Entrevistas

Histórias, línguas e culturas dos povos indígenas em Mato Grosso do Sul: entrevista com Graciela Chamorro

Cándida Graciela Chamorro Argüello
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Brasil
Claudia Regina Nichnig
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Brasil

Histórias, línguas e culturas dos povos indígenas em Mato Grosso do Sul: entrevista com Graciela Chamorro

Revista Tempo e Argumento, vol. 13, núm. 32, e0303, 2021

Universidade do Estado de Santa Catarina

Resumo: Graciela Chamorro é uma das referências nos estudos sobre os povos falantes de línguas Guarani, com uma vasta produção em livros, artigos, exposições e outras performances artísticas sobre a história, cosmologia e língua desses povos. É doutora em Teologia, pela Escola Superior de Teologia, de São Leopoldo/RS, e em Filosofia[1], pela Philipps Universitaet, de Marburgo Alemanha, e desde 1983 mantém contato com os povos Guarani e Kaiowá de Mato Grosso do Sul. Ao se aposentar como professora de História Indígena da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados – FCH/UFGD, passou a ministrar na mesma cidade, cursos de Língua e Cultura Guarani, na Associação Cultural CASULO.

A professora me convidou pessoalmente a participar de um de seus cursos, quando tive a oportunidade de pisar pela primeira vez em uma terra tradicional indígena, numa das áreas de retomada de Guarani e Kaiowá, na região da grande Dourados. A visita me transformou não só como pessoa, mas também mudou os rumos de minha vida como pesquisadora. Por isso, quero compartilhar com vocês o conhecimento e a força das palavras de Graciela, que me inspiraram e, por certo, servirão de inspiração para outras pessoas. Esta entrevista é um projeto da disciplina Teoria da História do Tempo Presente, Teoria e Historiografia, ministrada pelo professor Rogério Rosa Rodrigues. Primeiro gostaria de agradecer o aceite da professora a meu convite.

Tempo & Argumento: Gostaria de iniciar, perguntando em relação à metodologia e às fontes históricas utilizadas pela professora, que inicialmente se debruçou principalmente sobre os documentos coloniais, mas sem deixar de manter o diálogo com as comunidades indígenas no tempo presente. Gostaria que abordasse um pouco sobre os limites e as possibilidades de uso fontes históricas para a pesquisa em História Indígena.

Graciela Chamorro: Obrigada, Cláudia, pelo convite e pelo apreço de nosso trabalho e da nossa pessoa. Em relação à Metodologia, eu entrei na História Indígena a partir do tempo presente. Antes de ler documentos e estudos históricos sobre os indígenas, eu conheci os Kaiowá e os Guarani em Dourados-MS, em 1983, e fui para a História por causa deles e das questões do seu e do meu presente. Quem eram esses indígenas que falavam uma língua muito parecida com a língua com a qual me socializei na infância? São os mesmos indígenas que vivem no Paraguai, de onde eu vim, ou não? Essa religião deles, com cruzes e paraísos, é cristã ou não? Foram as primeiras questões. A teologia que eu estudei é herdeira do iluminismo. Nela, a História é muito forte. De modo que procurei respostas na História. Fui para o passado, com a alforja cheia de cantos, rezas e festas, para pensar sua origem. Isso resultou na minha dissertação de mestrado em História, Kurusu Ñe’êngatu: palabras que la historia no podría olvidar (Chamorro, 1995), contida parcialmente em Panambizinho: lugar de cantos, danças, rezas e rituais kaiowá (Chamorro, 2017). As obras contêm o texto dos cantos indígenas da festa do milho e do menino, no original e traduzidos ao espanhol e ao português, assim como a descrição das festas. Na dissertação, um longo capítulo trata da origem dos poemas cantados e rezados nesses rituais. Para isso, eu achei que deveria ler tudo o que os jesuítas e franciscanos – as principais ordens religiosas dos séculos XVI-XVIII no antigo Paraguai – escreveram sobre os indígenas que eles chamavam genericamente Guarani, bem como as rezas e os resumos doutrinários usados para catequizar os indígenas. Assim, comparei o que recolhera em campo nos anos 1980 com rezas cristãs milenares, traduzidas ao Guarani missioneiro. Para algumas pessoas que acompanhavam minha pesquisa, era segura a origem jesuítica desses cantos; para mim e para o professor Bartomeu Melià, esses cantos eram de origem indígena. Assim que ouvi com certa angústia um outro professor, Mark Münzel, me dizer, “mas, e se não forem de origem indígena, qual o problema?”. O professor já havia percebido minha hipótese velada. Eu queria que esses cantos indígenas sempre tivessem sido indígenas. Não queria que os jesuítas roubassem dos indígenas a autoria desses tesouros “literários”. Bem, o fato é que não encontrei no acervo missionário nada parecido com o indígena. A combinação de fontes escritas do passado com fontes orais do presente uso até hoje, mantendo as diferenças espaço-temporais. Mesmo quando eu me debruço mais detidamente sobre as fontes escritas do passado, não consigo ignorar os grupos indígenas vivos, parentes daqueles citados nos documentos. Sempre é bom conferir se eles não têm algo a dizer que lance luz sobre o passado. (Error 1: La referencia: Chamorro, 1995 está ligada a un elemento que ya no existe) (Error 2: La referencia: Chamorro, 2017 está ligada a un elemento que ya no existe)

Qual o limite dos documentos? Eu diria que “os limites” são de vários gêneros. Muitos não foram escritos propositadamente para serem documentos, mas se tornaram documentos pela relevância que em algum momento adquiriram por tratarem de determinados assuntos, o que foi lhes dando status de documento, é o caso das atas, das cartas, dos diários, dos jornais, dos textos literários, documentos religiosos etc. Na minha pesquisa, já levo 30 anos estudando as fontes escritas na língua Guarani escrita por missionários do século XVII. Essas fontes têm data e estão limitadas pelos valores de seu tempo, pela ideologia da missão colonial, pela língua instrumentalizada para dominar seus falantes originários, pelos seus autores estrangeiros. Mesmo assim, apesar desses limites, esses documentos são as fontes mais ricas para conhecer a língua falada nas reduções jesuíticas e aspectos importantes da vida dos indígenas que se queria subjugar através de sua própria língua.

