Resumo: Este artigo propõe uma reflexão sobre as motivações híbridas e complexas da censura imposta à imprensa independente e ao humor gráfico sob o regime militar brasileiro, com base na análise de fontes visuais inéditas. Os documentos estudados são um conjunto de desenhos feitos pelo cartunista Nani (Ernani Diniz Lucas) enquanto trabalhava na redação do semanário satírico Pasquim nos anos 70. Enviadas para Brasília para serem censuradas previamente, as produções ficaram retidas por anos antes de serem devolvidas ao artista, marcadas com cruzes e outros traços das proibições. Os desenhos permitem assim entrar no mundo dos censores, tornando as categorias e a própria definição do político mais complexas: atestam uma preocupação global por parte das autoridades em relação a todos os temas suscetíveis de minar a imagem de uma sociedade harmoniosa e moderna, e assim contrariar a visão política do regime e de seu imaginário autoritário.
Palavras-chave: charge, censura, Nani, ditadura militar brasileira.
Abstract: This article proposes a reflection on the hybrid and complex motivations of the censorship imposed on the independent press and graphic humor under the Brazilian military regime, based on the analysis of unpublished visual sources. The documents studied are a set of drawings made by cartoonist Nani (Ernani Diniz Lucas) while working in the editorial staff of the satirical weekly Pasquim in the 1970s. Sent to Brasília to be screened by the preventive censorship, the productions were lost for years before being returned to the artist, marked with crosses and other traces of the prohibitions. The drawings thus allow us to enter the world of the censors, making the categories and the very definition of the political more complex: they attest to an overall concern on the part of the authorities for all themes that could undermine the image of a harmonious and modern society, and thus counter the regime's political vision and its authoritarian imaginary.
Keywords: charge, censura, Nani, ditadura militar brasileira.
Dossiê - Resistência, adesão e acomodação na América Latina: Imprensa e humor em contextos autoritários
“Alguns desenhos guardados aí...” A censura ao humor gráfico durante o regime militar brasileiro. Um estudo de caso
Recepción: 30 Junio 2022
Aprobación: 15 Noviembre 2022
Durante uma entrevista realizada no Rio de Janeiro em novembro de 2013 [1], o cartunista brasileiro Ernani Diniz Lucas (1951-2021), conhecido como Nani, detalhou as dificuldades causadas pela censura prévia impostas às publicações independentes durante a ditadura militar, enquanto publicava seus trabalhos no semanário satírico Pasquim. Ele começou a enviar seus desenhos desde Belo Horizonte para a publicação carioca em 1972, e mudou-se para o Rio de Janeiro no ano seguinte. O cartunista trabalhou na redação até o fechamento do jornal, em 1991. No decorrer de nossa conversa em 2013, ele revelou a existência, em seu arquivo pessoal, de uma pasta preciosa para o estudo da relação entre censura e humor gráfico durante a ditadura militar brasileira:
Antes de eu chegar no Rio, tinha um censor na redação do Pasquim. Às vezes o Jaguar levava os desenhos na casa do censor. Tem muitas anedotas folclóricas sobre esses censores. Quando a censura foi para Brasília, a gente tinha que mandar o material para lá, tinha que ser esperto e mandar três vezes a quantidade normal para sobrar algum material suficiente para fazer o jornal. Eu tenho alguns desenhos guardados aí, alguns cartuns censurados que posso te passar... (DINIZ LUCAS, 2013. Informação verbal.)
Com a promulgação do AI-5 em 13 de dezembro de 1968, o regime militar instaurado em 1964 deu um passo fundamental na institucionalização do autoritarismo (NAPOLITANO, 2014). O ano de 1969 iniciou-se num período de sufocamento das liberdades individuais e coletivas, como consequência do aperto do arsenal legislativo. A repressão foi ampliada, afetando grupos até então relativamente preservados, dentre eles alguns setores artísticos ou intelectuais, assim como boa parte dos periódicos independentes.
É importante esclarecer o que queremos dizer com “imprensa independente”, enquanto o conceito de “imprensa alternativa” é mais frequente para designar as publicações que se engajaram na oposição ao regime ou valorizaram práticas artísticas contraculturais (ARAUJO, 2001). Porém, esse termo polissêmico refere-se a uma diversidade importante em termos de estrutura, relação com a proibição, conteúdo, periodicidade ou organização interna. A seção “Imprensa Alternativa” do projeto “Memórias da Ditadura” criado pelo Instituto Vladimir Herzog, por exemplo, reúne publicações regionais, clandestinas, sindicais e contraculturais[2]. Preferimos outra escolha semântica, já que os títulos clandestinos, as publicações pertencendo a uma organização partidária ou sindical, assim como os jornais publicados em contextos de exílio nos parecem ter alimentado, com as autoridades, relações baseadas em premissas distintas. A preferência pelo termo imprensa “independente” não significa negar os compromissos políticos das redações ou as simpatias ideológicas pessoais de seus membros, mas exclui publicações que são explicitamente filiadas a um partido ou organização sindical (TOULHOAT, 2019).
