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Para além da cena: humor gráfico, censura e repressão na peça Liberdade, liberdade
Natália Cristina Batista
Natália Cristina Batista
Para além da cena: humor gráfico, censura e repressão na peça Liberdade, liberdade
Beyond the scene: graphic humor, censorship and repression in the play "Liberdade, Liberdade"
Revista Tempo e Argumento, vol. 14, núm. 37, e0104, 2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
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Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar o espetáculo Liberdade, liberdade através das relações entre o teatro e humor gráfico durante o contexto ditatorial brasileiro. A peça estreou no Rio de Janeiro em 1965, com autoria de Flávio Rangel e Millôr Fernandes. Ela foi produzida pelo Grupo Opinião e em sua primeira temporada contou com a participação de importantes nomes do cenário artístico cultural brasileiro: Paulo Autran, Nara Leão, Oduvaldo Viana Filho e Tereza Raquel. Durante toda a sua trajetória enfrentou problemas com a censura, as forças paramilitares e o alto escalão do governo ditatorial. O objetivo deste artigo será compreender alguns aspectos do espetáculo através da relação da montagem com o campo do humor gráfico, na própria montagem e na imprensa. A partir da análise da caricatura contida no programa da montagem e de duas charges publicadas nos jornais Correio da Manhã e Última Hora, busca-se demonstrar como cartunistas se apropriaram da peça para tecer contundentes críticas ao regime militar. Através dessas fontes, pretende-se analisar pelo menos três eixos temáticos: i. a utilização do humor como estratégia visual e narrativa; ii. as dificuldades enfrentadas pelo Estado para estabelecer os critérios de censura; iii. a denúncia das ações paramilitares sofridas pela montagem. A hipótese aqui sustentada é que através deste tipo documental será possível investigar o impacto da montagem dentro do campo cultural de resistência ao regime e seus desdobramentos na imprensa e no governo.

Palavras-chave: ditadura militar, teatro, humor político, caricatura.

Abstract: This paper aims to analyze the show Freedom, freedom through the relations between graphic humor and theater during the Brazilian dictatorship. The play premiered in Rio de Janeiro in 1965, by Flávio Rangel and Millôr Fernandes. It was produced by Grupo Opinião and in its first season many names from the Brazilian cultural art scene starred at the play: Paulo Autran, Nara Leão, Oduvaldo Viana Filho and Tereza Raquel. Throughout its trajectory, issues arised with censorship, paramilitary forces and the high echelon of the dictatorial government. Before this complex scenario, the objective of this article will be to understand some aspects of the show by analyzing the relationship of the play and graphic humor, both in the play itself and in the press. Using the caricature included in the play program and published cartoons in the newspapers Correio da Manhã and ÚltimaHora, we seek to demonstrate that cartoonists appropriated the play to create blunt critics of the military regime. Through these sources we intend to analyze at least three elements: 1) the use of humor as a visual and narrative strategy; 2) the difficulties faced by the State to establish censorship criteria; 3) the denunciation of the paramilitary actions suffered by the play. The hypothesis is that this type of document will allow the investigation of the play’s impact within the cultural field of resistance to the regime, as well as its reverberations in the press and in the government.

Keywords: military dictatorship, theater, political humor, caricature.

Carátula del artículo

Dossiê - Resistência, adesão e acomodação na América Latina: Imprensa e humor em contextos autoritários

Para além da cena: humor gráfico, censura e repressão na peça Liberdade, liberdade

Beyond the scene: graphic humor, censorship and repression in the play "Liberdade, Liberdade"

Natália Cristina Batista
Universidade de São Paulo, Brasil
Revista Tempo e Argumento, vol. 14, núm. 37, e0104, 2022
Universidade do Estado de Santa Catarina

Recepción: 30 Junio 2022

Aprobación: 01 Septiembre 2022

1. Introdução

Nos últimos anos, a historiografia tem produzido diversas pesquisas sobre as ditaduras latino-americanas e sugerido questionamentos no que se refere à sua periodicidade, ao papel da sociedade nos golpes militares e às conspirações no seio do poder. Os estudos sobre os produtos culturais[1] foram minoritários por muito tempo, mas seu volume tem aumentado substancialmente como resultado da incorporação de novas fontes, sujeitos e temáticas dentro da própria historiografia brasileira. No que tange ao contexto da ditadura militar brasileira, percebe-se uma ampliação de estudos que investigaram artistas ou grupos que produziram obras de resistência[2] ao regime militar. Este artigo se insere dentro desse esforço de pesquisa, mas busca analisar dois campos artísticos que raramente são colocados em diálogo: o teatro e o humor gráfico, entendido também como caricatura[3].

De acordo com Rodrigo Patto Sá Motta, “a caricatura é uma forma de expressão tida por muitos como arte menor, ou mesmo incapaz de alcançar a verdadeira arte, posto que não atingiria o sublime ou o belo, ao contrário, estaria próxima do bizarro ou do grotesco” (MOTTA, 2006, p. 16). O autor justifica que o fato da caricatura muitas vezes provocar o riso levou-a a ser relegada a um lugar de descrédito, e a sua fácil comunicação foi associada a uma forma de expressão artística pouco elaborada. A análise aqui apresentada não partilha dessa visão pejorativa construída em torno da caricatura por entender que o riso e a fácil comunicação com o grande público podem ser qualidades importantes para a construção de obras de arte que se pretendam engajadas nas causas de seu tempo.

Para além de produto cultural, a charge também pode ser lida como uma espécie de artigo de opinião ou uma crônica diária, mas a sua linguagem é visual. Sua inserção raramente ocorre nos cadernos de cultura, indicando que a discussão sobre a política é constantemente abordada e mesmo valorizada. Seus temas estão em diálogo com o contexto de cada época e sua criação dialoga com a efemeridade de cada notícia, abordando quase sempre temas que estão em voga na sociedade. Seu diálogo principal é com o presente e, nesse sentido, muito se aproxima do teatro, efêmero por excelência. No contexto ditatorial, inclusive, muitos artistas das artes cênicas se engajaram na construção de obras que não tinham como objetivo se eternizarem na história do teatro brasileiro, mas, sim, denunciarem as arbitrariedades da ditadura militar no Brasil.

Vale ressaltar que nesse contexto havia uma maior circulação entre os campos culturais, e ser um cartunista ou um ator era suficiente para a utilização da denominação de “artista”. Quando se analisa o campo de atuação dos artistas engajados nas causas da esquerda, a denominação poderia ainda ser ampliada para a noção de intelectual. As barreiras da percepção dos campos de atuação eram quase inexistentes e as concepções de artistas e intelectuais bastante alargadas. Essa perspectiva permite compreender, por exemplo, a trajetória de Millôr Fernandes, autor do espetáculo analisado e que sempre circulou por diferentes campos culturais, variando sua atuação tanto pelos tipos de produtos culturais criados quanto por sua inserção em diferentes meios: a imprensa tradicional, o teatro engajado, a literatura ou a própria imprensa alternativa, como integrante do jornal O Pasquim, fundado em 1969. A presença de Millôr como o autor é fundamental para compreender como Liberdade, liberdade se apropriou do humor para fazer uma crítica ao regime militar, assim como ampliou o diálogo entre o mundo caricatural e a montagem, principalmente através das charges publicadas na imprensa tradicional.

