Seção Temática - Os desafios de ensinar e aprender história no tempo presente
Recepción: 13 Marzo 2021
Aprobación: 16 Agosto 2022
DOI: https://doi.org/10.5965/2175180314372022e0203
Resumo: Este trabalho traz à discussão algumas das experiências vivenciadas na disciplina de Estágio Curricular Supervisionado quando um grupo de estagiários/as ministrou aulas cujo eixo temático foi a História Indígena. O conjunto de fontes a ser analisado é composto por projetos de ensino e pesquisa, planos de aula, relatórios e artigos escritos pelos grupos. As aulas foram ministradas para duas turmas do 6º ano do Colégio de Aplicação da UFSC em 2019. A questão central da presente investigação foi suscitada a partir da percepção do grande interesse do grupo de estagiários/as frente ao tema e ao compromisso do grupo com o desenvolvimento dessa temática para o aprendizado histórico das turmas. Assim, algumas perguntas movimentam a escrita deste texto: que escolhas foram feitas no momento de preparação dessas aulas? Que materiais foram selecionados? E por fim: o que se pode dizer sobre a tarefa de ensinar História Indígena para estudantes da Educação Básica? O ensino de História Indígena na Educação Básica tem sido uma obrigatoriedade desde o estabelecimento da Lei 11.645/08, e também é obrigatória a sua presença em livros didáticos. No entanto, entre a obrigatoriedade da lei e a vivência nas salas de aula, temos um percurso de muitos desafios e enfrentamentos. O presente estudo, portanto, traz como objetivo perceber as tensões presentes na realização dos planos e das aulas desse grupo de estagiários/as. Além disso, tem o interesse de apontar as potencialidades desse movimento na formação de professores comprometidos com temáticas relativas à diversidade e com foco em currículos mais plurais.
Palavras-chave: ensino de história, formação docente, estágio curricular, Lei 11.645/08.
Abstract: This paper sheds light upon some experiences occurred in a Practicum course in 2019, when a group of teachers-in-training taught classes on Indigenous History. The sources to be analyzed are comprised of teaching and research projects, lesson plans, as well as reports and articles written by the student-teachers. Classes were taught to 6th-grade students at Colégio de Aplicação – UFSC. The central issue guiding this investigation emerged from a perceived interest from the group of teachers-in-training towards the topic, and their commitment to developing the topic, with the objective to foster historical learning in their classrooms. Thus, some questions have moved this paper into motion. What choices were made when preparing these lessons? What materials were selected? And, lastly, what can be said on the task of teaching Indigenous History for Basic Education students? The teaching of Indigenous History in basic education has been mandatory since Bill 11,645/08 was passed, and its presence is also mandatory in textbooks. However, between the bill of law and the classroom there is a path beset with struggles. Therefore, this study aims at perceiving tensions regarding lesson planning and teaching by this group of teachers-in-training, as well as at pointing out potentials in this movement towards teacher education with a commitment to topics related to diversity, focused on greater plurality in curricula.
Keywords: history teaching, teacher education, practicum, Bill 11,645/08.
Considerações iniciais
Fazer-se professor ou professora, sabe-se, é um processo contínuo e que, portanto, atravessa a profissão em seus diferentes momentos e experiências. Não há um momento mais fácil ou mais difícil e certamente também não há qualquer constância nesse movimento. No entanto, entre os tantos caminhos desse processo, aquele de seu início pode ser descrito como um dos mais inquietantes e por que não dizer, marcante! Trata-se do momento de realização do estágio – quando discentes em processo de finalização de seus cursos de licenciaturas têm como tarefa assumir a regência de uma turma na Educação Básica.
Ministrando as disciplinas de Estágio Curricular Supervisionado, tenho vivenciado junto aos estagiários/as do curso de História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) experiências sobre as quais tenho grande interesse como pesquisadora[1] e como professora formadora de professores. É impactante olhar para esses/as “estreantes” e ver como se portam, como falam e respondem ao grupo de estudantes, como selecionam os conteúdos, enfim, como produzem e realizam suas aulas. Este texto é resultado de um dos encontros que o estágio me proporcionou a partir da oportunidade de olhar para as escolhas feitas por um grupo de discentes quando receberam como tema de suas aulas a História Indígena. É sobre esse encontro e essa temática que falaremos aqui.