Esses documentos são fontes para a história social da língua, para história indígena e para o estudo das línguas Guarani. Mais dois limites: nada consta nesses documentos sobre o que chamamos de religião indígena. De modo que, para pesquisar religião, esses documentos são limitados. Já para o estudo da língua eles são preciosos, mas como eles não têm som são limitados para a fonologia. O acesso à pronúncia das palavras na língua indígena é através do alfabeto do século XVI e XVII para a escrita do espanhol e do português, assim como de acentos e outros sinais diacríticos. Os compêndios em língua Guarani, deixados pelos jesuítas da primeira metade do XVII, foram sucedidos por outros documentos escritos no final do século XVII e no início do XVIII, quando se publicaram muitas obras na imprensa das reduções, o que permite uma comparação de fontes.

A limitação do documento histórico já foi de certa forma absorvida pela própria História, no sentido de não mais se achar que o estudo histórico revela o que aconteceu realmente, assim como o documento não é a verdade. Os estudos históricos mais rigorosos nos aproximam do que aconteceu. Os documentos, igualmente, são lidos como registros parciais e incompletos do que aconteceu. Eles vão nos ajudar a enxergar o acontecido a partir de várias perspectivas, por isso é muito importante usar vários documentos no estudo histórico, se possível, documentos de gêneros distintos. Estamos falando de uma metodologia de tratamento de documentos e de produção de conhecimento histórico, obviamente, não de extremos que chegam à insensatez do negacionismo histórico.

Tempo & Argumento: Como os problemas e esses limites dialogaram com os sujeitos históricos de “carne e osso”, e como dialogam com a emergência do sujeito indígena como protagonista de sua história?

Graciela Chamorro: Nos documentos da missão e da colônia, os sujeitos históricos indígenas, de “carne e osso”, aparecem como entraves ou como aliados. Esses documentos não reconhecem o indígena como sujeito independente do colonizador e da sua missão. Esse é o limite do tempo. Alteridade não fazia parte do vocabulário da época. Os indígenas demonstraram certa abertura para os primeiros missionários, mas quando estes mostraram a que vieram, os indígenas emergem como sujeitos e resistem ativamente, chegando a eliminar alguns dos que os catequizaram. Somos nós, do século XX-XXI, que falamos em “emergência do sujeito indígena”, denominando assim suas ações para recuperar espaço, influência, autoridade e protagonismo que lhe foram tirados. Para a maior parte dos missionários, esse sujeito não existe ou está sujeito a ele. Como se deu isso com Antonio Ruiz de Montoya, autor das fontes que utilizamos? Ele não apaga o sujeito histórico indígena que se opõe à missão cristã. Sua crônica Conquista Espiritual e suas cartas contêm os nomes desses “malcontentes” e dados mínimos sobre sua procedência e biografia. Mas eles são deslegitimados pelo discurso dominante que caracteriza o documento. O outro só ganha dignidade à medida que se torna igual ao sujeito dominante. Assim, o indígena Ignacio Paraici, se torna um sujeito de fé, e ganha destaque na obra mística Sílex del divino amor, de Ruiz de Montoya, por ter guiado o próprio missionário a galgar patamares espirituais mais altos. O sujeito indígena como protagonista de uma prática cultural, que aparentemente não perturbava a missão cristã, também ganha espaço nos documentos de Montoya. Ao tratar do lema og, óga ‘casa’, por exemplo, no Tesoro de la Lengua Guaraní, o autor descreveu a casa indígena, do ponto de vista dos indígenas, dos materiais e da tecnologia utilizada. O mesmo acontece com os termos de parentesco. Ele registrou muito mais termos do que realmente precisava para traduzir as regras do casamento cristão. Isso parece indicar que o jesuíta estava interessado não apenas no que ele queria dizer na língua indígena, mas também no que os indígenas já falavam. Ele parece ter querido conhecer os indígenas, reconhecendo seu protagonismo naquilo que eles tinham de mais íntegro, sua língua. De modo que não se pode estabelecer a priori o limite de um documento. Estudado em sua complexidade, um documento mostrará seus limites e possibilidades.

Quanto ao protagonismo indígena nas últimas décadas, vale lembrar que isso se deu graças ao movimento indígena e à contribuição da Antropologia, da História Indígena, da Linguística, das diversas linguagens da Arte, do Direito, da Constituição de 1988, das Etnociências em geral, das políticas públicas, sobretudo de governos de esquerda e de setores progressistas das igrejas. Houve uma espécie de coalisão para essa mudança de paradigma. E os povos indígenas passaram a ser vistos “como gente”, como agentes na sociedade. A presença indígena nas universidades é um exemplo dessa mudança. E ela traz consigo desafios de ordem epistemológicos, pedagógicos. sociais e políticos, para indígenas e não indígenas.

Quanto ao desafio político do protagonismo indígena no campo intelectual, gostaria de compartilhar que nos anos 1980 e 1990, não imaginava que os indígenas com quem eu interagia, se tornariam estudantes e docentes de universidades. Era um limite da imaginação. Nos anos 1980 não havia escolas indígenas, mas para indígenas, a alfabetização de crianças monolíngues em sua língua de origem era feita em português, as práticas culturais indígenas não contavam para nada. Qualquer iniciativa de ensino “em” e “da” língua indígena – o que seria algo mais sensato e propiciaria certa autonomia aos indígenas – era visto como subversivo e perigoso para a segurança nacional. Sou muito grata porque ainda tive a oportunidade de ter indígenas como acadêmicos desde 2006 e como colegas na docência, desde 2012, na Faculdade Intercultural Indígena, num curso exclusivo para indígenas falantes de Guarani e Kaiowá. No curso de História, tive também estudantes da etnia terena. Em 2017, havia 49.026 indígenas nas instituições de ensino superior, no Brasil, segundo o último Censo da Educação Superior, divulgado pelo Ministério da Educação. Isso não se deu por acaso; é resultado do movimento indígena e de políticas públicas que possibilitaram o ingresso e a permanência de estudantes indígenas em diversas faculdades. O tempo mudou e também o imaginário. E os indígenas graduados e pós-graduados colocam um desafio para a política de produção de saber. A simples pergunta “quem é o sujeito da pesquisa?” já implica nisso. Eu lembro do meu professor na Alemanha, Mark Münzel, que no início dos anos 1990 disse para nossa turma “o estudo dos povos indígenas do Brasil, já faz alguns anos, pertence aos brasileiros”. Ou seja, teria deixado de ser um campo de saber ocupado por alemães e outros estrangeiros. Será que nos próximos anos ele pertencerá aos indígenas? Ou será que a emergência dos indígenas como sujeitos de saber acadêmico pode conciliar os esforços em prol da produção de um saber colaborativo, com reconhecimento da autoria e coautoria indígena. Nesse sentido, espero ativamente, que as próximas turmas de indígenas nas universidades elaborem em parceria com colegas e docentes não indígenas uma epistemologia mais ecológica e colaborativa, que implicará obviamente no manejo de novas competências de ambas as partes envolvidas no processo de ensino-aprendizagem. Terá que se superar a monocultura e a colonialidade de cursos e docentes universitários, em muitos casos tão desamparados e sem pré-requisitos como os estudantes indígenas, para uma experiência epistemológica intercultural. Superada a dificuldade de leitura, escrita e diferenciação metodológica, os indígenas terão mais autonomia para produzir conhecimento, elaborando os saberes tradicionais e tornando-os inteligíveis para a academia, apropriando-se dos saberes não indígenas em prol das causas e projetos de vida das populações indígenas ou expressando seu pensamento e sua criatividade de uma forma que não imaginamos hoje.

