Traduções

O “tesouro perdido” da justiça de transição brasileira: a CNV, as comissões universitárias e o trabalho dos historiadores

The “lost treasure” of Brazilian transitional justice: the CNV, university commissions and the work of historians

Angélica Müller
Universidade Federal Fluminense, Brasil

O “tesouro perdido” da justiça de transição brasileira: a CNV, as comissões universitárias e o trabalho dos historiadores

Revista Tempo e Argumento, vol. 13, núm. 32, e0501, 2021

Universidade do Estado de Santa Catarina

Recepción: 05 Noviembre 2020

Aprobación: 22 Marzo 2021

Resumo: O artigo trata de apresentar e analisar a experiência da autora como coordenadora dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade com as comissões universitárias. Ainda, busca refletir sobre o papel social do historiador e os desafios éticos implicados. Igualmente, procura mostrar a importância da participação dos historiadores nos processos de justiça transicional para além da construção de uma memória histórica e a abertura de novos acervos sobre o passado ditatorial.

Palavras-chave: Comissão Nacional da Verdade, Historiadores, Função Social da História.

Abstract: The article aims to present and analyze the author’s experience as coordinator of the work of the National Truth Commission with the university commissions. It also seeks to reflect on the social role of the historian and the ethical challenges involved, and to show the importance of the participation of historians in the processes of transitional justice beyond the construction of a historical memory and the opening of new collections on the dictatorial past.

Keywords: National Truth Commission, Historians, Social Function of History.

O “tesouro perdido” da justiça de transição brasileira: a CNV, as comissões universitárias e o trabalho dos historiadores[1]

Em 2011, passados quase trinta anos do fim da ditadura militar, a presidente Dilma Rousseff instalou a Comissão Nacional da Verdade (CNV). Em seu primeiro artigo, a lei sancionada descreve:

Art. 1o É criada, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional. (BRASIL, 18 nov. 2011)

Logo no início dos trabalhos, em maio de 2012, o colegiado[2] aprovou a competência da Comissão e o seu marco teórico: seriam investigadas

as graves violações praticadas por agentes públicos, pessoas a seu serviço, com o apoio ou no interesse do Estado. Ao definir a competência da CNV, a lei apresentou uma lista de quatro graves violações de direitos humanos que deveriam ser investigadas em razão de sua gravidade: tortura, morte, desaparecimento forçado e ocultação de cadáver. A expressão ‘graves violações de direitos humanos’ designa violação a direitos considerados inegociáveis, como o direito à vida e à integridade pessoal, não sendo suscetíveis de cancelamento, mesmo em situações excepcionais. (ISHAQ, MELO, 2017; destaques meus)

Quando do início das atividades da Comissão, foram organizados 13 grupos de trabalho, entre eles os que analisariam as questões de gênero, a repressão a trabalhadores e o movimento sindical, a repressão aos militares e o papel da Igreja. Naquele momento, não estava previsto um grupo que se ocupasse dos trabalhos no meio universitário. Paralelo a isso, a CNV fez uma campanha para abertura de arquivos e criação de comissões da verdade. O então conselheiro da CNV, Cláudio Fonteles, enviou um comunicado para todas as universidades públicas brasileiras pedindo colaboração, sobretudo no que dizia respeito ao envio de documentação do período ditatorial que pudesse ajudar a comissão em suas pesquisas.

Desde o final dos anos 1970, grupos de familiares dos mortos e desaparecidos políticos estavam envolvidos em uma campanha para denunciar os crimes da ditadura. Mas foi somente nos anos 1990 que o Estado brasileiro estabeleceu sua primeira política pública em torno do tema da justiça transicional, com a criação da Comissão Especial sobre os Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), em 1995. Até os anos 2000, o envolvimento da sociedade civil se refletia principalmente no trabalho meticuloso realizado por vários grupos formados em torno do direito à memória e à verdade, assim como em torno de parentes dos desaparecidos por motivos políticos desde o fim da ditadura. A criação da CNV representou uma oportunidade favorável para aprofundar esse compromisso. Assim, foram estabelecidas comissões da verdade em muitos setores da sociedade e em diversas instâncias (municipais e estaduais).

A formação da CNV constituiu um ponto de referência e serviu de estímulo, difundindo diversos formatos em todo o país, tendo sido criadas quase uma centena de comissões, em nível estadual e municipal, por meio de diferentes processos: decisões legislativas, decretos, resoluções de diferentes assembleias eleitas, ou mesmo iniciativas não oficiais organizadas pela sociedade civil. As comissões foram criadas independentemente da CNV, mas a maioria estabeleceu com ela um acordo de cooperação técnica. Os formatos, os tempos de existência e os resultados finais têm sido diversos. Nesse contexto, a comunidade acadêmica não foi exceção, especialmente porque, sobretudo nos campos do direito, arquivologia, ciências sociais e história, uma produção significativa sobre o passado ditatorial recente já estava disponível.

Além disso, as universidades foram duramente reprimidas durante a ditadura. Seus agentes as viam como lugares por excelência de “valores comunistas”. Já em 1964, professores e funcionários foram demitidos à força ou aposentados, e as entidades estudantis foram colocadas na ilegalidade. Entretanto, o movimento estudantil, com a União Nacional de Estudantes (UNE), reorganizou-se e manteve uma resistência contra o regime que transbordou para o confronto nas ruas no ano de 1968, levando a uma nova onda de demissões, expulsões e aperfeiçoamento dos serviços de vigilância e repressão. A vigilância também se expressava na censura de conteúdos ministrados em sala de aula e em livros que foram proibidos de circular. Durante o período autoritário, a expansão do sistema universitário no Brasil, particularmente a consolidação dos cursos de pós-graduação em nível de mestrado e doutorado, encontrou alguns apoiadores, enquanto outros simplesmente se acomodaram ao sistema (MOTTA, 2014). Assim, durante os anos de 2010, o ambiente universitário provou ser um espaço particularmente favorável para a criação de Comissões da Verdade.

