Entrevistas

A aposta teórico política do lesbofeminismo antirracista decolonial: entrevista com Ochy Curiel

Rosa Inés Ochy Curiel Pichardo
Universidade Nacional da Colômbia (UNAL), Colombia
Ariana Mara da Silva
História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Brasil

A aposta teórico política do lesbofeminismo antirracista decolonial: entrevista com Ochy Curiel

Revista Tempo e Argumento, vol. 13, núm. 32, e0302, 2021

Universidade do Estado de Santa Catarina

Resumo: Nascida na República Dominicana, Ochy Curiel, professora e pesquisadora da Universidade Nacional da Colômbia e da Universidade Javeriana em Bogotá, já morou em alguns países da América Latina, inclusive no Brasil e, atualmente, mora na Colômbia. Cantautora desde muito jovem, foi por meio da música que se aproximou dos movimentos feministas, e hoje faz parte do Grupo Latino-Americano de Estudos, Formações e Ação Feminista – GLEFAS, organização articuladora das feministas decoloniais, da qual é uma das fundadoras, e do projeto artístico-político Tremenda Revoltosa, uma batucada feminista, antirracista, antimilitarista e autônoma.

Passamos hoje, dia 05 de outubro de 2020, por um momento de crise causado pelo vírus da Covid-19, que já causou cerca de 26 mil mortes na Colômbia, mais de 140 mil no Brasil, mais de 1 milhão de mortes no mundo. Além disso, estamos assistindo ao avanço de uma onda ultraconservadora retrógrada tentando, a qualquer custo, retirar todos os nossos direitos, inclusive o direito à saúde. Foi nesse contexto pandêmico que entrei em contato com a Professora Dra. Rosa Inés Ochy Curiel Pichardo, lesbofeminista decolonial antirracista, uma das vozes mais solicitadas em tempos de crise como o que estamos passando. Ainda assim, a professora prontamente se colocou à disposição para participar dessa videoconferência.

Ochy Curiel tem diversos artigos acadêmicos e entrevistas publicados e dois livros: El Patriarcado al Desnudo. Tres Feministas Materialistas, publicado em 2005 em parceria com Jules Falquet, com traduções de três feministas materialistas da França e Itália e; La Nación Heterosexual - análisis del discurso jurídico y el régimen heterosexual desde la antropología de la dominación, de 2013 no qual, por meio da análise do processo constituinte que vai resultar na Constituição Colombiana de 1991, reflete sobre como a heterossexualidade é um regime compulsório que atravessa a cidadania. Mas, antes de tudo, Ochy é ativista de diversos movimentos sociais e uma das criadoras do Movimento Social de Mulheres Negras da América Latina e do Caribe.

Tempo & Argumento: Para iniciar a nossa entrevista, gostaria de perguntar, qual é o papel social das historiadoras e teóricas lesbofeministas negras no Tempo Presente, refletindo sobretudo esse momento de disputas de narrativas em torno da categoria raça no âmbito acadêmico, nas mídias e nos movimentos sociais?

Rosa Inés Ochy Curiel Pichardo: Creio que todas as narrativas alternativas, daqueles e daquelas que não fomos parte da episteme da modernidade, as pessoas negras, as mulheres, as lésbicas, trans, indígenas são importantíssimas como parte das disputas das narrativas. Ou seja, a Modernidade Ocidental, a historiografia hegemônica, dentro da modernidade, tem escrito uma história apenas. É a história a partir dos dominadores, a partir dos colonizadores e, posteriormente, a partir das pessoas "criollas". Então, é superimportante escrever sobre nossas histórias, falar sobre nossas histórias, reconhecer nossas histórias, porque de muitas maneiras isso vai diminuindo, digamos, o valor que tem tido a historiografia hegemônica. Nesse sentido, o lesbofeminismo de forma geral, tem sido uma corrente importantíssima dentro do feminismo que colocou a heterossexualidade obrigatória e o regime da heterossexualidade como parte dos regimes de opressão histórico-colonial que temos tido. Obviamente, eu creio que também dentro do feminismo, de diferentes tendências, nem todas as lésbicas feministas são iguais; algumas de nós, temos um compromisso não somente com acabar com o regime da heterossexualidade, mas também com todos os sistemas de opressões como o racismo, como o classismo e o enfrentamento das políticas neoliberais que afetam fundamentalmente a nós, lésbicas negras, mas também outras lésbicas que não têm privilégios de classe, de nacionalidade etc. Então, nesse sentido, eu acredito que o lesbofeminismo antirracista sobretudo, feito seja por mulheres negras ou por outros sujeitos, é importantíssimo para poder entender precisamente a imbricação que existe entre o regime de heterossexualidade com outros sistemas de opressão, como é o racismo, as políticas neoliberais. A desordem que está acontecendo nesse momento na maioria dos países, e mais nessa situação da Covid, da pandemia, em que essas desigualdades aumentam cada vez mais. Creio que colocar esse papel, não somente das historiadoras, mas das ativistas também, em termos dessa aposta teórica política que tem sido o lesbofeminismo antirracista decolonial, é fundamental para precisamente estar em disputa todo o tempo, pois as narrativas hegemônicas que cada vez mais, sobretudo, nesse momento da direita, da ultradireita, que está sendo cada vez mais lesbofóbica, transfóbica, misógina, creio que é importantíssimo o papel que temos nós todas para colocar, digamos, essa outra narrativa a partir de nossos lugares de enunciação.

Tempo & Argumento: Na sua experiência individual como lesbofeminista negra, e coletiva também, com outras lesbofeministas, muitas delas ativistas, como essas experiências contribuíram para as formulações das suas reflexões sobre lesbofeminismo decolonial antirracista?