Os jornais e revistas independentes proporcionavam um contexto de trabalho diferente para jornalistas e cartunistas que vinham da grande imprensa. Caracterizados por uma organização interna por vezes singular, esses títulos também reivindicavam linhas editoriais em oposição ao regime militar. Seus membros tinham origens sociais e intelectuais diversas, porém compartilhavam valores comuns e a rejeição do autoritarismo. Além disso, alguns grupos realizaram uma ampla reflexão sobre o papel e o lugar do jornalismo no espaço público. No plano formal, os veículos da imprensa independente experimentaram numerosas inovações estéticas, como o uso de cores, tipografia e layouts que iam além da estrutura normativa que governava a imprensa escrita na época. Finalmente, essas publicações deram importante destaque ao humor gráfico em suas páginas. No período dos “anos de chumbo” em que os mecanismos de protesto político, longe de morrerem, foram forçados a reinventar-se, os títulos da imprensa independente também desenvolveram estratégias frente à institucionalização da repressão, como boa parte das culturas contestatórias nascidas entre os anos 1960 e 1970 no Brasil (RIDENTI, 2007).
Estreitamente ligada à vigilância e à proteção da chamada “segurança nacional”, a censura prévia foi introduzida pelo decreto-lei n°1.077, de 26 de janeiro de 1970, que estipulava logo em seu primeiro artigo: “Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes quaisquer que sejam os meios de comunicação” (BRASIL, 1970). A censura não nasceu com o regime militar, mas assumiu a partir de 1964 uma escala sem precedentes (NAPOLITANO, 2014). Até então, uma certa descentralização dos órgãos de censura tinha preservado uma relativa liberdade de expressão. O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), criado em 27 de dezembro de 1939 no Brasil pelo governo de Getúlio Vargas, foi de fato substituído em 1946 pela Divisão de Censura das Diversões Públicas (DCDP) dependente da Polícia Federal, sediada no Rio de Janeiro e com filiais nos diferentes estados. O primeiro Ato institucional (AI), de 9 de abril de 1964, inaugurou um conjunto de medidas excepcionais estabelecendo a base para um rígido controle psicológico e social (BRASIL, 1964). A Lei de Imprensa nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, impôs uma série de limitações significativas à atividade jornalística com base nas disposições do Capítulo III, “Dos abusos no exercício da liberdade de expressão de pensamento e informação” (BRASIL, 1967). Até então, uma prerrogativa dos estados, os serviços de censura foram centralizados ao nível federal sob o comando do Departamento de Polícia Federal.
A partir do final dos anos 1960, a censura ocupou um papel crescente – imposto, negociado ou às vezes parcialmente interiorizado – nos mecanismos intelectuais, na criação artística e na produção literária, reconfigurando o campo das mídias. Aplicada a todos os setores artísticos e culturais, a censura foi amplamente aplaudida por importantes setores conservadores da sociedade brasileira, que não hesitaram em colaborar ativamente com as autoridades de vigilância e repressão (FICO, 2002). As margens de manobra dos movimentos de oposição democráticos e, portanto, da imprensa independente, encolheram drasticamente durante a primeira metade dos anos 1970. O regime organizou a repressão e a vigilância, sistematizando o uso de decretos secretos em 1971 e criando a Divisão de Censura das Diversões Públicas dentro do Departamento da Polícia Federal em 1972. Não obstante, as publicações independentes marcadas pela suspeita de subversão desenvolveram um conjunto de estratégias para ampliar sua margem de manobra, nos limites da legalidade.
Um dos objetivos deste artigo é interrogar a definição dessa margem de manobra, mas também sobre os mecanismos de sua existência, os desafios, as zonas cinzentas conturbadas e mutáveis, a partir de trabalhos censurados do cartunista Nani. Frente à reflexão sobre os possíveis temas permitidos ao riso político sob o regime militar entre o final dos anos 60 e meados dos anos 70, essas fontes parecem elaborar uma resposta ao contrário. Os cartuns censurados analisados aqui revelam um conjunto híbrido de temas proibidos, por criticarem diretamente a ação do governo ou por comprometerem a imagem de um corpo social brasileiro forte e unido em torno de valores modernos. Esses traços da censura revelam a natureza de algumas proibições, mas também a existência de variáveis relacionadas às convicções dos agentes encarregados da censura.
A minha geração de cartunistas nasceu com a censura. Começamos a exercitar nossa profissão já sob o jugo da censura. Aprendemos a burlar a censura, a gente usava muitas metáforas para fazer os desenhos... Por exemplo, para caracterizar os porões da ditadura ou a tortura, a gente usava as figuras do carrasco, do bobo do Rei... O jogo era driblar a censura. Era charge de militância. A gente fazia charge para derrubar a ditadura. A gente fazia também cartum de humor mesmo, mas não era essencial. O importante era derrubar a ditadura. (DINIZ LUCAS, 2013. Informação verbal.)