O primeiro ano do mandato da CNV foi marcado por controvérsias internas que acabaram sendo veiculadas pela mídia brasileira. Com a nomeação do jurista Pedro Dallari, em dezembro de 2013, como membro do colégio da CNV, houve uma reorganização do trabalho que pôde promover, entre outras atividades, a colaboração com as comissões universitárias, antes inexistente. Ao mesmo tempo, o crescente número de comissões universitárias levou a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) a sugerir à comissão da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo a realização de uma reunião de todas as comissões para troca de ideias.

Assim, em dezembro de 2013, a Assembleia Legislativa foi o local para a primeira reunião nacional das comissões universitárias. Foi nesse momento de reorganização e expansão de seu trabalho que a CNV designou a mim, como historiadora[3], para coordenar as atividades realizadas em parceria com as comissões universitárias. Para esse fim, o objetivo prioritário de minha missão era estabelecer uma colaboração para a redação de um dos capítulos do relatório final da comissão dedicado às “violações dos direitos humanos nas universidades”. No entanto, o trabalho realizado por esse grupo não pode ser reduzido à elaboração do conteúdo do capítulo do volume II do relatório.

Como responsável por coordenar a colaboração entre a CNV e as comissões universitárias, pude ver que seu trabalho foi muito além da construção de uma memória histórica voltada para a justiça. É a partir dessa experiência que proponho uma análise das questões em jogo sobre a participação dos historiadores nos processos de justiça transicional. A colaboração ajudou a abrir um importante espaço público para a discussão de questões políticas e éticas, muitas das quais surgiram durante o período ditatorial e continuam presentes hoje nas universidades e na sociedade brasileira. Nesse espaço, a participação dos historiadores constituiu uma contribuição importante, mas não sem suscitar o debate.

A justiça transicional e a CNV: o papel social dos historiadores em debate

Desde a promulgação da lei houve um debate na comunidade dos historiadores, principalmente em torno de duas questões: a participação nas atividades da comissão e o status da verdade histórica. Para um dos mais importantes especialistas brasileiros sobre o regime militar, Carlos Fico, o historiador não deve decidir o que é verdade ou não, e não deve agir como um especialista. A esse respeito, ele lembrou a postura de Henry Rousso[4] durante o julgamento de Maurice Papon. Segundo ele, a função de juiz deve ser exercida por profissionais do direito e dos direitos humanos: o historiador “pode ir ao ponto de fornecer inúmeras contribuições, informações documentais e históricas. Mas a história não deve ter a pretensão de trabalhar como um tribunal da verdade”.[5] A postura da Associação Nacional de História (Anpuh) foi diferente, no sentido de ter defendido abertamente a participação dos historiadores na CNV, para além da pesquisa de informações históricas.

Em carta dirigida à presidente Dilma Rousseff em 12 de janeiro de 2012, a Anpuh explicou que, no decorrer de sua formação, os historiadores desenvolvem habilidades em pesquisa arquivística, crítica documental, interpretação de depoimentos, coleta e análise de fontes orais que lhes permitem formular questões marcadas por referências conceituais e metodológicas específicas ao conhecimento científico. Essa carta também explicou a importância do dever de memória nos processos de justiça de transição. Segundo a Anpuh (12 jan. 2012), os historiadores têm o dever e a capacidade de pensar sobre os temas abordados durante esses processos, não apenas perseguindo um objetivo afetivo de memória, mas também realizando um trabalho racional sobre a história.

Os vários argumentos, a favor e contra a participação dos historiadores nos processos de justiça transicional, bem como os debates nacionais provocados por tal tema, constituem uma constante reflexão para os pesquisadores que trabalham com a história do tempo presente, como o belga Berber Bevernage. Segundo ele, o debate sobre as possibilidades, limitações e méritos da contribuição dos historiadores e da historiografia para a justiça transicional tem até então se concentrado principalmente no que diz respeito à verdade e ao contraste entre a lembrança e o esquecimento. Tanto apoiadores quanto críticos do uso da história nos processos de justiça transicional têm se baseado em uma ideia de justiça construída por meio da reconciliação graças às narrativas e a revelação da verdade, por meio do poder “curativo” da memória e, finalmente, por meio da própria memória como justiça.

Berber Bevernage assinala que o discurso relativo à história é frequentemente utilizado nesses processos mesmo sem a presença de historiadores. Nesse sentido, ele defende a presença física dos historiadores em nome do importante papel ético que podem desempenhar, especialmente indiretamente. Segundo esse autor, os historiadores podem exercer uma função crítica ao refletir sobre os usos e abusos do discurso historicista e da chamada “política do tempo”,[6] de tal forma que os dilemas éticos e políticos envolvidos nessas questões se tornem mais precisos e, com isso, exista a necessidade de tomada de decisão estatal e de responsabilização pelos crimes cometidos.

Na época da formação da CNV, ocorreram vários debates éticos sobre o papel do historiador e também sobre como o conhecimento histórico é o resultado de uma combinação de relevância social e científica. Foi nesse contexto que muitos historiadores e uma série de outros pesquisadores foram chamados para trabalhar na comissão. Embora a Anpuh não tenha atingido o objetivo de ter um historiador no colegiado que compôs a comissão, os trabalhos realizados pelos diversos grupos que a compunham foram realizados por muitos historiadores, em todos os níveis: como coordenadores de projetos, assessores, pesquisadores eméritos, colaboradores e pesquisadores juniores. Tanto assim que foi uma historiadora, Vivien Ishaq, que coordenou a redação das 2.500 páginas do relatório final da CNV.