O ensino de temática da História Indígena tornou-se obrigatório em estabelecimentos públicos e privados de ensino fundamental e médio a partir de lei sancionada em 2008. Trata-se da Lei 11.645 que, por sua vez, alterou e se somou ao conteúdo da Lei 10.639/03, sancionada para inserção de conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileiras. Depois das referidas leis, outros dispositivos legais foram apresentados como forma de dar aplicabilidade a elas. No caso, da temática indígena trata-se das Diretrizes Operacionais para a Implementação da História e das Culturas dos Povos Indígenas na Educação Básica cujo parecer foi aprovado pelo Conselho Nacional de Educação/Câmera de Educação Básica (CNE/CEB) em 2015, com despacho pelo Ministério da Educação em 2016. Importante lembrar que as leis e suas diretrizes são resultados de intensa luta dos movimentos negro e indígena no sentido de promover o reconhecimento e a inserção de suas histórias nos currículos escolares brasileiros (GOMES, 2012; MORTARI, 2015; ROMÃO, 2014). Uma luta que se fez (e ainda se faz) necessária considerando a invisibilidades conferida a esses grupos nos movimentos de escrita da História e de consequente construção curricular da disciplina na educação básica.
O tom eurocêntrico conferido a nossa narrativa histórica e aos currículos tem sido alvo de debates e questionamentos (PEREIRA; ROZA, 2012). Notadamente porque essa abordagem, ao privilegiar o elemento colonizador – branco –, consequentemente legou a outros personagens de nossa história posições hierarquicamente inferiores. Como nos chama atenção Edson Kayapó, doutor em educação: “A escola e seus currículos têm pactuado com a reprodução de lacunas históricas e a propagação de preconceito sobre os povos indígenas, estando alinhados a interesses de grupos hegemônicos de perspectivas colonizadora.” (2019, p. 3). Ou seja, privilegiamos a narrativa sobre os brancos, negligenciamos a participação de povos indígenas na composição de história, assim como negamos o enfrentamento de temas traumáticos como a escravidão dos povos africanos.
O movimento instituído com a homologação das leis 10.639/03 e 11.645/08 e de suas diretrizes é, portanto, um enfretamento às hierarquias instituídas no fazer curricular no Brasil. É também um compromisso por inserir no espaço escolar temáticas que são necessárias ao debate sobre cidadania e respeito à diversidade da população brasileira. Falamos aqui de currículos plurais e diversos que permitam um conhecimento mais amplo de nossa história, de seus personagens e de um consequente movimento de embate às situações de estereótipos e preconceitos sofridos por populações indígenas e negras no Brasil.
Abordando o assunto em um Dossiê publicado há exatos 10 anos na Revista História Hoje, Circe Bittencourt e Maria Bergamaschi informam que a temática em discussão naquele volume se devia em grande parte à lei aprovada havia alguns poucos anos. O que para elas, tratava-se de colocar em debate nos cursos de formação de professores e na educação básica “o diálogo étnico-cultural respeitoso embasado no reconhecimento dos saberes, histórias, culturas e modos de vida próprios dos povos originários” (BITTENCOURT; BERGAMASCHI, 2012, p. 13-14). Ainda de acordo com as referidas pesquisadoras, uma contribuição importante “para superar o silêncio e os estereótipos que em geral acompanham a temática indígena nos espaços escolares” (BITTENCOURT; BERGAMASCHI, 2012, p. 13-14). Importante dizer que à época da escrita do texto, as autoras localizavam um movimento de ampliação nos estudos históricos sobre a temática indígena e de renovação de materiais didáticos. No entanto, concluíam que ainda era um contexto em que os professores tinham acesso a poucos estudos e que ainda havia muito a ser feito, sobretudo diante da diversidade de povos e de suas histórias.
Passados tantos anos das homologações das leis 10.639 e 11.645, temos muito a avaliar. De um lado, conquistas que podem ser percebidas pela presença da temática nas salas de aulas, pelo interesse de professoras e professores; por outro, muitas e diferentes tensões para sua aplicação e para uma ampliação de espaços possíveis para estudos dessas temáticas. Não cabe nessa discussão fazer avaliações sobre como as escolas ou professores e professoras têm abordado a temática, visto não ser esse o propósito deste texto.
