASCIMENTO, 2019; RIBEIRO, 2018) e em alguns referenciais importantes para pensar as políticas de encarceramento (BORGES, 2018; DAVIS, 2018a; DAVIS, 2018b) que, por sua vez, ligam-se às políticas de exclusão social – que impedem uma grande população discriminada (pelo gênero, classe, etnia ou raça) de acessar direitos e alcançar igualdade social.
Dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Mulheres (Infopen Mulheres) mostram que cerca de 40 a cada 100 mil mulheres se encontram encarceradas no Brasil. O país ocupa o terceiro lugar entre os que mais encarceram mulheres no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos da América (EUA) (65,7 a cada 100 mil) e da Tailândia (60,7 a cada 100 mil) (SANTOS, 2017). Esse não é um pódio do qual devemos nos orgulhar.
A luta por igualdade é a principal marca do feminismo. Desde o sufragismo, que reivindicava o direito de voto às mulheres, o feminismo igualitarista (MARQUES, 2015) mostrava que, para alcançar direitos antes só concedidos aos homens, de certa maneira, era preciso ser como eles. A reivindicação das mulheres, em sua grande maioria brancas, pelo direito de cidadania implicava saber ler e escrever, isto é, ter acesso ao letramento, no entanto, essa era uma prerrogativa masculina, de classe e raça. O acesso à instrução também poderia dar às mulheres condições de igualdade para competir no mercado de trabalho e ascender às ocupações públicas. Mas tais condições de igualdade vieram primeiro para as mulheres brancas. Como apontou Beatriz Nascimento (2019), no período da industrialização brasileira, nos anos 1930, enquanto as brancas iam para os serviços burocráticos que exigiam letramento, em geral, as negras formaram as massas operariadas ou ocuparam empregos domésticos.
O “letramento crítico”, categoria proposta por Hilary Janks (2016), leva em conta as questões de poder, diversidade e acesso. E é nesse sentido que entendo a importância do letramento como pauta prioritária do movimento feminista. Desde o século XIX, e ainda antes, as mulheres entenderam que, por meio da instrução, seria possível alcançar direitos políticos. O discurso de que o espaço privado constituía um reinado era político, dizia respeito a um lugar social, um aprisionamento que impedia as mulheres de acessar os espaços públicos. A privação de liberdade promovida pelo sistema prisional consiste, em grande medida, no corolário de todos os processos restritivos imputados historicamente às mulheres, dos quais é difícil se libertar.
O sufrágio universal foi um marco na luta das mulheres pelo acesso à escolaridade. No Brasil, resultou em direito por meio de decreto assinado pelo presidente Getúlio Vargas em 1932 e, depois, com a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1934, quando o alistamento eleitoral e o voto passaram a ser obrigatórios para homens e mulheres. Todavia, só para as mulheres empregadas com renda, salvo as sanções que a lei determinava. No entanto, considerando um Brasil onde a grande maioria da população era analfabeta e apenas uma elite era letrada, conclui-se que o direito de voto era seletivo, apenas para mulheres da elite branca, excluindo, sobretudo, a grande parcela da população negra, cujas mulheres se encontravam no mercado de trabalho bem antes das brancas, mas no mercado considerado informal, sem registro de renda. Ressalta Djamila Ribeiro (2018, p. 52) sobre esse momento: “enquanto àquela época mulheres brancas lutavam pelo direito ao voto e ao trabalho, mulheres negras lutavam para ser consideradas pessoas”. As mulheres negras estavam invisibilizadas no discurso do “universal”; na prática, o direito de voto feminino excluía as negras, bem como as indígenas e as mulheres das camadas mais pobres.
Há que se considerar, no entanto, a importância do sufragismo e desse momento do feminismo. Se existiam determinadas condições para ser cidadã, como a renda e o letramento, mostrava-se necessário conquistar todas essas qualidades. Desde o final do século XIX, as escolas públicas passaram a ser frequentadas por meninas, em números progressivos, e foram aos poucos incorporando várias camadas sociais, embora sempre em menor número as pessoas negras, proporcionalmente em relação às brancas. A população indígena é a última a ser considerada nessa escala de discriminações[2].
Embora o movimento igualitarista seja datado, percebe-se que certas reivindicações lá do passado ainda encontram ressonância em nosso cotidiano. Por exemplo, muitas mulheres ainda são educadas e criadas em uma cultura da maternidade compulsória[3] e outras tantas consideram que a carreira profissional é mais importante para os homens, pois acreditam que prover a família é uma prerrogativa masculina. No entanto, dados de 2015 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostram que cerca de 40% das famílias brasileiras são chefiadas por mulheres e, quando se considera o fator racial, esse índice sobe para 43% de mulheres negras chefes de família (IPEA, 2019). Não foi à toa que o Programa Minha Casa Minha Vida atingiu 89% de mulheres na titularidade dos contratos de moradia nesse mesmo ano (MULHERES, 2015).
Os indicadores apresentados dizem respeito à população vulnerável diante dos enquadramentos criminais. Situações de carência, meio em que vivem e necessidades imediatas de prover ou até cuidar de filhos acentuam as chances de as mulheres recaírem em escolhas ilícitas. Embora este estudo enfoque o Mato Grosso, a realidade não difere muito do restante do país. Como diz Juliana Borges (2018, p. 16): “ser encarcerado significa a negação de uma série de direitos e uma situação de aprofundamento de vulnerabilidades”.
A LEP garante o acesso à educação na forma da instrução escolar e formação profissional às pessoas privadas de liberdade, mas, segundo relatório mais recente do Infopen Mulheres, “apenas 25% da população prisional feminina está envolvida em algum tipo de atividade educacional, entre aquelas de ensino escolar e atividades complementares” (SANTOS, 2017, p. 67).