E não poderia ter sido de outra forma. A produção historiográfica sobre a ditadura militar tem sido significativamente enriquecida nos últimos dez anos: a abertura de novos arquivos e pesquisas sobre vários temas aumentou consideravelmente o conhecimento histórico do período. O trabalho da CNV, em um período de tempo tão limitado teria de se aproveitar desse conhecimento científico. Em outros contextos nacionais, como na Argentina, o trabalho durante os processos de justiça transicional foi realizado por equipes multidisciplinares, compostas por juristas, historiadores e outros profissionais. A CNV brasileira, formada décadas após a transição para a democracia, pôde se beneficiar do conhecimento histórico produzido durante esse período. Além disso, a lei que criou a comissão concedeu pleno acesso à documentação pública sobre violações de direitos humanos, que ainda estava restrita em diversos órgãos públicos. Assim, historiadores conduzindo pesquisas sobre os temas abordados foram convidados a participar da equipe técnica da comissão. Dessa forma, dentro da CNV, o trabalho dos acadêmicos em geral e dos historiadores, em particular, assumiu um duplo desafio, tanto científico quanto cívico.

O trabalho das comissões universitárias em colaboração com a CNV

No total, quinze comissões universitárias trabalharam com a CNV[7]. No que diz respeito ao perfil dos participantes, em geral, as comissões foram compostas por professores e alunos, exceto no caso da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, da qual participaram apenas alunos. Por vezes colaboraram ex-alunos, como foi o caso da Universidade de Brasília (UnB). A maioria das comissões teve historiadores entre seus principais membros, além de professores de direito e de ciências sociais, mas também de psicologia e de comunicação. Como exceção que confirma a regra, a comissão cearense era composta exclusivamente por médicos; a grande maioria dos quais tinham sido ex-alunos perseguidos durante a ditadura. As comissões enfrentaram várias dificuldades na realização de seu trabalho. Em muitos casos, as comissões locais não recebiam o apoio das administrações universitárias. Mesmo que fossem oficialmente apoiadas, nem sempre lhes eram fornecidas a estrutura necessária e as condições de trabalho adequadas.

A partir de fevereiro de 2014, essas comissões iniciaram uma série de atividades, começando com reuniões nacionais periódicas com a CNV. Durante esses encontros, a preocupação de romper com a cultura do silêncio e de construir a cultura do acesso à informação surgiu implicitamente, a fim de reconstruir os episódios que marcaram os campi brasileiros durante os “anos de chumbo”. A preocupação latente então era a de construir uma memória histórica. Do trabalho realizado pelas comissões surgiu uma missão relacionada à memória, como evocou Jacques Le Goff, em seu famoso verbete “Memória” na enciclopédia Einaudi: “A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens” (LE GOFF, 1988, p. 177).

O intercâmbio de informações durante as reuniões nacionais entre as diversas comissões universitárias revelou a existência de práticas repressivas comuns nas diversas instituições de ensino: constatava-se que as violações dos direitos humanos faziam parte da vida cotidiana das universidades brasileiras durante o período autoritário. As reuniões das comissões deram origem a relatos sobre a ocupação das universidades pelas forças de segurança, a expulsão de estudantes, a demissão de professores, o exercício da censura, o controle ideológico que influenciou a contratação de professores e funcionários, a prisão ilegal de ativistas estudantis, funcionários e professores, sem mencionar a tortura, o assassinato e o desaparecimento forçado.

Por ocasião de uma dessas reuniões e a pedido das comissões, a CNV convidou o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, que havia acabado de publicar um livro sobre as universidades e o regime militar, resultado de dez anos de pesquisas baseadas em documentos da polícia política, do Serviço Nacional de Inteligência (SNI) e das Assessorias de Segurança e Informação (ASI), então localizadas em universidades. Durante várias horas, Rodrigo Motta apresentou não apenas a política conservadora de modernização que os militares haviam tentado construir, mas também o aparato de vigilância estruturado dentro das universidades, assim como um panorama dos professores atingidos.

Um dos pontos levantados pelas comissões universitárias foi a questão do legado da ditadura na estrutura do sistema universitário brasileiro. A Comissão da Assembleia Legislativa de São Paulo organizou em setembro de 2014, em parceria com o CNV, um importante seminário dedicado a um debate sobre a reforma educacional proposta e implementada pelo governo militar em 1968 e seus elementos de continuidade com o atual sistema. As discussões e os trabalhos apresentados mostraram que as políticas educacionais foram baseadas em uma ideologia conservadora que se manifestou na definição do conteúdo do ensino nas escolas, assim como pelo processo de privatização do acesso à educação, cujas consequências o país vive ainda hoje (CEV RUBENS PAIVA, v. 1, cap. 10, 12 mar. 2015). A questão dos regimentos em vigor dentro das instituições universitárias também suscitou debate. De fato, no momento da apresentação do relatório CNV, os estatutos das universidades federais ainda continham regulamentações elaboradas e adotadas durante a ditadura, que em muitos aspectos refletem a permanência do aparato construído sob a Lei de Segurança Nacional.

A CNV também visitou as comissões nas universidades em questão, a fim de estabelecer uma forte parceria e proporcionar atividades conjuntas, o fornecimento de dados e assistência mútua na pesquisa documental. A comissão do Ceará, a única composta exclusivamente por professores de medicina, encontrou mais dificuldades para estruturar seu trabalho. A dificuldade estava principalmente relacionada à condução das pesquisas históricas a partir de arquivos e à construção de um acervo de história oral. A CNV também facilitou o acesso dos membros das comissões universitárias aos seus escritórios em Brasília e no Rio de Janeiro, particularmente no que diz respeito às pesquisas realizadas no Arquivo Nacional.