Nani explicou durante nossa entrevista que experimentou duas modalidades de censura prévia quando trabalhava no Pasquim: a primeira consistia na presença física do censor na redação, e a segunda significava a obrigação de mandar o conteúdo original para Brasília antes que pudesse ser parcialmente recuperado para fazer um jornal (DINIZ LUCAS, 2013. Informação verbal). Essa generalização do deslocamento da censura prévia imposta às publicações independentes em Brasília, entre 1973 e 1974, causou uma série de dificuldades relacionadas com a transferência de controle, a falta de vínculos diretos com os responsáveis da censura e os consideráveis atrasos postais.
O primeiro número do Pasquim foi publicado no dia 26 de junho de 1969, alguns meses após a promulgação do AI-5. Desde o início, a publicação deu lugar de destaque a formas gráficas de humor político, crítica moral e sátira social. O projeto do periódico de humor gráfico surgiu após a morte do intelectual e humorista Sérgio Porto, em setembro de 1968, enquanto ele dirigia A Carapuça. O jornalista Tarso de Castro, os cartunistas Jaguar e Claudius, o jornalista e editor Sérgio Cabral e o escritor Luiz Carlos Maciel uniram suas forças com o objetivo de criar um jornal para dar continuidade ao trabalho da extinta publicação. Assim como o periódico Opinião, nascido em novembro de 1972, e muitos outros títulos independentes, o Pasquim apresentava certas características da luta política comum liderada por uma grande diversidade de cartunistas e artistas, cujos caminhos, trajetórias e compromissos influenciaram a produção gráfica.
Opinião e Pasquim aprenderam a fazer malabarismos para contornar a censura, publicando várias imagens com incrível poder sintético e desenhando um amargo retrato da sociedade brasileira sob o regime militar. Uma das estratégias implementadas implicava a publicação de desenhos dedicados ao contexto regional e internacional, denunciando indiretamente as deficiências da política brasileira ao atacar o imperialismo norte-americano, os regimes de segurança nacional latino-americanos ou o sistema colonial português. Esses temas evoluíram ao longo dos anos, contribuíram para definir a margem de manobra dos cartunistas durante os anos de chumbo, e forneceram ao mesmo tempo amplas informações sobre os objetivos de um Estado autoritário que buscava proteger seus valores, ideologia e prática política. O nosso objetivo aqui é analisar certos temas proibidos durante a primeira metade dos anos 70, assim como os elementos gráficos que tornaram possível o protesto desenhado.
Em seus trabalhos recentes sobre o tema, o historiador Carlos Fico insiste nas diferenças históricas entre as censuras impostas à imprensa e às diversões públicas, porém reconhecendo uma grande porosidade entre elas durante o regime militar:
Não houve uma censura durante o regime militar, mas duas. A censura da imprensa distinguia-se muito da censura de diversões públicas. A primeira era “revolucionária”, ou seja, não regulamentada por normas ostensivas. Objetivava, sobretudo, os temas políticos stricto sensu. Era praticada de maneira acobertada, através de bilhetinhos ou telefonemas que as redações recebiam. A segunda era antiga e legalizada, existindo desde 1945 e sendo familiar aos produtores de teatro, de cinema, aos músicos e a outros artistas. Era praticada por funcionários especialistas (os censores) e por eles defendida com orgulho. Amparava-se em longa e ainda viva tradição de defesa da moral e dos bons costumes, cara a diversos setores da sociedade brasileira. Durante a ditadura houve problemas e contradições entre tais censuras. A principal foi a penetração da dimensão estritamente política na censura de costumes – justamente em função da mencionada vitória da linha dura caracterizada pelo AI-5. (FICO, 2004, p. 37)
De fato, no caso das proibições impostas ao humor gráfico publicado por periódicos independentes – entidades híbridas impulsionadas por sua oposição política ao regime militar, a ruptura dos costumes conservadores e a pesquisa artística contracultural – as duas dimensões parecem ter se aproximado. As redações de Pasquim e Opinião foram submetidas à censura de várias formas e por vários motivos (TOULHOAT, 2019). Neste artigo, Fico também levanta a importante questão da temporalidade diferenciada dos tipos de proibições impostas à imprensa independente, sujeita a ambas as formas de censura:
Curiosamente, houve grande diferença entre as fases mais punitivas de uma e de outra. A censura da imprensa acompanhou o auge da repressão (quando se pensa em cassações de mandatos parlamentares, suspensões de direitos políticos, prisões, torturas e assassinatos políticos) que se verificou entre finais dos anos 60 e início dos anos 70. A censura de diversões públicas, porém, teve seu auge no final dos anos 70, já durante a “abertura”. (FICO, 2004, p. 37)
As poucas fontes oriundas dos responsáveis da censura do humor gráfico de que dispomos constituem casos de estudo interessantes, cuja análise detalhada nos permite identificar alguns dos perigos supostos para a coesão da sociedade brasileira. O jornalista Ricky Goodwin apontou durante uma entrevista em 2011, assim como o Nani, o surgimento de problemas materiais com a transferência da censura prévia em 1974:
Tudo o que era produzido, tudo o que ia sair nas bancas, a gente tinha que mandar tudo para Brasília, os censores cortavam lá, cortavam quase tudo, mandavam de volta e a gente podia fazer o jornal. Tínhamos que fazer mais coisas ainda, não tinha fax ou internet, tudo era feito por correio. A censura era mais profissional, eles cortavam quase tudo. Pasquim, que era semanal, não podia mais cobrir as notícias. Isso levava muito tempo. [...] tudo o que censuraram ficou em Brasília, muitas coisas se perderam. (GOODWIN, 2011. Informação verbal.)
