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A Tecelagem de um Antropólogo do Trabalho
José Sérgio Leite Lopes; Murilo Leal Pereira Neto; Felipe Augusto dos Santos Ribeiro;
José Sérgio Leite Lopes; Murilo Leal Pereira Neto; Felipe Augusto dos Santos Ribeiro; Lucas Porto Marchesini Torres
A Tecelagem de um Antropólogo do Trabalho
Revista Tempo e Argumento, vol. 12, núm. 30, e0402, 2020
Universidade do Estado de Santa Catarina
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Entrevistas

A Tecelagem de um Antropólogo do Trabalho

José Sérgio Leite Lopes
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Murilo Leal Pereira Neto
Universidade Federal de São Paulo, Brasil
Felipe Augusto dos Santos Ribeiro
Universidade Estadual do Piauí, Brasil
Lucas Porto Marchesini Torres
Duke University, Brasil
Revista Tempo e Argumento, vol. 12, núm. 30, e0402, 2020
Universidade do Estado de Santa Catarina




“Mencionam grande quantidade de empresários e preocupam-se com o problema do capital, mas dão pouca atenção ao recrutamento e treinamento da força de trabalho”, observou o brasilianista Stanley Stein em seu clássico sobre indústria têxtil no Brasil, publicado originalmente em 1957[1]. Ainda que a afirmativa se referisse basicamente à literatura sobre a temática dedicada ao século XIX, no próprio trabalho de Stein – que abarcou até a década 1950 – ou em outros estudos desenvolvidos até a década de 1970, raras eram as pesquisas que relacionavam “o comportamento operário com as experiências imediatas provenientes da atividade em um processo de trabalho concreto”, como bem observou em 1979 Vera Cândido Pereira, em seu destacado estudo sobre trabalhadores têxteis, e que distinguia como valorosa exceção a pesquisa de José Sérgio Leite Lopes, sobre operários da agroindústria açucareira da Zona da Mata de Importar tabla

Pernambuco[2]. Na década seguinte, as contribuições de Leite Lopes se ampliaram com um estudo seminal sobre trabalhadora(e)s têxteis de Paulista (PE), tendo como principal inovação sua rigorosa análise que articulava formas de subordinação da fábrica sobre a cidade com as resistências operárias e os conflitos de classe dela decorrentes. Desde então, o trabalho de Leite Lopes representa uma decisiva inflexão nos estudos sobre classe trabalhadora no Brasil, inspirando diversos estudos que buscam diálogos e conexões com a antropologia do trabalho. Nesta entrevista, realizada em 14/11/2019, ele aborda sua trajetória de pesquisa e demonstra o quanto essa “tecelagem” continua em operação, produzindo “tecidos” para além dos estudos sobre trabalho têxtil[3].

Tempo & Argumento:

A Tecelagem dos Conflitos de Classe (1988)[4] trata dos trabalhadores têxteis e inspira até hoje importantes debates interdisciplinares. Uma de suas principais contribuições é a abordagem das contradições do sistema de fábrica com vila operária. Como se deu a construção dessa análise no campo de conhecimento da Antropologia e como você avalia os diversos usos de sua interpretação nos mais variados campos do conhecimento?

José Sérgio Leite Lopes:

Eu pretendia fazer uma monografia no estilo do Vapor do Diabo[5], um trabalho monográfico no tempo presente, pautado em observações diretas e entrevistas com um grupo operário, esperando encontrar diferenças de processos de trabalho e de gênero, pois nas usinas de açúcar a maior parte das tarefas são masculinas, talvez uma ou outra mulher se emprega no escritório ou como professora das escolas locais, ao passo que nas fábricas têxteis, quando eu fiz a pesquisa, a maior parte do trabalho era feito por mulheres. Com os operários do açúcar eu fiz uma pesquisa no tempo presente, em que a História era menos citada, era uma espécie de história estrutural, num tempo cíclico. Entre os têxteis, eu encontrei muitas referências marcantes ao passado, muitas memórias, então acabei fazendo uma tese e depois um livro de Antropologia e História. As entrevistas remetiam ao passado, é claro que com referências ao presente, mencionando a escassez de empregos já naquele momento, a abundância de trabalho no passado, embora com um nível de exploração muito grande, mas havia a constante referência ao passado. A interdisciplinaridade entre antropologia e história é apropriada tanto por antropólogos e historiadores nas fronteiras entre as histórias de vida e a história oral. Por outro lado, muitas das referências que coletamos nas entrevistas teriam registro na imprensa, o que nos levou a ampliar as fontes e tentar o aprofundamento sobre as relações de trabalho, conflitos, sindicalismo.