A constituição de novos acervos

Sem dúvida, o principal legado do trabalho das comissões é a criação e organização de novos fundos de arquivos. Apesar da importância da documentação disponível sobre o SNI, que foi depositada no Arquivo Nacional, muitos documentos desapareceram, a começar pelo acervo arquivístico da Divisão de Segurança e Informação (DSI) do Ministério da Educação e Cultura (MEC). Nas universidades, o acesso aos arquivos centrais foi frequentemente recusado, mesmo após o pedido de informação da CNV. Em alguns casos, os arquivos da Assessoria de Segurança e Informação (ASI) local – o órgão do MEC responsável pelo monitoramento das universidades, que produzia informações sobre estudantes, professores e funcionários e as encaminhava para os serviços de inteligência (Sisni) – desapareceram. Os caminhos seguidos pelas comissões em sua busca pela documentação sobre esse passado foram diversos e, muitas vezes, sem sucesso. Nesse contexto, dois casos são dignos de menção.

A Comissão Milton Santos de Memória e Verdade da Universidade Federal da Bahia (UFBA) teve acesso a uma documentação sigilosa aberta pela reitoria: a correspondência do Gabinete do Reitor entre 1964 e 1981. As trocas de correspondência foram realizadas principalmente com órgãos de monitoramento do regime militar, como a Divisão de Segurança e Informação do Ministério da Educação (DSI/MEC), as diversas Assessorias Especiais de Segurança e Informação (Aesis) das universidades, a Delegacia da Ordem Política e Social (Dops) e a Polícia Federal. A coleção do Gabinete do Reitor contém uma vasta documentação sobre a perseguição de professores e estudantes nessa universidade, sendo uma importante fonte de pesquisa sobre a instituição sob a ditadura, bem como para trabalhos mais gerais sobre a ação do regime no ensino superior.

Por sua vez, a comissão da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) organizou uma verdadeira “operação” para descobrir documentos: realizou pesquisas em toda a universidade e encontrou várias caixas em banheiros fora de uso, em sótãos e até mesmo em um depósito sob uma arquibancada. O conjunto, com cerca de 1.200 páginas, era constituído de memorandos, ofícios, relatórios de livros censurados e pedidos de informação do MEC. Com relação aos testemunhos orais, a comissão realizou quinze entrevistas com ex-alunos, professores e funcionários sobre casos de violações de direitos humanos envolvendo pessoas que haviam sido presas, torturadas, acusadas pela justiça ou expulsas da universidade (UFES, 2016, p. 19).

No final de 2016, a comissão apresentou seu relatório. Nele, fica claro que a universidade foi uma das instituições mais monitoradas no estado do Espírito Santo. Aproximadamente noventa pessoas, entre estudantes, professores e funcionários, foram afetadas por violações dos direitos humanos. Além disso, o relatório aponta para interferência direta e indireta na autonomia universitária (UFES, 2016, p. 179-181). A partir de 2015, quatro estudantes de mestrado e um estudante de doutorado dessa universidade realizaram suas pesquisas sobre o mundo acadêmico do período autoritário, com base na documentação descoberta pela comissão (ATHAYDES, 2017; BAPTISTA, 2016; BRUMANA, 2016; PELEGRINE, 2016).

Todas as comissões realizaram trabalhos de história oral, e centenas de testemunhos foram produzidos, em sua grande maioria, por professores e estudantes perseguidos pelo regime por conta de sua participação em movimentos de oposição. Algumas comissões, contudo, também obtiveram entrevistas de funcionários efetivos durante o período, como foi o caso da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), que entrevistou dois funcionários da ASI. A Comissão de Universidades Públicas do Ceará, por sua vez, coletou cerca de trinta testemunhos de pessoas afetadas pela repressão, selecionadas por meio de pesquisas exploratórias baseadas em indivíduos que haviam vivido os momentos mais intensos da repressão nas universidades mencionadas e que conheciam professores, estudantes e funcionários públicos que haviam sido excluídos da vida acadêmica, presos ou forçados a viver na clandestinidade.

A lista de depoentes foi elaborada da forma mais ampla possível, de modo a criar um conjunto bastante representativo em termos dos momentos históricos vividos, das filiações políticas, além da gravidade das violações sofridas na Universidade Federal do Ceará (UFC) e na Universidade Estadual do Ceará (UECE). Os testemunhos foram utilizados na elaboração do relatório final da comissão dessa universidade e estão disponíveis para consulta (CV DAS UNIVERSIDADES - CE, 2014).

Revisão de casos individuais

Inúmeras atividades foram (e têm sido) realizadas nos campi brasileiros: pesquisa, conferências, mesas-redondas, homenagens, audições públicas de testemunhos, produção de textos e resenhas sobre o tema. Entre os muitos esforços realizados, vale mencionar as tentativas de retirar os títulos honoríficos concedidos a importantes personalidades da ditadura militar, como o ministro da Educação Jarbas Passarinho, honoris causa da Universidade de Campinas (Unicamp) em 1973. Em maio de 2015, a comissão apresentou o caso para análise ao Conselho Universitário, que, na ausência de maioria qualificada por um voto, não aprovou a revogação do título. Por outro lado, a comissão da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) foi mais bem-sucedida, pois em dezembro de 2015 enviou ao Conselho Universitário o pedido de retirada do título de honoris causa concedido em 1972 ao presidente da República, general Médici. O conselho decidiu retirar o título por unanimidade.