No entanto, vale lembrar que é necessário um investimento na formação docente no sentido de uma apropriação dessa temática que é absolutamente relevante para a compreensão de nossa História. Sobre esse tópico, o texto das Diretrizes indica que a inserção dos conteúdos referentes a essa temática tem rebatimentos na Educação Superior, notadamente em cursos destinados à formação de professores e demais profissionais da educação (BRASIL, 2015, p. 4). Ele ainda destaca o papel desempenhado pelas Instituições de Educação Superior ao desenvolverem ações no campo de pesquisa, produção de materiais didáticos e formação (BRASIL, 2015, p. 6).
Como já mencionado, o presente artigo apresenta um estudo pontual sobre uma experiencia de estágio que teve como recorte a História Indígena. Entre outras questões, pretende-se aqui refletir como a formação docente pode ser um espaço importante para a construção de professores e professoras comprometidos com a referida questão. Algo que certamente contribuirá para a presença de tais reflexões em diferentes situações de Ensino de História na Educação Básica.
Assim, cabe informar que a análise feita aqui será construída a partir da observação dos Projetos de pesquisa[2] e dos Relatórios Finais de estágio[3] construídos por dois grupos de discentes. O primeiro é um trio (a quem vou me referir como Grupo 1) e cujos integrantes serão indicados como Integrante A-G1; Integrante B-G1 e Integrante C-G1 e o outro é uma dupla (a quem vou me referir como Grupo 2), sendo composto por Integrante A-G2 e Integrante B-G2. Os dois grupos realizaram o Estágio Curricular Supervisionado sob minha orientação no ano de 2019[4] no Colégio de Aplicação CA, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em duas turmas do 6º ano que tinham como professora Dayanne Schetz.
Cada um dos materiais foi estudado como parte do processo de estágio em suas especificidades e também como conjunto. Ao longo da discussão do artigo esses estudos serão apresentados, mas cabe adiantar que, observando cada um dos documentos, temos uma amostra diversificada de questões. Nos projetos podemos conhecer as intenções dos grupos que elegeram seus recortes dentro da temática. Também podemos perceber a construção dos objetos e objetivos de ensino, bem como quais os referenciais bibliográficos que selecionaram. Por sua vez, nos planos de aula, podemos acompanhar como as intenções indicadas nos projetos chegaram às salas de aulas. Também é possível acompanhar o processo de seleção e construção dos materiais didáticos e de fontes a serem levadas para as aulas. Já nos artigos, tem-se a possibilidade de conhecer que questões os/as professores/as em formação buscaram investigar em suas práticas e como refletiram sobre elas. Nesse conjunto de documentos, procurarei perceber como os grupos dialogaram com as fontes estudadas, que elementos destacaram nos materiais produzidos, que questões propuseram aos estudantes que discutem. Enfim: tratarei de analisar os processos de escolhas que indicam suas intenções didáticas em cada movimento do estágio.
Trata-se aqui de uma amostra de pesquisa que tem certamente seus limites quantitativos. Quando elegi como tema tais relatórios, o fiz por perceber uma série de questões que julgo necessárias justificar ainda nas páginas iniciais deste artigo. Entre outras questões: foi uma primeira experiência em que recebemos a temática da História Indígena como um recorte para o estágio; também porque houve um grande entusiasmo por parte do grupo em relação ao tema, bem como uma forte empatia com o mesmo. E, por fim, mas não menos importante, a apropriação dos estudos feitos pelos grupos da disciplina de História Indígena[5] que cursaram. Todos esses elementos evidenciaram uma questão sobre a qual o artigo pretende se debruçar com uma intenção: a construção de uma sensibilidade para o ensino de História Indígena que passa pelo estágio e pelos cursos de graduação como espaços de referência e potencialidade.