Foi extremamente difícil ter acesso a essas fontes que “ficaram em Brasília”. Uma exceção rara é o conjunto dos desenhos feitos por Nani enquanto trabalhava para a redação do Pasquim e enviados a Brasília para serem examinados pelos censores, antes de serem excepcionalmente devolvidos a ele vários anos após o fim do regime militar.
Os documentos examinados a seguir, cuja época de produção podemos estimar como sendo a primeira metade da década de 70, trazem as marcas dos dois principais tipos de censura identificados por Fico. O traço simples e minimalista de Nani serve à eficiência comunicativa e humorística característica do trabalho do caricaturista. A censura foi materializada por grandes cruzes desenhadas com canetas de feltro vermelhas, pretas ou azuis, ou pela simples menção do termo “proibido”. Estes desenhos censurados indicam algumas motivações essenciais por trás das proibições e confirmam a defesa de uma visão de mundo muito específica por parte das autoridades ditatoriais.
Na sua dissertação de mestrado, a historiadora Ana Marília Carneiro mostrou como a Divisão de Censura de Diversões Públicas, assentada num amparo legal, solicitou durante a ditadura militar vários elementos de um imaginário anticomunista, misturando considerações morais e políticas:
A censura às diversões públicas ocupava-se tradicionalmente com questões de natureza comportamental, justificando a sua atuação no controle de temas contrários à moral e aos bons costumes. No entanto, podemos identificar alguns períodos históricos em que as fronteiras que separam esses âmbitos não se apresentam tão distantes e demarcadas, momentos em que a defesa da moral e dos bons costumes serviu à fins políticos. Os anos transcorridos sob a vigência do regime militar certamente traduzem uma configuração histórica em que se percebe o entrelaçamento dessas dimensões. (CARNEIRO, 2013, p. 11)
É interessante notar que no caso da censura imposta à imprensa satírica e humorística, considerações, gêneros e instituições também se confundiram. A noção de moralidade, fluida e variável, foi frequentemente utilizada para justificar um ato de censura imposto à imprensa. Os relatórios de serviço das diversas autoridades encarregadas da censura nos aproximam do modo de pensar dos funcionários do Estado autoritário, que tinham que justificar a existência de elementos ferindo a moral, os bons costumes ou o projeto político do governo. Tinham também que definir essas noções e provar que esta ou aquela publicação se opunha a elas. Alguns fundos do DOPS do Estado do Rio de Janeiro fornecem uma grande quantidade desses relatórios e, através do estudo de casos particulares de censura imposta ao Pasquim, nos permitem considerar a lógica e a retórica empregada pelos censores.
Em um relatório datado de 11 de dezembro de 1974, assinado por Paulo Monteiro, « Detetive – Matr. 121.748. Chefe da Turma Estudantil – S.B.E./DOPS » e endereçado ao chefe da Seção de Buscas Especiais da Divisão de Operações da polícia política, é possível analisar a preocupação com a preservação da moral e a natureza considerada chocante de certos desenhos publicados no Pasquim:
O jornal acima referenciado, bem como seus responsáveis, são useiros [...] de atos atentários à moral publica, baseando-se na publicação de charges com escritos obscenos, ferindo desse modo, as determinações do Serviço de Censura. A finalidade do artigo, é discorrer sobre a exibição de uma peça teatral, na Broadway, denominada “Equus”, que narra a aventura de um menino [...] que leva uma menina aos estábulos, onde ficam completamente nus, ante a presença de seis cavalos, testemunhas de sua presença. Não há, assim por dizer, necessidade de ilustrar o artigo(s), se bem que baseado nos cavalos, com a flagrante deturpação de seu(s) pescoço, que propositalmente alongado, deixa subentendido, no seu todo, a imagem de pênis turgido. Apesar de ser um jornal, recomendável para maior(i)es de 16 anos, consoante escrito na primeira página, é consumido pelos jovens, estudantes de curso médio, fazendo-o seu veículo de informação [...]. (MONTEIRO, 1974, p.1)
A observação final nos parece particularmente interessante: a preocupação com a preservação da juventude, frente à subversão moral, está muito presente nos relatórios de censura, juntamente com a proibição de ataques ao projeto político defendido pelo regime.