O intuito da pesquisa é investigar como tem se dado esse acesso à educação em Mato Grosso, pois parto do princípio de que se trata de uma alternativa, ainda que volátil, contra o agravamento das desigualdades que atingem a população carcerária, pois é sabido que também para as mulheres presas, assim como para as que estão fora do sistema prisional, o acesso aos direitos sempre é dificultado por vários fatores que sequer são considerados. Afinal, as mulheres sempre são as mais esquecidas, as menos visitadas, as mais mal atendidas em suas necessidades particulares e as mais culpabilizadas. Na estrutura de exploração heteronormativa, assevera Preciado (2019, p. 414), “os homens e as mulheres são construções metonímicas do sistema heterossexual de produção e de reprodução que autoriza a sujeição das mulheres como força de trabalho sexual e como meio de reprodução”. Os códigos que definem esse sistema de opressão de gênero são investidos de constantes recitações e repetições para se tornar supostamente naturais. Pelos motivos que corroboram o silenciamento e a opressão das mulheres, escolhi focar o estudo nelas.
Neste artigo, considero 2 frentes possíveis que conferem relevância aos projetos educacionais e de letramento crítico: por meio da escolarização e por meio da leitura.
Estudar é uma maneira de reduzir a pena no sistema carcerário: a cada 12 horas frequentadas na escola é abatido 1 dia do total da pena. Por meio de acordo de cooperação, em 2009, a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Mato Grosso (SEJUDH-MT) e a Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso (Seduc-MT) criaram a Escola Estadual Nova Chance, para atender ao sistema prisional do estado.
A rede estadual da Escola Nova Chance funciona dentro das unidades prisionais, na modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA): “hoje atende 41 unidades prisionais em 37 municípios do estado”, disse o então diretor da escola, Paulo de Oliveira Junior, em entrevista realizada em 2 de maio de 2017. Segundo ele, cerca de 3.200 “reeducandos”[4] estariam matriculados em todas as unidades da Escola Nova Chance, cuja sede se encontra no centro da capital mato-grossense.
Nas unidades prisionais masculinas, a exemplo da Penitenciária Central do Estado (PCE), em Cuiabá, frequentam a escola os homens presos considerados de bom comportamento, geralmente de alas evangélicas. Já na Penitenciária Feminina Ana Maria do Couto May[5], também em Cuiabá, a mulher presa pode solicitar matrícula na escola. Não existe restrição, desde que ela não seja considerada perigosa devido a rixas trazidas de fora[6] ou por disputas e julgamentos morais relacionados aos crimes cometidos[7]. No geral, elas precisam querer estudar.
“Querer”, no entanto, é algo muito subjetivo. Frequentemente, as agentes prisionais alegam que as mulheres presas não querem sair de suas celas para estudar por motivos diversos (emocionais ou físicos), mas quando elas vão, dizem que não foram chamadas ou foram convocadas em cima da hora e não conseguem arrumar-se a tempo ou a contento ou, ainda, que a maneira como foram chamadas mostrou-se pouco convidativa. Enfim, às vezes, a situação prisional é desestimulante e desesperadora. A motivação tem de ser uma constante, nem sempre as mulheres presas encontram essa força por si. A retirada delas para as atividades sociais (de igreja, escola ou curso) depende das agentes prisionais, que, por sua vez, são autorizadas pela direção da unidade, caso não tenha havido algum procedimento que impeça a retirada das mulheres de seus cubículos[8]. Os procedimentos de segurança também tomam parte do tempo das atividades, porque implicam a observância de protocolo que envolve abertura e fechamento de cadeados, revista, algemas e disciplina.
A Seduc-MT estabeleceu, por meio da Portaria n. 55, de 31 maio de 2016, as “normas de conduta” para professores. Sobre os deveres, destaco na referida portaria:
Apresentar-se ao trabalho com vestuário apropriado e discreto, usando jaleco, bem como em boas condições de asseio pessoal, seguindo as normas de segurança do Estabelecimento Penal, sendo proibido vestir saias curtas, decotes, calças justas, transparentes, salto alto, adornos exagerados, cabelos presos e sem maquiagem [sic].
Vale ressaltar que, diferentemente das escolas em unidades masculinas, nas femininas só devem trabalhar professoras, para evitar situações de assédio sexual, argumento que também justifica o “vestuário apropriado”. Se as condições de exercício dos prazeres íntimos, inerentes ao ser humano, já são precárias nas unidades prisionais masculinas, elas se tornam nulas nas unidades prisionais femininas, onde as mulheres ficam abandonadas por seus parceiros. A visita íntima é assegurada por lei a todas as pessoas privadas de liberdade, desde que passem por um cadastro e apresentem comprovação do laço afetivo para obtenção da Carteira Individual do Visitante (CIV) – cujos critérios para obtenção foram asseverados na Instrução Normativa n. 007/2019. Ocorre que a maioria das mulheres sequer recebe visita e, quando recebe, em geral é de outras mulheres (mãe, irmã, filha, cunhada, amiga). A sexualidade e os desejos sexuais das mulheres também são negligenciados ou desconsiderados – o que corrobora as relações homoafetivas que se desenvolvem nos ambientes prisionais femininos, uma prática de resistência, mas que não constitui tema de investigação neste artigo.