Outra atividade notável da CNV, com a participação da Comissão da Verdade da Universidade de São Paulo (CV-USP), foi a audiência de Arminak Cherkezian, chefe do Serviço Regional de Segurança e Informação (Arsi) de São Paulo e ex-braço direito do ministro da Educação Jarbas Passarinho, no estado de São Paulo, durante a primeira metade dos anos 1970. Na audiência, Cherkezian revelou, entre outras coisas, algumas informações sobre o funcionamento dos serviços de segurança e informação nas universidades, sua relação com o restante do Sistema Nacional de Informação (Sisni), e, ainda, a forma como os funcionários que não entravam oficialmente na folha do Ministério da Educação eram pagos.

A Comissão da Universidade de São Paulo (USP) tratou de um caso emblemático: em 22 de abril de 1974, Ana Rosa Kucinski, professora do Instituto de Química da USP e ativista da Ação de Libertação Nacional (ANL), e seu marido, foram vistos pela última vez. Após seu desaparecimento, a universidade criou uma comissão que decidiu, no ano seguinte, por 13 votos a favor e dois votos em branco, demiti-la por ter abandonado seu posto. A família, que nunca recuperou o corpo da vítima, teve que conviver com a decisão arbitrária da universidade por muitos anos. Por conta do trabalho da CNV, das comissões estaduais e municipais de São Paulo e, sem dúvida, da comissão universitária, que reexaminou o caso, em abril de 2014, uma sessão do Instituto de Química anulou unanimemente a demissão da professora, considerando-a um “erro do passado”, e a família de Ana Rosa Kucinski recebeu um pedido formal de desculpas do instituto. Também foi anunciada nessa ocasião a inauguração de um monumento a Ana Rosa Kucinski nos jardins do Instituto de Química da USP (ARRUDA, CHAPOLA, 16 abr. 2014).

Desafios e dilemas para os historiadores do tempo presente

Será suficiente qualificar uma decisão que revela a lógica arbitrária e repressiva da ditadura militar como um “erro do passado”, como fez o Instituto de Química da USP, para obter o “perdão”? Como acreditava o filósofo francês e combatente da resistência Vladimir Jankelévicth (1996), o perdão é tão forte quanto o mal, mas o mal é tão forte quanto o perdão. Esse caso serve de referência à crítica de Berber Bevernage ao uso do tempo historicista em processos como o iniciado pela CNV, nos quais a perspectiva de uma ordem temporal moderna e a ideia de que a recomposição do passado pode ter a reconciliação como seu fim são levadas em conta.

A reconciliação é possível? Não se situa em um futuro que nunca surtirá efeito? Diante desse “passado que não passa”, Paul Ricoeur (2000, p. 61) nos lembra que o “tempo reversível” da justiça é diferente do “tempo irreversível” da história, e que os crimes contra a humanidade são imperdoáveis do ponto de vista do julgamento moral e irreparáveis do ponto de vista de seus efeitos. Qual seria, então, o desafio ético, moral e científico que os historiadores devem encarar? Todas essas questões constituem dilemas e desafios enfrentados pelos historiadores que se ocupam, no presente, do estudo de passados violentos e ditatoriais.

Além da busca da “verdade” específica dos processos de justiça transicional, o trabalho realizado pelas comissões universitárias e incentivado pela CNV levou (e tem levado) a importantes debates éticos e políticos. Várias questões presentes na vida cotidiana da universidade foram examinadas a partir de uma perspectiva temporal, por meio dos vestígios de um passado autoritário recente, muitas vezes ainda presentes. Assim, a contribuição dos historiadores pode apontar para essa impossível reconciliação, pois as atrocidades, vicissitudes administrativas e a violência de todo tipo persistem na sociedade brasileira. O exemplo mais flagrante é a prescrição do imprescritível: a falta de punição dos torturadores e daqueles envolvidos nos processos de graves violações dos direitos humanos durante a ditadura. Isto é o que Ricoeur diz sobre a ligação entre perdão e punição: “o axioma é este: nesta dimensão social, só se pode perdoar onde se pode punir” (RICOEUR, 2000, p. 608).

O trabalho da CNV e das universidades, entre estrutura legal e autonomia

De acordo com a missão da CNV, os objetivos relativos às graves violações dos direitos humanos no ambiente universitário acabaram por excluir grande parte das investigações e atividades realizadas pelas comissões universitárias, as quais, por sua vez, foram fortemente encorajadas em seu trabalho pela Comissão Nacional. Nesse contexto, questões como a política de ensino superior, incluindo o acordo entre o Ministério da Educação e a Usaid[8], ou os “legados” da ditadura militar no campo da educação, não foram abordados no relatório da Comissão Nacional, embora os debates sobre esses assuntos estejam presentes em muitos relatórios das comissões universitárias. A ausência de explicações no relatório final da CNV sobre questões consideradas importantes pela comunidade acadêmica gerou protestos e levou a comunidade científica como um todo, e os historiadores em particular, a questionar e debater os objetivos da CNV.

Esses debates deveriam levar em conta a diferente natureza do trabalho da CNV e das comissões universitárias. A CNV foi uma comissão estatal projetada para investigar as graves violações dos direitos humanos e teve uma estrutura muito precisa para cumprir suas missões. As diversas comissões universitárias, nas ações que realizaram e nos relatórios que elaboraram, puderam apresentar, discutir e aprofundar certas questões além do quadro definido pela lei que estabeleceu a CNV. Assim, abordaram as violações dos direitos humanos em geral, tais como perseguição, demissão de professores e censura, sem se limitarem às chamadas violações graves. Além disso, uma interpretação “mais engajada” foi frequentemente buscada, em oposição à suposta “neutralidade” da CNV. Nesses espaços, conviveram historiadores que trabalharam sob a objetividade da lei e historiadores que trabalharam por uma “defesa de causa”, conscientes de sua responsabilidade política e moral, e que reivindicaram esse papel apesar dos riscos de uma escrita apologética, como definida por Henry Rousso[9].