A mistura de gêneros também está presente em outros documentos de instituições responsáveis pela repressão e censura, tais como a relação de “jornais alternativos” produzida pelo SNI em 1980[3]. As duas listas de publicações consideradas preocupantes atestam alguns temores em relação à imprensa independente. A tipologia utilizada nos documentos distingue os títulos de acordo com a filiação ou não a uma organização política dita “subversiva”. A lista de “jornais alternativos” é uma mistura de publicações organicamente ligadas aos movimentos sindicais, tais como Companheiro Metalúrgico, com publicações conhecidas pelo engajamento contra as violações dos direitos humanos, como o hebdomadário do Arquidiocese de São Paulo, O São Paulo, e uma grande diversidade de títulos independentes: o carioca Pasquim, o jornal anarquista O Inimigo do Rei editado em Salvador, o ecologista Varadouro, a revista de psicologia Rádice (Luta e Prazer), etc.
A lista de “jornais alternativos de organizações subversivas”, em outras palavras, publicações de movimentos políticos proibidos e clandestinos, também reúne um conjunto híbrido com contornos imprecisos. Além das publicações associadas ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), existem jornais ligados ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), títulos lançados pela Organização Internacional Socialista (OSI) e um de seus grupos dissidentes, o Partido Operário Revolucionário Trotskista (PORT), mas também periódicos não afiliados diretamente a uma organização política clandestina, tais como Coojornal, Movimento e Versus. Enquanto a maioria das publicações citadas como objetos da vigilância do SNI estavam ligadas a organizações políticas proibidas após o golpe de 1964, outras apostaram mais firmemente em desafiar o regime por meios não clandestinos. Essa indefinição dos critérios de distinção e as amálgamas formuladas ao definir ou não a subversão política das publicações, também são evidenciadas por documentos emanados diretamente dos órgãos de censura.
Os desenhos censurados de Nani oferecem uma rara oportunidade de analisar precisamente essas confusões, pontes e representações diversas do que deveria ser censurado em nome da luta contra diferentes tipos de subversão: política, moral, social, racial, econômica... e filosófica. Entre os trabalhos censurados, quatro evocam o ambiente prisional, onde certas regras parecem ser subvertidas. O primeiro desenho representa diretamente um ato concreto de subversão, mostrando um prisioneiro de pé com sua mão esquerda sobre uma pequena mesa à sua frente e levantando sua mão direita em sinal de determinação (Imagem 1).
O personagem chama a atenção de quatro ratos atentos, no que parece ser sua cela. Um guarda ao fundo adverte uma terceira figura sobre ele: “É um preso político” (DINIZ LUCAS, 1974?). É muito provável que essa fala mencionando a existência de pessoas presas por razões políticas, um fenômeno negado pelo regime militar que equiparava esses presos a bandidos sujeitos ao regime de direito comum, tenha sido motivo suficiente para causar a censura. A gigantesca cruz, feita com uma grande caneta de feltro preta, ocupa todo o espaço do desenho. A ironia e o enorme poder metafórico da cena retratada por Nani estão principalmente ligados ao absurdo do perigo potencial atribuído ao prisioneiro, totalmente desproporcional ao seu público de roedores inofensivos.
A imagem 2 representa também um personagem cujas características de vestuário o identificam como um prisioneiro.
As listras horizontais em suas roupas e o boné contrastam graficamente com as linhas verticais de sua barba. Ele aparece na tela de uma televisão, com uma atitude semelhante à de um candidato em uma eleição, fazendo sua propaganda política e incitando o telespectador a votar. O desenho implica claramente a proximidade do mundo político oficial e partidário com o banditismo. Essa inversão de sentido operada pelo cartunista, dessa vez associando o mundo político às violações da lei, parece particularmente interessante. Embora fosse impossível descrever e representar a existência de militantes presas e presos por razões políticas, também era proibido associar o pessoal político autorizado ou tolerado pelo regime à criminalidade.
Os outros dois desenhos que tratam da ausência de liberdade e da prisão evocam duas tentativas de fuga, uma materializada pela ação poética e a outra mais metafísica. O primeiro retrata um prisioneiro, também reconhecível por suas roupas listradas, pintando flores na extensão das barras de sua janela, através da qual podemos observar um lindo céu ensolarado. O homem demonstra sua criatividade usando a prática artística para melhorar seu ambiente cotidiano, opondo-se assim à morosidade do quadro normativo da prisão. Podemos supor que esse incitamento ao devaneio em face do confinamento foi o motivo da proibição. O segundo desenho mostra dois homens em conversa, tendo apenas uma parede de tijolos como pano de fundo. Um formula a pergunta “A saída, onde está a saída?” (DINIZ LUCAS, 1974?) e o outro, com um uniforme listrado, responde: “Não sei. Eu também sou daqui.” (DINIZ LUCAS, 1974?). As listras características do mundo prisional de Nani são o único elemento de identificação precisa do local da ação. O olhar abatido e atordoado dos dois protagonistas e o aparente absurdo da questão também poderiam se referir ao confinamento psiquiátrico.