Tempo & Argumento:

Se comparados aos trabalhadores das usinas, os têxteis gozavam de melhores condições de trabalho, ainda que em ambos existissem intenso controle patronal e segregação de direitos. Sua obra evidencia a aproximação das fronteiras entre o rural e o industrial e ajuda a perceber as semelhanças também entre o trabalho compulsório e o dito livre. Você considera os têxteis de Paulista uma aristocracia operária?

José Sérgio Leite Lopes:

Eu prefiro considerar que os operários de usina de açúcar fossem os que poderiam se aproximar dessa noção discutível de uma aristocracia operária. Eles trabalhavam num sistema que não oferecia acesso a direitos a muitos outros trabalhadores, por isso poderiam constituir uma aristocracia operária, com todas as limitações dessa expressão para trabalhadores também super-explorados, apenas de forma diferente dos trabalhadores rurais. Eles possuíam acesso à previdência e à justiça do trabalho, por exemplo, enquanto os canavieiros não tinham acesso a direitos, o que só melhorou em 1963 com o Estatuto do Trabalhador Rural[6]. Essa noção de aristocracia operária se aplica menos aos têxteis, que apesar de uma proletarização posterior, possuíam origem rural e na atividade pesqueira, por exemplo. A fábrica de Paulista recrutou muita gente do interior de Pernambuco, no limite do mercado de trabalho, enquanto as fábricas de Recife do grupo Othon Bezerra de Mello, ou mesmo de outros grupos, tinham uma força de trabalho urbana, com as suas precariedades também, com moradores de mocambos ou favelas[7]. Os próprios operários diziam que Paulista era uma espécie de escola de aprendizagem profissional, porque justamente traziam o pessoal do campo. Então os administradores tiveram a “sabedoria” de, ao recrutar os trabalhadores, e para ter o acesso às mulheres, recrutar a família toda, trazer o pai de família camponês, que não interessava a eles, porque eram homens mais velhos, com 45 ou 50 anos, mas os administradores estavam interessados nos filhos, homens e mulheres, principalmente as mulheres, que precisavam vir “protegidas” pela família inteira, como mostra o trabalho de Rosilene Alvim[8]. Então tem um processo de proletarização no sentido de que eles foram adquirindo as propriedades de um operariado, uma classe operária industrial de origem camponesa. Bom, podia ter também operários qualificados urbanos, havia muitos chefes, técnicos estrangeiros, alemães principalmente, mas a grande massa de trabalhadores tinha esse percurso de recrutamento, que era um aliciamento de famílias, porque eles estimulavam a vinda de famílias inteiras através de agentes recrutadores. Desta forma, voltando à maneira como meus estudos foram vistos, eles ficavam indefinidos e confundidos quanto à classificação rural ou industrial. Eram estudos sobre operários industriais mas que estavam, principalmente no caso dos operários de açúcar, envolvidos pelo mundo rural. Assim, o lado industrial fica escondido na literatura da plantation, que é feita por especialistas do mundo rural quando de fato se trata de uma formação social mista de rural e industrial. Também trabalhei com uma literatura sobre classe operária, pertinente mesmo no caso das usinas. Pois os trabalhadores do açúcar reverenciavam a parcela de operários de manutenção que havia em seu interior, com um aprendizado forte, com uma qualificação, como se fosse um artesanato. Tanto que a categoria de autoclassificação mais importante para eles é a de artista, no sentido de ofícios industriais, artes industriais. Eles eram vistos como se fossem metalúrgicos do açúcar: as usinas precisam sempre de um setor de manutenção maior que o usual das fábricas urbanas. O pessoal das oficinas eram numerosos nas usinas por causa da entressafra, em que a fábrica tem que ser praticamente desmontada por causa do desgaste do material. Os trabalhadores têxteis realmente estão no universo do operariado, mesmo com “uma perna” no rural. Se São Bernardo tem trabalhadores ligados ao mundo rural, se São Paulo tem, (como mostra o início do filme “Peões”, de Eduardo Coutinho) ainda mais lá em Paulista, em que que havia realmente esse processo de recrutamento sistemático na área rural. Foi difícil me firmar nessa área de estudos operários, de trabalhadores industriais, por causa da prevalência da temática rural na plantation, que no máximo é considerada uma “indústria tradicional”. E de fato é, historicamente foram as primeiras. Outro aspecto também eram as formas de dominação, onde havia similaridade entre as formas de dominação nas vilas operárias têxteis, e o controle dos trabalhadores na usina de açúcar. O ritual de recrutamento coletivo de famílias operárias que se passava na varanda da casa grande, na presença do patrão da enorme fábrica da Companhia de Tecidos Paulista, era um ritual que reproduzia e reinventava numa escala industrial uma interação que se passava tradicionalmente nos engenhos rurais de cana de açúcar, mas nesse caso de forma menos coletiva, mais individual, envolvendo o patrão e um chefe de família. O morador vem pedir morada para o senhor de engenho. Então tinha esse fenômeno da transição do trabalho escravo para o livre, essa figura do “morador”, ela existe antes da abolição formal da escravatura e depois, é quase como uma continuidade, o que atenua esse aspecto mais formal da abolição jurídica e do trabalho livre; há uma certa continuidade nessa imobilização da força de trabalho. Mas que, por outro lado, implica em concessões patronais, como a atribuição de sítios e lotes para roçado destinados ao plantio das famílias, além da moradia. Há indicações (nos trabalhos de Moacir Palmeira e Lygia Sigaud) de que a maioria dos “moradores” preferiam morar mais distantes, numa casa mais precária, mas mais próxima do seu roçado ou da terra concedida pelo patrão, a viver nos arruados mais centrais, próximos à casa grande. Até antes da chegada da legislação do trabalho e da terra no campo, — o que se aplica a esses “moradores”, que no Sul vão ser chamados de colonos e em outras áreas vão ter outras denominações —, praticamente não existia a categoria de “trabalhador rural”. Tal denominação começou a ser usada com a própria legislação sendo implantada e com as classificações sindicais, “Sindicato dos Trabalhadores Rurais” ou “Federação ou Confederação dos Trabalhadores na Agricultura.

