Editorial
Editorial: Volume 14, Número 37, Ano 2022
Com este número, apresentamos a última edição da revista Tempo e Argumento no ano de 2022. É o encerramento de um período muito intenso em variados aspectos da sociedade brasileira: pode-se mesmo sugerir que foi possível experimentar ao longo do ano a densidade histórica dos diferentes acontecimentos que o marcaram e o quanto a História do tempo presente é necessária. Os embates e conflitos eleitorais extravasaram para outros âmbitos da vida social e diferentes tradições e culturas políticas estiveram em jogo, suscitando leituras do passado e projetos de futuro antagônicos.
Houve o escrutínio minucioso e público de uma série de informações históricas referentes à sociedade brasileira e ao seu passado remoto ou próximo. Processos históricos extremamente dolorosos foram (e são) focos de discussão aberta, incluindo o passado escravocrata, o genocídio indígena e as violações aos direitos humanos, fazendo emergir temas que parcelas da sociedade prefeririam rejeitar a todo custo, seja pelos negacionismos ou pelo ódio. A profunda desigualdade social e as formas de reprodução de um sistema de poder e de exploração das maiorias seguem como estruturas a serem desafiadas em meio a ameaças aos mecanismos institucionais democráticos. Por outro lado, ainda estamos longe de tornar mais densos e efetivos os processos participativos que possam tornar as vozes das camadas populares mais ativas e transformadoras.
Ainda assim, o ano de 2022 se encerra com esperanças renovadas de que possamos retomar o fortalecimento da construção democrática timidamente iniciada ao final da última ditadura militar. Apesar dos percalços, das ameaças constantes de golpismos e das dificuldades em assegurar os direitos básicos de diferentes grupos sociais vulneráveis, há a expectativa de que possamos conduzir nossos conflitos e dilemas, muitos quase inconciliáveis, no interior de uma esfera política aberta e tolerante.
Entendemos que construímos junto com autores e autoras, leitores e leitoras, ao longo do ano, uma revista ainda mais qualificada e capaz de proporcionar um avançado debate acadêmico no domínio da História do tempo presente. Não seria diferente neste número, que traz o dossiê “Resistência, adesão e acomodação na América Latina: imprensa e humor em contextos autoritários” e a Seção Temática “Os desafios de ensinar e aprender História no tempo presente”. Além dos trabalhos incorporados a tais seções editoriais, trazemos ainda os artigos que são avaliados em fluxo contínuo, buscando sempre o mais esmerado processo de publicação com vistas a oferecer um resultado à altura das expectativas dos que confiam na qualidade de nossa revista. Este número, como procuramos fazer com frequência, traz ainda textos nas seções “Debate”, “Entrevista” e “Resenhas”, o que diversifica pontos de vista e amplia a divulgação da produção historiográfica.
A temática que mobilizou os textos que compõem o dossiê “Resistência, adesão e acomodação na América Latina: imprensa e humor em contextos autoritários” suscita interações muito pontuais com o contexto histórico que vivenciamos. Traz questões que são próprias ao tempo presente, dado que concerne a dimensões das relações políticas no Brasil e em outras sociedades que são constantemente reatualizadas nos debates contemporâneos. As composições formadas por acomodações, adesões e possibilidades de resistência diante de cenários impostos por regimes e contextos autoritários criam situações instáveis e que desafiam as interpretações históricas.
Um dos meios para delimitar tais jogos de força tem sido a imprensa e, no caso dos trabalhos submetidos ao dossiê, as expressões de humor gráfico produzidas sobre distintos acontecimentos e processos. Em particular, adotar a perspectiva da construção de narrativas e interpretações voltadas para o tempo presente constitui um estímulo para os debates acerca de objetos e produções culturais que demandam análises sutis e sofisticadas que devem considerar dimensões artísticas, políticas e sociais. Os textos versam sobre diferentes publicações e contextos, considerando aspectos que envolvem tanto conexões entre formas artísticas diversas quanto relações políticas nacionais e internacionais. Deve-se ainda ter em conta que o humor envolve tornar em objeto histórico o âmbito das percepções e das subjetividades presentes nas relações políticas.