No entanto, para algumas pessoas presas, a situação de privação de liberdade pode ser a motivação para se focar na esperança libertadora dos estudos. Há, ainda, a possibilidade de, ao finalizar a Educação Básica, inscrever-se no Enem[9]. As chances de aprovação nesse exame podem ser pequenas, e ainda menores são as chances de continuar os estudos, mas se trata de uma possibilidade se a pena progredir para o regime semiaberto. Considerando os estudos uma oportunidade emancipatória, trago a experiência de Josi[10], aprovada no Enem em 2015, depois de prestá-lo pela terceira vez, sendo que no primeiro exame ela fez aproveitamento para a conclusão do Ensino Médio[11] e, em 2016, para ingresso na universidade pública. Quando questionada sobre como obteve sua aprovação em regime de privação de liberdade, ela respondeu:
Na verdade, quem me ajudou foi Deus, porque eu nem sei como consegui passar. Não sei mesmo, porque sem estudar. Quer dizer, tinha a escolinha lá, mas não é aquele estudo, assim, né? Porque, não sei como explicar, assim, tem uma opressão. Os agentes oprimem o professor “ah, manda seus alunos falarem baixo”, “ah, está na hora de subir” ou então tem algum procedimento que atrapalha a aula. Então é assim. Mas tem professor que se esforça para ensinar algumas coisas, porque têm pessoas com bastante dificuldade. Eu não sei, quem ajudou foi Deus mesmo, porque eu não sei nem como consegui ainda tirar uma nota para cursar uma federal. (Josi)
Em um ambiente hostil como o da penitenciária, às vezes se atribui a Deus as conquistas alcançadas. Todavia, pode-se inferir pelo depoimento de Josi que, não fosse sua persistência, o empenho da pessoa responsável pela sua inscrição e o acompanhamento na unidade prisional, Deus não conseguiria fazer tudo sozinho.
Remição é diferente de remissão. As duas palavras são homófonas, com significados diferentes: a) “remição” se refere a quitação, paga; e b) “remissão” tem sentido de perdão, absolvição de pecados. Então, não estou a falar em qualquer sentido religioso ou espiritual de redução de pena, mas de um direito. O direito de acesso à educação básica estava previsto desde 1984, na LEP, mas só no início da década de 2010, por meio de alteração (Lei n. 12.433, de 29 de junho de 2011), a legislação dispôs sobre a remição de parte do tempo de execução da pena por estudo ou trabalho. A primeira iniciativa em âmbito nacional para permitir a remição da pena via leitura foi a Portaria Conjunta n. 276/2012, do Conselho da Justiça Federal (CJF) e da Diretoria Geral do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, que disciplinou o projeto de remição pela leitura para as pessoas presas em regime fechado custodiadas em penitenciárias federais. No ano seguinte, a Recomendação Nacional do Ministério da Justiça n. 44, de 26 de novembro de 2013, detalhou a forma e, em seu item V, letra “e”, pede observância do seguinte aspecto:
[...] procurar estabelecer, como critério objetivo, que o preso terá o prazo de 21 (vinte e um) a 30 (trinta) dias para a leitura da obra, apresentando ao final do período resenha a respeito do assunto, possibilitando, segundo critério legal de avaliação, a remição de 4 (quatro) dias de sua pena e ao final de até 12 (doze) obras efetivamente lidas e avaliadas, a possibilidade de remir 48 (quarenta e oito) dias, no prazo de 12 (doze) meses, de acordo com a capacidade gerencial da unidade prisional.
Seguindo essa recomendação nacional e o Provimento Estadual n. 24/2013, com teor semelhante, surgiu o Projeto Biblioteca Móvel “Carrinho Literário”, da SEJUDH-MT[12]. O projeto foi implantado em outubro de 2017 na Penitenciária Feminina Ana Maria do Couto May. O propósito, desde então, é proporcionar às mulheres em situação de privação de liberdade e que já concluíram a Educação Básica a oportunidade de diminuição de sua pena por meio da leitura dirigida. A resenha, produto resultante da leitura de obra literária, segue alguns critérios de avaliação, previstos no projeto: a) deve conter um texto com no mínimo 30 e no máximo 60 linhas; e b) a nota final deve ser igual ou superior a 7. Cada obra resenhada possibilita diminuir 4 dias de pena, sendo no mínimo 1 por mês e no máximo 12 por ano, caso seja possível às pessoas presas, praticantes dessa atividade, redigir 1 resenha por mês. Os pareceres avaliativos, junto com a resenha, seguem para os autos processuais de cada participante para posterior homologação da remição pelo juiz de execução penal.
Fui convidada a participar do projeto em 2017, quando iniciamos uma campanha para arrecadação de livros, condição imprescindível à atividade. Embora o espaço da Escola Nova Chance na penitenciária feminina contasse com alguns livros, eram poucos e em geral não adequados (livros velhos, técnicos, didáticos, enciclopédias, gramáticas, dicionários etc.). A biblioteca móvel foi, então, toda formada por livros doados (romances, livros acadêmicos, literatura brasileira e estrangeira, ficção, autoajuda e literatura religiosa), bem como o próprio carrinho móvel. No total, foram 210 títulos catalogados. A campanha de doação foi realizada por meio do Facebook e contou com a sensibilização de pessoas amigas – em geral, estudantes e professores(as) universitários(as). Algumas autoras também fizeram doações de suas obras. A chamada na referida rede social também era uma sensibilização para que os livros doados fossem de autoras ou, preferencialmente, que protagonizassem mulheres – uma forma de facilitar a empatia e a identificação por parte das leitoras, mas cerca de 70% dos títulos doados são de autores do sexo masculino. No entanto, dentre as obras citadas pelas 7 colaboradoras (Dona, Ferreira, Fernanda, Maria, Maravilha, Jhow e Margô) nesse artigo, apenas uma é de autoria masculina, as demais são de autoras, o que em certa medida, confirma uma escolha por identificação.