Tempo & Argumento:

À luz de uma crescente conjuntura de precarização das relações de trabalho, como você avalia a recepção pelos trabalhadores de alguns direitos parciais, instáveis e simbólicos? E como essa recepção pode estimular sua tolerância ou rebeldia?

José Sérgio Leite Lopes:

Moacir Palmeira e Lygia Sigaud demonstraram uma prévia da temática posterior da precarização do trabalho no processo de expulsão dos “moradores”, que passaram depois de 1963 a ser portadores de direitos e a criação dos trabalhadores “clandestinos”[9]. Também, nas fábricas têxteis, havia setores dos trabalhadores com menos direitos. Havia uma chamada “folha amarela” — um termo local que deve ter algo em comum com o termo “sindicalismo amarelo” — que era a folha não oficial, a contabilidade paralela onde entravam trabalhadores rurais de corte de lenha ou de construção civil, vigilantes e trabalhadores domésticos. Então já havia a presença do que depois seria nomeado como precarização, mesmo em categorias profissionais cuja maioria tinha carteira assinada, com mais acesso a direitos. Por outro lado, muitos vigilantes e trabalhadores domésticos que tiveram uma trajetória mais longa na empresa acabaram conseguindo sua aposentadoria através do testemunho dos colegas ao recorrerem à Justiça do Trabalho. Nas usinas de açúcar havia essa precariedade típica do trabalho sazonal e rotativo, além dos “clandestinos”. Então já havia uma precarização em germe. A precarização massiva atual tem relação com aquilo que o Robert Castel aponta como a vulnerabilização dos que já estavam incluídos e que se viram vulneráveis de repente[10]. O patronato e seus assessores passam a atacar esse setor dos trabalhadores que antes era estável, que tinha direitos, que tinha carteira assinada e que agora se transformam em precários. Existem trabalhos mais recentes que estudam isso, como o de André Dumans Guedes, que pesquisou trabalhadores do amianto em Goiás que moravam em vila operária e trabalhadores construtores de barragens da região. Ele percebeu uma espécie de incorporação cultural de masculinidade do adolescente que obriga o jovem a sair de casa e da região à procura de trabalho[11]. Essa precariedade de direitos estimula a ocorrência de trabalho escravo ou análogo à escravidão. Há uma dissertação da Geografia que mostrava como os operários da indústria do papel, na parte de manutenção – que é parecida com a usina de açúcar, pois tal indústria lida com um produto rural, a madeira que ali se transforma em papel e que tinha também um grande setor de manutenção – passaram a ser terceirizados. Com a terceirização da manutenção, os operários viram uma espécie de “bicho de obra”, quer dizer, vão para o “trecho”, vão dar assistência às fábricas terceirizadas, de forma rotativa. Também os gerentes antigos ou os empregados da hierarquia foram demitidos, em um processo de reengenharia que atinge os engenheiros, e esse pessoal funda empresas também de manutenção e vão utilizar esses trabalhadores também demitidos, e outros mais novos, pra fazer um trabalho itinerante de manutenção de fábricas de papel[12]. Então tem várias tendências assim em vários lugares. No agreste de Pernambuco, no