A seção temática “Os desafios de ensinar e aprender História no tempo presente”, por sua vez, aborda os cenários presentes nos processos que envolvem o ensino de História no Brasil e em outros lugares do mundo. Os artigos debatem temas que estão na ordem do dia deste campo tão importante da disciplina e as suas interfaces com a História do Tempo Presente, a saber: a formação de docentes em nível de pós-graduação para atuarem na Educação Básica no contexto do século XXI; a relação entre a História ensinada, memórias e narrativas historiográficas acerca de personagens considerados construtores do Estado nacional; as tensões e as possibilidades presentes no estágio docência que visa a formação das licenciadas e dos licenciados em História; e os processos de aprendizagem da disciplina tendo em vista a relação entre o currículo e a formação do pensamento histórico. A seção “Artigos” traz contribuições que abordam temáticas relativas às dimensões política, socioeconômica e cultural. Os textos apresentam interpretações inovadoras sobre os fenômenos analisados.
No ano de 2022 foram lembrados os 200 anos do processo de independência do Brasil. A disputa de narrativas relativa à efeméride esteve presente na denominada grande imprensa, nas redes sociais e nos veículos de divulgação científica do campo acadêmico. Tempo e Argumento traz uma contribuição para esta discussão na seção “Debates”. A referida seção apresenta o texto de autoria do historiador Felipe Matos, do arqueólogo Renato Kipnis e da historiadora Ilsa Carla Favaro de Lima, abordando questões no âmbito da “museologia social” a partir de um caso ocorrido no processo de restauração do Museu do Ipiranga-USP (https://museudoipiranga.org.br/), principal monumento brasileiro dedicado ao tema da independência, o que teve grande repercussão nas mídias sociais.
Na seção “Entrevista”, intitulada “História a múltiplas mãos: tempo presente, História pública e interdisciplinariedade”, temos uma entrevista realizada pelas historiadoras Caroline Jaques Cubas e Mariana Joffily com o professor e pesquisador da Universidade de Rennes 2 (França), Luc Capdevila. Tendo como foco central a temática das guerras nos séculos XIX e XX, o referido historiador tece considerações inovadoras sobre as articulações existentes entre as narrativas historiográficas, as memórias e as relações de gênero (quase sempre invisibilizadas nas fontes consideradas “oficiais”). Cabe ainda destacar a seção “Resenhas”, que apresenta uma reflexão sobre o livro da pesquisadora estadunidense bell hooks (que faleceu em novembro de 2022), acerca das relações entre as subjetividades (especialmente o amor romântico) e o campo do político.
Informamos ainda sobre uma alteração na composição da chefia editorial de Tempo e Argumento. Deixamos de contar em nossa equipe com a colega e professora Maria Teresa Santos Cunha, que encerrou sua segunda passagem no comando da revista. Desde nosso primeiro número, a professora foi uma das mais dedicadas entusiastas deste periódico, colaborando de diversas formas ao procurar dotar nossa publicação de estritos requisitos acadêmicos e critérios densos e qualificados. Sua experiência e constante disposição ao trabalho em equipe contribuíram de modo indelével para que Tempo e Argumento alcançasse o patamar de respeitabilidade que hoje ostenta. Temos, portanto, muito o que agradecer a Maria Teresa Santos Cunha e reconhecer seu mérito na construção conjunta que envolveu a produção de uma revista que desde seu início procurou estar aberta a novas perspectivas historiográficas.
Por outro lado, a equipe responsável pela chefia editorial de Tempo e Argumento passa a contar com Caroline Jaques Cubas, que chega com o compromisso de qualificar o trabalho até aqui realizado por diferentes colegas e colaboradores, sejam estes docentes, técnicos administrativos – Anderson Mendes, Darli Damian da Silva e Karla Cristina Fernandez Philipovsky Koerich – e os estudantes Antonio Greff de Freitas, Carlos Eduardo Pereira de Oliveira, Claudia Regina Nichnig, Igor Lemos Moreira, Luana Borges Lemes, Luiz Felipe Machado de Genaro, Pâmela Minuzi Machado e Reginaldo Giassi, da Universidade do Estado de Santa Catarina.
Desejamos uma ótima leitura e que possamos de algum modo contribuir para a construção democrática e plural de uma sociedade justa e igualitária em nosso país.