Porém, essa pergunta nos lembra a capa publicada peloPasquim em novembro de 1970 durante o período de prisão da redação após a publicação, em 3 de novembro de 1970, de uma ressignificação gráfica do famoso quadro de Pedro Américo “Independência ou morte” pelo cartunista Jaguar. Ele tinha inserido uma bolha de expressão na composição para fazer o imperador Pedro I cantar o refrão da famosa canção do samba-rock composta por Jorge Ben Jor: “Eu também quero mocotó” (PASQUIM, 1970, p.1). A maior parte da equipe editorial foi presa logo depois dessa publicação. Apenas Henfil, Millôr Fernandes e a secretária editorial Martha Alencar escaparam e continuaram a publicar clandestinamente, apoiados por um grupo de artistas e intelectuais que demonstraram sua solidariedade, ajudando concretamente a publicação a superar o período. Os exemplares posteriores fizeram numerosas referências à prisão enquanto o trabalho de produção do periódico continuava. A capa do número 74, reproduzida abaixo, mostrava um enorme labirinto no meio do qual o rato Sig, a mascote da publicação, estava desesperadamente procurando a saída (Imagem 3).
O desenho de Nani pode ser visto como uma metáfora da situação política no Brasil dos anos de chumbo, da qual um dos personagens quer desesperadamente fugir. A reflexão gráfica sobre a busca de uma solução para a dramática situação vivida foi censurada com uma grande cruz em caneta de feltro preta.
Ao discutir certos temas que eram regularmente censurados, Nani resumiu em uma frase muitas das contradições características do período do regime militar: “Falar dos pobres também era muito censurado, não se podia dizer que tinha miséria no país” (DINIZ LUCAS, 2013. Informação verbal). O mito de um milagre econômico generalizado e grandioso, ainda hoje muito presente entre certos setores nostálgicos da ditadura, foi em grande parte alimentado pela propaganda governamental. É importante lembrar que a representação do “milagre econômico” brasileiro foi relativamente difundida na primeira metade dos anos 70:
É inegável que, para a imensa maioria da população pouco envolvida com a ideologia revolucionária da esquerda e sem uma opinião política muito clara e coerente, o Brasil vivia tempos gloriosos no começo dos anos 1970: pleno emprego, consumo farto com créditos a perder de vista, frenesi na bolsa de valores, tricampeão do mundo de futebol. Grandes obras “faraônicas” eram veiculadas pela mídia e pela propaganda oficial como exemplos de que o gigante havia despertado, como a Ponte Rio-Niterói, a Usina de Itaipu e a Rodovia Transamazônica. Para os mais pobres, a fartura, ainda que concentrada, fazia sobrar algumas migalhas. Era a materialização do projeto Brasil Grande Potência, o auge da utopia autoritária da ditadura, que não deixou de seduzir grande parte da população e da mídia. (NAPOLITANO, 2014, p. 161)
Falar de economia era altamente político, e os slogans lisonjeiros tenderam a apagar nos discursos um conjunto de mecanismos socioeconômicos extremamente complexos que permitem matizar e analisar as consequências dramáticas das políticas voltadas principalmente para o grande capital. Como lembra Napolitano, “Nenhum historiador sério, mesmo mais à direita, questiona que o desenvolvimentismo sem democracia imposto pela ditadura militar teve um alto custo social. O salário-mínimo teve uma perda real de 25% entre 1964 e 1966 e 15% entre 1967 e 1973.” (NAPOLITANO, 2014, p. 149).
É precisamente a deterioração substancial das condições de vida das classes média e pobre do país durante a segunda metade dos anos 60 e na década seguinte, assim como a crescente concentração de renda de uma minoria, que a imagem 4 aborda.
A produção gráfica censurada por uma grande cruz preta tinha sido apresentada como uma “sugestão de capa” por Nani. Ele retratava um transeunte atordoado diante de alguma escrita na parede, impressionado pelo contraste entre a imensidão do anúncio “É o novo...” e o “salário mínimo” ridiculamente pequeno (DINIZ LUCAS, 1974?). Esse contraste, na origem dos gestos e da expressão de surpresa e incompreensão do personagem, que é obrigado a se aproximar para ver o dito “salário-mínimo”, fornece o principal elemento cômico do desenho. Nani denunciava visual e ironicamente os efeitos de anúncio do governo e a redução drástica do salário-mínimo, ela própria um sintoma da deterioração geral das condições de vida das classes pobres característica do período.
Essa deterioração das condições de vida atingiu de maneira muito dura as populações brasileiras mais desfavorecidas e se manifestou especialmente nas grandes fomes assassinas do início dos anos 70 no Nordeste, às quais quatro dos desenhos censurados de Nani se referem diretamente. As duas páginas seguintes, feitas de strips cinicamente intituladas “Vem aí a grande fome mundial” (DINIZ LUCAS, 1974?), abordam a cruel falta de alimentos a partir de ângulos e através de processos cômicos distintos (Imagens 5 e 6).
Outro desenho, desta vez baseado em um ambiente rural árido e desolado, mostra uma mulher grávida com três crianças pequenas, de aspecto doente e com cara triste (Imagem 7).
No fundo, uma pequena cabana deteriorada, rodeada por uma cerca e duas palmeiras, quebra a vastidão e o vazio da paisagem, sob um céu sem nuvens.