Tempo & Argumento: Eu tive a oportunidade de conhecer a professora Graciela quando trabalhei como professora visitante na Universidade Federal da Grande Dourados, a qual está localizada no estado do Mato Grosso do Sul, que possui a segunda maior população indígena do Brasil. Se possível, gostaria que a professora falasse sobre como percebe a produção das estudantes indígenas, sobretudo as mulheres, no acesso ao ensino superior, como elas alteram a produção do conhecimento científico, não mais como objetos de pesquisa, mas como sujeitos. O que você pode nos dizer sobre o papel das intelectuais indígenas?

Graciela Chamorro: Primeiramente, a intelectualidade indígena é composta pelas mestras e pelos mestres chamados “tradicionais”, por se orientarem pela visão de um passado mítico que esperam ser restaurado e por um discurso mais cosmológico. Mas aqui, a pergunta é sobre os novos intelectuais indígenas, precisamente sobre sua produção. Foco, aqui, na minha experiência e na dos meus colegas na UFGD, com os Kaiowá e os Guarani.

Cabe lembrar que assim como entre universitários não indígenas, nem todos os acadêmicos indígenas são intelectuais. Intelectual, segundo Norberto Bobbio (1978), é a pessoa que exerce o poder espiritual e ideológico na sociedade, em oposição ao poder temporal ou político. Nesse sentido, temos que diferenciar os acadêmicos e docentes indígenas mais aliados aos líderes tradicionais e a seus conhecimentos e os mais ligados às questões temporais. Este último grupo, segundo Pereira e Valiente (2020, s/p, no prelo), “desenvolve forte presença na organização da rede política constituída na reserva ou terra indígena onde vive. Também é comum o engajamento junto a alguma instituição do Estado, que presta serviço na comunidade indígena, em geral a escola, quando a pesquisa parece alavancar as possibilidades de incidência política. Ou seja, a maior parte dos pesquisadores são figuras políticas proeminentes e a pesquisa se conecta com as possibilidades de ampliação dos papéis políticos já desempenhados pelo pesquisador”. Os trabalhos dessas pessoas refletem esse lugar. (Error 3: La referencia: 1978 está ligada a un elemento que ya no existe) (Error 4: La referencia: 2020, s/p, no prelo está ligada a un elemento que ya no existe)

Cássio Knapp mostrou, em sua tese de doutorado, que boa parte dos trabalhos produzidos por acadêmicos indígenas são nas áreas da História e da Antropologia, nos quais eles desenvolvem temas sobre suas comunidades. Levi Marques Pereira chama este gênero de produção de Antropologia Nativa, cuja produção, exige tempo e esforço coletivo, de parte dos pesquisadores indígenas e dos não indígenas. O autor menciona a favor dessa antropologia produzida de modo colaborativo, o realizado pelo Yanomami Davi Kopenawa e o antropólogo francês Bruce Albert (2015), experiência na qual a colaboração deve ser refletida em termos de diálogos e traduções estabelecidos (Pereira; Valiente, 2020, s/p, no prelo). (Error 5: La referencia: Pereira; Valiente, 2020, s/p, no prelo está ligada a un elemento que ya no existe)

Mas como são os trabalhos produzidos por indígenas de pós-graduação no campo da Antropologia? Para o nosso colega, as investigações são diferentes umas das outras, mas com algumas características recorrentes. Eles têm uma “forte ênfase autobiográfica e auto-etnográfica, ou seja, o autor se coloca como ator na rede de sujeitos da pesquisa, e reflete sobre essa condição”. A rede efetivamente acessada pelo pesquisador “tende a coincidir com mais intensidade com a rede da própria parentela e de parentelas com as quais compõe alianças matrimoniais, políticas e rituais. Parecem persistir fortes limitações à transcendência dessas redes, dificuldades aparentemente maiores do que seriam para um pesquisador não-indígena”, concluem os colegas.

Com relação ao primeiro grupo, a produção tende a ser marcada pela linguagem religiosa, transcrição e ilustração de mitos, criação de analogias entre a linguagem mítica e a científica. A escrita é como transcrição da oralidade. Numa aula de história da ciência que eu assistia na licenciatura indígena, a professora mostrou que, até o final do século XVII, as ciências da natureza estiveram na mão de religiosos e que então elas se libertaram... Um estudante interrompe: "Então, professora, nós Kaiowá estamos ainda no século XVII, porque nossa ciência e nosso saber são todos religiosos, nosso ensino da ciência é um ensino religioso”. A Biologia ensina que sem a luz, sem o Sol, não haveria fotossíntese, não haveria vida. Isso também diz a nossa ciência, sem Pa’i Kuará, sem Ñamandu, Nosso Irmão Sol, nossos heróis culturais, não haveria vida. Nossa mitologia é a nossa ciência. Tirar a religião da ciência, por quê?”. E fez uma série de questionamentos. De alguma forma, essa reação coloca em questão a crítica severa à religião, feita na universidade. Eis um desafio para o exercício da interculturalidade, do diálogo e do respeito.

A produção das mulheres se insere nesses dois campos acima. No tocante à crítica às práticas que empoderam os homens, que submetem as mulheres aos homens e que legitimam a violência, elas por enquanto parecem não ter se ocupado em seus trabalhos acadêmicos. Como estagiárias em setores da assistência social ou mesmo na organização nativa, chamada Grande Assembleia das mulheres, elas têm demonstrado seu desconforto, descontentamento e crítica frente às relações abusivas e à violência estrutural nas comunidades indígenas. Não é fácil para elas. Há homens na resistência, alegando, por exemplo, que a Lei Maria da Penha[2] é um ataque à cultura, que coloca em suspeita até os líderes. Mas a violência nas comunidades indígenas não é uma questão cultural. A cultura está para promover a vida, e não é por acaso que em Guarani o mesmo termo para vida é também o termo para cultura, teko.