Rosa Inés Ochy Curiel Pichardo: O primeiro salto político que demos, nós que nos chamamos lésbicas feministas, que temos ainda uma trajetória sobre antirracismo, porque eu não posso separar, em meu caso particular, o lesbofeminismo do antirracismo, ambos aconteceram ao mesmo tempo. E tampouco, por exemplo, posso parar minha luta política frente ao militarismo ou frente às políticas neoliberais. Tudo tem sido ao mesmo tempo. E uma das coisas que fundamentalmente as negras e as indígenas lésbicas feministas da América Latina e do Caribe colocamos, é que não podíamos continuar com uma lesbianidade feminista que se limitou somente à identidade, a reivindicar a identidade. O reconhecimento da identidade lésbica, é importantíssimo para nossa ação política, mas nós entendíamos que não era possível pensar-nos, como lésbicas feministas, sem articular o tema de raça, o tema de classe, o tema de nacionalidade, o tema da migração etc., porque para nossas vidas, isso vai tudo junto. E, além disso, uma aposta lesbofeminista que somente foca na identidade lésbica é uma aposta limitada para poder confrontar os diferentes sistemas de opressão. Eu, como lésbica feminista negra, sempre tive, desde o princípio, uma aposta por derrubar todos os sistemas de opressão, não somente um, como o regime da heterossexualidade. Isso permitiu ainda, os encontros lesbofeministas que desenvolvemos na América Latina e no Caribe. Isso se viu claramente; somos fundamentalmente as lésbicas negras, as lésbicas indígenas, que temos levado uma formulação distinta para superar essa política de identidade. Obviamente, a política de identidade é muito importante. Nos reconhecer lésbicas, lésbicas feministas, colocar digamos, nossa aposta aí é superimportante, não somente no movimento lesbofeminista, mas também no feminismo em geral, no movimento antirracista, em outros movimentos; isso tem sido fundamental. Então, é precisamente desse lugar de enunciação, o que eu sou, lésbica feminista afro-caribenha, com uma aposta política que é muito mais complexa, muito mais integral, que não se limita somente a dizer, me sinto orgulhosamente lésbica. Creio que isso é importante para a nossa dignidade, não?! Mas não é o suficiente. Ou seja, nossa aposta não é somente pelo reconhecimento e, muito menos, pelo reconhecimento do Estado. O Estado que é uma das instituições jurídico-políticas mais fortes, talvez a instituição jurídico-política que estabelece os sistemas de opressão, ou seja, o Estado é responsável por estabelecer o regime da heterossexualidade, o racismo, as políticas neoliberais, a desordem e, nesse sentido, nossa aposta, como eu já disse, é uma questão para derrubar todos os sistemas de opressão, todos. É uma das apostas que nos ensinou o feminismo negro, e que o feminismo decolonial vem e retoma e complexifica isso. Isso significa que essa luta não é somente das lésbicas feministas negras, essa é uma luta de toda pessoa que quer um projeto de libertação que realmente contribua para derrubar todos os sistemas de opressão, de poder, de raça, de classe, de sexo e de sexualidade.

Tempo & Argumento: Focando um pouco mais na teoria decolonial, quais as potencialidades da decolonialidade frente às experiências do cotidiano? Quais problematizações, na verdade, de forma mais qualificadas são permitidas pela teoria decolonial, que outras teorias disponíveis não permitem?