Depois de os livros terem sido catalogados (por várias pessoas que se voluntariam para ajudar) e organizados no carrinho móvel para iniciar os trabalhos do projeto de remição pela leitura, a comissão iniciou os trabalhos em outubro de 2017, mas, formalmente, essa comissão foi instituída por meio da Portaria n. 34 da unidade prisional, publicada em dezembro de 2018. A partir desse ano, o projeto da SEJUDH-MT também passou a ser de interesse da recém-criada Secretaria de Estado de Segurança Pública (SESP), nos termos do Decreto Estadual n. 41, de 15 de fevereiro de 2019.
O número de mulheres privadas de liberdade habilitadas a participar do projeto na Penitenciária Feminina de Cuiabá variava entre 10 e 20. Considerando que a lotação da penitenciária gira em torno de 180 mulheres, em média, o projeto atinge cerca de 10% delas. Trata-se de uma parcela pequena, mas, considerando a possibilidade de outras obterem a remição por meio de frequência escolar, como já indicamos, o percentual aumenta. Na remição pela leitura participam, então, as mulheres presas que já têm Ensino Médio.
Em outras unidades prisionais menores, os critérios mudam. Na Cadeia Pública de Cáceres e de Rondonópolis, a remição pela leitura envolve todas as mulheres presas interessadas, pois o número delas é menor em comparação com a unidade prisional de uma capital, como Cuiabá, o que possibilita levar a leitura a um universo proporcionalmente maior, embora sem obrigatoriedade de as reclusas participarem. O trabalho motivacional se mostra necessário em todas as unidades prisionais, pois os índices de escolaridade são baixos e, em geral, as pessoas presas são provenientes de ambientes onde a cultura do letramento e da leitura é incomum, sem contar que a vergonha de expor sua pouca instrução acaba por reprimir iniciativas individuais.
Em agosto de 2018, em visita à Cadeia Pública de Cáceres, constatou-se uma lotação, com 37 mulheres presas (entre as que cumpriam execução provisória e condenação). O projeto de remição pela leitura de lá tem parceria com a Unemat, representada pela Profa. Nancy Lopes Yung. Ela, junto com a comissão, planeja as atividades, desenvolvidas nas quartas-feiras à tarde. O espaço onde o projeto é posto em prática consiste em uma sala de aula, com boa iluminação e carteiras para acomodar até cerca de 30 pessoas. A unidade prisional não possui biblioteca própria. A comissão[13] providencia os livros, que são transportados toda semana para as atividades, e cede-os em sistema de empréstimo para a leitura individual. O projeto não estipula a formação escolar como pré-requisito, portanto, atende mulheres com diferentes níveis de escolaridade. As atividades para remição também compreendem vídeos, debates e produção de textos (redações, relatos e poemas), além das resenhas. Ao longo do ano de 2018, quando o trabalho foi oficialmente implantado, atingiu um total de 15 “reeducandas”, segundo informação da própria comissão de trabalho no local.
Em Rondonópolis, a visita à Cadeia Feminina ocorreu em maio de 2019. Lá existe um espaço destinado à biblioteca, aonde as reclusas são encaminhadas para leitura e discussão de obras literárias. O projeto de remição é conduzido pela psicóloga da unidade, Priscila Domiciano. Por coincidir com as atividades da escola, não existe regularidade nas atividades, pois as reclusas podem escolher entre ir para as aulas ou para os encontros literários. A unidade tinha cerca de 130 mulheres presas. O professor Marcio Alessandro Neman do Nascimento, que nos acompanhou na visita a essa unidade, vem desenvolvendo um projeto de extensão universitária (na UFMT) desde 2017, cuja metodologia é investida em 3 frentes de atuação: a) atendimento psicológico; b) rodas de conversa; e c) análise institucional do sistema prisional. Os(as) estudantes extensionistas são do curso de Psicologia do campus de Rondonópolis da UFMT. O professor Márcio contou que uma das atividades do projeto de extensão coordenado por ele é o “clube da leitura” na ala LGBT[14], desde meados de 2018. Elegem um tema por mês e, com auxílio de vídeos e outros materiais, produzem trabalhos escritos: relatos de experiências, diários, fanzines e poemas. As oficinas não excluem ninguém por nível de instrução, trabalham com todas as pessoas da ala, mesmo as que não sabem ler – o que se torna uma forma de aprender e adentrar o universo do letramento crítico. As atividades extensionistas, além de promover o desenvolvimento da escrita, melhoram as resoluções de conflitos no ambiente prisional, confirma o referido professor.
Em Rondonópolis foi possível constatar algo que também ocorre em Cuiabá em relação à remição pela leitura: a dificuldade de retirar as mulheres presas para as atividades de resenha. É frequente a remarcação de datas por motivos diversos – algum procedimento[15] ou alguma outra agenda que se mostre prioritária – e há o recorrente argumento da falta de contingente. Em Cuiabá, não se observa o problema de choque entre a atividade de resenha e a atividade da escola. Mas, em Rondonópolis e Cáceres, o dia da resenha é incorporado à atividade da escola – o que implica a disposição e o envolvimento das professoras responsáveis, que, por sua vez, também se frustram por não conseguirem desenvolver o que planejam nem atender um número maior de mulheres presas.
O projeto de remição desenvolvido na Penitenciária Feminina de Cuiabá é o mais detalhado nesse artigo porque foi por mim acompanhado desde sua criação até os dias atuais.