História Indígena e ensino de História: aproximações e apropriações nos Projetos de Estágio
É chegada a hora de lidar com a herança que relega os indígenas a um passado distante, como seres praticamente sem história e sem futuro. Eles foram e são sujeitos da história do Brasil. (WITTMANN, 2015. p. 17)
A compreensão de que os povos indígenas têm história e experiências no passado e no presente que precisam ser conhecidas e narradas é uma perspectiva historiográfica recente. Na chamada Nova História Indígena é importante partir da perspectiva dos próprios indígenas e de seus conhecimentos e relatos, rompendo, portanto, com o movimento de escrita localizado tão somente em poder dos brancos. Fato esse que produziu majoritariamente textos que legavam os povos indígenas e suas culturas como pertences somente ao passado e que não apenas negavam a sua historicidade mas também diminuíam a força de seus relatos como algo “menor” se comparado, por exemplo a fontes escritas. Conforme a historiadora Luísa Wittmann:
Em vez de difundir a ideia comum de cultura como um sistema rígido, é interessante percebê-la na vivacidade das relações sociais, que, em um dinamismo constante, apresentam trocas, conflitos e negociações, acomodações, ressignificações. [...] o que importa é compreender o indígena como sujeito histórico que age conforme sua leitura de mundo, baseada tanto em códigos socioculturais quanto nas experiências desencadeadas pelo contato. (WITTMANN, 2015, p.17)
É essa perspectiva que está presente nos eixos teóricos e metodológicos dos projetos de estágio criados pelos grupos aqui referidos. E essa escolha pode ser percebida em diferentes etapas do trabalho (como será visto ao longo das próximas páginas), seja no momento de definir a questão central do estudo, seja no momento de selecionar e produzir material didático para as turmas. Chamarei atenção para isso na sequência do texto. Para iniciar, é importante indicar como cada grupo construiu as bases de seus projetos.
O Grupo 1 apresentou o projeto intitulado “Povos indígenas na contemporaneidade: um outro olhar para o Ensino da História e da cultura Indígena”. O trecho a seguir, retirado da introdução, ilustra a intenção inicial do grupo: partir do presente e das narrativas e experiências indígenas para a construção do processo educativo:
[...] optamos por trabalhar, com o ensino de história e da cultura indígena a partir da perspectiva dos próprios indígenas, incorporando em nossas aulas suas narrativas e conceitos evidenciando assim a agência e atuação desses sujeitos na História. (PROJETO DE ENSINO E PESQUISA - GRUPO 1, 2019)
O Grupo 2 tem projeto cujo título é “Conhecer para valorizar: Povos indígenas e a turma 6º C” em que a abordagem é apresentada na seguinte frase: “o objetivo de fazer-se conhecer a história dos povos indígenas no Brasil sob uma perspectiva de reconhecimento e positivação” (PROJETO DE ESTÁGIO - GRUPO 2, 2019).
Os trechos citados e, ainda, os títulos escolhidos pelos grupos dão uma primeira dimensão sobre o processo: ambos partiram da ideia de que é importante conhecer os povos indígenas e que esse processo deve considerar a sua perspectiva no processo de estudo, ressaltando assim o seu protagonismo. Ou seja, entenderam e optaram pela perspectiva da Nova História Indígena.
A respeito dessa perspectiva cabe fazer referência ao fato de que os/as discentes cujos trabalhos estão em análise cursaram História Indígena como disciplina obrigatória do curso e é, portanto, perceptível que essa formação teve impacto direito nas escolhas feitas no processo de estágio. Assim, ideias ou ainda intenções de “conhecer”, “valorizar”, “apresentar” a diversidade dos povos indígenas mobilizaram ações iniciais no processo de ensino dos grupos, considerando, portanto, as prerrogativas indicadas nas Diretrizes Curriculares para o tema e o movimento da História Indígena como campo de estudos. Como já mencionado, sabemos que a Nova História Indígena busca colocar em cena outras interpretações sobre os povos indígenas reconhecendo sua perspectiva e historicidade.
Como tratamos aqui de refletir sobre ações vividas no Estágio faz-se necessário apontar também alguns dos fundamentos teóricos e metodológicos desenvolvidos com os grupos de estudantes a partir das leituras sobre ensino de História e do processo de desenvolvimento do aprendizado histórico feitos nas disciplinas de Estágio. Além disso, analisar as aproximações dessas leituras com os eixos da Nova História Indígena como forma de perceber como os dois campos se encontraram nas práticas aqui analisadas.