Tempo & Argumento: Sobre o corpo das mulheres indígenas, em seu livro “Decir el Cuerpo[3]”, a professora aborda diferentes aspectos do corpo, como “físico, erótico, sexual, reprodutivo, etc.”. O que pensa sobre as questões de violências que afligem o corpo das mulheres indígenas (incluindo a violência doméstica, familiar e a violência obstétrica)?

Graciela Chamorro: No livro Decir el cuerpo, organizo parte do material levantado do Vocabulario e do Tesoro de la lengua guarani de Antonio Ruiz de Montoya. Essa fonte é um imenso sítio arqueológico, de palavras, muito produtivo. As pesquisas feitas até agora, mostram que ela pode cobrir todo o inventário etnográfico. O sumário da classificação que fiz quando fui professora visitante na UEM – Universidade Estadual de Maringá, entre 1998-2000, tem mais de 40 páginas. Na juventude, eu queria escrever, com esses retalhos de dizeres, numa enciclopédia sobre os povos indígenas históricos falantes de línguas Guarani, em sua maioria, contactados pelos jesuítas do antigo Paraguai. Obviamente, comparando-os com os grupos indígenas contemporâneos falantes de línguas Guarani, das regiões das antigas frentes missionárias jesuíticas. Isso não era um projeto de pesquisa exequível, nem mesmo um programa de pesquisa. Os colegas riam de mim, era um projeto de vida. E com razão. Mas algo dessa ideia concretizei no livro Decir el Cuerpo e no livro Cuerpo Social (Chamorro 2009, 2017a) e, quem sabe, em 2022 saia um terceiro volume sobre enfermidades, curas e morte. Nessas obras, eu me vejo traduzindo os dados registrados no Guarani missioneiro e no espanhol antigo, facilitando assim a meus colegas que não manejam especialmente o Guarani no acesso à fonte. (Error 6: La referencia: Chamorro 2009 está ligada a un elemento que ya no existe)

No livro sobre corpo humano, trato das palavras e expressões sobre anatomia, funcionamento, sexualidade, reprodução, desenvolvimento. O capítulo que eu mais gosto é o capítulo dez, Las edades de la vida, no qual apresento o desenvolvimento humano do nascimento à decrepitude. E pensar que tudo começou com o artigo “Expressões do Erotismo e da Sexualidade Guarani”, que escrevi para ingressar no mestrado em História na Unisinos/RS, em 1989. Comentei com meu professor, Bartomeu Melià, sobre o tema e ele me perguntou: “Mas acha que um jesuíta teria se ocupado com isso?" Eu acolhi a dúvida, mas lembrei do confessionário. O confessor fazia muitas perguntas sobre a prática erótico-sexual, sobretudo para as mulheres. Os missionários usaram a língua indígena para controlar o corpo das pessoas indígenas. Eu sei como é a confissão. O padre pergunta sobre masturbação, relação sexual, carícias entre amigos e namorados. E se ele tinha que perguntar isso no confessionário, ele tinha que ter registrado no seu dicionário. Resultado: encontrei muitas expressões. E meu professor gostou muito do artigo e me convidou a apresentá-lo em alguns eventos, até se tornar um capítulo do livro Decir el Cuerpo. Quanto ao conteúdo das expressões, gosto de destacar que a tradução é no contexto missionário colonial uma tradução de mentalidade, de todo aparato moral. No Guarani, por exemplo, não havia substantivos para fornicação e adultério, o missionário inventou usando a palavra kuña, ‘mulher’. Não havia a palavra ressureição e virtude, o missionário inventou usando a palavra kuimba’e, ‘varão’. Assim ele acaba traduzindo o machismo arraigado no latim, português, espanhol, italiano, bem como no catolicismo. Pergunto: Por que o jesuíta não inventou a palavra “virtude” a partir da palavra “mulher’? Porque no espanhol e nas línguas de origem latina essa palavra está comprometida com o masculino. Virtude vem de vir viris que significa homem em latim. E ele opera da mesma maneira na língua indígena. Isso é uma violação da língua. No caso do uso do termo mulher para nomear “pecados carnais”, não há um termo precedente no espanhol, mas sim a ideologia generalizada na Europa e na América no século XVII, de que elas têm a sanha de corromper os homens, havendo muitíssimos ordenamentos e prescrições para elas se livrarem desse pecado. Esse é o bojo do neologismo criado pelo jesuíta.

Nessa fonte, temos muitas frases sobre violência corporal, mas não específica à violência doméstica ou contra mulheres. As expressões sugerem castigos públicos, como espancamentos, prisão no cepo ou em lugar fechado, que, pelos relatos em outras fontes da época, sugerem tratar-se de uma violência “disciplinar”. Algumas expressões remetem novamente ao confessionário, onde a mulher vai ser indagada se abortou. O confessor usa a palavra membypu para ‘aborto com causa culpável ou sem ela’, membykua para aborto espontâneo e memby juka, membypu guyépe e membyunga ijukávo para aborto provocado; este criminaliza a mulher, por ‘matar seu filho ou filha no ventre’. Se a mulher abortou, receberá a penitência, e esta era um castigo.

No corpo do livro, eu vou apresentando e analisando os dados do século XVII, enquanto no rodapé, vou atualizando esses dados, marcando as semelhanças, diferenças, ausências etc. Assim, no presente sabe-se muito mais do que no passado acerca dos métodos contraceptivos, que incluem o aborto, do que no passado. Apesar desses saberes, pela implementação do biopoder – políticas públicas que regulam e subjugam sobre o corpo da população –, o corpo das mulheres indígenas está praticamente terceirizado. A Secretaria Especial de Saúde Indígena “regula” sobre o nascimento e a morte. Quase todas as crianças nascem em hospitais e cada vez mais pessoas morrem em hospitais. A parteira, a mãe, a sogra, a avó e o pai perderam seu lugar no importante evento do nascer. Os rituais do início e do fim da vida já não podem ornar a autocompreensão indígena. Essa violência simbólica do corpo, no ator de parir, se dá por exemplo no destino dado ao umbigo e à placenta nos hospitais. Na cultura tradicional eles são enterrados na residência; no hospital, são jogados no lixo. Sem sentimento de pertença com seu lugar de nascimentos, as crianças nascidas em hospitais, quando jovens, serão propensas a suicídio, comentam as pessoas mais velhas da reserva de Dourados, com altíssimo índice de suicídios.