Atualmente, a biblioteca do projeto, cujos livros catalogados estão no carrinho móvel (Figura 1), encontra-se em sala destinada a uma biblioteca maior que, por sugestão minha, recebeu o nome de Bernardina Rich[16] e faz parte do novo espaço escolar inaugurado em 2019. Por enquanto, o carrinho ainda é necessário para transportar os livros de uma sala para outra, onde as mulheres presas que participam assistem aulas, desenvolvem atividades literárias e elaboram resenhas.
Carrinho literário.
Fonte: Acervo pessoal.
A escola fica entre os muros do espaço institucional da penitenciária, como aparece circulado na Figura 2.
Fonte: Google Maps/Google Earth.O espaço onde as mulheres presas ficam alojadas se distribui em cinco raios. A separação delas nos raios é realizada, em geral, conforme os delitos ou as contravenções penais. No raio 1 ficam, então, as que aguardam sentença cumprindo prisão provisória. Já as condenadas do raio 5 (“o seguro”) são as que cumprem pena por crimes hediondos (p. ex., infanticídio, sequestro e tortura). As do raio 4 são consideradas “perigosas”, ligadas a facção de drogas. As do raio 3 são as empregadas em serviços externos – as “extramuro”. As do raio 2 são as do “convívio” e as habilitadas para serviços internos. Em um raio mais separado, o 7, ficam as que têm Ensino Superior ou aguardam alguma decisão judicial de soltura. Elas também podem sofrer de alguma doença crônica que requer cuidado, estar grávidas ou ser puérperas e, ainda, ficar lá devido a outra determinação especial. A divisão por raios não é fixa, de tempos em tempos eles podem ser reorganizados por demandas delas próprias. Os “cubículos”, ou “barracos”, ficam dentro dos raios, onde se têm precária privacidade; mesmo dividindo com outras pessoas, elas guardam e ajeitam seus pertences particulares – também se trata de um lugar de expressão de identidade. Em média, 4 mulheres moram no “barraco”, mas em situações de lotação já se chegou a 8 (CARVALHO, 2017) e até 12, conta uma delas. Elas também podem ser remanejadas de um cubículo para outro por “mal comportamento”[17]: briga ou outra ocorrência.
Claudia Carvalho (2017), em sua pesquisa empírica de doutorado, realizada na citada penitenciária feminina de Cuiabá, conseguiu autorização para que algumas mulheres presas pudessem fazer registros fotográficos de sua vida lá dentro; entre essas fotografias se pode visualizar alguns “barracos”. As mulheres presas têm direito a receber do Estado um kit básico de higiene e limpeza, mas a precariedade e a demora decorrentes da burocracia do sistema ocasionam a falta de alguns itens ou sua baixa qualidade. Como a grande maioria pertence a uma camada economicamente desfavorecida e sequer recebe visita, a falta de recursos leva essas mulheres a reproduzir as relações de exploração do capital, ou seja, muitas delas têm de fazer favores e serviços para outras para obter moeda de troca ou empréstimo lá dentro. As que têm melhores condições ou trabalham veem-se obrigadas a comprar no mercadinho da penitenciária, onde os preços são muito acima dos valores de mercado.
A todo momento se configuram relações de poder, o “dispositivo de segurança” acionado na forma da vigilância e correção do outro (FOUCAULT, 2008) visa a um efeito corretivo e atua mais na população do que propriamente no suposto culpado. O deixar viver apresenta-se como uma concessão do Estado, uma oportunidade que precisa ser aceita e conformada. Quem não souber tirar proveito vai sofrer a morte física ou social, cujos desdobramentos vêm antes, durante e depois do encarceramento.
Pensando a partir das brechas, acredito que é possível identificar alternativas libertadoras nesse sistema, que é opressor e condena duplamente as mulheres. Para exemplificar, além do já citado caso de Josi, escolhi 7 mulheres; o critério de seleção foi ter participado do projeto de remição pela leitura na penitenciária feminina de Cuiabá durante o ano de 2018, pois essas foram as mulheres que acompanhei por mais tempo. Como explicado anteriormente, todas têm pelo menos o Ensino Médio completo, porque se trata de condição para participar da remição pela leitura, no entanto, nesse grupo, 2 delas têm Ensino Superior completo e outras 2 estavam a cursá-lo quando foram presas. Elas têm entre 26 e 49 anos de idade. Uma não tem filho, as demais têm 1, 2, 3, 4 ou 5 filhos – que estão sob os cuidados de outra mulher: avó, mãe, irmã ou tia delas. Dentre as 7 mulheres, 4 declaram que o motivo de sua prisão foi envolvimento com o tráfico de drogas, outra não quis declarar, 1 relata que está presa por estelionato e acusação de latrocínio, outra por homicídio. A de mais idade é a que está encarcerada há mais tempo: 8 anos. Mas o grupo, em geral, cumpre pena há 4, 3 ou pouco mais de 1 ano. Uma delas é reincidente.
Claudia Carvalho (2017, p. 293), que pesquisou um grupo de mulheres nesse mesmo local em 2015, mais variado quanto ao nível de instrução e mais vulnerável, identificou:
[...] 80% das participantes relataram que foram acusadas do delito de envolvimento com a venda de drogas, ou tráfico. Várias delas como saída da pobreza extrema, outras em função do envolvimento dos maridos/companheiros, namorados, pai, no sistema de produção que é o narcotráfico.