Um eixo importante nas disciplinas de estágio do nosso curso têm sido as pesquisas desenvolvidas a partir da Didática da História (BERGMANN, 1990; RUSEN 2006) e da Educação Histórica (BARCA, 2001; CAINELLI, 2009). Mais especificamente acompanhando a ideia de que o aprendizado histórico passa pelo desenvolvimento das ideias históricas elaboradas a partir das análises de documentos históricos diversos (escritos ou não escritos), com a construção de inferências históricas e, ainda, partindo do acervo histórico-cultural dos sujeitos envolvidos. Nessa perspectiva, aprender História deixa de ser compreendido como um ato de memorizar datas e fatos para ser vivenciado com um processo de leitura crítica dos acontecimentos e das questões estudados. Aspecto esse que prescinde, repito, da fundamentação das fontes para a construção dos argumentos e que deve dialogar com a experiencia sociocultural dos/as estudantes e com a compreensão desses sobre a história e os fatos históricos.
Os apontamentos de Peter Lee a esse respeito são oportunos. “O conhecimento escolar do passado e atividades estimulantes em sala de aula são inúteis se estiverem voltadas somente à execução de ideias [...]” (LEE, 2006, p. 136). E ainda “estão simplesmente condenadas a falhar se não tomarem como referência os pré-conceitos que os alunos trazem para suas aulas de história” (LEE, 2006, p. 136). Ainda de acordo com esse pesquisador, aprender História envolve a mobilização do passado prático – aquele onde estão presentes os eventos, os personagens e heróis –, que é usado pelo sacerdote, pelo político, pelo advogado; que aparece em lições exemplares etc. (LEE, 2006, 2011). Sendo esse envolvimento um processo de conhecimento e de diferenciação. Afinal, no aprendizado de História é importante que haja um compromisso de indagação (LEE, 2006, 2011).
Assim, uma etapa importante do estágio é a investigação feita antes do desenvolvimento do projeto quando incentivamos os/as discentes a conhecerem os saberes prévios do grupo de estudantes a respeito dos conteúdos que serão estudados. Desse modo, antes de iniciarem o processo de aulas (ou seja, durante o período de observação das turmas na escola), os grupos fizeram um questionário para conhecê-los, e aos seus conhecimentos prévios, a respeito da temática a ser estudada.
Nesse caso, a investigação foi feita através de questionário no qual foram formuladas perguntas sobre História Indígena, sobre situações envolvendo povos indígenas e preconceito, entre outras questões. O Grupo 1 entendeu que: “[...] se faz fundamental trabalhar com os alunos fenômenos presentes em seu cotidiano, como o caso do preconceito e da marginalização das populações indígenas em Santa Catarina [...]” (RELATÓRIO FINAL DE ESTÁGIO - GRUPO 1, 2019). Por sua vez, o Grupo 2 informou:
Dos 21 alunos perguntados sobre a importância da história indígena, praticamente metade da turma (11 alunos) a considerou importante, [...] dentre as justificativas apareceram respostas como a “importância para a nossa história”, “saber como os povos indígenas estão na atualidade” e “diminuir o preconceito”.
Percebemos algumas noções preconcebidas a respeito dos povos indígenas [...] pudemos concluir que para além de trabalhar sob uma perspectiva de protagonismo, antes precisamos desconstruir alguns estereótipos consolidados no imaginário comum da turma.
Percebemos que existe uma tendência em identificar a presença indígena no passado [...]. (RELATÓRIO FINAL DE ESTÁGIO - GRUPO 2. 2019)
Como é possível ler nos trechos selecionados, a investigação dos grupos os fez conhecer situações como a existência de ideias pré-concebidas sobre os povos indígenas e também a “localização” dos mesmos como povos do passado. Questões que, entendemos, fazem parte de um processo historiográfico e da história escolar que se pautou por narrativas que justamente naturalizaram os povos indígenas dentro dessa visão estereotipada e estagnada. A esse respeito, o historiador Giovani José da Silva reflete:
As questões indígenas nas escolas brasileiras ainda são tratadas na maioria das vezes, de forma estereotipada e folclórica. [...] trata-se o indígena com um silêncio perturbador, e o máximo de contato que adolescentes e jovens terão a respeito do tema será por meio da mídia, especialmente da televisão. (SILVA, 2015, p. 27)
Para atuar nessas questões, os grupos entenderam que seria necessário montar seus projetos contemplando reflexões sobre os povos indígenas sob a perspectiva do Brasil contemporâneo, e principalmente, sob uma ótica de desconstrução de estereótipos e construção de representações/protagonismo.