Rosa Inés Ochy Curiel Pichardo: Nossa história como continente, eu sempre digo que quem nasce, quem nasceu e se criou na América Latina e no Caribe, se quer um projeto de libertação real, tem que ser decolonial. Isso não é uma teoria somente de alguns intelectuais. Vendo nossa história e a história do continente, é fundamental poder nos entender como povo, como pessoas, na cotidianidade, mas também questionar as estruturas. O que levanta fundamentalmente a aposta decolonial, primeiro é que essa narrativa da historiografia que se faz desde a lógica hegemônica, que nos disse que a Europa era o centro de tudo, do saber, do ser, do poder, etc., que impôs certas questões como, por exemplo, a religião judaico-cristã, que impôs uma série de instituições como os Estados Nacionais, como a República, como a lógica dos Direitos Humanos. Tudo isso é parte da colonialidade, todas as hierarquias que hoje ainda existem de raça, de classe etc. também são parte da colonialidade. Quer dizer, começou em 1492, mas há sequelas desse colonialismo que temos até os dias de hoje. Se observarmos, por exemplo, os efeitos da pandemia, vemos que aqueles que mais estão sendo afetados, apesar de ter começado na Europa, apesar de ter começado afetando as pessoas brancas e com possibilidades econômicas porque eram pessoas que viajavam, hoje vemos que na maioria dos nossos países, precisamente, a pandemia está afetando mais as pessoas negras, as pessoas do campo, as pessoas indígenas, as pessoas populares, das favelas, por exemplo, porque são historicamente as que não tiveram a possibilidade de acessar os serviços básicos como a saúde, a educação, etc. Quando vemos esse trajeto, que começa em 1492, mas que hoje ainda se mantém e, ainda mais, se fortalece. O problema que temos hoje com a terra em nossos países é uma coisa terrível. Na Colômbia, por exemplo, vocês sabem que temos um conflito armado de mais de 60 anos, um dos problemas centrais desse conflito que continua, ou seja, a terra. Como não há um acesso à terra por parte dos camponeses e aqueles e aquelas que lutam para que a terra, que não é uma mercadoria para essa população, é parte do tecido social, os assassinam. Hoje temos uma quantidade impressionante de massacres na Colômbia, mas isso podemos ver na América Central, podemos ver no Brasil com a Amazônia. Quer dizer, há uma situação em que a desigualdade social, fundamentalmente se fortalece. O que nos permite a decolonialidade, a teoria decolonial nesse sentido, primeiro que isso não acontece agora, mas que é um continuum histórico que temos, e mais ainda, é histórico, e com esse histórico quero dizer que podemos modificá-lo, não é nada natural, é uma questão que foi imposta historicamente. Quando estamos falando de uma posição decolonial, estamos dizendo, temos a possibilidade de mudar o curso das nossas histórias, dessas desigualdades. Isso é o cotidiano, mas também em termos estruturais. A teoria decolonial começa a pensar em como essa articulação entre colonialismo, capitalismo e tudo o que é a modernidade ocidental. As pessoas achando que a utopia é ser europeu e norte-americano, vamos saber agora o que se passa com a China que está se convertendo em outra potência mundial. O que nos permite analisar em que lugar estamos nós e, dessas articulações de opressões, quais são nossas possibilidades, porque são muitas de nos descolonizar. E isso, por exemplo, os povos indígenas, os povos negros, nos ensinaram muito. Tem sido uma política contra um sistema de morte, desde semear em terras coletivas, não assumir um consumismo como o capitalismo neoliberal nos impôs e sobretudo, questionar a lógica individualista, que essa modernidade colonial nos trouxe. A potencialidade que tem a decolonialidade em nível geral, é primeiro reconhecer que faz mais de 560 anos que há povos lutando contra a colonização e, em nosso caso, foi desde os escravizados e escravizadas que terminaram com o sistema colonial, acabaram com a escravização, os povos indígenas, etc. que até os dias de hoje continuam lutando para colocar uma cosmovisão que não seja uma política de morte e de espoliação. Tem muita potencialidade, não somente a quem está na onda do feminismo decolonial, para todas as pessoas desse continente e do mundo, que queiram realmente fazer um projeto de libertação que rompa com essas questões impostas ao longo de nossas vidas e da vida do continente no geral. É uma aposta que para mim é necessária, é urgente frente à situação de hoje. E isso faz uma diferença, por exemplo, com a esquerda. A esquerda latino-americana e caribenha fundamentalmente se teorizou e sustentou suas práticas políticas por meio da classe. A classe social era como um elemento central, mas não via raça, não via sexo/gênero, não via sexualidade, igual foi para o feminismo. O feminismo hegemônico segue pensando que a luta deve ser fundamentalmente só o tema das mulheres como a violência, e muito poucas, com algumas exceções, como nós que somos negras, introduzimos o tema do racismo e do classismo. Mas isso também se aplica para certas posições lesbofeministas que só se limitam à sexualidade. Então, nesse sentido, o que nos permite pensar um feminismo decolonial é ter um compromisso com todas as lutas políticas de todas e todos. Todas são nossas lutas, não há separações nas nossas lutas políticas. Esse projeto é e deve ser de sujeitos múltiplos, não somente de segmentar, como a esquerda fez com a classe, as mulheres com o tema do feminismo, ou os indígenas com o tema étnico. Isso aponta para um projeto de libertação que realmente não seja fragmentado, que seja articulado com a leitura da realidade social, porque a realidade sempre é uma questão articulada, nunca é separada, por mais que queiramos fazer esforços metodológicos e teóricos. Isso é o que eu diria sobre a decolonialidade.

Tempo & Argumento: Quero voltar um pouco nessas cosmovisões de Abya Yala, mas antes queria fazer uma pergunta que está mais ligada ao campo acadêmico, aos estudos da teoria. Estamos vendo atualmente que a interseccionalidade e a consubstancialidade têm ganhado espaço no campo teórico e, ao mesmo tempo, vêm recebendo muitas críticas, tanto acadêmicas quanto dos movimentos sociais. Queria que você falasse um pouco sobre os limites dessas teorias e quais alternativas formuladas por negras e lesbofeministas antirracistas se apresentam frente a elas?