entorno de Caruaru, existe atualmente um grande polo de produção têxtil de jeans e ali é tudo informal, quer dizer, os direitos não passam por ali. Tem uma espécie de tolerância por parte do Estado de não cobrar impostos ou exercer a fiscalização trabalhista, em troca da alta produção que tem ali, ou também dos empregos criados etc. Então, ali, os trabalhadores têm uma certa internalização dessa condição informal, uma espécie de auto exploração, com jornadas de trabalho enormes. Existe uma percepção da abundância de empregos ou de alguns subirem na vida com ganhos monetários salariais desse tipo de produção. Do ponto de vista desses trabalhadores, eles internalizam esses circuitos: estão há muito tempo nisso, mesmo que tenham tido passagens fugazes por empregos formais. Isso surgiu paralelamente ao declínio da indústria têxtil tradicional que eu estudei: as fábricas fecharam, os trabalhadores ficaram desempregados, enquanto em torno de Caruaru, Toritama e Santa Cruz do Capibaribe há uma alta produção principalmente de confecção, um outro tipo de polo têxtil. Acontece também em outras regiões, como em Nova Friburgo (RJ). São trabalhos monográficos que trazem o ponto de vista dos trabalhadores desses polos, que também falam das suas condições de alta exploração, em alguns casos de exploração por parte dos que vão enriquecendo e acumulando capital etc[13]. Mas o universo de direitos passa ao largo. Enfim constatamos com tristeza a atual fase de declínio de direitos, o inverso do processo histórico que antes havíamos estudado. Até um certo tempo, achava-se que a tradição dos direitos era uma coisa que estava incorporada nos trabalhadores através do desejo de ter a carteira de trabalho assinada e o trabalho estável, isso tudo como parte de uma cultura do trabalho no Brasil, uma cultura sindical do trabalho envolvida com os direitos, com a Justiça do Trabalho, o uso das juntas de conciliação locais, uma certa expertise em “botar questão”[14]. Um processo que o Wanderlei Guilherme chamou de cidadania regulada, os direitos que vão sendo expandidos pouco a pouco por diferentes categorias profissionais[15]. É com surpresa que vemos um desmonte do sistema trabalhista, da Justiça do Trabalho e dos direitos. E não haver uma reação correspondente, que em outros tempos eu pensaria que tal ataque aos direitos fosse algo que provocasse algum tipo de mobilização mais forte. Isso talvez se justifique porque o nível de precarização já vinha de antes em um processo crescente. Agora, pode ser que haja algumas reações episódicas, como por exemplo a atuação dos “clandestinos” do trabalho canavieiro atualmente em Pernambuco. Desde as últimas greves, em 1998 e em 2005, tem havido uma participação mais ativa dos “clandestinos”, eles que são maioria, já param. Então isso também pode acontecer no caso de conflitos envolvendo categorias diversas de trabalhadores precarizados. Eu sei que estão sendo feitas pesquisas sobre o trabalho de call center, com o acompanhamento das tentativas de associatividade desses trabalhadores pelo sindicato dos antigos telefônicos do Rio de Janeiro. E existe agora o recente movimento dos entregadores de aplicativos[16].

