Resumo: O objetivo deste artigo é analisar as experiências dos trabalhadores têxteis de Blumenau (1960-68) em relação ao cotidiano, em suas dimensões do trabalho e dos ritos celebrativos da festa junina, com ênfase na constituição de suas culturas de classe, articuladas com sua expressão de ideias e ações no labor, em interconexão com o âmbito festivo. A convivência entre menores de idade, mulheres e homens que trabalhavam na indústria têxtil de Blumenau indicou a diversidade de ações concretas na formulação de suas culturas de classe, tanto nos espaços formais de trabalho quanto no âmbito da festa junina, demonstrando a força da agência humana na elaboração de suas redes de solidariedade e na circularidade cultural intrínseca ao mundo do trabalho.
Palavras-chave:Trabalhadores têxteis – Blumenau (SC)Trabalhadores têxteis – Blumenau (SC),Identidade SocialIdentidade Social,Festas – HistóriaFestas – História.
Abstract: The objective of this paper is to analyze the experiences of textile workers of Blumenau (1960-68) in relation to labor and the values and rites of June festivals, with emphasis on the constitution of their class cultures, based on their forms of everyday life at the factory, articulated with their expression of ideas and actions on the festive calendar. The coexistence between minors, women and men working in the Blumenau textile industry indicates a diversity of concrete actions on formulation of their class cultures, both in their working spaces and in the June festivals, demonstrating the strength of human agency on the elaboration of networks of solidarity and cultural circularity intrinsic to the world of work.
Keywords: Textile workers – Blumenau (SC), Everyday life, Class cultures, Parties – History.
Dossiê
A urdidura do cotidiano e as culturas de classe dos trabalhadores da Indústria Têxtil de Blumenau (1960-68)
Received: 30 September 2019
Accepted: 04 February 2020
O escopo da pesquisa reside no estudo detalhado da experiência dos trabalhadores têxteis de Blumenau, com ênfase na articulação entre cotidiano de trabalho e ocasiões festivas, em conexão direta com a historiografia da História Social do Trabalho. Especificamente, converge com os estudos sobre as culturas de classe dos trabalhadores, manifestadas nas diversas formas de expressão e inscritas no campo das relações de força, visíveis também na ação dos trabalhadores em sua vida cotidiana, na criação de elementos culturais forjados por meio de concordâncias e conflitos, diante de um sistema repleto de diversidade. A compreensão do mundo social visto e vivido por trabalhadores pressupõe considerar suas escolhas e possibilidades de convivência, aliadas às evidências da noção da cultura como espaço privilegiado para a análise do exercício da liberdade dos trabalhadores, considerando a reciprocidade de elementos que não se constituem por oposição, mas se entrelaçam às diversas dimensões da vida.
Para a maioria dos trabalhadores têxteis de Blumenau, o ambiente de trabalho dominava sua vida diária, por outro lado, mesmo diante de uma cidade organizada pelo discurso da valoração do trabalho, a recomposição constante do cotidiano ocultava uma extraordinária variedade de formas e uma rede de relações interpessoais dotadas de uma considerável força explicativa (LEVI, 2003, p. 282). O objetivo deste artigo é analisar as experiências dos trabalhadores têxteis de Blumenau (1960-68) em relação ao cotidiano, em suas dimensões do trabalho e dos ritos celebrativos da festa junina, com ênfase na constituição de suas culturas de classe, articuladas com sua expressão de ideias e ações no labor, em interconexão com o âmbito festivo. Por extensão, integra-se aos estudos historiográficos que englobam a transição entre a experiência democrática (1960-64) e o início da ditadura civil-militar brasileira (1964-68), conferindo destaque a Blumenau[2], cidade industrial catarinense com imenso contingente de trabalhadores vinculados ao segmento têxtil. A força de trabalho dos têxteis alçou o município ao patamar de primeiro lugar do Brasil na produção de artigos felpudos, de malharia branca, de camisetas de malha e etiquetas bordadas.
Na década de 1960, as indústrias têxteis de Blumenau estavam escondidas no fundo dos vales, por entre as montanhas, e não concentradas nas áreas específicas destinadas à localização dos parques fabris. A geografia do lugar gerava uma dispersão da localização dos grandes estabelecimentos industriais e, em um primeiro olhar, era pouco perceptível a distinção entre as áreas residenciais e industriais, dada à conglomeração de moradias no entorno da fábrica. Dos quase 6 mil operários da indústria têxtil[3], aproximadamente 5.500 moravam em um raio inferior a 3 km de seu local de trabalho. Dois bairros se destacavam como os principais polos do setor: Garcia, localizado na região sul e distante 5 km do centro, com cerca de 2.700 trabalhadores e, Bom Retiro, situado na região oeste, nas proximidades do centro, com 1.800 operários (MAMIGONIAN, 1966). Na organização da rotina diária, o trabalho era uma atividade considerada de enobrecimento e orgulho, por isso, centralizava boa parte da vida dos trabalhadores e possibilitava o contato com outras esferas da vida, em especial as formas de convivência associadas à família[4] e à comunidade, todas componentes dos aspectos das culturas de classe dos trabalhadores. A relação entre esses elementos estava articulada à diversidade e paridade, divisão e unidade entre os trabalhadores, portanto, integrada à contínua correlação de forças e longe da estática ou fixidez (KIRK, 2004, p. 53). Obviamente, a vida cotidiana era forjada nas diferenças e seria incabível sugerir uma unidade capaz de parametrizar ou sistematizar suas nuances, por isso, a importância em não reduzi-la ao âmbito fabril, fator que geraria uma via de mão única na análise. Portanto, convém compreender o significado atribuído aos momentos vivenciados fora do espaço fabril, sem deixar de considerar que essas atividades raramente eram mencionadas espontaneamente pelos próprios trabalhadores. Afinal, o medo da ociosidade e o orgulho gerado pela capacidade de trabalhar eram supervalorizados, seja na indústria ou fora dela.
Isso também se inscrevia de maneira insidiosa nas instruções para formação de uma idealização e culto ao “bom trabalhador”, na coluna denominada “Guia do Bom Cidadão”, publicada no Mensageiro Artex:
Há os que preferem agir como animais inferiores, deixando de usar a inteligência para seguir conselhos de maus companheiros, diminuindo de propósito o rendimento do seu trabalho. Não percebem que essa atitude só serve para trazer o aborrecimento a toda a sociedade [...]. Logo, quem procura produzir pouco, está prejudicando a si próprio, prejudicando a sua família, concorrendo para sustentar lutas de classes, aumentar a miséria e as aflições sociais. O trabalho é a alegria da vida. É a condição da liberdade. É a dignidade superior de seres superiores. (MENSAGEIRO ARTEX, dez. 1966, p. 9).
O “bom trabalhador” era um estereótipo criado pelo patronato e visava constituir um “empregado ideal” para o sistema fabril, dotado de todas as qualidades necessárias às prioridades definidas pelos industriais. Era disseminado aos operários por meio dos jornais de circulação interna das fábricas, especialmente na veiculação de artigos que versavam sobre as atitudes esperadas do “bom trabalhador”, tipo considerado perfeito ao sistema de produção. Um ponto alto desse processo “instrucional” era a publicação de testes voltados à avaliação dos operários, com o propósito de verificar se atuavam de acordo com as regras. Em caso negativo, havia um direcionamento sobre as ações necessárias para atingir o perfil desejado e, caso contrário, o dissidente poderia até perder seu emprego. A norma era evitar o “desânimo”, procurar em si próprio as falhas que levavam à “improdução” e, com afinco, modificar paulatinamente seu modo de agir em relação aos chefes e colegas (O RADAR SULFABRIL, set. 1965).
Por extensão, no afã de transformar o espaço fabril em um lugar familiar, muitos empresários adotaram procedimentos organizacionais que visavam o estabelecimento de uma relação livre de conflitos classistas, por meio de um ideal de reciprocidade nas relações entre patrões e operários. As referências à família compunham um recorrente discurso de unificação entre os ambientes do lar e da fábrica, por isso, no sistema fabril persistia um ideal que atribuía à indústria o apelido de “segundo lar”, portanto, local de convivência da “segunda família”.