Uma das violências sofridas pelas mulheres indígenas nos hospitais é a obstétrica. Muitas, por não se comunicarem bem em português são agredidas verbalmente. O isolamento do paciente e a separação imediata da pessoa que morre de seus parentes é outro tipo de violência. Nesse sentido, há uma performance teatral, Arabi Cobé, encenada por Arami Marschner e Verônica Fabrini, baseada na história de uma indígena do MT submetida aos protocolos dos hospitais, apesar de sua resistência. Sem falar português, a paciente só chorava. Só muito depois a enfermeira chegou a saber que a indígena tinha perdido uma criança no hospital. Diante disso, precisamos com urgência de um protocolo que humanize a relação entre profissionais da saúde nos hospitais e pacientes indígenas.

Tempo & Argumento: Aproveito para perguntar sobre a importância e a necessidade da presença de intérpretes em espaços públicos como hospitais e delegacias para que os/as indígenas tenham acesso pleno à cidadania.

Graciela Chamorro: A tradução em ambientes públicos é uma tarefa difícil porque não temos profissionais indígenas ou falantes de línguas indígenas peritas nisso. Quando sou chamada pelo juiz para traduzir, eu já indico indígenas. Para assumir essa tarefa, eles precisam conhecer melhor sua língua de origem e se desenvolver mais na sua segunda língua, o português, pois uma vacilada na tradução pode ter consequências muito graves para o parente. Seria muito importante oferecer um curso de português voltado para essa área para os indígenas, mas também um de tradução. Como muitos termos e expressões da língua indígena não têm equivalência no português e vice-versa, a pessoa que traduz tem que ser criativa, mas também ter a mesura e a sensibilidade de uma tradutora.

Mas também não indígenas podem aprender a língua indígena e se tornar tradutores, lembrando que ser docente da língua não é ainda ser tradutora. Uma professora de inglês não é uma tradutora de inglês. A língua acompanhada de um saber cultural; isso é uma coisa que deve ser desenvolvida também entre indígenas e entre não indígenas. Assim como nós temos brasileiros traduzindo do francês para o português, nós podemos ter brasileiros traduzindo da língua indígena para o português e vice-versa. A língua indígena é apresentada no imaginário da nossa sociedade como algo assim inacessível, e ela não é mais inacessível do que outra língua estrangeira. O que nós não temos é políticas de acessibilidade para essa língua e essa cultura. Os indígenas, nesse sentido, são muito mais interculturais, pelo fato de seus saberes serem considerados saberes muito mais étnicos, de um grupo pequeno, eles precisam malhar para acompanhar um debate em português, as famílias indígenas com mais poder na sociedade indígena também impulsionam seus filhos para serem bons falantes de português e passarem no vestibular, essas coisas. A questão da política linguística é uma coisa central nas políticas de acessibilidade, de indígenas para dentro da sociedade não indígena, e de não indígenas para as sociedades indígenas. E há uma grande carência, pois não são pensadas essas questões em termos de governo.

Tempo & Argumento: Ainda sobre as questões específicas das mulheres indígenas, como a professora vê a aplicação de legislações como a Lei Maria da Penha?

Graciela Chamorro: A A lei Maria da Penha é aplicada também nas reservas, nas terras e nos acampamentos indígenas. Obviamente, dada a precariedade das casas e a vulnerabilidade econômica da grande maioria da população indígena, que em muitos casos é também sem-terra, é mais difícil aplicar as medidas protetivas, como afastar o agressor do lar ou do local de convivência com a vítima, fixar limite mínimo de distância que o agressor fica proibido de ultrapassar em relação à vítima; proibir o agressor de entrar em contato com a vítima, seus familiares e testemunhas por qualquer meio ou, ainda, suspender visitas aos dependentes menores ou obrigar o agressor a pagar pensão alimentícia.

Outra dificuldade para a aplicação da lei é o medo das mulheres para denunciar seus algozes. Uma senhora sofria abuso sexual e violência do seu próprio irmão, que também já abusara de sua sobrinha. Estando em outra aldeia, a senhora contou para seus parentes sua situação e seu desejo de sair dela. Foram acionados apoiadores e profissionais para registrarem a denúncia. Ela ficou calada, não respondeu a nenhuma das perguntas. A intenção era levá-la para um centro de proteção. No dia seguinte, veio seu irmão e a levou à força.

Tempo & Argumento: Também gostaria que a professora falasse um pouco sobre o cuidado das mulheres indígenas com as crianças e com a manutenção do fogo doméstico nas comunidades, bem como sobre sua atuação na transmissão da língua e da cultura.

Graciela Chamorro: Nós temos mais homens falantes de língua portuguesa do que mulheres. As crianças aprendem a língua indígena com as avós e as mães. Quando alcançam a idade escolar, elas aprendem o português e começam a se identificar com um mundo exterior à família e, de alguma forma, considerado “masculino”, pois são mais os homens que saem para trabalhar. É muito importante reconhecer as mulheres por manterem viva sua língua.

A questão do cuidado do fogo doméstico, no sentido literal, é algo que vai diminuindo. Com a falta de lenha, seria um luxo deixar o fogo aceso durante todo o dia, sobretudo no verão. No inverno é mais provável deixá-lo aceso. Para o fogo ficar aceso por muito tempo, precisa-se de uma lenha-mãe ou guia, tata y, grossa e de boa densidade, o que é cada vez mais difícil conseguir. Na maioria das casas não existe mais esse fogo doméstico, como relatado nos anos 1960-70. Há o fogo para cozinhar, que pode ser feito de lenha no chão, a lenha no fogão caipira, a gás, elétrico, micro-ondas. E cuidar do fogo já não é tarefa exclusiva da mulher. O fogo no sentido metafórico, como símbolo do que nós chamaríamos de família nuclear, unidade econômica, continua fazendo sentido. E a mulher é de certa forma quem cuida desse fogo, a que zela pela unidade familiar e pelo bom uso do dinheiro, providencia comida e roupa, a que vai com as crianças para a cidade “coletar”, a que conta as histórias de antigamente.