Rosa Inés Ochy Curiel Pichardo: Creio que o problema da interseccionalidade não seja só uma questão teórica. O perigo da interseccionalidade é que precisamente tem a ver com ação política, essa é minha maior preocupação. Vejamos, vou explicar para que possam entender. Antes de aparecer o conceito de interseccionalidade[1] de Kimberlé Crenshaw, algumas feministas negras já haviam proposto uma série de conceitos. Algumas delas, as primeiras, foram as do Rio Combahee, o coletivo Rio Combahee nos Estados Unidos em 1978, que eram ativistas. Em sua declaração[2], que formula o que hoje conhecemos como feminismo negro, nessa declaração de 1978, elas dizem que têm um compromisso com as lutas contra o racismo, contra o sexismo, contra o heterossexismo, etc. que, além de tudo, não podem ser separatistas, no sentido de que, mesmo reconhecendo a maioria nos movimentos, por exemplo, mistos negros, muitos homens são sexistas e que também no feminismo muitas mulheres são racistas; elas estão comprometidas com uma comunidade, que é a comunidade negra nos Estados Unidos. A isso chamaram de "ligação (sic) das opressões". Está na internet, podem conseguir a declaração. Mais adiante, Patrícia Hill Collins que é uma epistemóloga, no Brasil creio que a conhecem bastante, ela fala em matriz de opressão[3] e o que Patricia Hill Collins propõe é fundamentalmente como o racismo, o classismo, o sexismo, a homolesbofobia tem uma série de elementos que devemos considerar, por exemplo, questões estruturais, como o Estado, como as leis. Mas também questões subjetivas, quer dizer, essa imbricação nas pessoas também afeta as questões subjetivas, mas também há uma série de questões burocráticas ou políticas de vigilância, por exemplo, que se desenvolvem com base nessa matriz de opressão. O interessante de Patrícia Hill Collins, que eu gosto muito da proposta, é que apresenta como essa matriz de opressão tem elementos subjetivos, mas também elementos estruturais. Sempre temos que nos mover no campo do subjetivo e do estrutural, como elementos fundamentais. É depois, no ano de 1994, que Kimberlé Crenshaw propõe o conceito de interseccionalidade. Então, vejamos a história do conceito. Kimberlé Crenshaw, o que faz é um informe, vocês chamam relatório, frente à necessidade de que a lei, que somente quando se falava da lei e quando se falava de mulheres, somente se considerava a questão de gênero, e quando se falava da população negra fundamentalmente se falava em termos masculinos, portanto, as mulheres negras não existiam. Ou seja, ela propõe o conceito de interseccionalidade no sentido de que era necessário articular a questão de gênero e raça, que foi o que ela trabalhou primeiro. Nesse momento, não havia trabalhado classe, sexualidade... não. Esse conceito, para mim, é importante no âmbito liberal, por isso eu sempre digo que é uma proposta liberal. Por quê? Porque o conceito de interseccionalidade é mais uma categoria descritiva, descreve. Mas não é uma categoria de resistência, por exemplo, que sim é a ligação das opressões ou a matriz de opressões. Quando você entende como se articula essa matriz, então você entende como historicamente foram se formando as raças, se formando as classes, mas a interseccionalidade não permite isso. Sensivelmente, permite descrever e isso, descrever, já sabemos, vão fazer as ONGs, o Estado, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, dizendo além do mais, há mulheres que são negras, que são indígenas, que são lésbicas, mas isso não nos leva a muito, que não seja descrever. Então, por isso, o conceito de interseccionalidade ficou tão famoso, porque não permite um aprofundamento dos sistemas de opressões. Outra coisa que creio ser importante, o conceito de interseccionalidade não pergunta por que, por exemplo, existem mulheres negras. E sabemos que mulheres é uma categoria que só é possível dentro da lógica patriarcal, ou seja, na relação de poder, senão não tem sentido. Como negra, também foi o racismo, foi a lógica colonial que concebeu quem era negro e quem não. Como lésbica, por exemplo, foi também uma categoria impulsionada fundamentalmente pela psicologia e pela psiquiatria. Isso não quer dizer que não a utilizamos como parte da coalizão política e para a resistência a tudo isso. Mas o ideal, minha proposta como feminista decolonial, é que essas categorias desapareçam, ou seja, sempre quando desaparecerem os sistemas de opressão. Acredito que quando estamos em uma política para eliminar os sistemas de opressão, é provável a eliminação dessas categorias que nos fazem lutar, como mulher, negra, lésbica. Porque, se o racismo desaparece eu não vou precisar da categoria negra para ser reivindicada. Eu reivindico a categoria negra, para o reconhecimento da minha história, muitas vezes reivindico a categoria mulher para localizar um lugar de opressão. Não sei se vão me entender. A interseccionalidade não se preocupa com nada disso, e eu sim me preocupo por isso. Porque minha política não é que sensivelmente sejamos reconhecidas como negras, como mulheres, como lésbicas, mas sim que os sistemas de opressão, que nos colocam em um lugar de desigualdade, desapareçam. E esse é o problema da interseccionalidade, que é um coringa, é uma carta cômoda no baralho para se fazer essa política politicamente correta. E temos que perguntar por que tanta gente utiliza a interseccionalidade para ficar politicamente correta. Tanto que as instituições responsáveis pelas desigualdades, como o Banco Mundial, o FMI, as ONGs, a ONU, são encantadas pela interseccionalidade, precisamente por isso, porque não questiona a fundo como funcionam os sistemas de opressão. Então para mim, particularmente, gosto mais da proposta de Patrícia Hill Collins de entender essa matriz de opressão articulada e ainda haver níveis diferentes que podemos ver nas nossas vidas, mas podemos ver também nas instituições. Essa é minha posição sobre a interseccionalidade, já expliquei muitas vezes, mas esse não é um questionamento só como lésbica feminista negra, é fundamentalmente como uma lésbica feminista antirracista decolonial mostrando que a nossa postura não é um assunto apenas teórico, é um assunto político, porque nos leva a definir um tipo de política particular, que não é a política de reconhecimento.

Tempo & Argumento: Certo. E a consubstancialidade?

Rosa Inés Ochy Curiel Pichardo: A consubstancialidade é um termo desenvolvido fundamentalmente por Daniele Kergoat, uma das materialistas francesas, que mais ou menos vai pelo mesmo caminho da matriz de opressão. Há muitos conceitos para explicar tudo isso, é muito parecido também com a matriz de dominação. Maria Lugones também desenvolveu o conceito de fusão e de consubstancialidade; também o retoma, e diz que a vida e tudo é como um tecido, não pode separar. Ainda faz uma crítica à lógica da interseccionalidade por ser uma categoria... por permitir a categorização das coisas. Uma das questões que Maria Lugones disse é que estava contra as categorias, porque as categorias descrevem, e não problematizam o que são as experiências de vidas das pessoas que estão atravessando diferentes dominações e opressões ao mesmo tempo. Ou seja, a consubstancialidade seria a fusão da Maria Lugones, muito parecida com a matriz de opressão de Hill Collins.

Tempo & Argumento: Voltando então um pouco àquela questão das cosmovisões de Abya Yala , os terreiros, os quilombos, as populações indígenas, elas têm sido bastante abordadas por teóricas acadêmicas lesbofeministas antirracistas para refletir um pouco sobre as formas de pensar, de viver e de socializar. Como essas cosmovisões dialogam com a decolonialidade? E qual o lugar ocupado pelos gêneros, pelas raças e pelas sexualidades nesses diálogos?