Liberdade, liberdade [4] estreou no dia 21 de abril de 1965, no Rio de Janeiro. Escrito por Flávio Rangel, também responsável pela direção, e por Millôr Fernandes, o texto dramatúrgico trazia à cena fragmentos históricos que versavam sobre a liberdade ou períodos em que ela foi cerceada. A peça, exprimindo os ideais de seus realizadores, foi montada por meio de frações textuais adaptadas, cenas teatrais, canções, poemas, poesias e anedotas. A produção ficou inteiramente a cargo do Grupo Opinião[5], mas o Teatro de Arena de São Paulo assumiu publicamente a coautoria para evitar que o espetáculo fosse perseguido pelo regime militar. Na data de sua estreia, constavam em seu elenco nomes conhecidos do teatro brasileiro: Paulo Autran, Nara Leão, Oduvaldo Viana Filho e Tereza Rachel.

Diante do cenário apresentado, o objetivo do artigo será compreender alguns aspectos do espetáculo através da relação da montagem com o campo do humor gráfico, na própria montagem e na imprensa. Para demonstrar a eficácia da utilização da caricatura no processo de construção do conhecimento histórico foi necessária a utilização de um arcabouço de fontes variadas que incluíram diferentes suportes. Em primeiro lugar, as charges propriamente ditas, publicadas nos jornais cariocas Correio da Manhã e Última Hora, e localizadas no Acervo Paulo Autran, no Instituto Moreira Salles. No entanto, as charges haviam sido recortadas e não era possível entender o contexto em que estavam inseridas, tendo sido necessário fazer a pesquisa no acervo de cada jornal para compreender as opções editoriais e suas inserções.

Como já mencionado anteriormente, ambas se localizavam na seção de política e não no caderno destinado a cultura. Essa observação é importante porque demonstra como o espetáculo saiu das esferas culturais e se tornou parte da vida político-social. Ainda que neste trabalho elas sejam tratadas como produtos culturais, a utilização das charges do contexto de sua produção foi através da dimensão política. Interessante observar que nas páginas em que foram inseridas existiam matérias sobre a perseguição de opositores do regime e a instauração de IPM’s (Inquéritos Policiais Militares), indicando também a linha editorial de cada periódico, que será analisada mais adiante.

Foram utilizados também os programas do espetáculo, para compreender as singularidades da montagem e os pressupostos defendidos por autores, atores e equipe técnica. Esse material foi localizado na Funarte (Fundação Nacional das Artes) e no acervo pessoal de João das Neves. Reportagens de diversos jornais localizados na Biblioteca Nacional contribuíram para compor o mosaico de informações sobre os eventos mencionados nas charges e a própria relação do espetáculo com a imprensa. Por último, a metodologia da história oral esteve presente a partir da interpretação das entrevistas realizadas com Ferreira Gullar e João das Neves.

A metodologia utilizada para este trabalho dialoga com as perspectivas de Edward Palmer Thompson, que investigou aspectos da história social da cultura partindo da experiência dos sujeitos e das condições dadas por cada contexto sociopolítico. A análise de obras focadas no diálogo com o seu tempo (charges e espetáculo) fomentou um olhar que entrecruzasse perspectivas artísticas e políticas por excelência. De acordo com o autor, “Certos tipos de acontecimentos (políticos, econômicos, culturais) relacionam-se, não de qualquer maneira que nos fosse agradável, mas de maneiras particulares e dentro de determinados campos de possibilidades” (THOMPSON, 1981, p. 61). Ele afirma que essas relações não são efeitos de um “teorema estrutural estático”, nem podem ser pensadas a partir de relações pré-determinadas.

Portanto, na análise das obras dos cartunistas no contexto da ditadura militar, é necessário considerar a relação entre os campos artístico e político sem a primazia de um sobre o outro, evitando o determinismo e incorporando as complexidades dessa relação. São os contextos e as articulações entre campos e sujeitos que permitirão compreender como esses cartunistas se apropriaram da peça para tecer contundentes críticas ao regime militar. Convém observar que os cartunistas analisados, Fortuna e Jaguar, faziam parte da imprensa liberal, mas criaram charges que denunciavam a censura e a perseguição de um espetáculo criado por um grupo de claras inclinações comunistas. O contexto ditatorial e a necessidade de denúncia criaram uma conjuntura de aproximação entre campos que anteriormente estiveram em diálogo.

Em função disso, será importante não valorizar apenas o caráter unicamente político em detrimento do artístico ou a criação artística isolada de seu contexto social. Existiram efetivamente influências entre um campo e o outro, mas não são fruto de uma relação automática. Mais importante ainda será demonstrar as possibilidades dessa interseção, sem perder de vista a ideia de experiência individual, construída no tempo e pelos sujeitos históricos. A tese central é que através das caricaturas analisadas será possível visualizar a aproximação entre os campos, observar as nuances da relação do espetáculo com o governo e compreender como a defesa da liberdade proposta pela montagem foi ampliada através das denúncias vinculadas através das charges. Em outras palavras: as caricaturas e os sujeitos que a produziram servirão tanto como chave de leitura do espetáculo quanto do contexto político e cultural.

2. A utilização do humor como estratégia visual e narrativa: a presença de Millôr Fernandes

O Grupo Opinião foi fundado no Rio de Janeiro, em 1964, e pode ser considerado um dos principais representantes do frentismo cultural[6] no período posterior ao golpe militar. De acordo com Celso Frederico (2007), as peças do Grupo Opinião colocavam em cena a necessidade de uma política frentista para derrubar o regime militar e promover o retorno à democracia.

Em entrevista concedida por Ferreira Gullar (2012), membro fundador do Grupo Opinião e produtor da montagem Liberdade, liberdade, o nome Opinião surgiu por ideia de Vianinha, que havia escutado o disco Opinião de Nara, de Nara Leão, lançado em 1964. O intuito inicial era fazer um espetáculo baseado no disco, e até aquele momento não existia o objetivo de configurar um grupo teatral. Somente após o sucesso da peça os participantes se apropriaram do mesmo nome e se organizaram como Grupo Opinião. Em sua formação inicial, foi composto por oito integrantes, todos membros do Partido Comunista Brasileiro (PCB), oriundos dos Centros Populares de Cultura (CPCs) da União Nacional dos Estudantes (UNE) e vinculados à tradição do nacional-popular [7]. Era composto por Armando Costa, Denoy de Oliveira, Ferreira Gullar, João das Neves, Oduvaldo Viana Filho, Paulo Pontes, Pichin Plá e Thereza Aragão.