Tempo & Argumento:

Muitas questões contemporâneas do Brasil provocam as pesquisas nas ciências humanas a oferecer explicações sobre como os marcadores de diferenças sociais eram percebidos pelos sujeitos históricos. O documentário Tecido Memória[17] é rico em depoimentos que exclamam alguns desses marcadores, mas que aparentemente são indiferentes a outros. Como você avalia o desafio que se coloca para o pesquisador que precisa não apenas perceber tais marcadores?

José Sérgio Leite Lopes:

Esses marcadores étnicos ou de cor da pele no Brasil em geral, e lá em Pernambuco também, não aparecem explicitamente ao se ler muitas pesquisas sobre o trabalho, e também não aparecem nos meus livros. Essa é a vantagem do filme: você vê as pessoas. Então se no material escrito você vai informar o qualificativo para situar o entrevistado no interior do trabalho, no filme aparece o rosto do sujeito, assim como apareceria numa fotografia. Agora, claro que essas informações podem aparecer nas entrevistas. Nas memórias sobre relações de vizinhança aparece, por exemplo, o estereótipo da distinção entre as operárias “negras da fiação” e as “brancas da tecelagem”, sob o argumento de que a fiação era mais quente e umas seriam mais aptas a estar ali do que outras. Distinções religiosas podem ser notadas, por exemplo, na grande perseguição aos cultos evangélicos, que eram malvistos pelo patronato. O Francisco Julião das Ligas Camponesas[18], nos anos 50, se alinhou muito aos evangélicos contra a Igreja Católica conservadora, considerada aliada pelo patronato. Mas, por exemplo, os cultos afros não aparecem explicitamente perseguidos. Foi um tema que nós perguntávamos nas entrevistas para o filme e ouvimos de uma trabalhadora negra, ex-sindicalista, que essa questão não provocava tanto problema quanto o culto evangélico porque eram feitos nas casas, mais escondidos, então isso não incomodava tanto os patrões. Distinções de gênero aparecem com frequência nas entrevistas com trabalhadoras que foram mais próximas ao sindicato ou também que vieram da JOC[19] e como sua militância muitas vezes se soma ao fato de serem boas trabalhadoras, isso tende a retardar seus casamentos. Elas frequentemente são mantidas na fábrica mesmo nos períodos de desemprego. Ou, quando são demitidas, elas têm seu lugar naturalizado na unidade doméstica, na família, enquanto que os homens desempregados vão buscar trabalho em outro lugar. Então elas acabam podendo ser novamente recrutadas adiante. Algumas dessas trabalhadoras viraram as provedoras da família porque eram muito estáveis. Isso é mais aparente na pesquisa, ao passo que a questão étnico-racial aparece menos. Tem o caso de Garrincha, operário têxtil na adolescência e juventude, que tinha ascendência indígena pancararú, informação que acabou sendo escondida naquele tempo e que foi sendo reivindicada mais adiante. Na época não se falava tanto, a gente vai ter que desencavar. Outro exemplo de diferenciação escondida, o fato do trabalhador ter sido ou não perseguido durante a ditadura aparece no documentário Tear, que foi feito no período das Comissões da Verdade. Naquele momento se falava mais abertamente na imprensa sobre a questão da ditadura e da repressão, bem como das indenizações pela Comissão da Anistia. Então no filme aparece muito explicitamente essa questão da ditadura e da repressão pós golpe, talvez porque nesse local, em Magé (RJ), houvesse uma forte presença da esquerda antes de 1964. O que não aparece tanto no Tecido Memória. Até aparece, mas não muito, porque não é o tema central, porque também foi feito num período anterior à relevância atribuída às Comissões da Verdade, período em que a imprensa deu mais destaque à memória da experiência da repressão.

Tempo & Argumento:

Como você considera que a pesquisa dos movimentos cruzados[20] lhe obrigou a repensar alguma questão das suas pesquisas anteriores e/ou estimulou novas compreensões desse processo que você já tinha estudado?