Todavia, as disparidades entre o lar e o ambiente de trabalho contrastavam em vários aspectos, a começar pela estrutura do local de trabalho, onde as janelas altas e a falta de ventilação adequada emanavam escuridão e poeira sem fim. Norma Schwabe, funcionária da Empresa Industrial Garcia entre 1957 e 1964, descreveu o espaço industrial como um lugar onde o “pó era demais [...] era uma máquina do lado da outra [...] e tinha aquelas janelas bem em cima, mas era muito calor, eles tinham aqueles ventiladores, mas não adiantava nada” (SCHWABE, 2001).
As oito horas de trabalho ocupavam normalmente o dia inteiro, porém, na década de 1960 o horário passou a ser dividido em turnos e isso gerou um tempo maior a ser “depositado no lar”. Na volta para casa, após vencer outra jornada de trabalho, outras funções deveriam ser realizadas, sobretudo para as mulheres, portanto, era comum um cansaço constante associado às atividades. Irene Poli, operária da Empresa Industrial Garcia, mencionou que ao chegar à fábrica, estava “bem cansada, nem tinha vontade de trabalhar. Eu mesma já não dava muita produção, chegava lá estava tão cansada! Eu tinha vontade de voltar... mas tinha que trabalhar!” (POLI, 2001). Essa realidade do mundo do trabalho deixava transparecer com nitidez o abismo reinante entre o lar e a fábrica.
Por outro lado, era inegável a presença maciça de membros do núcleo familiar que trabalhavam na mesma fábrica. Também era usual a aprendizagem dos filhos dos operários ficar sob os auspícios de seus pais, cujos olhares e ensinamentos estavam eivados de padrões comportamentais e instruções técnicas acumulados ao longo da profissão. Os valores familiares e o respeito à figura paterna eram incentivados a serem reproduzidos no ambiente de trabalho por essas prescrições normativas. Muitas das regras para tentativa de conformação do comportamento dos trabalhadores seguiam estruturas típicas de mandamentos e as narrativas de conduta acionavam esse padrão bíblico, de caráter instrucional, remetendo para as formas conhecidas de linguagem, ao relacioná-las com os parâmetros dogmáticos da religião cristã. No entanto, cabe atentar para o fato de que mesmo os mais duros sistemas normativos observam com atenção a preferência de seu público, seja no afã de reprimi-los ou cooptá-los. Por isso, a estratégia de envolvimento familiar nas relações de trabalho não era forçosamente imputada aos operários, pois havia uma complexidade nesse processo que extrapolava a mera clivagem das hierarquias. O uso consciente ou não de mecanismos instrutivos também dava a entender que havia um acordo entre ambas as partes, empresários e trabalhadores, na implementação desse modelo de atuação.
Não por acaso, a taxa de jovens trabalhadores[5] era elevada na indústria têxtil e havia o costume de os pais levarem seus filhos que haviam completado 14 anos de idade à fábrica para iniciarem suas atividades como operários, sob a justificativa de que o trabalho tinha a função de enobrecimento do caráter e da alma. No entanto, a sobrevivência era o principal fator de motivação para tal procedimento e os menores de idade não chegavam sequer a completar o ensino básico e já eram recrutados para ajudar no sustento familiar. A partir das garantias e referências do pai ou da mãe, que também assumiam a responsabilidade perante a lei, o jovem trabalhador iniciava suas funções e tornava-se portador de um “Cartão de Identidade Profissional do Menor”.
O próprio recrutamento dos jovens para iniciar na rotina das fábricas têxteis contava com frases de impacto nos jornais de fábrica, por exemplo: “Desgraçados os meninos que têm todas as portas abertas diante de si, numa palavra, nenhuma contrariedade a vencer. De que utilidade serão eles para a família, para a pátria e para a humanidade?” (O RADAR SULFABRIL, out. 1965). Nessa perspectiva, a centralidade do processo educativo estava na superação das dificuldades e obstáculos e a utilidade do indivíduo era sintetizada em função da realização adequada de suas atividades laborais.
Trabalhadores menores entregavam o salário por inteiro aos pais e o dinheiro, fruto de seu trabalho, era utilizado pelos jovens somente depois de seu casamento. Alguns pais também optavam em protelar o noivado de seus filhos, como no caso de Paula e Mario Kratz, ambos trabalhadores de uma indústria têxtil no bairro do Garcia. A festa de casamento estava em fase de preparação, no entanto, o pai da noiva voltou atrás no aceite, sob a justificativa de que sua filha era “muito nova” e deveria “ajudar um pouco em casa porque tinha muitos irmãos” para sustentar. Tal situação perdurou por um tempo, até que a noiva engravidou e, então, “teve” que casar. No entanto, nunca recebeu a bênção paterna e na festa de casamento “não tinha ninguém, não foi feito nada”, porque seu pai estava “bravo” (KRATZ, 2002) com ela.
Portanto, casar era também sinônimo de autonomia em relação à utilização do salário, mas, por outro lado, acarretava responsabilidades extras e mostrava, de fato, as complexas circunstâncias em que eram forjadas as experiências dos trabalhadores. O homem casado deveria atuar como chefe de família, cumprindo com suas funções de garantir o sustento da esposa e filhos, enfim, acompanhando o andamento do lar, sob a ótica de que na família, o poder principal continuava a ser o do pai (PERROT, 1992, p. 180). No artigo de Saul Guino Sgrott, “Relembrando boas maneiras: a vida em família”, eram constantes os recados de incentivo para que os trabalhadores se tornassem “chefes” de lares bem organizados: “se por acaso ainda não assumiu tal responsabilidade, acredito que este seja o seu maior desejo” (O RADAR SULFABRIL, mar. 1965). O sustentáculo da sociedade era a família, a quem era atribuída a função de formar corretamente o chamado “bom cidadão”, por isso, o discurso começava com a afirmação de um princípio básico: Ora, o homem é social, justamente porque nasce numa família, cresce na família e se destina a formar uma família (MENSAGEIRO ARTEX, abr. 1966).
Nesse caso, o único jeito de exercer direitos sociais seria na condição de pertencer a uma família, atuando como filho/a, irmão/ã e posteriormente como pai/mãe. Era conveniente aos meios de divulgação ligados à fábrica citar, constantemente, os direitos associados aos deveres dos operários e a constituição de uma família era considerada uma obrigação perante a comunidade. Para quem nada possuía, nasceu o “orgulho do trabalho incessante que absorvia a vida toda, mas ao mesmo tempo a glorifica” e tornou-se uma espécie de ideal daquele que “sem nunca parar, morre de pé, num derradeiro labor.” (CORBIN, 1995, p. 385).
O tecelão Norberto Gonçalves, conhecido por todos como Beto, explicitava: “Tive que trabalhar para sustentar a família e meu pai ganhava pouco porque trabalhava na tinturaria. Meu irmão mais velho começou a trabalhar pra família e quando tinha 17 anos saiu de casa, ficou só eu, só eu e meu pai.” (GONÇALVES, 2003). Na constituição das memórias ativadas pelos trabalhadores, a rotina de trabalho se justificava como elemento de valoração da vida e, segundo a percepção de alguns, merecia um lugar de destaque no dia a dia. Ao ser questionado sobre sua experiência como operário-tecelão, Norberto Gonçalves se emocionou ao relembrar que gostava muito de estudar, todavia, não teve “chance” e não pôde fazê-lo por conta da situação financeira da família: “sempre queria estudar e não dava porque tinha que sustentar a casa, eu e meu pai” (GONÇALVES, 2003).
Somado aos impedimentos para estudar gerados pelo trabalho, as relações familiares também ocasionavam na indústria têxtil um número mínimo de mulheres com faixa etária entre 25 e 30 anos, baixa atribuída ao casamento. Portanto, congregar atividades domésticas e trabalho, mesmo diante de um parâmetro de “mundo” e vida em sociedade com a família, exigia um grau de esforço pessoal na constituição de relações pessoais, sociais e trabalhistas. Logo, o trabalho na fábrica implicava lidar com as exigências e as complexidades vinculadas a um período de adaptação.