Liberdade, liberdade foi a segunda montagem do grupo e é possível perceber em sua concepção uma defesa da frente ampla contra a ditadura, uma vez que houve participação de comunistas, democratas e liberais. Diante de tal objetivo, a peça foi observada com apurado cuidado pelo governo, mas também obteve grande repercussão na imprensa escrita e no público. A opção de trabalhar com a questão da liberdade, com base em autores clássicos, deu-se por dois motivos: primeiro, por uma questão informativa, já que se pretendia mostrar momentos históricos em que a liberdade havia sido colocada em questão; segundo, por uma questão de precaução, já que o procedimento dificultaria, para a censura, fazer cortes em textos clássicos da literatura mundial. Ainda que a ideia da colagem surgisse como um elemento inovador no teatro brasileiro, ela já era utilizada em vários países. O próprio Flávio Rangel faz suas considerações sobre a originalidade da proposta: “é nova no Brasil, onde tudo é novo – inclusive a noção de liberdade” (GRUPO OPINIÃO, 1965, p. 7).

A presença de Millôr Fernandes causou relativa incompreensão, pelo fato dele ser um contumaz crítico do comunismo, integrando um coletivo de artistas vinculados ao Partido Comunista. Em entrevista realizada com João das Neves, também produtor do espetáculo, ele foi perguntado sobre a participação de Millôr Fernandes na montagem realizada em parceria com um grupo de comunistas. Ele expõe sua relação com o PCB e justifica as críticas que o escritor fazia ao partido. “O Partido Comunista Brasileiro, ao qual eu pertencia também, tinha posições muito estreitas e tinha uma direção muito stalinista então isso provocou não só a não aproximação de uma série de pessoas, tipo o Millôr Fernandes, por exemplo, como depois a saída de muitas” (NEVES, 2012, informação verbal).

Flávio Rangel, por sua vez, era um dos diretores de maior prestígio na cena teatral brasileira. Segundo ele, era “uma peça que podia ser um trabalho independente, facílima de ser levantada, palco em forma de arena e tudo, nós mesmos podíamos produzir. Mas eu escolhi o Grupo Opinião, eu achava que era o endereço certo” (RANGEL, 1987, apud SIQUEIRA, 1995, p. 61). Entende-se que a aproximação dele com o grupo perpassava também uma afinidade política. “Queríamos uma unidade de pensamento e, naquele instante, o Grupo Opinião era o que melhor expressava o que queríamos dizer com a peça” (RANGEL, 1981, p. 61). Segundo Moraes (2000), Flávio Rangel era membro do PCB desde 1961 e, quando estourou o golpe de 1964, ofereceu abrigo a Vianinha, estreitando as redes de sociabilidade existentes dentro do partido e do campo artístico. O objetivo principal da montagem, de acordo com o diretor, era transmitir “uma mensagem que no final fosse, não digo otimista, mas chamando à necessidade de resistência e de que a liberdade se conquista” (RANGEL, 1987, apud SIQUEIRA,1995, p. 154).

Millôr Fernandes, por sua vez, tinha objetivos bem similares, mas encontrou outras formas estéticas de expressá-los. Com uma trajetória profissional singular, tais aspectos podem também ser perceptíveis em sua obra. Aos 13 anos de idade, Millôr iniciou sua vida profissional, como funcionário da revista O Cruzeiro. Desde então, se desdobrou em diversas atividades, destacando-se na maioria delas. No programa do espetáculo ele afirma não ser um homem livre, mas poucos estiveram tão perto de sê-lo. É possível dar-lhe esse crédito ao analisar sua liberdade no que se refere ao seu posicionamento. Sua militância estava vinculada à esquerda, embora não tivesse vínculos políticos partidários, sendo ele próprio um crítico aguçado dos partidos em geral. Sua ironia e seu humor mordaz já haviam lhe causado vários problemas com a Igreja, a censura e o Estado mesmo antes do golpe civil-militar. Liberdade, liberdade não foi o primeiro espetáculo a lhe trazer problemas, tendo apenas corroborado as tendências já sedimentadas em sua trajetória. Infere-se que a presença de Millôr da montagem tenha agregado um elemento cômico e contribuído para amenizar o peso emocional do objetivo de denúncia da montagem.

No programa do espetáculo[8], Millôr descreve as questões que o motivaram a participar da montagem: “Aceitei, a convite de Flávio Rangel, o convite para escrever com ele o presente show, por dois motivos – 1.0 – Porque sou um escritor profissional. 2.0) – Porque acho esse negócio de liberdade muito bonitinho” (GRUPO OPINIÃO, 1965, p.8). Em uma sucinta frase, o autor consegue ironizar sua posição como escritor e a própria ideia de liberdade. Na continuação de sua argumentação, afirma que vinha sofrendo restrições devido aos dois motivos pelos quais tinha aceitado escrever ao lado de Rangel. Segundo ele, estava difícil ser escritor profissional no Brasil e a cada dia que passava o país fazia dele menos profissional. Ainda que ele não mencione as razões de sua análise, é provável que se refira às proibições constantes de sua obra. Quanto ao segundo item, a liberdade “vai-se maneirando”, como ele afirma:

Uma pitadinha de liberdade ali, uma prisezinha de liberdade hoje, uma fatia maior de liberdade amanhã e a turma vai vivendo que afinal o pessoal não é tão voraz assim. [...] enfim, uma liberdade a moda da casa. Porque, senão, vão dizer por aí, mais uma vez, que eu sou um cara perigoso. E eu tenho que responder mais uma vez, com lágrimas nos olhos: “Triste país em que um cara como eu é perigoso” (GRUPO OPINIÃO, 1965, p.8).

É interessante analisar a capacidade do autor de construir uma narrativa cheia de nuances, que vai do humor à tragicomédia, da ficção à realidade. Ao mesmo tempo em que o espetáculo era colocado como uma “grande brincadeira”, o autor listava elementos concretos para a necessidade de sua existência: justamente, a falta de liberdade vivenciada pelo próprio. O mesmo humor refinado é percebido da capa do programa[9] do espetáculo, realizada por ele (Figura1). Trata-se de uma caricatura, na qual uma estátua da liberdade é estilizada com elementos nacionais.


Figura 1
Capa do programa de “Liberdade, liberdade” temporada de São Paulo (1966).
GRUPO OPINIÃO. Liberdade, liberdade [programa do espetáculo]. Rio de Janeiro, 1965.

De acordo com Rodrigo Patto Sá Motta, “a leitura das caricaturas dispensa grandes acrobacias interpretativas, já que se trata de linguagem visual com vocação para atingir o grande público” (MOTTA, 2013, p. 66). O autor expõe que o caricaturista tem pretensões de ser compreendido pelo grande público, por isso, existe a tentativa de simplificar a linguagem do desenho. Nesse contexto, caberia ao historiador reconstruir os contextos históricos e identificar os personagens retratados.