Então, o envolvimento com drogas ainda é a tônica do meu grupo focal, mas não se trata somente da questão de classe, pois entre elas havia quem era comerciante, microempreendedora, estagiária em escritório de advocacia e secretária. Ou seja, metade era de família de classe média ou média remediada. Dentre elas, 2 se declararam negras, a maioria parda e 2 brancas. A opressão de gênero parece, para essa pequena amostra de mulheres, ser mais forte do que as outras interseccionalidades (de classe e raça), pois, em comum, elas relatam uma situação de mando, de obediência a uma ordem masculina ou a necessidade de prover a família por ausência dos genitores. Vale destacar que a amostra é composta por mulheres no topo do letramento: as que têm Ensino Médio e, entre elas, algumas que cursavam o Ensino Superior. Ou seja, a amostra também confirma o que está posto na sociedade: quanto mais escolarizada, mais branca se apresenta essa pequena fatia social.
Como resultado diretamente relacionado ao processo de escrita, capturei algumas passagens de resenhas feitas por elas. Em vez dos nomes próprios, uso pseudônimos que elas mesmas escolheram para preservar sua identidade e seu direito ao anonimato. As partes retiradas das resenhas, cujos livros e respectivos(as) autores(as) estão indicados, são pequenos exemplos de que, por meio do letramento crítico, elas refletem sobre sua própria realidade, projetam-se, desenvolvem seus pensamentos, libertam-se de preconceitos e indicam esperanças – também é uma “escrita de si”, segundo Michel Foucault (2004, p. 149), que, em sua leitura de Sêneca, conclui que “a prática de si implica a leitura”, pois a escrita constitui um exercício racional de recolhê-la e de recolher-se nela.
Me sinto admirada com a positividade, certeza e inteligência de Marielle. Concretizando que a educação é o melhor caminho, dando valor a cada família. Para pacificar algo, você tem de saber os reais problemas. (Dona, sobre o livro UPP: redução da favela em três letras, de Marielle Franco)
Nesse um ano que a autora passou na Cadeia Feminina de Santos, ela foi sem dúvida muito importante para todas elas. Nós reeducandas merecemos novas oportunidades. O abandono nos torna mulheres com o coração duro. A revolta, às vezes, toma conta, mas o ato de acreditarem em nós, nos torna mulheres melhores. (Ferreira, sobre o livro Flores do cárcere, de Flávia Ribeiro de Castro)
Ferreira foi a frequentadora mais assídua do projeto. No mês de julho de 2019, ela, grávida de 7 meses, recebeu seu alvará de soltura por enquadramento em habeas corpus (HC) coletivo – o HC 143.641 (LEWANDOWSKI, 2018). Em 20 de fevereiro de 2018, o STF decidiu, por maioria dos votos, determinar medidas alternativas para mulheres presas, em todo o território nacional, que sejam gestantes ou mães de crianças com até 12 anos ou de pessoas com deficiência (LEWANDOWSKI, 2018). Como ela engravidou sem visita? Ela foi a única noiva em sistema prisional de Mato Grosso a se casar em cerimônia coletiva, no dia 12 de dezembro de 2018 (NAZÁRIO, 2018). Na ocasião, aos recém-casados foi concedido um momento de intimidade e Ferreira engravidou.
[...] é o vislumbre de como a leitura pode amenizar o sofrimento humano. (Fernanda, sobre o livro A menina que roubava livros, de Markus Zusak)
A capacidade de alguém mudar através do amor é tocante. Todo mundo pode tornar o mundo melhor. (Maria, sobre o livro Os miseráveis, de Victor Hugo)
Esse livro tem uma história muito poderosa, e a escrita da autora permite o transporte para essa realidade triste e cruel à qual, infelizmente, muitas crianças são submetidas. É meu primeiro livro indiano e escrito por Amita. O modo como ela constrói seus personagens, principalmente os femininos, que são fortes, decididos e destemidos, me agradou muito. (Maravilha, sobre o livro Todas as cores do céu, de Amita Trasi)
Hoje, a maior parte de quem cumpre pena é gente que não estudou muito, cresceu em lugar onde não tinha médicos, não conheceu pessoas importantes, tem a pele escura, não tem dinheiro para pagar bons advogados ou não pode aguardar julgamento em liberdade, mora em casa alugada, enfim, o livro fala da doença da nossa sociedade, fala também em como tratar e curar, porque existe, sim, jeito para mudar tudo. Se a pessoa que cumpre pena, ao sair, não continuasse a ser punida... Mas o preconceito a persegue em tudo. Então, como viver, como continuar e mudar os rumos da vida e da família? (Jhow, sobre o livro O que é encarceramento em massa?, de Juliana Borges)
Os fragmentos também mostram uma identificação com o tipo de leitura – reforçam que o propósito do tipo de livro na campanha de doação deu bom resultado, pois, em geral, elas se identificaram com o protagonismo de mulheres e quando as mulheres escrevem. O letramento crítico implica os deslocamentos e as diversidades:
[...] as pessoas podem se mudar das comunidades em que nasceram e encontrar diferentes formas de estar no mundo. Para algumas delas, isso cria oportunidades de aprender uma língua adicional e também outras crenças e valores. Elas podem ver essa diferença como algo produtivo, uma chance de expandir seus conhecimentos e seu próprio horizonte de possibilidades (JANKS, 2016, p. 32-33).
Margô me ajudou a compor a descrição dos raios. Ela desenvolveu um gosto literário, uma afinidade com um gênero narrativo de fantasia, magia e ficção:
[...] Essa aventura cheia de magia é rica em detalhes que faz imaginar todas as cenas de batalha, realmente um livro que nos prende até o final, uma trilogia maravilhosa, me sinto orgulhosa de ter lido. É magnífico. Creio que achei meu tipo de leitura. (depois de ler o último volume da Trilogia do Mago Negro: O Lorde Supremo, de Trudi Canavan)
Destaco, ainda, 2 relatos entre as 7 participantes analisadas para este artigo, quando perguntadas sobre alguma coisa boa que aprenderam durante o tempo em que estão presas. Ferreira escreveu sobre “a oportunidade de ler Machado de Assis” e Dona disse “a única coisa boa é a resenha, leitura é libertação das almas”. Essa passagem de Dona lembra a referência de Foucault (2004, p. 145) sobre a escrita de si de Santo Atanásio, quando escreveu sua compreensão de Vita Antoni – “a escrita constitui uma experiência e uma espécie de pedra de toque: revelando os movimentos do pensamento, ela dissipa a sombra interior onde se tecem as tramas do inimigo”.