Ao lado das crenças populares e da religiosidade no sertão, o tema da desnutrição foi finalmente central em um quarto conjunto de desenhos ilustrando um artigo no Diário de Pernambuco de 24 de outubro de 1974 e reproduzido por Nani. O recorte de imprensa apresentava um quadro alarmante dos efeitos da fome e da falta de proteína sobre a altura da população brasileira. Os três desenhos emoldurando-o, todos riscados com uma grande cruz vermelha, atacaram de forma irônica o problema da fome. Uma leitura conjunta dessas quatro obras nos permite colocá-las em um contexto de abandono das classes pobres e rurais pela lógica de expansão do desenvolvimento capitalista promovida por sucessivos governos militares.
O “milagre econômico”, cantado pelo governo Médici de 1969 a 1973, não beneficiou a maioria da população e contribuiu para o aumento das desigualdades sociais nas cidades e suas periferias, lotadas por uma população que havia experimentado um êxodo maciço das áreas rurais mais pobres do país. Ademais, também afetou as populações que permaneceram nas regiões vítimas de repetidas secas e da ausência de políticas públicas eficazes contra a pobreza. É altamente provável que o medo do governo militar do uso político dos temas da pobreza, fome e seca tenha levado à censura desses trabalhos: “A miséria e o subdesenvolvimento, nos quadros da Doutrina de Segurança Nacional, eram vistos como problemas sempre aproveitados pela esquerda, ou pela ‘subversão’, como queriam os militares, para desestabilizar a ordem.” (NAPOLITANO, 2014, p. 166).
Dois outros desenhos no arquivo fazem referência direta às grandes epidemias de meningite meningocócica que ocorreram no Brasil no início dos anos 70, atingindo seu auge em 1974. Já nos anos 80, alguns estudos de saúde pública mostraram os fatores por trás do surgimento da epidemia de meningite, particularmente na cidade de São Paulo, em conexão com as políticas econômicas seguidas pelo governo militar (BARATA, 1988). Pouco discutida pela grande mídia até 1974 (SCHNEIDER; TAVARES; MUSSE, 2015), a epidemia era um tema severamente censurado, e o trabalho de Nani confirma a existência quase sistemática da proibição de se comunicar sobre a doença. Na imagem 8, o artista brinca com os personagens bíblicos reconhecíveis por seus halos e roupas: a cena mostra José, Maria e a criança fugindo da cidade do Rio de Janeiro, simbolizada ao fundo pelo Pão de Açúcar e seu anacrônico teleférico.
Uma sinalização apontando para o Egito indica para onde os protagonistas estão voltando. Todo o desenho, marcado com uma grande cruz preta, é encimado pelo título, que permite associar a saída do Rio de Janeiro ao medo da terrível doença, que aparentemente é mais ameaçadora do que a imagem do Egito antigo nos textos bíblicos, marcada por pragas e trabalho forçado. O título também é riscado, indicando que a mera menção escrita do termo “meningite” estava sujeita à proibição.
O segundo desenho que trata do mesmo tema é uma tira cômica que aborda graficamente a natureza fulgurante da doença. O protagonista se destaca em suas roupas pretas, cercado por pessoas que desaparecem magicamente em uma onomatopeia, “POP”. Ele foge gritando “É a meningite!” (DINIZ LUCAS, 1974?). As autoridades sanitárias brasileiras tomaram consciência do crescimento exponencial da epidemia de meningite já em 1971, mas negaram a extensão do fenômeno, considerado prejudicial à imagem de um Brasil em pleno desenvolvimento. Em junho de 1974, o governo finalmente reconheceu a extensão da doença, que atingiu seu auge em setembro daquele ano, mas sua menção pelos jornalistas permaneceu totalmente proibida até o início de 1975. Portanto, é razoável supor que o período de realização dos desenhos foi o segundo semestre de 1974.
Finalmente, um dos desenhos do arquivo censurado evoca um tipo de confinamento completamente diferente, dessa vez baseado no racismo estrutural da sociedade brasileira (Imagem 9).
Composta por duas partes separadas, alinhadas verticalmente, a charge critica a terrível ironia do destino do povo negro no país. A parte superior representa um jovem negro quase nu, abrindo os braços e celebrando a quebra da corrente ligada ao pé sob a inscrição “13 de maio”, uma referência à Lei Aurea de 1888 assinada pela princesa Isabel após décadas de luta dos abolicionistas. Embora a data de 13 de maio seja escolhida para as comemorações da libertação das pessoas escravizadas no Brasil, sua comemoração também está sujeita a muitas controvérsias (RIOS; MATTOS, 2004).
Vítimas de racismo institucionalizado e de uma falta de integração no mercado de trabalho, as pessoas negras brasileiras estavam longe de desfrutar de condições de vida iguais às dos brancos a partir de 1888 e ao longo do século XX. A segunda parte do desenho endossa essa crítica ao retratar o mesmo jovem esperando, sentado contra um muro na rua. A bola e a corrente que uma vez o algemaram estão agora à venda; sua miséria contrastando com as esperanças de sua libertação. Essa representação visual levou à censura do desenho por um regime que promovia o mito de uma democracia racial brasileira harmoniosa, na qual o racismo não existia.