No embate contra o caráter restritivo da CNV, as comissões universitárias almejaram, como ocorre em todos os processos, conforme salientado por Bevernage, a lembrança como forma de justiça, o que, no fundo, não diferiu do caráter da própria CNV. No entanto, foi com maior intensidade e livres de uma missão definida pela lei e, portanto, fora de qualquer responsabilidade legal, que as dezenas de comissões buscaram o objetivo da “justiça” via construção de uma memória histórica. Sempre politicamente contestada, essa memória sublinha a relação tensa entre tempo, espaço, memória e história. Tensão também através de conflitos. Tensão entre diferentes utopias que desenha, com as cores do presente atenuadas pelas cores do passado, as possibilidades de um futuro desejado (DELGADO, 2003).

Por sua vez, em vez de buscar a “verdade histórica” prevista pela legislação, a CNV envidou esforços para estabelecer uma “verdade jurídica” dos fatos. De acordo com seus membros, não estava na natureza do relatório publicado buscar grandes interpretações sobre o período. Cabe lembrar que, de qualquer forma, se ofereceu uma interpretação, construindo assim uma memória histórica. Mas a principal preocupação era produzir um relatório estabelecendo fatos. Nas palavras do coordenador da CNV, o jurista Pedro Dallari:

90% do relatório consiste em descrições de fatos, referências a documentos, testemunhos. São os fatos e suas provas. Assim, definimos quais são as violações graves, identificamos suas modalidades e as descrevemos. Por que fizemos isso? Porque a lei dizia que tínhamos que fazer isso. (DALLARI, 2016, p. 312)

Para Pedro Dallari, o conceito de verdade histórica deve estar associado não apenas à identificação de quadros factuais, mas também, e acima de tudo, a uma narrativa explicativa envolvendo a análise, por exemplo, das clivagens no ambiente militar. Isso deu origem à ideia de “imparcialidade”, a necessidade de “provas”, o dever de conduzir um “exame crítico da credibilidade das testemunhas”; todas essas tarefas são específicas do trabalho de um juiz, mas também do de um historiador. Entretanto, o coordenador da comissão percebeu que o problema da história reside mais na compreensão do que no julgamento, num processo de construção permanente de representações da verdade.

Como juristas, Pedro Dallari e a maioria dos membros da comissão entenderam que, como os crimes em questão ainda não haviam sido julgados, o relatório deveria fornecer “provas” que pudessem ser utilizadas na fase de investigação preliminar de possíveis julgamentos futuros. Por isso, o produto final era um relatório, que, no direito, nada mais é que a exposição de elementos de fatos ou de direitos de um processo, estabelecido e apresentado para uma audiência e/ou para um magistrado que se ocupa do caso[10]. Um relatório que apresentaria “com toda crueza para a sociedade brasileira o que ocorreu”. De acordo com Pedro Dallari:

Tudo que resolvesse adjetivar (...) teria um efeito atenuante. Eu me opus, e fui acompanhado pelos meus pares, àquela ideia de dizer que a ditadura é civil-militar. Porque isso já é intenção de querer explicar. Eu disse: ‘olha, se houve apoio dos civis, deve ter havido, porque eu não conheço nenhum movimento revolucionário, social ou político em que isso não ocorra’. Agora, é irrelevante para nós. O que é relevante é que esses fatos ocorreram sob as ordens de militares, em cadeias de comandos militares, e com presidentes militares. Então, do ponto de vista que nós temos que apurar e mostrar para a sociedade brasileira, se havia um grupo da sociedade que por motivações econômicas tivesse atuado na política da ditadura, esse não era o objeto de investigação da Comissão. (DALLARI, 2016, p. 312-314)

Nesse sentido, os valores do trabalho do historiador e do jurista se apresentam entrelaçados. A argumentação jurídica e a abordagem histórica se cruzaram e foram reivindicadas em conjunto, porque o fio condutor comum era, acima de tudo, político. O relatório final marcou uma etapa importante no processo de justiça de transição no Brasil, mas a CNV não foi nem o início nem o fim desse processo. Como todo o trabalho dos historiadores, o relatório tem sido criticado por seu conteúdo e seus silêncios, mas já é um documento histórico presente no debate historiográfico e ainda está esperando para ser usado como “prova” judicial.

Devido às tensões entre a CNV e as outras comissões da verdade, a primeira decidiu publicar um volume adicional do relatório, incorporando o capítulo sobre universidades. Previamente, tinha sido planejado estabelecer um volume específico para descrever os mortos e desaparecidos, resultado do trabalho realizado pela CNV com as famílias desses. O segundo volume do relatório representou precisamente esse processo que emergiu dos grupos de trabalho da CNV, se desenvolveu pelo diálogo estabelecido com a sociedade, com suas tensões e, em alguns casos, com interpretações distintas.

Assim, os capítulos oriundos dessa empreitada foram mantidos conforme a elaboração dos responsáveis que trabalharam nos diferentes “grupos”, justamente por representarem um determinado capital acumulado ao término do relatório. Lidos conjuntamente, os três volumes representam uma unidade e não são tomados de maneira indistinta pelos seus leitores. Essa riqueza do processo de justiça transicional brasileiro também foi uma inovação, pois a Comissão da Verdade viu seu trabalho ser estimulado por outras comissões que dela derivavam.

A experiência como um todo durou menos de um ano, um período muito curto para pesquisas e investigações mais amplas. Nesse sentido, a continuidade das atividades de algumas das comissões independentes da CNV poderá levar à abertura de novos arquivos e permitir a realização de novos trabalhos. No entanto, esse período provou ser suficiente para acender a chama da cultura de acesso à informação, para dialogar e revelar aos estudantes de hoje as feridas de um passado ditatorial.