Como a questão do cuidado das crianças recai geralmente sobre as mulheres (mães, avós, tias, irmãs), quando elas ficam impossibilitadas de exercer essa função, as crianças ficam em situação de extrema vulnerabilidade. O Conselho Tutelar e o Juizado da Criança e do Adolescente interferem e elas são levadas para instituições de acolhida. Crescerão em outros ambientes. Na adolescência, algumas das que não foram para adoção voltam para a aldeia e obviamente sua integração não é fácil. Sei que o que estou falando destoa da imagem idealizada em que família e comunidade cuidam da criança e lhe propiciam um ambiente de liberdade e de carinho. Tranquilo, isso também existe, mas crescem os casos destoantes. É muito triste e temos que lhe dar visibilidade. Quando uma mulher se separa do pai das crianças e arruma um novo companheiro, este, muitas vezes, não aceita as crianças do casamento anterior. Antigamente, essas crianças teriam as outras mulheres da família extensa para lhes acolher, mas como essa estrutura familiar tradicional entrou em colapso, as crianças indígenas e suas mães enfrentam nas reservas e nas aldeias, os mesmos problemas da cidade.

Em Dourados e arredores, temos que imaginar a cena de mães com bebês e crianças pequenas precisando percorrer alguns quilômetros para ir até a cidade pedir ou comprar alimentos. Como ela faz? As crianças maiorzinhas elas precisam levar, são as que falam português. As menores ficam muitas vezes com outra mulher, com quem ela irá dividir sua aquisição. E quando as mulheres precisam sair para trabalhar ou estudar, com quem deixar as crianças? Em muitos casos, elas precisam pagar outra mulher para ficar com a criança, pois essa outra mulher também vai deixar de fazer um tipo de serviço para cuidar da criança de outra. A situação das crianças e dos adolescentes, sobretudo nas reservas próximas às cidades, é muito complexa e requer muita atenção, muito cuidado, porque facilmente se culpabiliza a mulher, o que não é justo. Isso mostra que os homens estão bastante ausentes da responsabilidade de pais. Também existem muitos casos de abuso de crianças em suas famílias, seja sexual ou de mão de obra.

Tempo & Argumento: A professora poderá falar um pouco sobre a língua Guarani que nos ajuda a ter acesso à cosmovisão indígena?

Graciela Chamorro: O conhecimento da língua indígena foi decisivo para mim, para estudar e compreender a cosmovisão Guarani, Kaiowá, Mbyá. E eu me senti muito bem quando li depois o livro de Aryon Rodrigues (1986), no qual ele afirmava que a língua indígena é a porta mais segura para entrarmos no universo indígena, para nos aproximarmos das categorias indígenas, da sua visão de mundo. Como eu vinha estudando o Guarani indígena e o Kaiowá para me relacionar melhor com seus falantes e sua cultura, me senti naturalmente mais motivada ainda para prosseguir. Foi algo simples que o professor falou, mas que valorizou muito minha trajetória. E eu me sinto agraciada, pois sinto que a aproximação da cultura indígena pela sua língua também me reuniu como pessoa, me integrou, no sentido de que me inteirou, à minha história e ancestralidade. Num artigo (Chamorro 2007, p. 47), propus que, como outros intelectuais que universalizaram seus conceitos cunhados na língua em que pensaram, as línguas indígenas também podem aportar seus conceitos para as pessoas falantes de outras línguas, que não têm equivalentes para os conceitos cunhados na língua Guarani, por exemplo. Com isso, se ampliaria não só o vocabulário, mas se melhoraria a compreensão da cultura e da imaginação. É um exercício de descolonização. Levamos anos repetindo conceitos e categorias cunhados em inglês, francês, alemão. Podemos agora aprender as palavras-chave concebidas em uma língua indígena. Por outro lado, há também indígenas que chegam bastante colonizados e colonizadas à universidade, pela cultura escolar ocidental, pela sociedade hegemônica, desvalorizando a herança de seu povo. Óbvio, o indígena tem a sua liberdade e às vezes se orienta de modo distinto ao proposto por uma política afirmativa. Mas observo que destes, muitos acabam se ressocializando também com seu passado, procurando combiná-lo com os saberes contemporâneos. (Error 7: La referencia: 1986 está ligada a un elemento que ya no existe) (Error 8: La referencia: Chamorro 2007, p. 47 está ligada a un elemento que ya no existe)

Tempo & Argumento: Sobre a importância do conhecimento e manutenção do saber sobre as línguas indígenas (como o trabalho belíssimo que a professora faz ensinando a Cultura e a História Guarani) para as pessoas não indígenas. Qual o perfil das pessoas que buscam por esse curso e o que muda na concepção dessas pessoas ao entrar no universo da língua indígena?

Graciela Chamorro: Ensinar Língua e Cultura Guarani, faço desde que fui aposentada em 2018. Atendo, assim, ao pedido de algumas pessoas. Nesses cursos, tenho tido o prazer de receber no Casulo – Espaço de Cultura e Arte pessoas de Dourados e de diferentes partes do Brasil –, pessoas interessadas na língua Guarani e Kaiowá e nos falantes dessas línguas. Além de artistas, o curso é frequentado por pessoas que interagem com esses indígenas através de sua profissão de seu curso, de sua pesquisa, ou porque pretendem incluir esses indígenas em seu campo de conhecimento, em suas opções de vida. De certa forma, elas são movidas por uma sensibilidade que lhes impulsiona a enxergarem os outros “Brasis”. Há quem procure por algo mais instrumental, aprender a perguntar e responder no caso de uma internação no hospital ou no caso de preencher um formulário. Mas em geral, as pessoas do curso estão dispostas não só a reconhecerem e conhecerem essa alteridade ignorada em sua socialização e formação cultural, mas também a se conhecerem e reconhecerem como outras diante das comunidades indígenas. O curso oportuniza também encontros com indígenas no local das aulas e nas suas aldeias, nas proximidades de Dourados e de outras cidades. No último curso, de fevereiro e março de 2020, fomos para o Chaco paraguaio, participar de uma grande festa dos povos Guarani falantes ocidentais, antigos Chiriguanos. Essa festa não é realizada entre os orientais, o que mostra que existe diferença cultural entre povos linguisticamente próximos e combate o preconceito de que “índio é tudo igual” ou, como se dizia na Argentina do início do século XX, “basta ver um índio para conhecer a todos”. Eu considero muito importante uma pessoa compreender, falar e pensar numa outra língua, distinta da sua. Isso deveria ser política pública. As escolas e universidades deveriam oportunizar essa experiência. Na Reserva Indígena de Dourados, por exemplo, estima-se que a população indígena seja composta de 17 a 18 mil pessoas. A segunda e a quarta língua indígena, o Guarani e Kaiowá e a Terena, são faladas nesta reserva. A região da Grande Dourados tem 36 municípios, 17 deles têm comunidades Kaiowá, Guarani e Terena. Além dos indígenas, estão também as pessoas de nacionalidade ou de ascendência paraguaia, que falam o Guarani paraguaio, não só em Dourados, mas em todo Mato Grosso do Sul. Estima-se que entre 15 e 20% da população do município de Dourados seja falante de línguas indígenas ou de língua de origem indígena. Essas línguas fazem parte do patrimônio cultural imaterial da cidade, do estado, da união, do mundo. A língua é um item destacado da cultura de um povo, porque somente ela é capaz de expressar e transmitir os fatos da cultura como um todo e porque nela está impregnada a forma de pensar e de se imaginar um povo. Para o linguista Aryon Rodrigues, falecido em 2014, por exemplo, nas línguas indígenas da Amazônia há fenômenos fonéticos, gramaticais, de construção do discurso e de uso das línguas que não se encontram em línguas de outras partes do mundo. Para ele, essas línguas constituem, junto com o material arqueológico disponível, as pistas que melhor nos informam sobre a ocupação do território americano, sobre datas e movimentos migratórios. Junto com a biodiversidade, a diversidade linguística do Brasil indígena é um dos patrimônios culturais mais ricos e mais vulneráveis do país. Falta fomento para conscientizar a sociedade do valor científico e cultural das línguas indígenas, fomento para potencializar as ações comunitárias que fortalecem o uso e as possibilidades de sobrevivência das línguas.