Vários outros temas considerados problemáticos pelos censores, como o aumento da violência urbana e da criminalidade, ou os problemas do trânsito rodoviário, são retratados com cinismo e ironia em desenhos que zombam sistematicamente do conservadorismo e da hipocrisia reinando nas esferas privilegiadas da sociedade brasileira. Esse conjunto de desenhos já estava tentando desconstruir certos mitos promovidos pelo regime nos anos 70, que alguns estudos científicos têm tentado analisar desde os anos 2000: por um lado, a ideia de uma criminalidade comum que teria diminuído drasticamente durante a ditadura (OLIVEIRA, 2012) e por outro lado, o discurso que fez da violência extrema das práticas repressivas o fruto de casos isolados, o trabalho de agentes autônomos (FICO, 2004).
Finalmente, dois desenhos se destacam do resto das produções. Em nossa entrevista, Nani afirmou seu espanto com a censura do primeiro desenho, combinando trocadilhos visuais absurdos e uma reflexão de cunho mais filosófico (Imagem 10).
O efeito cômico da cena é construído pela polissemia da expressão ‘por alto’, evocando tanto uma dimensão de altura quanto o caráter impreciso ou vago de uma relação. O cartunista não tinha, segundo ele, nenhuma intenção subversiva quando fez esse desenho, uma produção cômica banal brincando com o absurdo. O caso lhe permitiu analisar o excesso de zelo dos censores que às vezes atribuíam intenções aos desenhos que seus autores não tinham:
Os censores, então, eram mais realistas que o rei e se vê pelos desenhos que censuravam. Eram coisas tão idiotas que dá vontade de dar uma risada. Esse aí por exemplo nunca entendi. Eu quis fazer um jogo de palavras. Eles talvez viram nisso uma louca ambição de inversão da ordem social... (DINIZ LUCAS, 2013. Informação verbal.)
In fine, o último desenho censurado toma a forma de um personagem provavelmente tristemente autobiográfico: um cartunista com uma enorme caneta de tinta perfurando seu abdômen, que declara, como um palhaço triste e resignado, “Só dói quando eu desenho” (Imagem 11). A imagem de protesto acumula diferentes níveis de leitura, condensados na figura do protagonista.
Aqui, Nani, ironicamente, sublima o poder do humor político como portador de mensagens sintéticas, integrando a esfera da oposição democrática ao regime militar, mas também um alvo de censura e, em certa medida, de repressão física. O protagonista conforta o público e se conforta com seu triste destino. Ele tem que escolher, de fato, como toda a profissão ligada ao jornalismo e à charge política, entre, por um lado, continuar a trabalhar de acordo com suas convicções – expondo-se à dor física – e, por outro lado, a imobilidade, a passividade e o silêncio, que lhe garantem um sofrimento moderado. A expressão da escolha impossível foi usada por outros colegas de Nani, sempre com bastante ironia. Uma charge de Ziraldo representando um homem encostado a uma parede e perfurado por uma enorme espada, declarando “Só dói quando eu rio”, permaneceu particularmente famosa (ZIRALDO, 2010). Em 1976, o cartunista Caulos utilizou outra variação, “Só dói quando eu respiro” em um trabalho gráfico inovador sobre ecologia, que incluiu desenhos publicados por ele na seção 'Caderno B' do Jornal do Brasil (CAULOS, 1976).
Tanto provocativo quanto fatalista, o personagem desenhado por Nani tornou-se a metáfora de uma franja da sociedade civil que oscilou (e às vezes hesitou) entre acomodação e oposição. Os cartunistas, atacando principalmente os símbolos nevrálgicos do poder e aproveitando as possibilidades oferecidas pelo uso da inversão, metáfora e sátira, conseguiram contornar certas proibições impostas pelo regime. A atitude desafiadora inerente ao cartunista político, que este último desenho evoca em um sutil mise en abyme poético, justificou a censura.
Assim, esses 19 trabalhos, devolvidos ao cartunista Nani muitos anos após terem sido produzidos, confirmam a orientação das proibições para um conjunto de elementos suscetíveis de comprometer uma imagem harmoniosa do corpo social brasileiro: prisão, crime, repressão política, desigualdades raciais, fome, desnutrição e epidemias, violência social e protestos.
Embora não estejam precisamente datadas, pode-se estimar que as imagens foram produzidas em torno de 1974. Os temas abordados graficamente foram censurados visualmente, marcados com grandes cruzes tornando os desenhos originais inutilizáveis, a fim de proteger a imagem polida de uma sociedade livre de qualquer aspereza. Todos os elementos gráficos, representações simbólicas e temas desenhados nas produções proibidas nos permitem amplificar a compreensão dos motivos políticos da censura, cuja definição parecia mover-se de acordo com o contexto socioeconômico e as inflexões do regime. Finalmente, a análise cruzada deste acervo inestimável de desenhos com outras fontes, orais, iconográficas e impressas, faz parte de um estudo mais amplo da censura sob o regime militar brasileiro e, acima de tudo, do poder extremamente sintético do humor gráfico (TOULHOAT, 2019).