A caricatura contida no programa da peça deixa clara a tentativa de satirizar o monumento americano e a própria democracia brasileira, através de um desenho simples e de fácil identificação. A estátua americana original está em cima de um pedestal pomposo e vestida com uma longa túnica. Em uma mão, carrega uma tocha e na outra uma tábua onde está escrito “Dia da Independência dos Estados Unidos” em algarismo romano. Na caricatura brasileira ela se encontra em cima de um praticável, seminua e com uma arma em sua cintura. Tem nas mãos um microfone e uma espécie de livro que poderia ser um calendário ou uma espécie de constituição.

Trata-se de uma obra que faz analogia com o nome da peça e ao mesmo tempo busca mostrar como a “liberdade” brasileira parecia inadequada e carregada de elementos contraditórios como armas, bebida, asas e uma faceta que tende ao cômico. A inscrição “Aqui Jazz”, faz uma referência tanto à ideia de uma lápide – uma espécie de morte da liberdade com o golpe militar – e à música pela referência ao estilo musical. Ressalte-se que o espetáculo era permeado por canções engajadas de diversas partes do mundo.

É interessante observar que a caricatura contida na divulgação do espetáculo dialoga com o contexto ditatorial do país, mas também com a própria montagem. Nesse caso, ela tinha um tema específico e conduzia o leitor a conectar os elementos da imagem com as cenas. Importante lembrar que os programas eram distribuídos na entrada do espetáculo e o humor gráfico poderia ser uma maneira de introduzir o público na discussão sobre a liberdade. Diferente de uma caricatura publicada em jornal, esta tinha uma circulação limitada aos espectadores e objetivos muito específicos na criação de sentido para a obra cênica.

3. O espetáculo na imprensa: uma análise do processo de censura através do humor gráfico

A recepção do espetáculo pela imprensa tradicional é interessante para entender a polarização contida na sociedade do pós-golpe militar. As críticas sobre o espetáculo se dividiam entre jornalistas que eram apoiadores ou contrários ao regime. O espetáculo se tornou não só um ato de resistência, mas um ato de escolha, isto é, assisti-lo significava tomar ou não partido diante da tensão política. Tal fato acabou por induzir uma tomada de posição por parte da classe artística. Elogiar a peça era indicativo de ser contrário ao regime, e criticá-la de ser a favor. Poucos foram os jornalistas que conseguiram ultrapassar a sua posição política e fazer um julgamento estético da peça. A crítica não conseguiu se distanciar da função desejada pelos autores e pelo Grupo Opinião: o ato cultural muito submetido ao ato político.

No âmbito das críticas positivas foram mencionadas a interpretação dos atores, a atuação de Paulo Autran e a participação do coro e dos músicos. Na esfera das críticas negativas, é consenso acusarem os autores de não mencionarem nada sobre o Muro de Berlim, as Revoluções Cubana ou Húngara. O jornalista Fausto Wolff, crítico do jornal Tribuna na Imprensa, faz duras críticas à montagem e afirmou que “a peça do Arena apenas não lembra os comícios do alegre comunismo-juvenil de alguns tempos, pois teve como coordenador Millôr Fernandes, cuja presença não entendi” (WOLFF, 1965, p. 22).

Essa crítica causou controvérsia no Tribuna da Imprensa, que tinha como editor Hélio Fernandes, irmão de Millôr. Na mesma página foi anexada uma “nota da direção” que afirmava: “Não concordamos com uma só palavra do que está dito acima. [...] consideramos que o direito de opinar, acaba quando o colunista contraria a realidade e comete o que se pode classificar como delito de opinião” (NOTA DA...,1965, p. 22). A nota termina fazendo o pedido para que o leitor leia a crítica, assista ao espetáculo e julgue por si mesmo.

Se no universo da crítica teatral a montagem não foi um consenso em relação a sua proposta política, no âmbito do humor gráfico – publicado também na grande imprensa –, os cartunistas estiveram mais interessados nas discussões sobre os aspectos políticos da montagem e das tentativas do governo em impedir a circulação de Liberdade, liberdade. Ainda que tratassem de temas complexos em um contexto ditatorial [censura e repressão], os cartunistas elaboraram uma abordagem humorística da questão, apresentando de maneira mais palatável ao leitor as críticas que faziam ao regime e aos civis envolvidos nas situações verídicas relacionadas ao espetáculo.

Através das caricaturas políticas veiculadas na imprensa será possível observar os problemas enfrentados pela montagem em seus primeiros meses em cartaz. A análise das charges permite compreender a visão dos cartunistas sobre a montagem, além de eventos emblemáticos relacionados à peça analisada: a censura exercida pelo governo Castelo Branco e o ataque organizado pela LIDER [Liga Democrática Radical]. Foram selecionadas duas caricaturas publicadas nos jornais Última Hora e Correio da Manhã, ambas do ano de 1965. Sobre a vertente editorial dos periódicos citados, Motta faz a seguinte reflexão: “No bloco minoritário, formado pelos diários UH e CM, temos os jornais que adotaram posições críticas mais fortes desde o início do regime militar, inclusive permeáveis a argumentos da esquerda” (MOTTA, 2013, p. 75). Os dois veículos de informação mantinham vínculos com a esquerda brasileira e não coincidentemente assumiram uma posição contrária ao regime militar brasileiro nas charges analisadas.

O jornal Última Hora foi fundado em 1951 e esteve em circulação até 1971. Foi idealizado e dirigido por Samuel Wainer e representou um marco na imprensa brasileira ao inovar em diversos aspectos técnicos e gráficos. O periódico valorizou as charges e se manteve combativo mesmo no contexto da ditadura militar brasileira.

No UH, depois do Golpe, continuaram a pontuar jornalistas e chargistas simpáticos às esquerdas, não obstante Wainer tivesse também preocupações empresariais e comerciais. [...] inicialmente com Jaguar e, depois, com Henfil e Claudius, o discurso visual de UH denunciou, de modo mais agudo do que qualquer outro jornal as prisões, o empastelamento da imprensa e as torturas nos quartéis. (MOTTA, 2013, p. 75)

Percebe-se, portanto, a importância do jornal no contexto ditatorial, que, mais do que não oferecer apoio ao regime, tentou contribuir para a sua contestação através de diferentes suportes, tanto nos textos de opinião quanto nas charges que muitas vezes tinham relação com temáticas já divulgadas na mesma edição.

A caricatura analisada faz menção ao longo e intenso processo de censura sofrido pela peça Liberdade, liberdade. Longo, por ter durado todo o tempo que esteve em cartaz e intenso pelo fato de a peça passar por uma análise da censura em todas as cidades por onde circulou. De acordo com Miliandre Garcia (2009) é possível perceber o quanto o governo do General Castelo Branco teve problemas para definir as estratégias e ações da censura, assim como para sistematizar a sua ação através de diversos órgãos. Liberdade, liberdade pode ser considerado um interessante estudo de caso porque demonstra as dificuldades enfrentadas pela censura militar no período em que ela não se encontrava centralizada. O próprio debate em torno da peça, feito pelo alto escalão governamental, permite entender que o espetáculo trouxe questões fundamentais para a discussão da censura e dos seus métodos.