Além do trabalho de memória

O trabalho da CNV e das comissões universitárias não se limitou à evocação de um passado presente, tornou-se muito mais que um dever de memória, muito mais que uma simples luta contra o esquecimento ou um simples trabalho de lembrança como um meio de acesso à justiça. Foi muito além da construção de uma memória histórica, pois abriu o caminho para o diálogo sobre os dilemas éticos e políticos ainda presentes nas universidades e na sociedade brasileira como um todo. Esses dilemas tornam necessário o reexame dessas questões para uma tomada de novas posições, o que é indispensável para a busca adequada da vida democrática. Se, por um lado, nós, historiadores que participamos da CNV e das comissões universitárias, construímos intencionalmente uma memória histórica, por outro, nossa contribuição como historiadores também foi importante para colocar em perspectiva os traços conservadores que ainda existem em nosso meio e que constituem obstáculos à modernização e à democratização das universidades.

A construção de uma argumentação que contribua para dar maior peso aos valores democráticos em nossa sociedade é um dos meios de aprofundar o lento processo de justiça transicional no Brasil. De fato, a produção historiográfica contribuiu para a implementação do trabalho da CNV, mas também das várias outras comissões, bem como para a produção de seu relatório. Acima de tudo, os fundos de arquivo que foram constituídos no âmbito desse processo representam tanto objetos quanto uma fonte de reflexão para os pesquisadores em geral e, em particular, para os historiadores que trabalharão nessa questão. As questões relativas à produção do conhecimento histórico necessário para fortalecer o processo de justiça transicional adquirem um significado ainda mais saliente quando se considera a fragilidade da vida democrática desde a conclusão do trabalho da CNV.

No final de 2014, enquanto se comemorava o 50º aniversário do golpe de Estado, a CNV apresentou seu relatório final à recentemente reeleita presidente da República, Dilma Rousseff. A cerimônia foi realizada no Palácio do Planalto, sede do Poder Executivo, em um clima de discrição motivado pelo fato de que a exposição ao grande público das ações realizadas pela comissão, amplamente divulgadas na mídia, bem como a deterioração da conjuntura desde as eleições de outubro, haviam contribuído para um clima político mais tenso.

A publicação desse relatório, produzido pelo Estado brasileiro, sobre as graves violações aos direitos humanos, constando os locais onde ocorreram e as pessoas responsáveis por elas, foi além da mera descoberta de “vestígios ocultos de um passado” e da apresentação de provas substanciadas sobre essas violações. O relatório levanta as questões da prescrição dos crimes, da punição dos perpetradores e da reconfiguração das instituições envolvidas em graves violações dos direitos humanos. O próximo passo seria a revisão da Lei de Anistia de acordo com a segunda recomendação do relatório apresentado pela CNV. Mas suas principais recomendações até o momento parecem letra morta, pois a justiça transicional está seguindo um caminho cada vez mais tortuoso no Brasil.

A criação da CNV e a produção de seu relatório, que destacou a existência de uma cadeia de comando liderada por presidentes militares, mas também uma política de extermínio de opositores, teve por efeito o retorno dos militares à cena pública[11], após a oposição de alguns à aprovação da lei que criou a CNV. Dois dias após a apresentação do relatório, o deputado federal Arolde de Oliveira fez um discurso na Câmara no qual declarou que a “malfadada Comissão Nacional da Verdade, produziu um documento eivado de parcialidade e de revanchismo”. Na sequência, o deputado leu a nota escrita pelo único general na ativa que ousou manifestar publicamente sua oposição à CNV, Sérgio Etchegoyen, cujo pai é citado no relatório:

os integrantes da CNV deixaram clara a natureza leviana de suas investigações e explicitaram o propósito de seu trabalho, qual seja o de puramente denegrir. Ao investirem contra um cidadão já falecido, sem qualquer possibilidade de defesa, instituíram a covardia como norma e a perversidade como técnica acusatória. (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 16 dez. 2014)

Entretanto, após o processo de impeachment de Dilma Rousseff, iniciado em abril de 2016, quando os militares saem do rito discursivo para ocupar postos importantes na administração pública, foi precisamente o general Sérgio Etchegoyen que se tornou o homem forte no governo de Michel Temer, o sucessor da presidente (SCHREIBER, FRANCO, 11 jun. 2018). Esse processo se inscreve numa contestação doravante aberta e frontal ao trabalho realizado pelo CNV, suas conclusões e recomendações bem como seu trabalho de memória. Em dezembro de 2014, na declaração pública citada acima, Sérgio Etchegoyen já considerava que a CNV havia feito “um patético esforço para reescrever a história” (Ibid.), precisamente o esforço que a extrema direita brasileira vem fazendo desde aquela época. O fortalecimento desta última se baseia na nostalgia dos “anos dourados” da ditadura, bem como em ataques sistemáticos ao ensino da história do regime militar e à produção historiográfica relativa a esse período. Esses ataques foram realizados por organizações como a “Escola sem partido” ou por sites como o “Brasil Paralelo”.

Em janeiro de 2019, o presidente da República, Jair Bolsonaro, e seu governo tomaram posse. Durante o período em que o governo estava sendo formado, o futuro ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodriguez, declarou que o país deveria “festejar a revolução de 1964” (CERIONI, 23 nov. 2018)[12], enquanto um general próximo à equipe presidencial falava publicamente que o governo deveria “revisar os manuais de história, para contar a verdade sobre 1964” (PIRES, 5 nov. 2018). Tais declarações colocam em xeque as recomendações da CNV e das comissões universitárias. As recomendações da CNV, em vez disso, propõem modificar o conteúdo do treinamento nas academias militares e policiais para promover a democracia e os direitos humanos[13] e apelam para a “promoção dos valores democráticos e dos direitos humanos na educação”. Essas declarações também se opõem às recomendações das comissões universitárias mais diretas, como a da Universidade de Brasília, que propôs incluir no currículo oficial das escolas o caráter obrigatório do tema da ditadura militar no Brasil e das violações dos direitos humanos[14].