Nós temos cursos de letras português-inglês e português-espanhol, o primeiro com mais de 40 anos de existência, mas não temos um curso regular de língua indígena. O professor Andérbio Márcio Silva Martins é o único linguista de línguas indígenas na Universidade Federal da Grande Dourados e tem se dedicado a formar linguistas indígenas, seja na graduação em Licenciatura Intercultural Indígena Teko Arandu ou no mestrado em Letras. Além disso, há ou já houve iniciativas particulares e comunitárias de ensino da língua, por parte de Elizeu Cristaldo, na Colônia Paraguaia, de Cayetano Vera em vários locais, de Arnulfo Morínigo e Rosa Sebastiana Colmán na Faind/UFGD e de vários docentes indígenas na UEMS. Mas não há uma política cultural por parte da administração pública para as línguas indígenas nem para as outras línguas faladas por migrantes, asilados ou refugiados e fronteiriços, o que amplia enormemente a diversidade humana e cultural do município. Isso é um desperdício de experiência e de oportunidade em termos de política pública. É a monocultura instalada no âmbito da produção cultural e do conhecimento. Em termos nacionais, a situação não é diferente. O Brasil, com mais de 211 milhões de habitantes, tem em torno de 180 línguas indígenas, sem contar os grupos isolados, e cerca de 50 línguas estrangeiras vivas nas comunidades. Nós temos isso tudo e o que fazemos, ou não fazemos, com isso é uma questão que deve nos inquietar. Estamos indo muito rápido para uma monocultura e uma monolíngua, estamos perdendo a diversidade linguística, a diversidade cultural, estamos perdendo a biodiversidade. Essas perdas estão interligadas. A paisagem dominada pela monocultura que suplantou milhares de espécies vegetais e animais é o modelo. As universidades e as comunidades podem ser grandes centros de resistência a esse modelo e de fomento da pluralidade, da diversidade cultural, da biodiversidade, da vitalidade das línguas, das formas de pensar e imaginar a vida. A nossa pequena Associação Cultural Casulo[4] tenta fazer isso, incentivar as pessoas, apoiar as diferenças, incentivar o diálogo.

Tempo & Argumento: Como você percebe a atuação das comunidades indígenas nas redes sociais?

Graciela Chamorro: Sobre as comunidades indígenas nas redes sociais, eu conheço muito pouco porque conheço pouco sobre o assunto. O que observo é que há muitos celulares inteligentes nas aldeias e muita gente lá têm Facebook, Instagran e, sobretudo, WhatsApp. A comunicação ocorre bastante por aí. E as pessoas engajadas na luta pelos direitos indígenas, usam esses telefones também para gravar, filmar e para passar dados para suas organizações. Hoje, por exemplo, num grupo de WhatsApp de apoio às comunidades Guarani e Kaiowá no combate à covid-19, um indígena das proximidades de Ponta Porã compartilhou a informação de que um fazendeiro ou seu representante oferecera um valor alto em dinheiro para a comunidade desse lugar deixar o local e desistir da demarcação aguardada. A foto do homem que fizera a proposta e a foto do seu carro com o número da placa bem legível, em seguida chegou às advogadas dessa rede, que já entraram em ação. Este uso do celular e da internet me parece bastante positivo. Eu aprecio o bom aproveitamento da tecnologia midiática, para uma comunicação mais autêntica, democrática. Muitos fatos e práticas sociais, chegamos a conhecer por esse caminho. E nesse sentido, cabe lembrar que há muitos indígenas hoje com seu próprio canal de comunicação, com produção audiovisual. Aqui em Mato Grosso do Sul, temos uma Associação Cultural de Realizadores Indígenas – ASCURI, que organiza eventos de formação de cineastas e documentaristas indígenas, assim como realiza amostras culturais e participa das amostras audiovisuais da sociedade brasileira. E as pessoas que integram esse grupo são apaixonadas pelo seu trabalho e vão se especializando e adquirindo mais habilidades. Mais sobre a associação no site https://www.ascuri.org/. Nesta quarentena, eu tenho assistido também alguns canais de indígenas no YouTube e fico positivamente impressionada com as personalidades que tenho conhecido. Tenho aprendido muitíssimo com elas, que além de me ajudarem a me decolonizar, me ensinam coisas que eu, como professora de História Indígena, poderia saber, mas não sabia. É só digitar youtubers indígenas e já vão aparecer alguns. Você vai assistindo e vai aparecer muito mais, de norte a sul, de leste a oeste, homens e mulheres indígenas cis e trans, estão na internet, dando seu recado. São artistas, profissionais, estudantes, contadoras de histórias, líderes espirituais.

Mas a internet é um fenômeno muito novo e eu estou muito “assustada” com ela. Demorei para me integrar nessa rede, mas ainda sou uma “por fora”. Vejo com preocupação as crianças indígenas e não indígenas brincarem com o celular. Na Faculdade Intercultural Indígena existe um espaço de lazer com uma cirandeira para brincar com as crianças enquanto pai e mãe estão em aula. Mas elas choram pelo celular. Então, celular não é só um aparelho para comunicação social, um aliado na luta por direitos, ele também ocupa o tempo de brincar em muitas famílias, absorve de tal maneira que bloqueia as outras opções do pensar e do imaginar, a ponto de parecer que tudo vai ser resolver através de um celular. Em resumo, essa questão é complexa. O uso do celular e da internet em nossa vida diária é um fenômeno novo e ambíguo. Eles oferecem velocidade, informação, a sensação de estarmos fazendo algo muito importante ao compartilhar, algum tipo de prazer que dá um certo conforto e a vontade de permanecer sempre online. Eles nos colonizam de tal maneira que é bom, indígenas e não indígenas, estarmos atentas e atentos para as mudanças que eles causam em nosso comportamento.