No caso das mulheres, o ideal de vida propagado estava relacionado ao lar, esposo e filhos. Naturalmente, o comportamento padrão predominante considerava a mulher que não se interessava por esse ideal como desprovida de feminilidade e sucesso, a ponto de não merecer sequer ser chamada de “mulher”. Tal concepção era propagada nos jornais de fábrica nas colunas femininas e alertava constantemente às jovens: “Garota, não erre seus caminhos! O feminino é avidez de atenção, anúncio luminoso de atrativos? [...] A juventude de valor é autêntica, tem preocupações existenciais: de onde venho? Para onde vou? O que é amar? O que deve ser o casamento?” (MENSAGEIRO ARTEX, set. 1966) Esses diálogos eram frequentes e tinham um cunho pedagógico, com declaração nítida do ponto de vista moral e ético, voltado às esferas do trabalho e da vida privada. Continham indicações precisas do caminho para a realização exitosa das funções femininas e atenção redobrada às fugas, consolidadas em uma feminilidade exagerada e pouco voltada para atitudes responsáveis e aceitas pela sociedade, em especial no tocante à valorização do casamento. As famílias consideradas ideais para trabalhar nas indústrias têxteis eram constituídas de um pai, operário especializado e uma mãe, dona de casa, também responsável por atividades ligadas às funções semiespecializadas na fábrica. Com o casamento, novas regras eram imputadas às trabalhadoras.
Algumas mulheres infringiram certas regulamentações, sob a égide da condição feminina, com o intuito de formular novos ideais de vida. Na maioria das vezes, as alterações pareciam sutis à primeira vista, porém, os pequenos sinais de mudança apontavam para ações femininas voltadas às seguintes atitudes: casamento adiado até mais tarde ou nem sequer concretizado; desquite e divórcio; trabalho em ambientes considerados tipicamente masculinos, dentre outros. Apesar da presença das condutas padronizadas, as mulheres constituíram escolhas pessoais vinculadas às suas próprias potencialidades e simplesmente exerceram, em alguma medida, a prática de ser humano universal.
Quando os recursos financeiros impediam a sua permanência exclusiva no lar, elas aderiam ao mundo do trabalho na fábrica e carregavam em si os preceitos adquiridos na educação. Para evitar o seu envolvimento com ideias libertárias, boa parte dos meios de comunicação das fábricas reforçava um ideal de trabalho vinculado aos homens e a maternidade era representada como propensão natural das mulheres. Por isso, circulavam notícias para que elas compreendessem “que o homem não foi feito para ficar em casa; sua natureza exige atividade [...] e o trabalho é a vocação do homem” (NOTICIÁRIO CREMER, jul./ago. 1968). Deveria estar ciente de que a sua presença na fábrica tinha um caráter de colaboração e apoio aos homens, dada a situação econômica vigente, que o impedia de ser o único responsável pelo sustento da família. Em outras palavras, era fundamental que o salário feminino fosse considerado suplementar e os rendimentos masculinos colocassem os homens na posição de provedor da família.
O ideal de diferenciação social era empregado como sustentáculo do próprio sistema de recursos humanos da fábrica na distribuição das funções de controle e administração, para que o trabalhador exercesse funções de governança de seus próprios colegas. Eram nomeados mestres, contramestres e chefes de seção, operários que, em sua grande maioria, incorporavam a sensação de pertencimento ao corpo da direção e, frequentemente, esqueciam sua condição operária para tornar-se a voz autorizada do patrão nas administrações setoriais.
Os deveres do “chefe” também apareciam de modo marcado nos artigos dedicados às instruções acerca de suas atribuições. Era incumbido de funções técnicas e, dentre suas atribuições, constava: “observar o comportamento dos seus comandados”, especialmente com o dever de esclarecimento acerca das “regras de civilidade no trato com os colegas de lutas” (O RADAR SULFABRIL, jan. 1966).
Além disso, antes de se tornaram mestres e contramestres, eles eram trabalhadores respeitados por atributos considerados como essenciais, tais como: assiduidade, competência, garra e vontade para o trabalho, portanto, exerciam funções de liderança e representação junto ao operariado. O contramestre controlava até mesmo o ritmo de trabalho, por meio da determinação específica do funcionamento do maquinário, instrumento que fixava o trabalhador de modo a deixá-lo colado em seu lugar na oficina e, por extensão, as relações hierárquicas tornavam-se evidenciadas no âmbito do sistema de produção.
Frequentemente, o contramestre era visto como um “operário-patrão” pelos operários, principalmente, porque exercia uma função que impunha respeito, portanto, era considerado “enérgico” e, ao mesmo tempo, “acessível”. A autoridade do chefe também carregava um caráter exemplar, no sentido de que era um operário bem-sucedido e, por seus próprios méritos, conseguiu ascender na empresa. Seus cargos eram cobiçados, na busca por benefícios e promoção social (FONTES, 2004, p. 378). Os patrões também procuravam estreitar a aproximação entre ambos, com o propósito de distanciá-los dos trabalhadores e, para tanto, concediam privilégios financeiros e simbólicos.
Para os industriais e dirigentes da fábrica, o trabalhador deveria assumir um caráter modelar, fruto de um padrão disciplinar de “bom trabalhador”. O ato de trabalhar conferia uma posição de relevância moral aos operários e a ociosidade ou vagabundagem estavam associadas à marginalização social do indivíduo. A própria especialização do espaço industrial e a disposição do maquinário em uma ordem, que designava um lugar para cada operário, reforçavam a idealização de parâmetros exemplares.
Alguns procedimentos tornaram-se instrumentos da simbologia do sistema produtivo, exemplo disso era a cronometragem, os sistemas de remuneração por produtividade e faixas pintadas no chão dos corredores para definir os locais aonde o operário não poderia se aventurar sem autorização (PROST, 1995, p. 36). Esses parâmetros deveriam balizar a vida dos trabalhadores na fábrica com o objetivo de garantir condutas consideradas desejáveis. Esse comportamento modelar foi personificado sob o rótulo de “operário padrão”[6], capaz de sintetizar as melhores características como representante da máxima capacidade de trabalho.
Em Blumenau, Leopoldo Ferrari, trabalhador da Indústria Têxtil Hering foi eleito o Operário Padrão Estadual de 1965, na Delegacia Regional do Serviço Social da Indústria (SESI), na capital do estado. A imprensa local noticiou efusivamente o fato, com destaque para a eficiência, a “conduta particular e pública” e o tempo de serviço, qualidades consideradas fundamentais para que Ferrari fosse “coroado de êxito” em Florianópolis, na Federação das Indústrias de Santa Catarina (FIESC) (A NAÇÃO, 10 out. 1965). A ênfase na eficácia do operário, que atuava há 32 anos na empresa era uma maneira de deixar claro o caráter modelar do prêmio recebido e, além disso, o mérito também foi concedido à Companhia Hering, considerada igualmente digna de ser homenageada. E a própria empresa também tratou de usufruir do prêmio, ao anunciar o oferecimento de um jantar (INFORMATIVO HERING, nov. 1965, p. 1- 4) ao operário e sua família, ainda que Ferrari não tenha sido eleito em âmbito nacional.
Naturalmente, para além dos quesitos técnicos avaliados no concurso, a conduta do operário também deveria estar voltada à aprovação dos patrões. Com o objetivo de selecionar trabalhadores consagrados por sua atuação modelar, as provas envolviam inúmeros estágios até chegar à fase final, em que era escolhido o mais qualificado dentre os competidores. Inicialmente eram selecionados os candidatos nas próprias fábricas que, por sua vez, aderiam espontaneamente à campanha. Na segunda etapa, participavam da seleção estadual (Operário Padrão Estadual) e, por último, os trabalhadores competiam na fase final e disputavam o título de Operário Padrão Nacional (CAMPOS, 2011, p. 2).
Além de Leopoldo Ferrari, eleito na categoria como operário padrão por Santa Catarina, Blumenau também contou com Rudolph Pabst, funcionário da Empresa Industrial Garcia que, em 1967, recebeu o título de Operário Padrão Nacional e disputou com cinco trabalhadores finalistas dos estados de Minas Gerais, Pernambuco, Bahia e Guanabara (A NAÇÃO, 08 dez. 1967). Pabst iniciou sua carreira aos 14 anos (1917) e interessou-se pelos teares ainda muito jovem, especializou-se e desenvolveu técnicas no maquinário têxtil, além de envolver-se com o Sindicato dos Trabalhadores de Fiação e Tecelagem. O concurso daquele ano havia sido patrocinado pela Confederação Nacional das Indústrias (CNI), interessada em manter o clima de paz entre “capital e trabalho” (A NAÇÃO, 08 dez. 1967). Tal proposição estava articulada aos princípios do SESI, cujos serviços e publicações estavam interessados em “reconstruir” o trabalhador brasileiro para garantir paz social (WEINSTEIN, 2000, p. 28). Por isso, a vitória de Rudolph diante da obtenção do prêmio nacional foi conectada ao ideal de “capacidade de trabalho da gente do Vale, que diuturnamente atua em favor do desenvolvimento Pátrio” (A NAÇÃO, 10 dez. 1967, p. 1) e ele foi considerado o representante ideal de trabalhador têxtil em nível local e nacional.