Não apenas a maioria das recomendações das comissões não foi implementada, mas o relatório também provocou reações em cadeia: discursos militares em oposição à CNV, a negação dessa “versão da história” e até mesmo o retorno dos militares a posições de liderança na administração pública com o consentimento, ou mesmo a pedido, de milhões de cidadãos em busca de “ordem” no país. Essas reações mostram claramente o peso que a CNV teve, mas também revelam os traços deixados no presente pela construção histórica da sociedade brasileira sobre bases conservadoras e autoritárias. Elas também sublinham os riscos representados pelos conflitos de memória e a demanda por discursos alternativos sobre o passado. Elas confirmam até que ponto a história é uma questão de poder e quão importante é o papel dos historiadores na arena pública em uma época de revisionismos e negacionismos.

A filosofia política alemã pode nos oferecer algumas chaves para entender os desafios atuais do trabalho realizado pela CNV e pelas comissões universitárias. Do ponto de vista temporal, a justiça transicional é um tempo intermediário entre um antes e um depois, uma lacuna ou “brecha” no sentido apresentado por Hannah Arendt. É uma espécie de “tesouro perdido”: “tesouro” constituído pela experiência compartilhada por indivíduos, por um engajamento que lhes proporcionou um espaço público de liberdade e de iniciativa; “perdido” por causa do “esquecimento” oficial do trabalho realizado, das circunstâncias históricas e da adversidade da realidade brasileira pós-CNV. No atual contexto brasileiro, somente uma saída democrática da crise permitiria que a missão da CNV, além de suas recomendações, fosse implementada, mas também que o trabalho produzido e o seu legado encontrassem sua continuidade.

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Notas

1 A autora agradece ao colega Daniel Barbosa de Faria, pela leitura e reflexões sobre o tema, bem como às agências CNPq e Faperj pelos auxílios que possibilitaram o trabalho de pesquisa.
2 A Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi integrada por sete conselheiros, por designação presidencial. Compuseram-na durante todo o seu período de funcionamento – de 16 de maio de 2012 a 16 de dezembro de 2014 – os conselheiros José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti Filho, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro e Rosa Maria Cardoso da Cunha. Foram designados para a composição inicial, mas se desligaram antes da conclusão dos trabalhos, os conselheiros Claudio Lemos Fonteles (renunciou em 2 de setembro de 2013) e Gilson Langaro Dipp (pediu afastamento, por razão de saúde, em 9 de abril de 2013). O conselheiro Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari foi nomeado em 3 de setembro de 2013, tendo permanecido até o final (CNV, 31 jul. 2012).
3 Pesquiso a história do movimento estudantil no Brasil há mais de quinze anos. Ver, por exemplo, Müller (2016).
4 Em Face au passé, Henry Rousso narra sua participação como presidente da Comissão para analisar os casos de racismo e negacionismo da Universidade Jean-Moulin Lyon III, criada pelo então ministro da Educação Jacques Lang, em 2002 (ROUSSO, 2016).
5 Palestra para o Café História em 11 de novembro de 2011. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=g8-T3UhSK38. Acesso em: 19 jan. 2016.
6 Tomando a expressão de Peter Osborne, B. Bevernage a concebe como uma política que leva em conta as estruturas temporais das práticas sociais como objetos específicos das intenções transformadoras/conservadoras (BEVERNAGE, 2012; tradução livre).
7 Nesses encontros, participaram com regularidade: Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FespSP), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), Universidade de Brasília (UnB), Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), Universidade Federal da Bahia (Ufba), Universidade Federal do Ceará/Universidade Estadual do Ceará (UFC/Uece), Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Universidade Federal doPará (Ufpa), Universidade Federal do Paraná (UFPR), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e Universidade de São Paulo (USP).
8 Usaid, a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional, realizou uma série de acordos com o Ministério da Educação no Brasil para modernização universitária a partir de 1966, que foram implementados por lei em 1968, como a reforma do ensino superior. Entre os acordos, ainda estava prevista a privatização do ensino superior, uma das grandes bandeiras da resistência estudantil.
9 Henry Rousso lembra da participação de historiadores nos seminários sobre a Ocupação no início dos trabalhos do Instituto de História do Tempo Presente (IHTP). Lá conviveram historiadores que tiveram participação na resistência e historiadores que acreditam que seu papel "consiste em lançar um olhar crítico, autônomo e subjetivo sobre qualquer objeto ou assunto" (ROUSSO, 2012, p. 227).
10 Dictionnaire Larousse: “rapport”. Disponível em : http://www.larousse.fr/dictionnaires/francais/rapport/66517. Acesso em: 30 nov. 2020.
11 Para um balanço do legado da CNV em seus dois primeiros anos, ver Martins; Ishaq (2016).
12 A recomendação nº 4 do relatório da CNV diz: “Proibição da realização de eventos oficiais em comemoração ao golpe militar de 1964” (Conheça..., 10 dez. 2014). Ricardo Vélez Rodríguez (23 nov. 2018) escreveu o artigo: “31 de março de 1964: é patriótico e necessário recordar essa data”.
13 Recomendações nº 6 e 16 da CNV (CNV, 10 dez. 2014).
14 Recomendação nº 4. Apoio ao Projeto de Lei nº 7899/2014, segundo o qual “fica instituída a ‘Lei Iara Iavelberg’, alterando a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática A Ditadura Militar no Brasil e a Violação dos Direitos Humanos, e dá outras providências” (CNV, 10 dez. 2014).
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