Tempo & Argumento: É possível falar um pouco sobre as assembleias indígenas, especialmente sobre o Kuñangue Aty Guasu (Grande Assembleia das Mulheres Indígenas Guarani e Kaiowá)? O que a professora tem a dizer sobre as agendas políticas específicas das mulheres?

Graciela Chamorro: A aty guasu ou assembleia geral é um fórum muito importante dos Kaiowá que se realiza desde os anos 1980. A mesma é culturalmente muito bem ancorada, porque nela os representantes das comunidades podem conversar, debater, tomar decisões e fazer encaminhamentos. Falar em reuniões é uma forma tradicional de comunicação, de exteriorização dos desejos e das dificuldades. É uma espécie de catarse, de cosmificar o caos. O professor Melià costumava dizer, que entre os Guarani, o cacique tem um poder muito fraco, a assembleia tem mais poder do que ele. “Os Guarani são parlamentaristas”, conclui. E de fato, é esse fórum de líderes que representa a comunidade que vai tomar as decisões. A Aty Guasu é atualmente uma assembleia político-religiosa, mas sua origem foi mais religiosa do que política. As pessoas mais velhas comentam, nesse sentido, que nos anos 1970 e 1980, as reuniões desse porte eram as de jeroky guasu, ‘grande dança’. Eram reuniões religiosas com muito canto, muita dança e reza, que reuniam líderes espirituais, de várias partes. Nessas reuniões, além de realizarem seus rituais tradicionais, esses líderes começaram a incluir na pauta questões políticas, como os frequentes despejos sofridos pelos seus patrícios, as condições de trabalho nas fazendas e carvoarias e, aí, já se entrou no clima da amnistia, da constituinte, do movimento indígena a nível nacional. A aty guasu vai fortalecer a capacidade de resistência dos Kaiowá e Guarani para fazer frente às constantes perdas de terra e às humilhações que vinham sofrendo. Nos anos 1990, com novos líderes, com a Constituição, e com o direito dos indígenas de terem escolas indígenas, e nas escolas o ensino das suas culturas e suas línguas, os professores e as professoras indígenas fazem parte desse novo corpo de líderes. E não têm dúvida, se organizam também numa assembleia específica, a dos docentes, Mbo’ehára Aty Guasu, que faz suas reivindicações perante as próprias comunidades indígenas e frente ao Estado. Surge outra assembleia, a Aty Jovem, a reunião geral dos jovens, e a Aty Guasu, das Mulheres. A Assembleia das mulheres traz pautas incômodas para a própria sociedade Guarani, sobretudo aos homens; o tema do alcoolismo e a violência contra as mulheres e as crianças nas próprias comunidades. Como acontece na sociedade não indígena, há pautas que unem as pessoas num grupo, como lutar pelas terras indígenas. Já a luta pelos direitos das mulheres, pode mesmo desarticular um movimento, porque muitas pessoas não têm consciência da gravidade da violência física e estrutural contra as mulheres e não são favoráveis a mudanças nesse campo. Como a nossa sociedade, os agrupamentos indígenas se orientam por valores que fortalecem o poder dos homens e têm práticas machistas institucionalizadas, que não acham necessário mudar.

Da Aty Guasu, das mulheres, participam as ‘nossas mães’, nhande sy, as avós ou jari, estas são geralmente mulheres muito combativas e conscientes de sua situação. Outro grupo de participantes são as mulheres mais jovens, que estão estudando e desejam exercer uma profissão aprendida em cursos na cidade, escolas técnicas ou universidade. Estas geralmente têm consciência étnica e de gênero, e tem consciência do lugar que ocupam. Há também mulheres não indígenas que acompanham as assembleias e dão suporte solidário na logística. Gostaria de destacar uma ação recente de parte das mulheres mais jovens para as mais velhas da aty guasu. Com alguma ajuda externa, elas compraram telefones com chip e alguma carga de internet e entregaram os aparelhos para as mais velhas, pois também entre indígenas, com o distanciamento social, aumentou a violência doméstica e o assédio. Com esses telefones, elas poderão chamar e fazer suas reclamações no caso de ameaças e violências, assim como reportar casos suspeitos de contágio pela covid-19. As mais jovens estão se aliando às mais velhas e lutando com elas para uma vida mais digna, fazendo valer seus direitos. Achei a ideia fantástica.

Como já falamos antes, entre as pessoas mais velhas é possível vincular as mulheres com a cultura e as línguas indígenas, a vida cotidiana e a subsistência. Já os homens, com a sociedade envolvente, o português, o dinheiro e as alianças com os não indígenas. Nesse contexto, há mulheres que também sofrem a opressão de seus esposos ou irmãos que são aliados aos agentes do agronegócio e são favoráveis ao arrendamento da terra indígena para plantio de soja, milho ou cana. Essas mulheres sofrem desrespeito e agressões em suas próprias famílias, por implementarem práticas culturais tradicionais como o parto humanizado, uso de plantas medicinais, massagens e orações em favor das mulheres grávidas, por terem outro tipo de relação com a terra e com o corpo. Há casos em que essas agressões respingam também nas pessoas não indígenas que trabalham nesses locais e apoiam essas mulheres. Não raro, elas sofrem retaliações dos líderes da comunidade, para quem o direito das mulheres não se aplica às mulheres indígenas. Para eles, o natural é que as mulheres não lutem pelos seus direitos.

Notas

1 Na Alemanha, o doutorado em Filosofia abrange a grande área das antigas faculdades de filosofia, neste caso, corresponderia no Brasil à Antropologia Social.
2 Lei n.º 11.340, de 7 de agosto de 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 17.10.2020.
3 CHAMORRO, Graciela. Decir el cuerpo Decir el cuerpo Decir el cuerpo: Historia y etnografía del cuerpo en los pueblos Guaraní. Asunción: Tiempo de Historia/FONDEC, 2009. 408 p.
4 Para conhecer mais sobre o projeto. Ver: https://www.facebook.com/casuloarte/. Acesso em: 17.10.2020.
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