Rosa Inés Ochy Curiel Pichardo: Os terreiros, os quilombos, os palenques, os manieles que são diferentes nomes em diferentes lugares, são nossos melhores exemplos de decolonialidade, antes do surgimento da teoria decolonial. E uma das questões para nós, como feministas decoloniais, é fazer o reconhecimento de nossas histórias de resistências, como têm feito o movimento negro e o movimento indígena. Há uma ancestralidade que é impossível apagar, e ainda é preciso reconhecê-la e apresentá-la, porque isso vai nos dar muita força. Porque essa resistência tem sido histórica. Hoje, ainda temos os quilombos, temos os terreiros, temos os palenques vivos, não estão somente no passado, são formas de organização política social da cosmovisão do que resistiu historicamente à lógica colonial. Então, há muitíssimas experiências, essas são só algumas, como por exemplo são os cabildos aqui em Colômbia, os resguardos indígenas, e também em diferentes lugares da Colômbia, mas são nossas comunidades, ainda que sejam quilombos, terreiros, sejam o que sejam. As comunidades populares estão resistindo a todo tempo diante dos embates do poder e, ainda esses são os lugares onde encontramos a solidariedade, a comunalidade, quer dizer, são a oposição à lógica capitalista, racista. Encontramos onde vivem os populares que, em geral, são negros, indígenas, uma lésbica popular, estão aí. Por isso, apesar desse capitalismo tão violento, dessa colonialidade tão violenta, todos os dias temos resistências por parte dos nossos povos. A decolonialidade implica reconhecê-los como essa resistência cotidiana, de todos os dias e isso significa que ali também se teoriza. Não somente as personagens individuais, intelectuais que teorizam, as pessoas teorizam todos os dias, todos os dias. E reconhecer isso como teoria é parte importante da decolonialidade, ou seja, creio que nós feministas decoloniais antirracistas não poderíamos pensar sem essa experiência. Essa experiência tem sido dos nossos ancestrais todos os dias. Creio que essas são as maneiras, frente a essas situações que estamos vivenciando hoje com a pandemia, que muitas pessoas se perguntam que mundo queremos, creio que faz tempo que nossos povos disseram que mundo deveria ser, para salvar o planeta. É o mundo para a vida, é semear coletivamente, é compartilhar coletivamente, é estar contra essa lógica individualista, que o capital internacional aposta como paradigma válido. São nossos povos indígenas, nossos povos negros que estão marcando os caminhos para nós, faz muito tempo. O que devemos fazer é voltar a ver, retomá-lo, reconhecê-lo e praticá-lo, da maneira que nos sentimos coletivamente, como fazemos. Essas comunidades não precisam ser rurais, são comunidades que podemos estabelecer por vínculos políticos e sociais, por necessidade histórica para questionar toda essa lógica colonial moderna que nos impuseram historicamente. Não é tarde, estamos em um momento muito difícil, e temos que buscar essas chaves e fazer algo novo. Aí está, faz mais de 500 anos que está aí, então precisamos voltar outra vez para ver quais são as aprendizagens que temos de todas essas cosmovisões decoloniais. E obviamente, isso tem a ver com entender como o gênero, a raça, a sexualidade, têm que ser fundamentais dentro dessa construção e, provavelmente há muitíssimas comunidades que estão impregnadas de relações de poder, de raça, de gênero, de sexualidade. Pois há necessidade de trabalhá-las. É esse chamado que também nós fazemos. Eu, sobre o tema do separatismo, tenho uma postura distinta hoje. Fui separatista lésbica feminista, fui separatista negra, fui separatista autônoma. Hoje eu estou questionando isso porque é certo que a maioria dos homens de qualquer comunidade tem muito poder ainda, mas não todos são patriarcas, no sentido de não possuírem a terra como os brancos, ou não possuem certos modos, certas produções. Creio que isso significa dizer, todas essas cosmovisões, todas essas práticas de comunidade, teriam que abordar as desigualdades de gênero, de raça, de sexualidade, dentro da comunidade. Onde participem os homens, participem as mulheres, as pessoas trans, as lésbicas, os meninos, as meninas, as pessoas jovens. Ou seja, como pensar, em vez de continuar com a lógica que impõe a cooperação internacional ou as ONGs de fazer projetos separados só de mulheres ou separados de lésbicas, como voltamos então para a comunidade, abordando também os seus problemas internos. Não necessariamente separados do restante. Isso foi um aprendizado fundamentalmente do feminismo branco. Ou seja, aprendemos isso do feminismo branco, acredito que temos a oportunidade nesse momento de reverter isso, e começar a pensar então nessas comunidades que estão impregnadas dessas relações de poder, mas que temos a possibilidade de que nessa própria se desenvolvam processos formativos, de ações políticas que questionem também essas lógicas de desigualdades que existem por raça, por gênero, por sexualidade. Continuar com a lógica separatista é continuar com uma lógica colonial do feminismo que nos ensinou isso, creio que todos os movimentos sociais teriam que abordar essas relações de poder de gênero, raça e sexualidade também no interior de seus movimentos e estabelecer compromissos com o fazer desaparecer todos os sistemas de opressão. Não somente, o que eu disse anteriormente, não somente raça por aqui, gênero por ali, sexualidade, pois é uma aposta integrar e obviamente é complexa, porque integrar, essa é a proposta, não há outra neste (sic) mundo.