Entendo que o cotidiano prisional não é feito de coisas boas. O ambiente é hostil e requer muito esforço para colher resultados como esses que citei. Os exemplos também devem servir para mostrar que é possível, de fato, um trabalho de reeducação, mas, para isso, precisaria haver investimento do Estado em práticas educativas como prioritárias – o que não acontece. Em geral, ainda se depende de parcerias e voluntariado. Sem falar na ação perniciosa de igrejas que, por vezes, transformam a reeducação em doutrinação religiosa, impingindo o medo, a culpa e a conformação. A liberdade, ao contrário, como diz Angela Davis (2018b), é uma luta constante.
O Dr. Drauzio Varella (2017), depois de sua experiência de 11 anos de voluntariado junto à Penitenciária Feminina da Capital de São Paulo, afirma que cerca de 60% da população carcerária feminina em São Paulo decorre de envolvimento com o tráfico e, como vimos, a realidade mato-grossense é similar. Dados de 2014 indicam que a população carcerária feminina no país era de, aproximadamente, 37.380 mulheres e, entre 2006 e 2014, essa população cresceu 567,4%, diz Juliana Borges (2018, p. 15). Não é à toa que a Penitenciária Ana Maria do Couto May surge nesse contexto de expansão do sistema carcerário, em 2000, e de endurecimento das penas por tráfico de drogas, a partir da Lei n. 11.343/2006, cujos resultados vêm sendo questionados:
[...] a realidade que se impôs foi condizente com os resultados da guerra às drogas na América Latina em geral: superencarceramento, mitigação de garantias processuais e cristalização da figura do traficante como inimigo público, a justificar execuções extrajudiciais, incursões violentas em comunidades vulneráveis e toda sorte de violações de direitos humanos (INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS, 2016).
No que se refere à situação de mulheres no sistema prisional, o problema merece especial atenção. Primeiro, pela idealização desses espaços que não foram e ainda não são pensados para elas; desde o período colonial, momento em que algumas já começam a aparecer nesses recintos, em muitos casos até na mesma cela com homens (ANGOTTI, 2018), as histórias das mulheres em cárcere se dão de forma vilipendiada.
Oficialmente, a primeira manifestação legal que trata do cárcere feminino na história do Brasil aparece no Código Penal de 1940, art. 29, § 2º, que admite -a abertura de cadeias exclusivas para mulheres e, quando não fosse possível, as cadeias mistas deviam acomodá-las separadas dos homens. Antes disso, o manicômio pode ser considerado o primeiro cárcere informal para mulheres, segundo Bruna Angotti (2018).
A partir do século XIX, quando ideias de limpeza e higienização das cidades começam a aparecer no cenário nacional, mulheres consideradas “desviantes” vão sendo enclausuradas nesses ambientes marcados por insalubridade e violências das mais diversas, inclusive sexuais, porque nem sempre os ambientes eram exclusivamente femininos. Essa característica também abarca o ambiente prisional. A ideia comum que se tem para as mulheres é a de torná-las dóceis para o convívio social, algo que se aponta para um suposto lugar de mansidão que a mulher deve ocupar. Bruna Angotti (2018, p. 22) acentua: “Um dos objetivos do aprisionamento de mulheres era inculcar nas prisioneiras sentimentos femininos e orgulho doméstico”.
A cultura patriarcal, cujo princípio básico é a dominação masculina, está presente no cotidiano de todas as mulheres, tornando mais vulneráveis aquelas que não conseguem romper o ciclo da subserviência e da dependência que fundamenta a heteronormatividade. bell hooks (2018, p. 150), no entanto, diz que só o amor (não o romântico) cria condições de mutualidade e, a partir desse princípio, sugere aos homens e às mulheres a adoção de práticas feministas para libertar da servidão e alcançar justiça social. Há uma estreita relação entre o encarceramento de mulheres e o padrão heteronormativo, dado que muitas delas são sentenciadas e cumprem penas por carregar drogas e/ou armas de homens (maridos, namorados, companheiros, algum membro da família) ou até por envolvimento em crimes por conta dessas relações com homens criminosos e sob efeito de uma masculinidade tóxica[18]. Em geral, as mulheres já estão em uma posição de maior vulnerabilidade social e, quando inseridas no contexto de classe social, étnico/racial e geracional, isso tende a aumentar. No contexto desigual da heteronormatividade, as mulheres se tornam passivas e vítimas. Elas têm poucas chances de reagir quando convivem em meios assim contaminados. Quando reagem à altura, podem ser condenadas por décadas, como foi o caso de Alice, contado por Varella (2017).