É importante reforçar que estar atento/a aos saberes prévios dos/as estudantes é uma questão fundamental no processo de aprendizado histórico, considerando que este é o resultado de um processo de formação de sentido em que é essencial que as experiências dos/as estudantes sejam conhecidas e mobilizadas. Assim, quando os grupos de estagiários se voltam para os saberes prévios das turmas para as quais ministram aulas de História e reconhecem a necessidade de intervir, no sentido de promover debates diferentes daqueles que os/as estudantes conheceram até então, temos um importante movimento. Não se trata de corrigir erros nas ideias do grupo de estudantes, mas sim de trazer outras informações imprimindo assim novos significados ao tema.
Como já mencionado, a história contada sobre os povos indígenas assinalou diferentes preconceitos sobre esses povos; os produtos midiáticos igualmente trazem essas visões e, assim, não é “estranho” que jovens estudantes falem de “índios” de modo generalizado ou marcados por ideias que os relacionam unicamente ao passado ou a uma vida selvagem. Para aprender outras histórias, novos movimentos precisam ser feitos. E, como o subtítulo dessa seção indica, apropriações e aproximações foram necessárias para que os/as professores/as em formação pudessem se instrumentalizar para ministrar aulas que promovesses os objetivos estabelecidos pela Lei 11.645, pelas Diretrizes e pela Nova História Indígena. Esse processo de formação foi crucial pois possibilitou aos grupos pensar e propor atividades significativas que reverberaram, por sua vez, no processo de formação dos/as estudantes da Educação Básica, como abordaremos no próximo item que analisa os planos de aula e as atividades realizadas.
História Indígena na sala de aula: planos, material didático e atividades
Para perceber os processos de ensino e pesquisa dos grupos, percorri[6] os relatórios, analisando cada um dos componentes apresentados e anotando impressões sobre alguns pontos específicos. A saber: a montagem e os objetivos dos planos de aula, as metodologias escolhidas, as atividades realizadas, os diferentes tipos de documentos selecionados e ainda: como perceberam todo esse movimento como pesquisadores/as em seus artigos científicos e no relatório final do estágio. Trata-se aqui de perceber os movimentos de realizar o que os projetos apresentaram como intenções e estudar o impacto das escolhas feitas no grupo de professores em formação e dos estudantes da educação básica.
Uma observação geral dos dados coletados junto ao material do Grupo 1 indica que ele seguiu o planejado no projeto cujo objetivo principal era partir dos povos indígenas na contemporaneidade abordando questões diversas como aspectos culturais, atuação artísticas e esportivas, atuação na política, entre outras - lançando sobre elas, o olhar centrado na Nova História Indígena. Esse grupo planejou seus objetivos sempre considerando que tais temas seriam abordados através de fontes e linguagens com protagonismo dos povos indígenas. Assim, foram utilizados como material das aulas: trechos de documentários e filmes que os tinham os povos indígenas como narradores e que falam de temas como: futebol, infância, costumes, entre outros; excertos de contos e livros também escritos por indígenas, falas ou material de sites; bem como também foram selecionados referenciais bibliográficos que o grupo utilizou para produzir textos direcionados aos estudantes.
Na análise construída a partir do material do Grupo 2 tem-se um caminho semelhante. No que se refere ao material selecionado, a dupla tratou de listar produções com potencial de evidenciar a diversidade dos povos indígenas trazendo-os como protagonistas dessas narrativas. Animações, trechos de documentários, músicas e produções literárias foram mobilizados como material didático de aulas que foram construídas para suscitar saberes mais diversos no grupo de estudantes do 6º ano.