Segundo Garcia (2008), Liberdade, liberdade e Opinião sempre apareciam nos argumentos a favor da centralização da censura, que demonstravam o quanto a descentralização possibilitava diversas interpretações sobre os casos. “Segundo o diretor-geral do DFSP, a nova lei acabava com essa dualidade e apoiava-se no fato de que “diversos grupos teatrais apresentam peças de caráter subversivo, como nos casos de Liberdade, Liberdade e Opinião” (GARCIA, 2008, p. 44). Diante desses fatos, pode-se inferir que esses dois espetáculos do Grupo Opinião trouxeram problemas para a censura e o regime militar. Em alguma medida, os problemas enfrentados pelo órgão censor com a peça podem ter contribuído para uma maior discussão em torno da centralização[10] da censura, que ocorreria posteriormente.

Os paradoxos da censura de Liberdade, liberdade podem ser vistos na charge intitulada “Jaguar e a Censura”, publicada no jornal Última Hora, no dia 22 de abril de 1965. O autor, Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe, cujo nome artístico tornou-se Jaguar, foi um chargista brasileiro e atuou em importantes revistas e periódicos, tais como Pif-Paf e Correio da Manhã. Foi um dos fundadores do O Pasquim e deixou sua marca através do rato Sig, um dos símbolos do jornal. De acordo com Joaquim da Fonseca, “Jaguar tem um estilo gráfico agressivo e grotesco, muito moderno em sua concepção, com traços vigorosos e linhas irregulares. Utiliza também, com frequência, colagens e montagens em seus cartuns” (FONSECA, 1999, p. 258). Alguns desses elementos podem ser percebidos na seguinte charge (Figura 2), tais como o estilo agressivo e a própria opção pelo grotesco ao abordar os censores.


Figura 2
Charge de Jaguar satirizando o pânico dos censores ao analisarem Liberdade, liberdade.
JAGUAR. Jaguar e a censura. Última Hora, Rio de Janeiro, p. 3, 22 abril 1965.

Em linhas gerais, a charge do cartunista Jaguar mostra a aflição do Serviço de Censura ao analisar a peça. É interessante observar o perfil físico que ele traça dos censores: todos usam óculos e são “carecas”. Um deles, mais deslocado do centro, segura o que parece ser a primeira página do livro “Liberdade, liberdade”. Ele lê atentamente a reportagem, enquanto os outros censores parecem não ter ação. Alguns papéis podem ser percebidos em cima da mesa com o título Liberdade, liberdade, mas não são analisados. Um dos censores olha assustado para o infinito e está visivelmente suado. Sua expressão demonstra um rosto alarmado e ele segura uma caneta que não parece ter utilidade, além de conter o seu nervosismo. Por sua vez, o censor do meio não tem ação, apenas olha amedrontado para o centro e, por fim, o censor da esquerda parece querer se pronunciar, mas tem uma expressão de dúvida, com mãos que parecem demonstrar certa ansiedade e incerteza.

No conjunto, percebe-se que o chargista tentou retratar os problemas enfrentados pela censura ao analisar a peça Liberdade, liberdade. Em última instância eram também os problemas enfrentados pelo próprio governo para sistematizar os eixos basilares da institucionalização da censura. Ainda que os censores e o governo estivessem com o poder de veto na mão, nenhum deles podia exercê-lo desconsiderando a conjuntura política. Importante lembrar que no contexto inicial da ditadura existiu uma tentativa de fomentar a imagem de um regime democrático.

É interessante reiterar que esse processo deve ter sido vivenciado não apenas pelos censores do Rio de Janeiro, mas em boa parte das cidades onde peça se apresentou. O fato de ser um espetáculo de grande sucesso, com atores famosos e nome provocativo mobilizou a imprensa local de cada cidade em que esteve em cartaz. A censura, por sua vez, necessitava responder ao texto dramatúrgico propriamente dito e à repercussão de censurá-lo ou não. Se eram efetuados cortes no material o governo era acusado de antidemocrático e desrespeitoso com a liberdade de expressão. Se o texto permanecia intacto era acusado de ser conivente com a subversão e com o comunismo, já que o Grupo Opinião era notoriamente famoso pelo fato de todos os seus integrantes serem do Partido Comunista Brasileiro. Essas nuances podem ser percebidas nas charges e indicam o potente diálogo com o contexto político da época.

A frase utilizada na charge também faz uma crítica ao regime, ainda que de forma relativamente sutil. “Liberdade, liberdade... A primeira deve ser a liberdade propriamente dita e a outra deve ser a liberdade condicional...” (JAGUAR, 1965, p. 3). Ele indica o paradoxo existente na censura no que se refere à discussão da liberdade: a primeira seria a liberdade enquanto conceito comumente aceito e a segunda, a liberdade permitida e condicionada pelo governo. Na construção da frase, a segunda se sobrepõe à primeira, tal como durante todo o regime militar, quando essa relativa liberdade dependia de leis próprias para ser entendida. Por meio dessa charge e da documentação analisada observa-se o quanto o espetáculo mobilizou debates também no campo da censura e da imprensa. A dificuldade gerada pelo fato de a peça não se enquadrar nos modelos constantemente conhecidos fez com que a sua proibição pudesse trazer problemas para a imagem do governo, que tentava negar a existência da ditadura.

A análise da caricatura revela como o contexto histórico fornecia material de criação para os cartunistas e como eles se inseriam no debate político de sua conjuntura. O estudo dessa obra de humor visual possibilita compreender, portanto, um fragmento da vida cultural da época por meio do campo teatral e caricatural e a relação de ambos com o poder político. Observar essa charge deslocada de seu contexto de produção dificilmente possibilitaria a apreensão das diversas camadas de sentido que são percebidas quando a obra é colocada em diálogo com o meio teatral, histórico e sociocultural. No entanto, para o leitor da época, bombardeado pelas notícias e repercussões do cotidiano, a compreensão provavelmente se fazia de forma clara. Ao pesquisador contemporâneo, essa apropriação carece de outros elementos para a construção de novas interpretações e a abertura para os sentidos não visíveis.

4. Ações paramilitares: repercussão na montagem e na imprensa

A segunda caricatura foi publicada no jornal Correio da Manhã, jornal carioca fundado no ano de 1901 e extinto em 1974. Destacou-se por um compromisso com a sociedade em detrimento dos partidos políticos e fez oposição[11] à maioria dos governos brasileiros. Em função desse perfil, sofreu uma série de ameaças ao longo de sua existência. De acordo com Motta, “O CM apoiou o Golpe e a derrubada de Goulart, embora fosse favorável a reformas sociais; porém, em poucos dias entrou em choque com o novo governo, discordando das medidas autoritárias”(MOTTA, 2013, p. 76). Tal posicionamento foi perceptível em sua linha editorial e permite compreender como os cartunistas tiveram relativa liberdade para tratar de temas politicamente sensíveis e direcionar críticas a temáticas relacionadas ao governo.