José Sérgio Leite Lopes:

A referência que a gente tinha era na literatura, onde aparece principalmente o ABC paulista, a partir do fim dos anos de 1970. Ou acompanhando pessoalmente o movimento popular pelo Rio de Janeiro, por uma via militante, pois tínhamos uma ligação com gente da oposição sindical metalúrgica, através do circuito da esquerda da Igreja Católica, pastorais operárias e entidades a serviço do movimento popular (onde havia na época algumas escolas de qualificação profissional). Aí, no período em que eu estava fazendo pesquisa, nos anos de 1976, 1977, acabei conhecendo o Carlúcio[21]. Foi em Recife, num momento em que ele se preparava para fugir de Pernambuco porque estava sendo procurado e depois foi preso em São Paulo. Nós o conhecemos e, através das redes de escolas técnicas paralelas, também conhecemos outros militantes, pois tinha um grupo em Recife ligado à Arquidiocese do Dom Hélder Câmara. Muitos ativistas da época conheci na sede da ACO (Ação Católica Operária) de Recife. Também conheci ativistas metalúrgicos do Rio de Janeiro através da assessoria que prestei durante o final dos 70 e início dos 80 na Pastoral Operária de Nova Iguaçu. Tive alguma experiência com o movimento de trabalhadores rurais também. Como eu entrei na pesquisa da plantation do Museu Nacional para estudar os operários industriais, nessa parte da área rural eu sempre acompanhei os colegas muito próximos que trabalhavam diretamente com os canavieiros. A mediação da FETAPE [atual Federação dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado de Pernambuco] era importante para fazer pesquisa do campesinato, entre os moradores, os assalariados, as greves dos canavieiros. Eu fui como voluntário militante para ajudar, mas o meu conhecimento era indireto. Comecei a participar diretamente a partir do momento em que se iniciou o projeto ‘Memória Camponesa’ coordenado por Moacir Palmeira no Museu Nacional — uma demanda dos sindicalistas mais velhos que estavam vendo essa história desaparecer. Algo semelhante se passava com os antigos militantes da oposição sindical metalúrgica: o fim do tempo das gerações que atuaram durante a ditadura vai chegando, e haveria de se fazer um trabalho de registro, um trabalho de memória porque senão aquilo iria desaparecer. Então também foi a preocupação lá dos dirigentes com os quais o Moacir tinha contato, pois foi assessor da CONTAG [atual Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares]. Esse projeto de memória camponesa começou antes do período das Comissões da Verdade, mas já era o tempo dos anistiados[22], isso estava rolando havia muito tempo e a parte do campo era menos vista na questão da repressão da ditadura, se falava menos. Então o objetivo do projeto era retratar essa memória que estava se perdendo, já que a geração que participou das Ligas Camponesas estava desaparecendo e também os sindicalistas mais antigos, de antes de 1964. Como eu estava em Pernambuco em 2005 e 2006, acompanhei esse processo de pesquisa em Pernambuco, Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará. Paralelamente, eu estava fazendo esse tipo de registro com os têxteis e daí o próprio filme Tecido Memória também foi mais ou menos na mesma época, inspirado nesse trabalho de memória camponesa, só que registrando visualmente o lado dos têxteis. A motivação para o documentário também foi, como no caso camponês, uma demanda por memória dos sindicalistas têxteis de Paulista. Rosilene Alvim e eu já tínhamos bastante material e engajamos o Celso Brandão, documentarista de Alagoas, para fazermos um período intensivo de filmagens no início de 2006. Depois ficamos dois anos para acompanharmos de perto a montagem e finalização do filme, de acordo com a soma de poucos recursos mensais. Por eu ter trabalhado com operários de usina e operários têxteis, dialoguei com áreas de Sociologia do Trabalho, História do Trabalho e Antropologia do Trabalho, que é mais marginal dentro da Antropologia. Então circular um pouco entre as áreas distintas estudadas por especialistas distintos, do mundo do trabalho industrial e do mundo rural, foi uma experiência interessante para ter um panorama mais amplo desses casos. O projeto “Movimentos cruzados” foi gratificante por reunir equipes com especializações numa área ou na outra e se fazer as comparações, experiência enriquecedora para as diferentes equipes[23]. Também foi estimulante o processo de pesquisa feito em associação com grupos de ativistas e sindicalistas interessados no registro e guarda dos materiais de memória de seus grupos de referência, como a Academia Sindical da FETAPE, o Projeto de Memória da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo ou ainda a Associação dos Metalúrgicos Aposentados e Anistiados do ABC, bem como o setor de documentação do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Os primeiros resultados do projeto estão acabando de vir a público[24]. Muito do que foi pesquisado entre 2017 e 2019 ainda estará sendo processado nos próximos anos para novas publicações e vídeos. Também o trabalho no arquivo digital do MEMOV, iniciado no final de 2014, dará acesso aos pesquisadores do material coletado neste projeto e nos anteriores. Este trabalho de tratamento arquivístico de dados terá sua continuidade e tempo próprio, selecionando materiais de projetos feitos no MEMOV, de outros núcleos de pesquisadores associados e de movimentos sociais com coleções referentes a diferentes setores das classes populares – além de materiais reflexivos sobre trajetórias de pesquisadores, assessores do movimento popular e experiências de pesquisa. Daí, também nos voltaremos para o trabalho arquivístico do material dos trabalhadores e trabalhadoras têxteis, audiovisual e de documentos escritos, que também precisa ser feito. Tudo isso no sentido de abrir caminho para o acesso público por parte de novas gerações de estudiosos e de ativistas dos movimentos sociais.