Como forma de ilustrar e refletir sobre o processo de construção de atividades para o grupo de estudantes, cabe citar algumas das atividades desenvolvidas pelos grupos e os materiais selecionadas para as mesmas.
Nas primeiras semanas, ambos os grupos apontaram como objetivos de suas aulas os conhecimentos da pluralidade das culturas indígenas no Brasil e no estado de Santa Catarina e, ainda, um debate inicial sobre os preconceitos que envolvem esses grupos. Para desenvolver esses propósitos, foram selecionados vídeos e textos tais como: #Menospreconceitosmaisindido”[7], “Existe índio fake?”[8], “Cinco ideias equivocadas sobre os índios”[9] e “A infância na Aldeia”[10]. E as músicas: “Brincar de Índio”[11] e “Tangará Mirim”[12]. A seleção e o uso dessas fontes foram mediados pelo grupo com proposições de estabelecer um debate com as ideias prévias percebidas no questionário já citado. Isso porque, conforme estabelece a Nova História Indígena, ter acesso à produção de conteúdo com o protagonismo dos indígenas permite que os/as estudantes da Educação Básica os conheçam como sujeitos de seu tempo. Assim, os grupos pensaram planos de aulas e atividades que usaram trechos de filmes ou documentários como recursos didáticos. Nessas, buscaram estabelecer problematizações entre as representações midiáticas ou do cinema e aquelas produzidas dentro das comunidades indígenas ou a partir de estudos ancorados na perspectiva da Nova História Indígena.
O Grupo 1 selecionou uma série de produções feitas pelo cinema e as estudou em comparação com produções feitas por indígenas em um conjunto de aulas cujo objetivo geral era “Perceber como os povos Guarani são representados em produções fílmicas”. Assim foram selecionados trechos dos filmes: A Missão[13], Mbya Mirim.[14], Mokoi Tekoá, Petei Jeguatá[15] e Terra Vermelha[16].
Analisando o uso desses produtos audiovisuais em seu artigo individual da disciplina, a Integrante A do G1 explica o processo de seleção dessas fontes e a intenção pedagógica: “Esses filmes que compõem narrativas muito distintas sobre os povos Guarani, foram escolhidos justamente na intenção de evidenciar essas distinções, seus enredos e produções” (RELATÓRIO FINAL DE ESTÁGIO - Grupo 1, 2019). A respeito do filme “A Missão”, compreenderam que: “ao buscar reconstituir o contexto histórico marcado pelas reduções Jesuíticas do século XVIII, [...] apresenta diferentes perspectivas de personagens europeus a respeito da escravização e comercialização dos Guarani.” (RELATÓRIO FINAL DE ESTÁGIO - GRUPO 1, 2019). E ainda que “o filme possibilita uma reflexão sobre a questão indígena situada no período colonial, ainda que ao buscar reconstituir o contexto histórico marcado pelas reduções atrelado necessariamente ação colonial.” (RELATÓRIO FINAL DE ESTÁGIO - GRUPO 1, 2019.).
Por sua vez, a escolha teve a intenção pedagógica de movimentar a postura dos estudantes de espectadores dos filmes para críticos dos mesmos e dos conteúdos apresentados, considerando que: “podendo construir crítica e criativamente o conhecimento, ao entenderem essas produções enquanto um recurso produzido por alguém, inserido em um tempo, uma sociedade e, portanto, imbuído de intencionalidades que muitas vezes se constituem sob uma estrutura racial-colonial.” (INTEGRANTE A-G1, 2019).
O desenvolvimento das atividades do grupo partiu de um levantamento de ideias prévias sobre cinema e sobre eventuais produções abordando a cultura indígena ou personagens indígenas. A ideia dessa atividade esteve atrelada à importância de identificar imagens estereotipadas relacionadas à cultura indígena. Entre as questões apresentadas aos estuantes, destaco a atividade em que cartazes de produções dos Estúdios Disney foram selecionados (conforme pode ser visto na imagem 1, a seguir). A pergunta feita foi: Quais desses filmes você assistiu? Sendo pedido na sequência que o/a estudante contasse (por escrito) o que lembra da história. Uma das questões envolvidas nessa atividade era apresentar as ideias de personagem e representação.