A charge do cartunista Fortuna revela essa relação do jornal e de duas publicações com a política da época, ao abordar a tentativa de atentado que a LIDER (Liga Democrática Radical) perpetrou na peça Liberdade, liberdade. Na verdade, atacou-se não apenas a montagem, mas principalmente o seu posicionamento político. O ataque deu-se um mês depois da estreia, no dia 28 de maio de 1965.

De acordo com João das Neves e Ferreira Gullar, que trabalhavam na produção da montagem, o ataque ocorreu sem grandes intenções de ser ocultado. As desconfianças sobre a possibilidade de um atentado começaram quando um sujeito tentou comprar vinte ingressos de uma só vez. O grupo achou a ação suspeita e acionou a polícia, porque, de acordo com João das Neves “dois bicudos se entendem” (NEVES, 2012, informação verbal). Já existia, nesse momento, desconfiança de que a polícia pudesse também estar envolvida em um possível atentado. Outra medida adotada foi acionar a imprensa para comparecer no dia da ação e em decorrência disso o evento foi muito divulgado nesses meios. Para evitar maiores danos, a produção tratou de montar alguns refletores voltados para a plateia. No caso de qualquer ação, as luzes seriam acesas.

Pouco antes do início do espetáculo, já era possível perceber uma movimentação suspeita, diante da quantidade de homens que pareciam estar armados, de acordo com João das Neves. A polícia também se descolou para o local, na RP (Rádio Patrulha) 8.130, com dois patrulheiros. No meio do espetáculo, os manifestantes tentaram tumultuar a encenação e incitar o público presente a interromper a apresentação, falando frases que associavam a peça ao comunismo. O principal mentor da ação foi o banqueiro e industrial Gianni Pareto. De acordo com a reportagem do Última Hora, Pareto se levantou gritando: “é uma peça subversiva pois não tem qualquer frase sobre o Muro de Berlim” (LIBERDADE...,1965, p. 2).

Alguns dias depois do ocorrido, ele deu uma entrevista ao Diário de Notícias, intitulada “Liberdade é falsa e comunista”. No periódico, ele explicou que sua reação ocorreu porque se tratava de “uma peça eivada de incoerências e de maciça propaganda comunista, pois o que ali se diz e se apresenta não passa de um jogo primário capcioso das ideias de liberdade sem um mínimo de validade intelectual ou filosófica” (PARETO..., 1965, p. 6). Ele alegava, assim, o seu direito de protestar contra o espetáculo, principalmente pela posição ideológica da montagem. Dessa maneira, acreditava que prestava um grande serviço ao governo e à sociedade ao tentar impedir a sua apresentação. Por esse depoimento percebe-se o efetivo clima de instabilidade política que cercou boa parte das apresentações da peça. Tanto se podia notar o clima instável que, ao final do espetáculo, a polícia revistou os suspeitos e os desarmou, já que alguns estavam com revolveres e cassetetes. Em meio à confusão, os fotógrafos do jornal Tribuna da Imprensa fotografavam o ocorrido e foram espancados pelos policiais.

No dia seguinte, a notícia foi colocada em diversos jornais e a principal acusação era de que os militares estavam envolvidos no ataque. O jornal Última Hora publicou uma matéria não assinada intitulada “Liberdade chama RP para conter a Lider”. Ela divulgava que “Os homens da LIDER, comandados pelo próprio Coronel Igrejas, e por outro senhor identificado como Coronel Osnelli Martinelli, encarregado do IPM do “Grupo dos Onze” eram número superior a cinquenta” (LIBERDADE CHAMA...,1965, p. 6). Diferentes jornais publicaram a mesma informação e o ataque acabou se tornando notoriamente conhecido como uma ação da LIDER, mas completamente vinculada às forças paramilitares do exército.

Possivelmente um dos objetivos do ataque era obrigar o governo a proibir o espetáculo, diante do risco à segurança pública, ou mesmo tentar amedrontar o público, demonstrando que frequentar o Teatro Opinião não era seguro. Passado um mês da estreia, a peça não havia sido proibida pela censura e a casa tinha lotação esgotada todas as noites. Diante desse contexto, a extrema direita buscava formas alternativas de evitar a apresentação. No entanto, a peça não foi cancelada e depois dos ataques o público continuou frequentando o Teatro Opinião. Dois dias depois da invasão, a LIDER divulgou uma nota oficial, desmentindo que tivesse relação com os acontecimentos ocorridos no Teatro Opinião. Ainda que aproveitasse para fazer uma crítica ao espetáculo e às autoridades de censura, a nota nega qualquer envolvimento no ataque.

Muito embora a LIDER não possa compreender como as autoridades de censura no Estado tenham liberado uma peça teatral nitidamente de propaganda da extrema esquerda e ofensiva aos chefes da Revolução e ao Presidente Castelo Branco, bem como atentatória aos brios das Forças Armadas Brasileiras, nada teve a ver com as manifestações assinaladas pelo noticiário de ontem. Outrossim, não é exato que seus dirigentes, nessa noite, tenham ido assistir a essa peça ou estado pelas imediações do teatro. (FERDANDES, 1965, p. 2)

A nota assume uma postura ambígua. Ao mesmo tempo em que nega o envolvimento, demonstra grande apoio aos seus realizadores. Em alguma medida, a organização assume a possibilidade de autoria, mas não afirma a sua posição. O fato é que assumindo ou não a autoria, o evento ficou associado à imagem da organização.

O artista gráfico Fortuna publicou uma obra evidenciando essa aproximação. Reginaldo José Azevedo Fortuna tem uma trajetória similar à de Jaguar e juntos participaram de alguns projetos em comum como a revista Pif-Paf e o semanário O Pasquim. Dono de um humor ácido e direto, Motta (2013) considera que ele fazia parte do grupo de artistas engajados do Correio da Manhã ao lado de Jota, Claudius, Mem de Sá, Rajão, Senna e Redí. A charge (Figura 3) foi publicada no dia 01 de junho de 1965, apenas dois dias após a LIDER divulgar a nota.


Figura 03
Charge de Fortuna satirizando o atentado da LIDER.
FORTUNA. [Charge satirizando o atentado da LIDER]. Correio da Manhã, p. 6, 01 jun. 1965.

A imagem mostra um homem que parece tentar representar a truculência de Gianni Pareto. Ele esbraveja alguma coisa, talvez fazendo menção aos ataques verbais proferidos ao espetáculo. Uma das mãos está atrás da calça, como se escondesse alguma coisa, possivelmente se tratando de uma relação com as armas que foram encontradas com o grupo. A outra mão mostra o dedo um riste indicando o desejo de obter a fala. Não é demonstrado nenhum elemento que possa remeter à imagem dos militares, estando o personagem em trajes claramente civis.