Tempo & Argumento: Quando observamos as pesquisas em Ciências Humanas na América Latina e no Caribe, temos visto o crescimento das pesquisas sobre lésbicas negras. Elas ainda são pouco trabalhadas nas Ciências Humanas, mas têm crescido. Eu gostaria de saber se você vem acompanhando essa movimentação e se recomenda algo para a gente observar nesse sentido.

Rosa Inés Ochy Curiel Pichardo: Sim, eu creio que ultimamente tem se desenvolvido muitas pesquisas sobre lésbicas negras, que eram esses sujeitos que estavam invisíveis, e o bonito de tudo isso é que tem sido as próprias lésbicas negras que estão fazendo, com algumas exceções. Eu sou daquelas que está em desacordo com que pessoas brancas venham nos estudar, como as Ciências Sociais têm feito historicamente. Não somente a Antropologia, as Ciências Sociais no geral, e o bonito tem sido isso, a necessidade de sistematizar uma experiência coletiva que temos como lésbicas negras. Acredito que cada vez mais, temos que fazer pressão para que não sigamos sendo objetos de estudos. Nós temos a capacidade para estudar nós mesmas. E o objetivo de estudarmos nós mesmas não é só visibilizar nossas experiências, mas também compartilhar as análises que temos a partir dessas experiências. Quer dizer, compartilhar teoria, porque a partir daqui também fazemos teoria. Não somos somente testemunhas de quem vem nos estudar, mas a partir da nossa experiência, o feminismo negro diz isso faz muito tempo, as experiências são uma fonte de conhecimento. Mas também creio que o importante é nos perguntar para que fazemos isso. Quais são os objetivos de fazer pesquisas sobre lesbianidade negra? Creio que o objetivo é fundamentalmente fortalecer nossos movimentos sociais, ou seja, temos que romper com essa ideia que pesquisamos só para satisfazer uma questão pessoal ou um requisito acadêmico, mas essas pesquisas têm que servir para os movimentos sociais, para as nossas ações políticas. Se não, a mera pesquisa não tem sentido, ainda que esteja na academia, obviamente vamos completar um requisito acadêmico com isso, dissertações de mestrado, teses de doutorado, mas essas teses têm que ser um insumo importante para nossa ação política, se não, do ponto de vista decolonial não faria sentindo seguir reproduzindo essa lógica individualista, em que somente faço uma tese para mim e guardo na biblioteca. Isso não tem sentido. Então, esses seriam meus três elementos-chave em relação a essa pergunta: estudarmos nós mesmas, produzir teoria a partir daí, e essa teses serem insumos importantes para nosso processo de ação política.

Tempo & Argumento: Então vou aproveitar e seguir para a próxima pergunta, que é justamente sobre o papel das intelectuais negras e lesbofeministas no século XXI. Gostaria que você falasse um pouco mais sobre a sua atuação enquanto antropóloga decolonial e a proposta de etnografar o poder, ao invés de corroborar com a antropologia da dominação, tão fortemente arraigada na América Latina e no Caribe.

Rosa Inés Ochy Curiel Pichardo: Tem a ver com a anterior. Eu, quando estudei antropologia, me interessava muito aprender os métodos etnográficos da antropologia, mas não para continuar com a sua lógica colonial, na qual as pessoas indígenas e as pessoas negras eram fundamentalmente os objetos de estudos. E que ainda era tomar a matéria-prima dos indígenas e das pessoas negras fundamentalmente, e isso se amplia um pouquinho sobre a antropologia do Estado. Para mim, o que interessava era o que você disse, etnografar o poder. É importantíssimo fazer pesquisas sobre o poder, como funciona o poder. Porque as Ciências Sociais, sobretudo a antropologia, se limitam muito às práticas culturais. Essas práticas que estão lá, supostamente no passado, imaculadas para os antropólogos e antropólogas brancas fazerem disso um ego antropológico. Nós, sejamos antropólogas, ou de outras Ciências Sociais, nos corresponde estudar como funciona o poder para atuar sobre o poder. Estamos pesquisando fundamentalmente para entender melhor quais são esses mecanismos e poder desenvolver uma série de ações políticas a partir dos movimentos sociais. Uma das questões que implica uma antropologia decolonial é isso; é primeiro não deixar que sigamos entre os objetos de estudos; segundo, fazer dos nossos objetos de estudos o Estado, os partidos políticos, as grandes empresas multinacionais depredadoras e usurpadoras, a direita, a ultradireita. Temos que estudar isso, não somente dizer "as direitas, as ultradireitas", não. Quais são seus discursos? Quais são suas práticas? O que estão buscando? Qual é o dinheiro que movem? Quais são os apoios institucionais que têm? Tudo isso temos que fazer, para poder desenvolver ações políticas muito mais contundentes. Porque as vezes temos um pensamento muito generalizado sobre o poder e como ele funciona. Isso significa nada mais que denunciar. É como uma denúncia, que vamos à rua, se fazem muito mais robustas (sic) para fazer nossas próprias investigações. Então me parece que isso é prioritário, desde um ponto de vista decolonial, investigar o ponto de vista decolonial em qualquer disciplina ou em qualquer lugar. Creio também que uma proposta decolonial de pesquisa tem que sair da academia. Não podemos ficar nisso que é somente a academia que investiga, os movimentos sociais podem pesquisar, devem pesquisar também, uma coisa que quase não se faz. Precisamente para não depender dessas lógicas institucionais que sabemos, você e eu sabemos, que há uma limitação dentro de todo tipo de academia, por mais que haja compromisso nessa academia. Uma investigação decolonial também tem que sair das esferas institucionais a que estamos acostumadas. Os movimentos sociais têm que investigar, isso é um compromisso ético-político que temos conosco.