Mesmo diante desses elementos de padronização, a vida dos trabalhadores na indústria têxtil remete a considerar uma constante interação entre os elementos de diversidade e semelhança, divisões e unidades, conflitos e harmonias. A despeito das desigualdades, sobretudo de gênero, as “culturas de classe” têm propensão a considerar a “família operária” como uma dimensão estreitamente vinculada ao mundo da sobrevivência e progresso coletivos. As diferenças coexistiam em grande medida, porque a dureza do cotidiano fabril e um ambiente de trabalho nem sempre amistoso eram atenuadas a partir das relações informais e de auxílio mútuo, especialmente na constituição de uma extensa rede de convivência laboral.
As sutis tonalidades e as inúmeras diferenças articuladas nos poderes das relações de produção são dimensões privilegiadas para a análise da atuação dos trabalhadores no âmbito do cotidiano, especialmente porque a mobilidade social e a busca pela melhoria das condições de vida também geravam elementos de unidade, em simbiose com a formação dos conjuntos, muitas vezes fracionados, dos mundos do trabalho. Na busca pela unidade integradora das experiências da coletividade operária coexistem “elementos sociais e culturais desagregadores e estratégias de resolução ou atenuação dos conflitos” (BATALHA; SILVA; FORTES, 2004, p. 15). A agência humana – agency (THOMPSON, 1958) – carrega em si uma série de práticas cotidianas integrantes das culturas de classe e compostas por uma multiplicidade de ações, não necessariamente formuladoras de um todo unívoco, todavia, compatíveis entre si e ajustáveis na medida das circunstâncias do vivido.
As estreitas ligações com as atividades de trabalho são inerentes à própria existência e seria incabível praticar análises pautadas na dicotomia entre o trabalho fabril e o lar e, salvaguardadas suas diferenças, as responsabilidades diárias realizadas em ambas as esferas direcionavam para uma dúvida constante: qual delas deveria receber maior atenção e dedicação no cotidiano? O dia a dia – everyday (ELIAS, 1998, p. 171) – tem uma relação de simbiose com a rotina e o trabalho diário propriamente, além de vincular-se à vida das “massas”, à esfera de eventos mundanos, à vida privada, às genuínas experiências e à formulação da consciência de classe.
Algumas atitudes dos trabalhadores não eram condizentes com os parâmetros comportamentais desejáveis ao “bom trabalhador”. Para livrar-se da rotina industrial, aliviar o cansaço e simplesmente burlar regras e se divertir, em algumas indústrias têxteis ocorria uma peculiaridade não registrada nas fontes impressas: a retirada de sobras de malha pertencentes à fábrica, com o propósito de confeccionar roupas de cama para uso doméstico. A estratégia das mulheres inicialmente previa o uso de roupas largas, depois, cautelosamente, a operária se dirigia ao banheiro e enrolava pedaços de malha ao redor da cintura. Na sequência, vestia sua roupa e voltava ao trabalho, passando despercebida pelos chefes e demais colegas. Segundo Andília Bernardo, tal procedimento se repetia até a obtenção da quantidade necessária para costurar as roupas de cama para a família inteira (BERNARDO, 2001). Obviamente, essa prática não era constante, pois os lençóis e fronhas tinham vida útil razoável. No entanto, era uma situação praticada de tempos em tempos por diferentes operárias, o que leva à constituição de uma rotina para personagens em alternância nesse processo.
Diante desse costume não usual, os mecanismos de controle mostravam toda sua fragilidade. Normalmente, isso ocorria com o objetivo de trazer conforto para o lar e confirmava sua função de responsável pelo bem-estar familiar, tornando-se a boa mãe e boa filha que a sociedade exigia que ela fosse. Por outro lado, indicava claramente que o disciplinamento também era passível de falhas, afinal de contas, a trabalhadora Andília Bernardo mencionou que essa decisão foi mera e simplesmente um ato de rebeldia, pois encontrou motivação no fato de que a indústria havia proibido que os operários levassem para casa os retalhos não utilizados na produção diária.
Dentre outras pequenas atitudes que fraturavam o disciplinamento estava o costume de consumir doces, balas, frutas e lanches durante a execução do serviço, à revelia das regras. O motivo da proibição, segundo justificativas do patronato, era a distração que o barulho do papel de bala causaria, a sujeira e as conversas que se iniciavam com esse ato. No entanto, ainda assim, discretamente, os trabalhadores abriam balas e outros doces sem fazer alarde e escapavam da observação dos contramestres que talvez até soubessem, mas deixavam de lado as punições. Na Empresa Industrial Garcia, havia uma estratégia para saber quando o contramestre se aproximava, momento em que os chicletes e as balas deveriam parar de revirar na boca: “ele usava um perfume muito forte e de longe já sentíamos o cheiro, então uma dava sinal para a outra.” (SCHWABE, 2001).
Em outra situação vivida em uma seção de fiação, foi relatado que em função do acúmulo de poeira da máquina em funcionamento, por recomendação superior, utilizava-se um pedaço de madeira com feltro para passar atrás do fio, retirando-se assim a sujeira acumulada. Por ser cansativo e trabalhoso, comumente, esse instrumento era trocado e ao invés de seguir à risca as instruções, as trabalhadoras abanavam a máquina com um pedaço de papelão para fazer a poeira voar. Isso tudo feito mediante a ausência de supervisores no setor e, caso a maçaneta da porta se movesse, a comunicação verbal e visual funcionaria como um alarme. Andília Bernardo discorreu animadamente que “a sala toda se comunicava” (SCHWABE, 2001), com sinais e códigos indicativos da presença dos contramestres e mestres.
Também havia uma estratégia para driblar outra atividade proibida, a conversa entre os membros de uma mesma seção. No depósito da Empresa Garcia, os funcionários juntavam quatro grades utilizadas para estender o felpudo e formavam um quadrado, com um vão no centro. A costureira Ruth Missfeld declarou: “Muitas vezes a gente entrava ali e sentava. Não tinha como fazer, [...] pra ele [o gerente] encontrar a gente fazendo talvez uma brincadeira, ou alguma coisa assim” (MISSFELD, 2001). Comumente, os trabalhadores praticavam a “complacência” (LÜDTKE, 1995, p. 204) diante de certos controles empreendidos pelo sistema fabril e isso leva a crer que a agência dos sujeitos envolvidos nesses jogos do cotidiano também não previa ações milimétrica e cuidadosamente planejadas.
Igualmente, brotavam amizades nessas práticas sutis, especialmente por conta da necessidade de união, para que suas brincadeiras fossem bem-sucedidas. Grande parte da cumplicidade era tida por meio de contato verbal, pois durante o trabalho era proibida a comunicação entre as colegas, com recomendação para conversar “somente o necessário”. Por vezes, os instrumentos de trabalho eram utilizados como disfarce para conversar: em sincronia com a colega do lado, ambas se abaixavam para pegar tecido ou trocar alguma peça na máquina e assim, ninguém “servia de testemunha” (SCHWABE, 2001). Muitas conversas eram articuladas por meio de gestos, outras aconteciam no banheiro, local onde podiam ser interrompidas por alguma advertência vinda do lado de fora. A desconfiança do tempo de permanência no banheiro despertava a atenção dos chefes, que logo tratavam de verificar a situação. O banheiro também era um lugar para descansar o corpo e sentar, no caso de operárias que trabalhavam em pé, ou esticar o corpo depois de uma longa permanência sentada. Para evitar que ele fosse utilizado como um refúgio, algumas indústrias apelavam para o recurso da chave, que permanecia na parede e, quando alguém quisesse fazer uso do banheiro, precisava retirá-la e posteriormente colocá-la no lugar de origem. Quem fosse utilizá-lo precisava ter certa a ideia de que outras pessoas estavam no aguardo e, por isso, não poderiam demorar. Forçosamente cada trabalhador precisava “pensar em seu colega” (HÄRBE, 2001) na constituição das relações de trabalho.