Alice foi uma das mulheres presas que passou pelo consultório do Dr. Drauzio Varella, para tratar uma sinusite crônica, e ela contou que ainda tinha 18 anos de cadeia pela frente, em São Paulo. Alice era a filha mais velha entre 4 irmãs. Deixou o curso de Pedagogia na Universidade de São Paulo (USP) para trabalhar e sustentar as irmãs mais novas quando seu pai esteve desempregado. Estava bem empregada em uma multinacional quando ocorreu o estupro de sua irmã lésbica, arrastada para um canteiro de obras – esta foi levada à força, violentada e depois esfaqueada pela vagina até o útero e o intestino. Um crime sexual e homofóbico que a levou à unidade de terapia intensiva (UTI) e quase à morte. Alice largou emprego, gastou todo o dinheiro que tinha e foi parar nas ruas, por quase 2 meses, em busca do criminoso – até encontrá-lo e executá-lo com requintes de vingança. Depois, vingou outros 4 crimes de estupro antes de ser presa. Pelo fato de ela ter dado lastro à revanche contra estupradores, pode-se inferir que Alice obteve reconhecimento social. Mas, para o Estado, ela é uma criminosa perigosa que atentou contra a vida de 5 homens.
O cenário para a maioria das mulheres encarceradas é de abandono por parte dos companheiros, de afastamento dos filhos e das famílias (muitas vezes, elas têm vergonha de apresentar-se nessa condição de encarceradas) e de desamparo do Estado que as tutela. A situação de esquecimento na qual essas mulheres se encontram intensifica suas demandas e vulnerabilidades e as distancia de seus “processos abolicionistas”, usando as palavras de Angela Davis[19]. Ela destaca que as prisões são instituições racistas, parte do desdobramento de práticas racistas do século XIX que ainda não superamos, por isso, diz que se considerássemos esse fator, as prisões seriam obsoletas (DAVIS, 2018a, p. 27). Ao considerar que a maior parte da população carcerária também é negra, ela sugere ser fundamental para as lutas feministas e abolicionistas:
[...] aprendermos a pensar, agir e lutar contra o que é ideologicamente estabelecido como “normal”. As prisões são estabelecidas como “normais”. É muito trabalhoso persuadir as pessoas a pensar para além das grades, a imaginar um mundo sem prisões, a lutar pela abolição do aprisionamento como forma predominante de punição (DAVIS, 2018b, p. 96).
É essa a solução que acredito para o superencarceramento: o desencarceramento, mesmo que seja difícil persuadir a opinião pública, pois concordo com Davis (2018b, p. 23): “a prisão é uma solução enganosa”, uma estratégia para escamotear problemas sociais sérios, como a pobreza, o desemprego e a ausência de educação.
Os projetos e as experiências de letramento crítico apresentados são iniciativas desviantes da norma que estigmatiza e oprime as mulheres encarceradas. Uma esperança, se considerarmos que algumas delas não teriam acesso àquelas leituras se não fosse por esses projetos e a escola. Acredito no poder libertador da leitura, como acreditaram as feministas do início do século XX, ao defender a escolaridade para mulheres. Acredito na liberdade pelo sentido objetivo da remição (diminuição da pena) e pelo sentido subjetivo que a leitura proporciona: o crescimento intelectual e a possibilidade de transportar para fora dos muros da prisão, por meio da imaginação que a leitura proporciona.
A reeducação deveria ser o intuito primeiro daqueles que designam essas mulheres como “reeducandas”. Reeducar (reabilitar, reparar, regenerar – sinônimos de dicionário), no entanto, não é o foco prioritário que acompanha as políticas de encarceramento. Como vimos, os trabalhos de letramento apresentados dependem de parceria com a Seduc-MT ou de voluntariado. Nem todas as unidades prisionais têm biblioteca e o acesso aos livros ainda é muito restrito.
Foram inspiradoras as reflexões sobre políticas de encarceramento, sobretudo tomando os EUA como referência, pois se trata do país que mais encarcera no mundo. O complexo industrial penal dos EUA, como apresentado por Angela Davis (2018b), ainda não é uma realidade predominante no Brasil. As unidades prisionais que investiguei não têm os recursos do governo administrados por empresas privadas que exploram mão de obra barata ou escrava nos presídios, embora várias repartições públicas e terceirizadas empreguem mulheres presas para serviços, em geral de limpeza, por salários exíguos. Mas a privatização dos presídios é defendida pelo atual governo, quando faz pouco caso das situações de superlotação dos presídios e não toma medidas que evitem massacres, como os ocorridos recentemente em Manaus[20] e em Altamira-PA[21], apenas se providenciam transferências. Ao contrário, a política de criminalização, principalmente da população negra, resulta em aumento da massa carcerária e oferece argumentos para apoio às privatizações no sistema prisional. A série estadunidense Orange is the New Black[22], exibida pela Netflix, é uma referência que indica os processos de depauperamento, exploração e desumanização promovidos pelo capital, destacando as mulheres. Os episódios se baseiam em histórias reais e, lamentavelmente, o que lá acontece não está tão longe de realizar-se aqui.
Assim, a pergunta que Gayatri Spivak (2010) lançou em 1985 ainda ecoa: Pode o subalterno falar? Na cadeia social que inferioriza e silencia mulheres, aquelas privadas de liberdade ficam em camada mais profunda de obscuridade. Quem se interessa? Quem as ouve?
Este estudo constitui um exercício exíguo de trazer um pouco dessas vozes de resistência.
Antes de finalizar, fiz uma cópia inacabada deste texto e algumas das mulheres presas leram. Recebi críticas, elogios e algumas contribuições que foram incorporadas ou alteradas a partir do que apresentei a elas. Infelizmente, para preservá-las de qualquer interpretação que possa ser usada contra elas, não posso citar seus nomes verdadeiros. Mas são elas a minha inspiração. E este escrito seria impossível sem elas.
Carrinho literário.
Fonte: Acervo pessoal.A escola fica entre os muros do espaço institucional da penitenciária, como aparece circulado na Figura 2.
Fonte: Google Maps/Google Earth.