Material suplementario
Notas
Notas
[1] STEIN, Stanley J. Origens e evolução da indústria têxtil no Brasil, 1850-1950. Rio de Janeiro, Campus, 1979. p.63.
[2] PEREIRA, Vera Maria Cândido. O Coração da Fábrica: estudo de caso entre operários têxteis. Rio de Janeiro: Campus, 1979. p.17 e 35 passim.
[3] Por razões editoriais, foram suprimidos temas que o entrevistado abordou em outras ocasiões, tais como: 1) entrevista de José Sérgio Leite Lopes e Rosilene Alvim, em Plural, Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v. 16, n. 2, 2009; (2) aula pública no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, disponível em . Ver também a entrevista de Leite Lopes publicada na Revista IDeAS, v.4, n.2, 2010, p.544-591; bem como a bela homenagem que recebeu na Revista Latinoamericana de Antropologia del Trabajo (LAT), n. 2, 2017, em artigo de Marta Cioccari.
[4] LOPES, José Sérgio Leite. A tecelagem dos conflitos de classe na cidade das chaminés. São Paulo: Editora Marco Zero/Editora da Universidade de Brasília, 1988.
[5] O autor se refere à sua dissertação de mestrado, posteriormente publicada em livro. LOPES, José Sérgio Leite. O vapor do diabo: o trabalho dos operários do açúcar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
[6] O Estatuto do Trabalhador Rural estendeu a legislação trabalhista ao trabalhador do campo, na gestão do Presidente João Goulart, inclusive reconhecendo plenamente o direito à sindicalização. BRASIL. Lei nº 4.214, de 2 de março de 1963. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 18 e 22 mar. 1963. Disponível em . Acesso em: 22 jan. 2020.
[7] Mocambo é o nome dado a um conjunto de choupanas ou habitações miseráveis. No século XIX eram territórios em que escravos fugidos se abrigavam, de dimensões menores que os quilombos. Em regiões do Nordeste, o vocábulo ficou associado a favelas. Cf. SOUZA, Alberto. Do mocambo à favela – Recife, 1920-1990. João Pessoa: Editora Universitária/Universidade Federal da Paraíba, 2003.
[8] ALVIM, Rosilene. A sedução da cidade; os operários camponeses da fábrica dos Lundgren. Rio de Janeiro: Graphia, 1997.
[9] PALMEIRA, Moacir. Casa e trabalho: nota sobre as relações sociais na plantation tradicional. Contraponto, Rio de Janeiro, v.2, n.2, p.103-114, 1977. SIGAUD, Lygia Maria. Os clandestinos e os direitos: estudo sobre trabalhadores da cana-de-açúcar de Pernambuco. São Paulo: Duas Cidades, 1979.
[10] CASTEL, Robert. As Metamorphoses da Questão Social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998.
[11] O trecho, as mães e os papéis. Etnografia de movimentos e durações no norte de Goiás”. André Dumans Guedes. Rio de Janeiro: Garamond, 2013
[12] “Colocados no Trecho: trabalhadores-itinerantes na indústria brasileira de papel e celulose” Oraida Maria Urbanetto de Souza Parreiras. Dissertação de mestrado em Geografia, Universidade Federal Fluminense. Defendida no dia 28 de janeiro de 2008.
[13] “Sulanqueiras; o trabalho com vestuário e outros ofícios no agreste pernambucano”. Wecisley Ribeiro do Espírito Santo. Abril de 2013. Tese de doutorado defendida no Museu Nacional – Antropologia Social.