Ainda que a charge já aponte vários elementos interessantes, o que instiga é a frase abaixo da caricatura, indicando que se a peça quisesse ser representada com tranquilidade deveria fazer uma modificação da palavra liberdade para “LIDERdade”. De acordo com Motta, é bastante comum nos registros iconográficos a justaposição entre o texto e a imagem. “O texto, que pode consistir em legenda, título ou mesmo a fala dos personagens, cumpre a função de ajudar o espectador a identificar eventos ou personagens retratados. [...] eles servem de guia de leitura, dirigindo o olhar no sentido da compreensão desejada pelo autor” (MOTTA, 2006, p. 29). Nesse caso, ele é utilizado como legenda e permite que o público compreenda o evento que o cartunista retratou. Trata-se de uma clara menção ao ocorrido, indicando, em tom jocoso, que uma saída possível seria a simples troca de nome. Infere-se ainda que a charge faz referência à própria atuação despreparada da polícia e dos censores, que nem perceberiam as diferenças ideológicas se os nomes fossem parecidos.

Diante de toda a repercussão, o ataque teve um efeito contrário. A imprensa posicionou-se a favor da peça e as notícias acabaram despertando ainda mais curiosidade no público, que continuou assistindo ao espetáculo avidamente. Millôr Fernandes julgou o ato como “tipicamente nazista” e a atriz Tereza Raquel considerou a ação como “tipicamente policial”. Segundo ela “O que houve foi a demonstração do clima de arbitrariedade em que vivemos” (LIBERDADE..., 1965c, p. 4). O atentado promoveu ainda mais o espetáculo, os integrantes da montagem tiveram mais espaço na imprensa, além de demonstrar como a liberdade não era a palavra de ordem por parte do governo e dos grupos paramilitares. Tal evento serviu para fazer críticas às ações truculentas da polícia, assim como indicar a necessidade de uma peça como Liberdade, liberdade diante do contexto político do país.

Observa-se que a crítica contida na charge tem grande relação com o conteúdo de outras notícias vinculadas na imprensa. Mesmo não isentando a originalidade do cartunista Fortuna é importante perceber que nesse caso, cartunista e jornal assumem uma posição complementar. Dificilmente tal caricatura seria vinculada aos periódicos mais próximos do regime militar, demonstrando que a possibilidade de crítica era também privilégio de poucos meios de comunicação.

Considerações finais

De modo geral, buscou-se demonstrar como as fontes caricaturais podem contribuir para uma maior compreensão dos processos históricos. A utilização das caricaturas, enquanto objeto e fonte, permitiu demonstrar algumas aproximações do campo teatral com o mundo do humor gráfico e o papel da censura, assim como fomentar um olhar sobre as lutas contra a ditadura que foram realizadas por diferentes setores culturais. Diferentes grupos artísticos se uniram na tentava de denunciar as arbitrariedades do regime, configurando uma importante frente de resistência. No caso da peça Liberdade, liberdade, que teve grande repercussão da imprensa, tratou-se de um evento polifônico, com ressonância em diferentes frentes.

A presença de Millôr Fernandes como autor do espetáculo parece ter sido o elemento que conectou esses diferentes grupos, além de possibilitar uma maior proximidade com o humor. Na análise dos textos do programa e da própria dramaturgia é perceptível o quanto a sua participação incorporou elementos do riso e do cômico. A caricatura analisada apenas dialoga com esse cenário que já estava colocado na própria estética da peça. Em meio a um texto denso, o humor tinha a função de proporcionar um respiro em meio ao contexto ditatorial.

A atuação da imprensa, por sua vez, permitiu que o espetáculo ganhasse projeção e público. Ao divulgar o espetáculo através de críticas, entrevistas e charges, ela atuou como amplificadora da mensagem proposta pela peça: a denúncia do regime militar recém-instalado. A ação da censura e os ataques paramilitares retratados nas charges foram eventos que reiteravam a necessidade de uma montagem que falasse sobre a liberdade em um momento em que ela estava ameaça.

A partir dessa análise buscou-se exemplificar a potencialidade de tais fontes, as relações entre o campo político e artístico percebido através da imprensa, a criticidade percebida nas charges analisadas e a possibilidade de intervenção na política através do humor. Com a ampliação dos temas e das fontes sobre a ditadura militar pretendeu-se demonstrar mais uma possibilidade de análise e interpretação das ações de resistência do campo cultural contra o regime.