Portanto, nem tudo era diferença, disciplina e hierarquia no mundo do trabalho, pois a despeito das desigualdades gestadas no ambiente fabril, mesmo diante dos mecanismos de controle, os operários estavam atentos às possibilidades de infiltrações para criar fissuras e brechas no sistema de disciplinamento empregado pela indústria. Para isso existiam os códigos de solidariedade entre os operários, que serviam de alerta aos trabalhadores, por meio de sinais, palavras e gestos. Tais sistemas simbólicos eram sabidos apenas pelos trabalhadores das seções que não possuíam cargos de chefia, afinal de contas, se os contramestres, mestres e superiores soubessem dos códigos, sua função de aviso e alerta seria inutilizada, conforme explica Artino Leite: “Quando um mestre entrava na sala, alguém fazia o sinal para os outros, sem o mestre ver... Tinha os códigos dos operários, para todo mundo ficar alerta. Quando se sabia que o mestre estava na sala, todo mundo ficava quietinho, ninguém olhava para o outro” (LEITE, 2004).
Tais códigos de solidariedade dos operários geravam uma identificação entre os membros da mesma seção, embora tal particularidade não bastasse para eliminar os conflitos internos do ambiente de trabalho. Essa situação estava intimamente ligada à convivência mútua e à diversidade dos grupos sociais, onde coexistiam disputas e negociações, com interesses comuns vinculados ao sentido de grupo. Portanto, os trabalhadores demarcaram alianças, espaços e tempos próprios para forjar suas respectivas escolhas, ainda que os significados individuais fossem múltiplos. No entanto, a vida cotidiana de muitos trabalhadores era organizada em relação ao seu tempo de trabalho e os modos de viver fora da fábrica estavam articulados aos espaços de sociabilidade e à comunidade do bairro, em geral, no entorno das indústrias. Tais esferas de convivência não eram excludentes e conectavam-se entre si, por isso, o trabalho, a cultura e os espaços festivos imbricavam-se com outros aspectos da vida dos trabalhadores, sem necessariamente compor um quadro unívoco e imutável, mas em constante reelaboração e troca de experiência individual, grupal e classista. O âmbito do cotidiano se fragmentou e se acomodou por meio da criação de instituições que simbolizavam a tríade trabalho, vida privada e festas calendarizadas, responsáveis pela constituição de sentidos e práticas sociais voltados a uma articulação com o próprio sentido da vida cotidiana.
As experiências dos trabalhadores em relação aos valores e tradições que integram suas celebrações estão impregnadas de ritualística e simbolismo utilizados para expressar ideias e ações. No Brasil e, também, em Blumenau, as culturas de classe, no período de 1960 a 1968, reuniram uma série de formas de sociabilidade, com destaque para celebrações e festas de congraçamento. Uma das festividades mais representativa dos trabalhadores têxteis no âmbito do calendário festivo operário eram as festas juninas, com programação tipicamente festiva e atividades, shows e bailes até o raiar do dia. A expressividade das manifestações festivas pode ser compreendida por intermédio de uma “teia de malha fina” (GINZBURG, 1991, p. 175) dada a imensidão de vínculos e nexos criados nos espaços de sociabilidade. As festas carregam em si uma série de elementos que comportam manifestações sociais, políticas, culturais ou religiosas e sua análise não pode ser apartada de suas variações culturais. Um dos aspectos principais a serem considerados diz respeito à própria desmobilização das normas sociais proporcionada pela festa, diante do amplo universo dos sujeitos históricos envolvidos em sua formulação e execução.
Obviamente, os elementos predominantes nas festas estão relacionados à diversão, que suspende de modo parcial e momentâneo as normas sociais, com ênfase no caráter cômico e teatral do espaço festivo. Todavia, as festas não são equivalentes aos espetáculos, afinal de contas, a participação ativa do público na ritualística evidencia que sua atuação está longe de equiparar-se a meros receptáculos de valores religiosos ou laicos; pelo contrário, sua agência consiste em atribuir sentido e usufruir também da multiplicidade de dimensões evocadas na festa. Por isso, o ambiente festivo não pode ser concebido como uma ilha momentânea de pura extravagância e, sim, como portador de uma “rica miríade de práticas, linguagens e costumes”, agregando disputas “em torno de seus limites e legitimidade, ou da atribuição de significados” (CUNHA, 2002, p. 12) com participantes ativos, logo, também sustentava em si modos conflitantes de ver o mundo.
Tamanha diversidade foi intensificada pelo processo de urbanização crescente no Brasil, nas décadas de 1950 e 1960, diante do surgimento de um conjunto de elementos culturais relacionados à formação de novas práticas e simbologias, integrantes das formas de sociabilidade dos brasileiros. Um dos elementos que contribuiu para as sensíveis alterações sofridas em várias regiões brasileiras foi a maciça migração de trabalhadores do campo para a cidade. A base desse processo estava pautada em uma assertiva que tomava os centros urbanos como “espaços de desenvolvimento industrial” e o campo como local de “culturas tradicionais e arcaicas”. Nessa perspectiva, alguns migrantes acreditavam que nos centros urbanos teriam acesso a uma rápida ascensão social e poderiam escapar da “vida acanhada, desassistida e sem esperança das áreas rurais”, em busca do progresso e da civilização (FONTES, 2004, p. 366-367).
Essas alterações na vida cultural do país também reforçaram aspectos das culturas de classe dos trabalhadores, com destaque para a face coletiva de suas práticas, difundidas em grande medida pelo rádio, principal meio de comunicação que, paulatinamente, começou a dividir funções com a televisão, ainda em fase de implantação no Brasil da década de 1960. Portanto, a massificação do rádio ocorreu paralelamente à industrialização do país e às constantes migrações populacionais, constituindo-se em um fenômeno verificado tanto nas classes ‘baixas’, quanto entre as classes mais abastadas. O rádio era uma fonte inesgotável de informações, cultura, lazer e sociabilidade e estava integrado ao cotidiano e à cultura “urbana, veiculando principalmente melodramas (novelas) e canções” (NAPOLITANO, 2004, p. 13). Também era recorrente uma programação musical voltada aos regionalismos, mas essa dimensão frequentemente extrapolava as regiões do interior, espalhava-se pelo país inteiro e disputava a preferência dos ouvintes, caso da música ‘caipira’, caracterizada por toadas chorosas e as violas de seresteiros, que seduziam um público eclético pelo Brasil afora.
Em consonância com a difusão da música empreendida pelo rádio, nos anos de 1960, verificou-se um intenso processo migratório[7] no Brasil, com movimentações constantes das populações pelo território nacional, aliado a uma saída do campo para a cidade. Essas migrações criaram novas configurações socioeconômicas e culturais nos centros urbanos, pois as trocas de práticas culturais regionais redimensionaram a própria cultura brasileira. Novas personagens, a exemplo do chamado caipira, sintetizavam uma espécie de estereótipo dos trabalhadores rurais e da vida no campo, normalmente associada ao passado e ao atraso, em contraponto com a vida nas cidades, relacionadas ao presente e ao progresso. O codinome caipira era atribuído tanto aos personagens quanto à música ouvida no interior do país e sua figura passou a ser caracterizada sob “um viés romantizado, vitimizado, com certeza, mas fundador de certo imaginário cultural por parte das esquerdas nacionais.” (ALONSO, 2011, p. 166).
Essa idealização do caipira era representativa das relações estabelecidas entre o campo e a cidade, com o aumento das áreas de industrialização crescente no Brasil. Em muitos casos, o campo tornou-se facilmente vinculado a “uma forma natural de vida: de paz, inocência e virtude simples”, paralelo à representação da cidade como um “centro de realizações: de saber, comunicações, luz”. Em oposição, também havia um entendimento dos centros urbanos como locais de “barulho, mundanidade e ambição” e o campo era compreendido como “lugar de atraso, ignorância e limitação” (WILLIAMS, 1989, p. 11). Tal parametrização era recorrente no cotidiano dos anos 1960, particularmente entre alguns intelectuais metropolitanos que passaram a indicar uma espécie de “inocência rural” baseada em um desprezo pelo camponês, considerado matuto e caipira. Esse “repertório acumulado de estereótipos de um meio rural distante" (WILLIAMS, 1989, p. 58) estava conectado com o próprio significado do termo matuto, ou seja, aquele que vem ‘do mato’, associado ao caipira e ao homem do campo para referenciar características de reforço a uma suposta ingenuidade ou inocência.