Tempo & Argumento: O trabalho acadêmico é muito solitário. E quando pensamos nas tradições de terreiros, quilombolas e indígenas a vida é primordialmente comunitária. Eu fico refletindo sobre essa identidade que é fronteiriça, ela está lá e está aqui. Como você tem trabalhado e amadurecido suas pesquisas e como fica a sua "autoridade de pesquisadora" diante dessa questão?

Rosa Inés Ochy Curiel Pichardo: Essa é uma questão muito interessante porque, todavia, há lógicas de poder sobre as pessoas que estão na academia, por exemplo, por mais ativista que eu seja. Minha última pesquisa, minha tese de doutorado foi sobre o racismo na República Dominicana, em relação às pessoas dominicanas de ascendência haitiana, por esse conflito histórico que há entre Haiti e República Dominicana, iniciado pela colonização. E o que eu mostro ali é como a colonização é que divide a ilha em duas. Hoje há dois países Haiti e República Dominicana por um lado, mas ademais todas as maneiras que o Estado dominicano concebe, e as pessoas dominicanas que têm pais ou mães haitianos, tem havido um racismo anti-haitiano horrível, até chegar ao ponto de emitir uma sentença pelo Tribunal Constitucional, em que se nega a essas pessoas a nacionalidade. O que eu mostro com isso é como tem sido uma colonialidade, ou seja, um continuum no qual a ponta do iceberg retira a nacionalidade de milhões de dominicanos de ascendência haitiana. Mas eu sou parte dessas companheiras e companheiros que estão lutando por isso em Dominicana. Eu vivo na Colômbia, mas sempre tenho um pé na República Dominicana; ali eu fiz minha militância política antirracista fundamentalmente, através da Casa Pela Identidade das Mulheres Afro. Com o GLEFAS, estamos voltando outra vez a fazer o processo de formação política para abordar esse tema. Mas elas é que são afetadas por essas sentenças; muitas delas são minhas companheiras de luta. É óbvio que eu tenho ali uma relação de poder, porque eu estou fazendo doutorado, estou em uma universidade. E nesse sentido, creio que cabe como esses privilégios que algumas de nós têm, que os coloquemos a serviço de nossas próprias lutas, de movimentos aos quais pertencemos. Ou seja, eu sei que nem todas as afros têm doutorado, nem todas as afros podem dar aulas na Universidade Nacional [da Colômbia], nem todas as afros podem das aulas na Universidade Javeriana, eu, sim, posso. Então o que faço é precisamente, esse lugar como você diz de autoridade pesquisadora, colocar então a serviço do movimento do qual sou parte. Não somente em Dominicana, em muitíssimos lugares aqui na Colômbia também. Essa é nossa responsabilidade, entende? Lutamos muitíssimo, muitos anos, para que algumas e algumes de nós pudéssemos entrar na universidade, porque sempre nos negaram essa possibilidade. Bem, agora temos a possibilidade, o que vamos devolver a essa comunidade da qual somos partes? É nossa responsabilidade. E essa é uma posição antirracista e decolonial. Saber que é parte de uma comunidade muito mais ampla e que retorne a essa comunidade tudo que aprendeu no lugar onde está. Eu sempre digo, eu sou o que sou graças às mulheres afros sobretudo, que comigo construíram historicamente. Há muitas mais, mas foram fundamentalmente as mulheres afros que foram fundamentais para mim. Porque senão, não seria o que sou hoje. E isso é desde minha mãe, minha avó, minha tia, até as companheiras com quem construí parte dos movimentos antirracistas em Abya Yala.

Tempo & Argumento: A América Latina e o Caribe têm uma ampla gama de artistas que partem da decolonialidade para criar, recriar, resistir. Como você tem visto o artivismo das lésbicas negras nesse sentido?

Rosa Inés Ochy Curiel Pichardo: Maravilhoso!!! Uma das coisas maravilhosas desse continente é a criação artística. Temos uma capacidade... apesar de tudo, apesar do poder, da dor, dos assassinatos. Sempre digo que a esperança de Abya Yala está na arte, está na música, está na dança, está nos poemas. Porque são as maneiras com que temos resistido historicamente, de forma impressionante. E hoje, eu sinto que há uma produção maravilhosa, tanto de lésbicas, de pessoas trans, de pessoas negras. Produzindo o tempo todo, desde a música, desde a dança, questionando inclusive a lógica de sexualidade tradicional através dos movimentos do corpo. Isso me parece fantástico! E está no Brasil, na Colômbia, está em muitíssimas partes do mundo. Eu creio que cada vez a arte, digamos, cobra mais importância. Eu venho daí e sei o quão difícil é viver da arte, mas de todas as formas, há uma arte que está se politizando muito, por parte das pessoas. Tem sido assim sempre, mas sinto que cada vez mais. Tivemos uma época de subida, do que se chamou nova trova, Mercedes Sosa, todos esses cantores, Caetano, Milton, uma época muito importante na época da ditadura que foi como um boom do que se chamou nova trova. Logo começou a baixar outra vez. E agora temos como um renascer. Caso não, vejamos as últimas manifestações, marchas que houve na América Latina e Caribe antes da pandemia. Todas, no Chile, no Haiti, em Dominicana, no Brasil, na Colômbia, estavam cheias de arte. Então, a arte para mim tem uma vantagem, toca os corações mais facilmente que uma conferência, uma conversa, ou o que seja. E aí conquista uma empatia maior com pessoas que não estão acostumadas a falar de decolonialidade, ou de teoria lesbofeminista. Sai uma coisa aí de dentro, que precisamos muito resgatar, o humano das pessoas. Eu vejo, sim, que há um florescimento das propostas, tanto de lésbicas como de pessoas indígenas, de jovens, de populares nos bairros que está sendo impressionante. E também, temos as redes sociais que permitem uma difusão. Tem de tudo nas redes sociais, desde a coisa mais merda até a possibilidade de difusão de muito conteúdo. Então, creio que essa é nossa esperança, precisamos seguir fazendo arte, a partir de todos os sentidos possíveis, de todas as possibilidades, porque eu acredito firmemente nisso.