“‘A gente trabalha onde a gente vive’. A vida social das relações econômicas: parentesco, ‘conhecimento’ e as estratégias econômicas no agreste das confecções”. Alana Moraes de Souza. Mestrado em Sociologia e Antropologia, IFCS-UFRJ. Defendida em 27 de agosto de 2012.

[14] Expressão usada pelos operários e operárias da fábrica Paulista para se referirem à entrada de processo judicial na Justiça do Trabalho, conforme o autor abordou na obra A tecelagem dos conflitos de classe.
[15] SANTOS, Wanderley Guilherme. Cidadania e Justiça. Rio: Campus, 1979.
[16] Essa observação foi incluída no texto durante a revisão pré-publicação, em julho de 2020, alguns meses depois da realização da entrevista que ocorreu em novembro de 2019.
[17] LOPES, José Sérgio Leite; ALVIM, Rosilene; BRANDÃO, Celso. Tecido Memória, documentário (2008). Disponível em .
[18] Ligas Camponesas foram associações de trabalhadores rurais criadas com o objetivo inicial de prover assistência social e educacional a seus membros já que, até 1963, a sindicalização rural não era reconhecida pelo Ministério do Trabalho. Tiveram forte atuação de 1955 a 1964 e ampliaram seus objetivos, lutando pela reforma agrária. Sua principal liderança foi o advogado Francisco Julião, também eleito Deputado Federal pelo PSB, em 1962.
[19] Juventude Operária Católica (JOC) foi uma associação civil católica reconhecida pela Igreja em 1948, destinada à difusão da doutrina da Igreja no meio operário. A partir de 1965, passou a adotar posições crescentemente críticas, de oposição à ditadura militar e em apoio às mobilizações operárias.
[20] Refere-se ao projeto de pesquisa coordenado por José Sérgio Leite Lopes: “Movimentos cruzados, histórias específicas. Análise comparativa dos ciclos de greves iniciados pelos metalúrgicos de São Paulo e do ABC paulista e pelos canavieiros de Pernambuco no final dos anos 1970”, aprovado pelo Edital da Capes “Memórias Brasileiras: Conflitos Sociais”, em 2015.
[21] Refere-se ao dirigente da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo, Carlúcio Castanha, nascido no Recife, foi trabalhador têxtil e metalúrgico. Mudou-se para São Paulo em 1972, tornando-se operário da Arno. Foi candidato a Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo na chapa cutista em 1987.
[22] Referência à instituição da Comissão da Anistia em 2002, vinculada ao Ministério da Justiça, que visava reconhecer o status de anistiado político e reparar de forma pecuniária as vítimas da ditadura.
[23] A equipe do referido projeto é composta por Beatriz Heredia, Moacir Palmeira e José Sérgio Leite Lopes (UFRJ); Roberto Veras de Oliveira e Mario Ladosky (UFPB/UFCGG); Marilda Menezes e Jaime Santos Jr. (UFABC); Murilo Leal e Alberto Handfas (UNIFESP-Osasco) e Kimi Tomizaki (USP).
[24] Entre os resultados citados estão: LOPES, José Sérgio Leite; HEREDIA, Beatriz (orgs.). Movimentos Cruzados, Histórias Específicas; estudo comparativo das práticas sindicais e de greve entre metalúrgicos e canavieiros. Rio de Janeiro: Editora UFRJ. 2019; LOPES, José Sérgio Leite; MATOS, José Carlos Pereira. Direitos em Construção Permanente. MEMOV (CBAE-UFRJ); o site www.memov.com.br e seu respectivo canal do Youtube.



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