Os termos eram portadores de implicações políticas e sociais, principalmente porque tanto a cidade quanto o campo eram ambientes em constante ebulição e os sujeitos que os habitavam guardavam em si constantes transformações. Por isso, para além de simples esquemas de oposição, cabe compreender as relações e trocas estabelecidas entre esses diferentes universos na composição de “uma arena de elementos conflitivos” (THOMPSON, 1998, p. 17). Dentre os recursos aglutinadores de que lançam mão as festividades e celebrações, para além do rádio e das trocas culturais resultantes dos processos migratórios, as festas também estavam articuladas às sociabilidades e à cultura brasileira. Grande parte das festividades brasileiras mantinha um vínculo com o calendário religioso católico, remanescente do período colonial português. No entanto, as celebrações não se resumiram apenas à expressão da religiosidade, pois múltiplas formas de intercâmbio cultural envolveram as culturas populares nas ocasiões festivas.
O São João, nome dado às festas que celebram três santos católicos em junho – Santo Antônio, São João e São Pedro –, foi trazido ao Brasil no século XVI pelos padres jesuítas e obteve grande aceitação, especialmente nas regiões norte e nordeste. A popularidade das festas juninas era tanta que superava até mesmo o Natal, festa maior do cristianismo. Essa peculiaridade transformou as festas de São João no “evento festivo mais importante dessas regiões, tanto cultural como politicamente” (AMARAL, 1998, p. 158-159). Embora essas festas contassem com um protagonismo da Igreja Católica para constituir sua inserção social, suas características marcantes envolviam diferentes apropriações e ressignificações dos atores envolvidos. E não havia uma dicotomia clássica entre um público devotado ao campo eclesiástico/religioso e leigo na festividade, mas, sim, “momentos alternados de devoção e diversão, com predominância circunstancial de um ou outro aspecto, conforme o momento histórico e a experiência pessoal de cada ator/situação” (CHIANCA, 2007, p. 49-74).
Por isso, convém compreender a festa enquanto espaço de participação interclassista, pois os sujeitos que partilharam as atividades do evento ressignificavam e transformavam suas crenças e vivências. Nesse sentido, na definição das festas, um dos critérios de análise reside no caráter de aceitação do público e, “historicamente, negociações de vários tipos, entre diferentes classes sociais, estamentos, gêneros etc. têm sido realizadas a fim de obter maior adesão às festas” (AMARAL, 1998, p. 40). Nesse âmbito de convivência interclassista, as festas juninas em Blumenau na década de 1960 constituíram-se em importante eixo de mobilização popular, pois arregimentavam grande quantidade de trabalhadores. Inúmeras celebrações de São João foram promovidas por clubes, escolas, bairros e associações de trabalhadores, indicativo de que se tratava de “uma data compartilhada do calendário operário e popular, sendo comemorada nos sindicatos e bairros” (LEAL, 2012, p. 381). Além disso, integravam o calendário popular brasileiro e movimentavam diversos outros setores sociais para além do operariado.
A maioria das festas juninas de Blumenau era celebrada nas associações recreativas, fábricas e sedes dos clubes de futebol e sua programação era tipicamente festiva, com roda da fortuna, rifas, queima de fogos e a tradicional fogueira de São João, além da presença de locutores de rádio, com direito a shows e bailes de artistas até o raiar do dia. Nas celebrações de trabalhadores a festa extrapolava os sentidos de diversão, portanto estava longe da ideia do ‘pão e circo’ promovido por patrões e políticos carismáticos para inibir a reação dos trabalhadores, pois as sociabilidades praticadas nesses espaços privilegiavam a ação e os usos políticos e culturais da ocasião.
A heterogeneidade do público presente estava associada ao aparecimento dos “caipiras – alguns dos quais improvisados, outros matutos por natureza”. Os textos dos jornais faziam piadas e diziam que o “vovô ia se fantasiar de jeca, mas acabou vendo que não valia a pena, porque já o é...” (CIDADE DE BLUMENAU, 26 jun. 1960). Tais brincadeiras jocosas não eram calúnias contra jecas e matutos, sobretudo porque no âmbito festivo era fundamental garantir o riso e a diversão, sem necessariamente abdicar das boas relações sociais entre os participantes. A mobilidade social e cultural presente nas festas juninas eram latentes, afinal de contas, tanto quem possuía a característica natural de matuto, quanto quem optava por fantasiar-se de caipira podia se divertir e usufruir da festa como um dos poucos espaços de sociabilidade em que as diferenças culturais e sociais não eram marcadas de modo rígido, mas pairavam nas sutilezas da festa.
Tanto é que os elementos que reforçavam várias situações do âmbito cotidiano e rural, tais como a linguagem coloquial, eivada de expressões típicas da roça, eram incorporados ao vocabulário da festa. Isso se verificava até no convite para o “espalha pé” (baile), programado pelo Clube Caça e Tiro Concordia, com um ponto importantíssimo para animar a festança: a “sanfona do Donigo” que tocaria até o raiar do dia, com promessas de muita música e alegria. Além disso, a propaganda da festa anunciava a presença de “muiébunita” e indicava que “o pessoá lá no arraiá já providenciou pra que não farte mesa pra ninguém, e por isso memo já tão vendendo, a preço bem baratinho. Tanto faz ir caipiras como também gente alinhada, porque podem entrá” (CIDADE DE BLUMENAU, 16 jun. 1960). A tônica do convite envolvia um esforço em congregar elementos de mobilidade social, capazes de assegurar aos participantes da festa junina uma espécie de garantia acerca de preços módicos e espaço para todos, bem como o livre arbítrio quanto ao traje festivo, tipicamente caipira ou alinhado. Afinal de contas, as atrações de São João tornaram-se populares e prazerosas em razão da descontração e espírito social interativo proporcionado pelo evento.
Tal espaço de sociabilidades mobilizava boa parte dos cidadãos, portanto, era natural que as festas juninas repercutissem amplamente na imprensa local, pois se tratava de uma oportunidade de sociabilidade para os cidadãos, com uma variedade de opções a serem exploradas na divulgação das festividades em suas mais diversificadas facetas. Todavia, o destaque dos periódicos estava concentrado nos bailes caipiras realizados nos clubes sociais e nas associações ligadas às fábricas, em uma tentativa de instrumentalização do patronato. Essa prática era comum em determinados espaços fabris e os patrões procuravam desmobilizar os conflitos por meio da concessão de benefícios assistencialistas e assim produziam ou financiavam parte das festas juninas para seus funcionários. Por outro lado, o espaço da festa não era mero espetáculo das classes dominantes para os operários, mas sim, um ato coletivo, na medida em que evidenciava não apenas a presença de um grupo, mas também sua participação.
Cabe atentar igualmente para outro aspecto dessas relações entre patrões e empregados: a relativa suavização das hierarquias sociais no âmbito festivo, dado ao fato de que esse tipo de sociabilidade conferia uma desmobilização no sistema de hierarquização e estamentos classistas, tão presente nos ambientes fabris e instituições de trabalho. No tocante às festas juninas, os editoriais dos jornais sugeriam a existência de uma ausência de conflitos entre patrões e empregados, o que implicaria em uma extensão da tão propagada atitude cordial, supostamente existente no mundo do trabalho das fábricas locais. Além disso, vários indícios possibilitam inferir que a excepcionalidade da festa e as práticas e posturas menos rígidas eram sempre consideradas em analogia com o ambiente fabril, por isso, proporcionavam uma espécie de suavização dos conflitos e das marcas hierárquicas entre a classe empresarial e a trabalhadora. Portanto, a propagação de que existia uma “harmonia reinante” expressa pelos periódicos precisa ser devidamente problematizada, tendo em vista os interesses e poderes a que servem os colaboradores dos jornais e a intensa atividade de bastidores na edição de periódicos.