Tempo & Argumento: Quais autoras e cantautoras você está lendo ou ouvindo nesse momento? Como elas têm mexido com as suas reflexões e pensamentos?

Xiomara Fortuna (2) Importar_tabla5265c64616 Lila Downs (1) Importar_tabla5265c64616 Rosa Inés Ochy Curiel Pichardo: Agora mesmo eu gosto de Lila Downs (1), porque Lila Downs é uma mexicana que também tem um pé no Texas, onde ela resgata muito parte de sua história que é parte de Oaxaca, por exemplo, e sua parte indígena. E consegue fazer uma fusão entre conteúdos muito chaves. No México, por exemplo, o desaparecimento dos 43 estudantes em Ayotzinapa ou o assassinato de várias lideres sociais ou o tema dos feminicídios. Ela consegue, através de uma proposta musical, com uma letra muito poética, fazer um compromisso desde a arte com esses temas que são fundamentais. Isso no México. Na República Dominicana, minha irmã querida, Xiomara Fortuna (2), uma cantautora, que para mim, é uma das mulheres que tem mantido, como uma negra, esse resgate ao que é a proposta caribenha. Essa irmandade com o Haiti, essa denúncia sobre o racismo, sobre o sexismo etc., e faz de uma maneira maravilhosa em termos musicais. Eu acredito que conseguir uma poética bela, bela para nós enquanto negras, não uma beleza moderna branca, ancestral. E articular isso a temas dos dias de hoje é fundamental. E essas para mim são, nesse momento, as duas cantautoras que são o máximo que há. Tem muitas outras, muitas Mon L. do Chile (3) Importar_tabla5265c64616 outras bonitas etc., Mon Laferte do Chile (3) creio que está fazendo um trabalho maravilhoso também com a articulação das lutas feministas que estão acontecendo no Chile com suas próprias gravações, mas também com as próprias performances que faz no cenário, que acredito ser uma questão muito interessante de poder fazer. Tem muitas, tem muitas, sobretudo as que não escutamos nas rádios, que andam por aí fazendo coisas maravilhosas, na verdade.

Tempo & Argumento: Estamos chegando ao final da entrevista, mas antes gostaria de pedir que na sua resposta já indicasse algumas bibliografias para nós. O que a teoria decolonial antirracista lesbofeminista pode trazer para o campo de estudos da História do Tempo Presente?

Rosa Inés Ochy Curiel Pichardo: Tudo. Eu acho que um aporte todo. Porque é uma reinterpretação da história mesmo, com suas sujeitas e sujeitos, que antes estavam invisibilizados. Então, a teoria decolonial antirracista lesbofeminista antimilitarista anticapitalista coloca no centro o poder complexo. Então é tudo. É revisar a história oficial, a história colonial e começar a fazer uma outra história. Não, começar não, nós sempre fizemos, mas eu acho que temos que fazer isso. O objeto fundamental da história crítica de Abya Yala é esse, fazer uma reinterpretação dos fatos históricos coloniais, colocando outras verdades, outras maneiras de compreender os sucessos, que a história chama seus sucessos históricos. Isso significa, como aconteceu, quem estava lá, quem escreveu dessa maneira. Eu acho que uma questão fundamental é entender os lugares de enunciação daqueles que têm escrito a história, a história não colonial. Então é a proposta da teoria decolonial antirracista, antifeminista. Então, é tudo. É fazer outra vez, realizar tudo. E algumas bibliografias, eu creio que o que estão produzindo as companheiras do GLEFAS[4], como Yuderkys Espinosa, Carmen Cariño, Maria Teresa Garzon, Aymara Yanque etc. São várias. Os escritos de Maria Lugones, que são chaves para poder entender tudo isso, são minhas recomendações nesse momento. Creio que essas bibliografias, mas também vídeos. Não podemos perder a história oral, a história oral para nós é fundamental. Mas, além dessas intelectuais, a proposta é voltar a nossas avós. Nossas tias, nossas mães, nossas comunidades que faz muito tempo que estão nos dizendo muitas coisas, mas como convertemos e como legitimamos esses conhecimentos que também são intelectuais. As intelectuais não estão só na academia, as intelectuais estão fundamentalmente em nossas comunidades, em nossas famílias e acredito que uma aposta decolonial tem que reconhecê-las. Porque temos uma dívida com elas, eles e elxs também, essa seria minha última recomendação.

Notas

1 Ver: CRENSHAW, Kimberlé. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, Feminist Theory and antiracist politics. University of Chicago Legal Forum, v. 1989, iss. 1, article 8. Disponível em: . Acesso em: 14 fev. 2017.
2 Ver: COMBAHEE RIVER. Una declaración feminista negra: la colectiva del río Combahee. In: MORAGA, Cherríe; CASTILLO, Ana. Este puente, mi espalda: voces de mujeres tercermundistas en los Estados Unidos. San Francisco: Ism Press, 1988. p. 89-93. p. 172-183.
3 Ver: COLLINS, Patricia Hill. Toward a new vision: race, class and gender as categories of analysis and connection. Memphis, Tenn: Center for Research on Women, Dept. of Sociology and Social Work, Memphis State, University, 1989.
4 As integrantes do GLEFAS e suas respectivas produções podem ser acessadas no link: http://glefas.org/equipo-glefas/todas/
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