Material suplementario
Referências
ARAUJO, Maria P. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na década de 1970. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2000.
CONY, Carlos Heitor. O ato e o fato. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
FERNANDES, Hélio. Ur-gente. Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, p. 2, 31 maio 1965.
FONSECA, Joaquim da. Caricatura: a imagem gráfica do humor. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999.
FORTUNA. [Charge satirizando o atentado da LIDER]. Correio da Manhã, p. 6, 01 jun. 1965.
FREDERICO, Celso. A política cultural dos comunistas. In: MORAES, João Quartim de Morais (org.). História do marxismo no Brasil: vol. III. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. p. 337-372.
GARCIA, Miliandre. Ou vocês mudam, ou acabam: teatro e política na ditadura militar. 2008. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008.
GARCIA, Miliandre. A censura de costumes no Brasil: da institucionalização da censura teatral no século XIX a extinção da censura da constituição de 1988. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2009. 77 p. Disponível em: http://www.bn.br/portal/arquivos/pdf/miliandreGarcia.pdf. Acesso em: 19 mar. 2022.
GARCIA, Miliandre. Quando a moral e a política se encontram: a centralização da censura de diversões públicas e a prática da censura política na transição dos anos 1960 para os 1970. Dimensões, Vitória, v. 32, p. 79-110, 2014.
GRUPO OPINIÃO. Liberdade, liberdade [programa do espetáculo]. Rio de Janeiro, 1965.
GULLAR, Ferreira. [Entrevista cedida a] Natália Batista. Rio de Janeiro (RJ), 13 jul. 2012.
JAGUAR. Jaguar e a censura. Última Hora, Rio de Janeiro, p. 3, 22 abril 1965.
LIBERDADE chama RP para conter a Lider. Última Hora, Rio de Janeiro, p. 5, 29 maio 1965a.
LIBERDADE não cedeu a show de baderna. Última Hora, Rio de Janeiro, p. 2, 31 maio 1965b.
LIBERDADE sobrevive. Última Hora, Rio de Janeiro, p. 4, 31 maio 1965c
MORAES, D. Vianinha: cumplice da paixão. Rio de Janeiro: Record, 2000.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Jango e o golpe de 1964 na caricatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A ditadura nas representações verbais e visuais da grande imprensa (1964-69). Topoi, Rio de Janeiro, v. 14, p. 62-85, 2013.
NAPOLITANO, Marcos. Coração civil: arte, resistência e lutas culturais durante o regime militar brasileiro (1964-1980). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2011.
NAPOLITANO, Marcos. Coração civil: a vida cultural brasileira sob o regime militar (1964-1985): ensaio histórico. São Paulo: Intermeios, 2017.
NEVES, João das. [Entrevista cedida a] Natália Batista. Lagoa Santa (MG), 09 maio. 2012.
NOTA da direção. Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, p. 3, 24 abr. 1965.
PARETO: “Liberdade” é falsa e comunista. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, p. 6, 4 jun. 1965.
SIQUEIRA, José Rubens. Viver de teatro: uma biografia de Flávio Rangel. São Paulo: Nova Alexandria, 1995. 383 p.
THOMPSOM, Edward Palmer. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
WOLFF, Fausto. Liberdade Liberdade. Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, p. 3, 24 abr. 1965.
Notas
Notas
[1] Os produtos culturais são entendidos como fruto de um processo de desenvolvimento de obras com forte carga criativa e realizadas por artistas ou coletivos.
[2] O conceito de resistência tem sido constantemente revisitado e sua gênese remonta principalmente ao contexto da Segunda Guerra Mundial, nas lutas travadas contra o Nazismo e o Fascismo. De acordo com Maria Paula Araújo, que refletiu sobre a resistência de maneira mais ampla, “toda luta de resistência se faz, em primeira instância, em defesa da legalidade, da democracia, e dos direitos humanos. Ela é uma forma de luta típica dos momentos de quebra de legalidade. Quem resiste o faz em nome de determinados valores que o Ocidente consagrou como universais” (ARAÚJO, 2000, p. 123). Marcos Napolitano (2017) também tem discutido a questão com foco na resistência ao regime militar brasileiro. O historiador buscou demonstrar principalmente os problemas da homogeneização da noção de resistência. Para ele, o espaço da resistência era plural, não sendo possível uma visão unidimensional e sem contradições. De acordo com sua perspectiva, “havia quatro grandes grupos de atores nesta arena político-cultural (além do governo militar e suas instituições que, obviamente, não faziam parte da ‘resistência’ embora fossem permeáveis a certos atores e obras dela oriundos: (i) os liberais, (ii) os comunistas (iii) os grupos contraculturais e (iv) a nova esquerda surgida nos anos 1970” (NAPOLITANO, 2017, p. 23). A montagem Liberdade, liberdade se encontrava dentro do campo da resistência cultural ao regime e dialogou com tendências do grupo dos comunistas e liberais.
[3] Partilha-se da mesma posição de Rodrigo Patto Sá Motta, que compreende o conceito de caricatura enquanto “designação genérica para as diversas formas de humor gráfico” (MOTTA, 2006, p. 15).
[4] BATISTA, Natalia. Nos palcos da história: teatro, política e 'Liberdade, liberdade'. São Paulo: Letra & Voz, 2017.
[5] KÜNER, M.H; Rocha; H. Para ter opinião. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
[6] De acordo com Napolitano (2011, p. 2), o frentismo cultural vinculado pelo PCB foi apropriado dos textos de George Lukács e se construiu sobre três pilares básicos: “a) ocupação dos circuitos mercantilizados e institucionais da cultura; b) busca de uma estética nacional-popular; c) afirmação do intelectual como arauto da sociedade civil e da nação”. Tais concepções podem ser percebidas tanto na atuação do Grupo Opinião como na peça Liberdade, liberdade.
[7] Ao analisar as denominações de nacional e popular, Frederico faz uma análise dos conceitos em consonância com a atuação política e cultural do PCB. O autor acredita que os comunistas brasileiros romperam com a tradição zdanovista ao assumirem uma arte de caráter nacional e popular. No pré-64, o nacional, correlato da luta anti-imperialista, reivindicava a afirmação de uma arte não alienada que refletisse a realidade brasileira que se queria conhecer para transformar. O popular, por sua vez, acena para a democratização da cultura e a consequente crítica à nossa tradição elitista de uma arte concebida como “ornamento”, como “intimismo” à sombra do poder (FREDERICO, 2014, p. 339). Nessa perspectiva, pode-se entender que a concepção de nacional-popular vinculada pelos artistas comunistas, tinha como eixo condutor a valorização do universal e do particular, a democratização da cultura brasileira e a realização de obras artísticas que tentassem dialogar com os problemas sociais, além de uma estética realista que pudesse discutir os conflitos da sociedade brasileira daquele contexto. Para Napolitano, “a questão do ‘nacional-popular’ no Brasil foi, antes de tudo, uma ideia força que fez o antigo nacionalismo conservador mesclar-se a valores políticos de esquerda na busca de uma expressão cultural e estética que se convertesse em arma na luta pela modernização e contra o ‘imperialismo’” (NAPOLITANO, 2011, p. 10).
[8] Os programas são documentos fundamentais para a compreensão de peças teatrais. Eles trazem dados importantes sobre os idealizadores do espetáculo e seus objetivos com a montagem de determinada peça. Geralmente, o programa contém informações básicas da montagem como ficha técnica, local de apresentação, além de textos dos integrantes da equipe. O programa de Liberdade, liberdade foi produzido pelo Grupo Opinião e tem na capa a caricatura de Millôr Fernandes. Em seu interior contém textos dos autores, fotografias do espetáculo e ficha técnica da montagem.
[9] Os programas são documentos fundamentais para a compreensão de peças teatrais. Eles trazem dados importantes sobre os idealizadores do espetáculo e seus objetivos com a montagem de determinada peça. Geralmente, o programa contém informações básicas da montagem como ficha técnica, local de apresentação, além de textos dos integrantes da equipe. O programa de Liberdade, liberdade tem na capa a caricatura de Millôr Fernandes, e em seu interior textos dos autores, fotografias do espetáculo e ficha técnica da montagem.
[10] De acordo com Miliandre Garcia, o tema da centralização da censura estava em pauta no governo antes mesmo do golpe civil-militar de 1964. No entanto, apenas na Constituição de 1967 foi definido que a censura de diversões públicas ficaria a cargo da União. A partir daquele momento, peças teatrais, filmes, letras musicais, além de programas de rádio e televisão deveriam ser enviados a Brasília. “Sem restrições constitucionais, o governo federal assumia então o controle nacional das diversões públicas. A censura da imprensa, por sua vez, permanecia livre do controle do Estado” (GARCIA, 2014, p. 85). Essa modificação alterou tanto a atividade censória quanto a relação dos artistas com o órgão.
[11] Embora o teatro tenha sido um dos primeiros polos de resistência cultural é consenso que umas das primeiras ações de resistência ao golpe militar foi realizada nas páginas do jornal Correio da Manhã, através das crônicas publicadas na coluna “Da arte de falar mal”, de Carlos Heitor Cony. Os textos eram bastante críticos ao regime e se insurgiam contra a nova ordem que havia se instaurado no comando do país com o golpe de 1964. Ver: CONY, Carlos Heitor. O ato e o fato. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

Figura 1
Capa do programa de “Liberdade, liberdade” temporada de São Paulo (1966).
GRUPO OPINIÃO. Liberdade, liberdade [programa do espetáculo]. Rio de Janeiro, 1965.

Figura 2
Charge de Jaguar satirizando o pânico dos censores ao analisarem Liberdade, liberdade.
JAGUAR. Jaguar e a censura. Última Hora, Rio de Janeiro, p. 3, 22 abril 1965.

Figura 03
Charge de Fortuna satirizando o atentado da LIDER.
FORTUNA. [Charge satirizando o atentado da LIDER]. Correio da Manhã, p. 6, 01 jun. 1965.
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