No entanto, as relações cotidianas denotavam outra realidade acerca da convivência entre patrões e empregados, perceptível nas referências em torno dos diferentes meios de transporte utilizados para chegada à festa, conforme aparece no satírico e bem humorado comentário: “os que forem montados nos tordilhos é pra amarrá os bicho do lado do barraco, pois na parte da frente é só pros automóveis dos seus dotô que também vão comparecê” (CIDADE DE BLUMENAU, 16 jun. 1960), em referência à elite e seus privilégios em acessar a entrada principal em qualquer circunstância. A liberação das posturas socialmente convencionais nas festas juninas concedia aos participantes escolher formas de atuação pautadas em uma escala bem mais ampliada do que no ambiente de trabalho. Essa característica dos espaços de sociabilidade irradiava uma atmosfera de flexibilidade e era fundamental para criar um sentido de identificação nos sujeitos históricos atuantes na festa, além de aumentar sensivelmente o gosto e a aceitação do evento junto ao público.
Igualmente era notória a presença de autoridades ou mesmo de patrões, contudo, as convenções sociais, a hierarquia e a submissão estavam relativamente desmobilizadas, pois se tratava de um espaço de sociabilidades articulado em função do interesse em diversão e interação, inerente aos trabalhadores em relação às festas populares. Diante desse quadro festivo, convém dizer que os conflitos de classe ficavam temporariamente suspensos, mas a interação entre as classes proporcionava aos trabalhadores a conquista da respeitabilidade em um ambiente com “normas amplamente aceitas e reconhecidas de um teatro político” que envolvia a tentativa de “incorporação e aceitação de convenções comuns” (BATALHA, 2009, p. 258) para ambas as classes. Nesse caso, é possível afirmar que a sociabilidade e a diversão eram a chave de leitura para as festas juninas.
Outro elemento que demonstrava a popularidade das festas juninas era sua repercussão nas rádios (CIDADE DE BLUMENAU, 16 jun. 1960;A NAÇÃO, 24 jun. 1960) locais, que divulgavam as festividades tanto nos espaços associativos (clubes), quanto nas escolas e outros locais públicos representativos da comunidade. Função primordial nessa divulgação era exercida pelos locutores das rádios, responsáveis pela mobilização de artistas e bandas locais que animariam a festa com música, elemento de vital importância para mobilização do caráter festivo.
No entanto, as rádios da cidade não eram apenas um meio de divulgação ou irradiação de aspectos de sociabilidade proporcionados pelas festas juninas, pois jornalistas, radialistas e produtores também atuavam na organização de bailes, cuja intencionalidade ultrapassava os simples princípios comerciais para articular-se à organização do próprio evento em si, como oportunidade para envolver os participantes com a música. Em 1962, o radialista Jeser Josi, da Rádio Clube de Blumenau, comandou a realização de um festival junino na cidade, com a presença de duplas caipiras e “renomados violeiros” (A NAÇÃO, 29 jun. 1962). Esses atrativos musicais eram uma espécie de ponto alto da festa e a música caipira, com moda de viola e temáticas ligadas ao campo e assuntos sentimentais, era amplamente divulgada na programação. A modalidade musical relativa às festas juninas integrava as diferentes manifestações da cultura popular brasileira e contribuía para aumentar a sensação de prazer experimentada pelo público nas festas juninas no Brasil da década de 1960.
Por isso, ao contrário do que possa parecer, não apenas no nordeste do Brasil a festa junina se constituía em atrativo cultural, mas em Santa Catarina e Blumenau, o São João era uma festa de congraçamento com grande adesão popular. Seus atrativos envolviam um universo de diversão e humor e contribuíam para arrefecer as condutas sociais padronizadas. Uma das festas juninas mais representativas da cidade era realizada pelo Grêmio Esportivo Olímpico, em sua praça de esportes, que congregava grande número de trabalhadores e diversos outros segmentos da sociedade blumenauense. A popularidade da festa do Olímpico pode ser atribuída à presença de um conjunto de elementos típicos das festas de São João, com atrações constituídas em um universo simbolicamente festivo, que atingiam um público de todas as idades, adultos e crianças, patrões e trabalhadores, casados e solteiros, todos em busca de diversão e sociabilidade. A garantia de divertimento para todos os gostos era proveniente das barracas com caixas surpresa, roda da fortuna, bingo, rifas, jogos infantis, queima de fogos e uma série de outras distrações que compunham o arraial festivo, cujo ponto principal ficava por conta da grande fogueira que era anunciada como “recanto de namorados, certamente auspiciando dias melhores para um futuro de felicidades” (CIDADE DE BLUMENAU, 18 jun. 1961).
A fogueira de São João representava simbolicamente a tradição junina e inspirava também a poesia, em reverência à ritualística sugestiva do costume de pular a fogueira, realizado com entusiasmo e “corações vibrantes”, que pulsavam mais forte diante das “noites frias” de junho, para usufruir do calor que “transmitia sentimentos de união, fraternidade, amizade e amor” (CIDADE DE BLUMENAU, 05 jul. 1968). Havia um romantismo típico no simbolismo da fogueira e os autores dos artigos publicados nos jornais locais faziam constantes referências a um passado de saudades e lembranças:
Oh! Rosa Maria! Vem pular a fogueira. A noite está fria... Traga das festas juninas de nossa infância e mocidade, lembranças que saltem de nossa memória, vestidas com trajes brejeiros de chita com enfeites de saudades... [...] Nos finais de dias, em passeios, sente-se que as noites parecem jovens assustadas pelo estouro dos foguetes, pelo encanto feiticeiro das fogueiras, pela magia dos balões subindo, pelos autos, pelas explosões de alegria de todos, pelos casais nos portões, jurando amor eterno... E a gente pensa, enquanto as imagens vão se sucedendo, em quantas recordações despertam em alguns a noite de São João. (A NAÇÃO, 23 jun. 1964, p. 7)
A representatividade do fogo e da luz estava imbuída de uma carga simbólica que remetia ao início de uma vida nova. De acordo com as crenças religiosas, o acendimento da fogueira foi um recurso utilizado para anunciar o nascimento de João Batista, portanto, a ritualística das festas de São João recomendava a manutenção desse rito simbólico como uma forma de homenagear o santo. Além da fogueira, também era comum fogos de artifício para “despertar” São João, bem como a utilização de balões decorativos, ambos capazes de atrair os espectadores para o espetáculo no céu.
Em festas juninas atraentes ao público, era fundamental a presença de “comes e bebes” tipicamente juninos, como o quentão, pinhão, cachorro-quente, doces, “coruja”, pé de moleque, churrasco, “frango no espeto” e “completo serviço de bar” (A NAÇÃO, 03 jul. 1966). Articulados à alimentação, também estavam os shows musicais, com artistas “consagrados” da PRB-2, a Rádio Clube Paranaense, de Curitiba, como Nhô Berlamino & Nhá Gabriela, dupla paranaense que compôs a famosa música popular chamada “As mocinhas da Cidade”, além de “Manduca, Zé Pinheiro e Lidinho”, associados à radiofonia local. Os anúncios conclamavam o povo para uma “noitada das mais atraentes” e informavam que os dois shows iniciariam às 20h30min do dia 25 de junho, “prorrogando-se até altas horas da noite” (CIDADE DE BLUMENAU, 16 jun. 1960).
Essa programação festiva do Grêmio Esportivo Olímpico era muito concorrida e movimentava boa parte dos cidadãos, por isso, carregava em si a fama de “melhor” (CIDADE DE BLUMENAU, 02 jul. 1961) e “maior” (A NAÇÃO, 09 jul. 1966) festa junina, além da alcunha de “mais característica de todas as festas da cidade”. Também era anunciada pela imprensa diária local com dizeres que remetiam à “tradição” e anunciavam um programa “ainda melhor que dos anos anteriores” (CIDADE DE BLUMENAU, 18 jun. 1961), com a promessa de grande movimento. As conquistas desportivas do Olímpico nos torneios de futebol amador agregavam popularidade às festividades juninas, diante da expectativa da presença da população de Blumenau e cidades vizinhas (A NAÇÃO, 25 jun. 1965), que compareceria “em massa ao estádio alvi-rubro, prestigiando com sua presença a grandiosa festa junina do Campeão Estadual de 64” (A NAÇÃO, 23 jun. 1965).
As festas juninas do Grêmio Esportivo Olímpico comportavam um público vasto, mas essa característica não era uma regra em virtude da diversidade de opções festivas disponíveis no período entre junho e julho. Exemplo disso foi uma festa realizada no terreno em que seria construída a Igreja Matriz do bairro da Vila Nova (A NAÇÃO, 24 jun. 1967). Além da festa dos alunos concluintes do curso técnico em contabilidade, que se realizou na Sociedade Dramático-Musical Carlos Gomes (A NAÇÃO, 24 jun. 1967), em uma proposta de festividade restrita aos convidados dos proponentes.
Todavia, a efervescência das festas juninas era traduzida na realização simultânea de festejos juninos nos vários clubes vinculados aos operários, em especial o Amazonas Esporte Clube, ligado à Empresa Industrial Garcia e o Clube Ferroviário, vinculado aos trabalhadores da Estrada de Ferro (A NAÇÃO, 22 jun. 1967). Isso é um indicativo de que as formas de atuação dos participantes da festa junina também se constituíam no âmbito das chamadas ‘culturas de classe’, cuja multiplicidade de sentidos está em simbiose com o fato de que não há coletividade coesa, portanto, os elementos de solidariedade entre os diferentes membros do grupo coexistiam com a pluralidade e as diferenças na constituição de suas culturas de classes.
As festas juninas de trabalhadores nos finais de semana que, em geral, compreendiam os dias 24 e 25 de junho, justamente por conta do dia de São João, recebiam anúncios de grande destaque e, no caso dos clubes vinculados aos operários, o esporte dava o tom da festa, sobretudo os times de futebol e as danças típicas também integravam o conjunto de atividades festivas. A menção à festa do Amazonas Esporte Clube, do bairro Garcia, passou a constar na imprensa apenas em 1967, mas foi noticiada com grande expectativa e, de certo modo, rivalizava com as festividades do Grêmio Esportivo Olímpico e criava uma boa dose de expectativa, pois prometia um “grande espetáculo sertanejo”.
A programação contava com danças típicas do sertão, como ratoeira e quadrilha, mas também era anunciada uma variedade significativa de ritmos que abarcavam até mesmo “danças modernas, com a participação de cabeludos e moças de minissaias” (CIDADE DE BLUMENAU, 11 jul. 1968). Isso era um indicativo de que o programa musical era eclético e procurava convergir para atender os desejos e gostos de um público mais amplo, especialmente os jovens. No entanto, havia um tom de reverência à música e à dança tradicional ‘da roça’, fator de identificação e sentido da própria festa.
O elemento teatral nas festas juninas do Amazonas era apresentado como “novidade autêntica” (A NAÇÃO, 24 jun. 1967) do clube amazonense, no afã de diferenciar-se das outras festividades que ocorriam na cidade e tornou-se marca registrada do clube. Esse espetáculo teatral marcou a volta de seu técnico de futebol, José Henrique Pera, responsável também pela organização das festividades do clube e a realização de uma peça teatral como elemento surpresa daquele ano. Por isso, o ponto alto da festa foi a realização de uma “serenata na casa do Coronel Fulgêncio, a Dança da Roça”:
O Coronel Fulgêncio mandou ao Rio de Janeiro 4 filhos seus para se transformarem doutores. Após longos anos de expectativa e depois de gastar uma fortuna, o Coronel Fulgêncio, preparando-se para a recepção aos seus “já formados” filhos, organizou uma das maiores festanças do Arraial, com danças típicas do sertão [...]. Os Filhos do Coronel, após os cinco anos de estudos no Rio de Janeiro, voltaram transformados em verdadeiros “Play-Bois”. Gastaram todo o dinheiro que lhes foi enviado em farras e malandragem, transformando-se em verdadeiros doutores de araque. (A NAÇÃO, 24 jun. 1967)
Essa historieta foi contada em detalhes no jornal e fazia alusão às relações entre campo e cidade, com especial interesse na importância atribuída pelos grandes latifundiários ao estudo de seus filhos, geralmente enviados para as cidades grandes, mas sem necessariamente voltarem diplomados. O texto comportava elementos humorísticos associados à festa junina, em geral, articulados aos diversos componentes da tradição junina com o modo de vida caipira, em simbiose com valores próprios dos trabalhadores locais que, em alguns casos, tanto convergiam, quanto destoavam nas relações culturais entre o campo e a cidade. O papel exercido pelos filhos do coronel, perdidos na “farra e malandragem” oriundas da vida na cidade, elencava uma espécie de estereótipo do campo como um espaço de preservação dos “verdadeiros valores”. A escolha do Rio de Janeiro como cidade-destino para os futuros doutores também era bastante significativa, visto que o espaço urbano conferia à metrópole o ideal de “símbolo da urbanidade civilizatória”, paralelo à representação do caipira/sertanejo enquanto “aquele ser que não era capaz de acompanhar a modernidade” (ALONSO, 2011, p. 31). A temática do conflito entre espaço urbano e rural relacionada à cultura popular das festas juninas remetia a um universo celebrativo, repleto de práticas de sociabilidade imbuídas de diversões e escolhas próprias do público participante dos festejos.
O cotidiano dos trabalhadores se constituía com atenção redobrada às atividades laborais, interconectadas a uma infinidade de proposições que extrapolavam o chão da fábrica, na medida em que o sustento e o ideal de “bom trabalhador” não eram os únicos referenciais de vida para os operários. A família também abrigava fraturas e desigualdades de gênero, portanto, estava longe de ser uma unidade indissociável e, concomitantemente, encontrava-se vinculada ao mutualismo de seus componentes, tanto em relação à sobrevivência quanto à troca de experiências. Coexistiam diferenças de padrões de vida, cultura, política e gênero, sem necessariamente gerarem apenas conflitos, pois a mobilidade social e a melhoria das condições de vida comportavam elementos de unidade, em simbiose com a formação dos conjuntos, muitas vezes fracionados, dos mundos do trabalho.
Todavia, ainda que o sistema produtivo investisse na interferência constante no dia a dia dos trabalhadores, seus comportamentos não eram passíveis de controle e predominava a diversidade no vínculo entre a fábrica, a moradia e a comunidade do bairro. Os trabalhadores, portanto, não eram vítimas do trabalho fabril e praticavam ações concretas na formulação de suas culturas de classe, mediante a composição de fraturas na rede de disciplinamento fabril. Suas estratégias criativas de atuação comportavam atitudes sutis de inversão da ordem disciplinar, tais como: consumo de doces durante a execução do serviço; uso de caixas e equipamentos para construir uma área para conversas e brincadeiras; além da criação de códigos pautados em sinais e gestos que indicavam a presença dos mestres e contramestres. Isso ocorria por intermédio do uso da criatividade e das trocas de experiência, sem necessariamente causar tensões abertas, por meio do uso de recursos mais sutis na constituição de si perante o mundo do trabalho na indústria têxtil.
Nos ajustes do cotidiano, a tríade trabalho, vida privada e comemorações estavam integrada aos sentidos e práticas sociais da vida dos trabalhadores. Não por acaso, as festas de São João eram celebrações e espaços de congraçamento que integravam as formas de sociabilidade dos trabalhadores têxteis de Blumenau. As festas juninas de maior expressão eram celebradas nas associações recreativas, fábricas e sedes dos clubes de futebol e, sua programação era tipicamente festiva. As comemorações de maior destaque eram as festas realizadas no Grêmio Esportivo Olímpico e no Amazonas Esporte Clube, responsáveis por arregimentar grande quantidade de trabalhadores, além de contar com seu próprio envolvimento na organização da festa. Tais fatores contribuíam para a inserção dos trabalhadores em um universo cultural distinto de sua cultura local, sobretudo com a chamada ‘cultura caipira’, remanescente do interior do Brasil e o trabalhador não agia como mero espectador, mas sim, como agente histórico produtor de suas próprias formas de sociabilidade. Por extensão, o âmbito festivo diferia das relações estabelecidas no cotidiano de trabalho e transpirava um caráter de excepcionalidade, em que os participantes usufruíam de uma liberação das posturas corporais utilizadas no dia a dia. Na festa junina, evento que perdurava durante os meses de junho e julho, a vestimenta, os padrões comportamentais e todo o aparato festivo se revestiam de uma ritualística pautada na liberdade de escolha e, dessa forma, os participantes tornavam-se livres de estereótipos ou convenções sociais.
A convivência entre menores de idade, mulheres e homens que trabalhavam na indústria têxtil de Blumenau indicou a diversidade de ações concretas na formulação de suas culturas de classe, tanto nos espaços formais de trabalho quanto no âmbito da festa junina, demonstrando a força da agência humana na elaboração de suas redes de solidariedade e na circularidade cultural intrínseca ao mundo do trabalho.