Analisando as respostas dadas ao questionário de investigação prévia, a Integrante A – G1 percebeu que uma parcela significativa do grupo de estudantes não identificou os filmes apresentados na questão ou, se o fizeram na primeira questão, optaram por não responder a segunda, ou seja, não contaram o que sabiam da história. De acordo com ela,
Entre os filmes de animação mais citados, Moana (2016, 113”), com 8 alunos, Pocahontas (1995, 81”), com 6 alunos, e Mogli - O Menino Lobo (1995/2016), com 4 alunos. Destes, 9 alunos resumiram a história do filme da Moana e os mesmos 4 que citaram o filme do Mogli, escreveram sobre ele, no entanto, nenhum dos 6 alunos que mencionaram o filme da Pocahontas quiseram ou sabiam contar resumidamente sobre o que se tratava a história da personagem. (ARTIGO FINAL DA INTEGRANTE A – G1, 2019)
Considerando as respostas dadas e os espaços em branco, a estagiária estabeleceu alguns pontos para a reflexão sobre o que o grupo de estudantes estava evidenciando. Questionou-se por exemplo, se as imagens ou referências à natureza presentes nos cartazes dos filmes ajudaram a uma identificação mais quantitativa dos estudantes. Ou ainda, se foi a caracterização dos personagens o elemento que estabeleceu a relação. Assim, após a realização da atividade de sondagem, o grupo desenvolveu as aulas utilizando pequenos trechos dos filmes selecionados (e citados anteriormente) e, para cada uma das produções, indicou questões a serem problematizadas pela turma. Um questionário, no formato de Ficha Técnica, serviu como material didático de observação e registro dos estudos, como no exemplo a seguir:
Para compreender como esse estudo comparativo impactou nas representações do grupo, foi feita uma pergunta: “Quais são as diferenças que você percebe entre a representação dos Guarani no Filme Mbyá Mirim e no filme A Missão?”. As respostas foram analisadas no artigo já mencionado da Integrante A- G1 que categorizou as respostas dadas pelos estudantes, buscando perceber que relações foram estabelecidas por eles. Em sua análise, ela percebe seis categorias de respostas à pergunta feita. São elas: Passado/Presente (3), Liberdade/Escravidão (4), Recepção Alunos: Alegria/Tristeza (3), Realidade/Ficção (3), Objetivo Filme (2), Cultura Guarani (2). Sendo considerado o seguinte:
Das 6 categorias evidenciadas a partir da resposta dos alunos, as relações entre Passado/Presente (3) e de Liberdade/Escravidão (4), compreendidas aqui enquanto um indicativo de inferência histórica, evidenciando a compreensão que os estudantes tiveram sobre a presença indígena seja no passado quanto no presente, e em quais condições históricas de trabalho. Já as categorias de Realidade/Ficção (3), Objetivo do filme (2) e Cultura Guarani (2), entendidas aqui enquanto a compreensão dos estudantes sobre as produções fílmicas, seja por relacionarem-nas enquanto uma fonte ou por identificarem elementos da representação Guarani em ambos os filmes. (ARTIGO INTEGRANTE A-G1 – RELATÓRIO FINAL DE ESTÁGIO – GRUPO 1, 2019).
Agora, cito algumas das passagens dos textos produzidos pelos/as estudantes do 6º ano.
“O filme A Missão não mostra o cotidiano dos Guarani, só a escravidão, além disso não mostra eles no presente." (ESTUDANTE C, 2019).
"Que nesse 'filme' eles são mais livres e não são escravos de ninguém". (ESTUDANTE R, 2019)
Observando esse processo de estudo, o grupo ponderou que há um caminho possível para que outras representações sejam feitas por estudantes da educação básica sobre os povos indígenas, mas esse não é um processo fácil. Especialmente, considerando as lacunas apresentadas nas atividades e o desafio das imagens estereotipadas e naturalizadas sobre esses povos.
Nas respostas dos estudantes, a mobilização da representação imagética e de natureza linguística acerca dos Guarani, construída a partir de relações ditadas pelo tempo histórico (Passado/Presente), os modos e costumes a qual estes sujeitos estavam inseridos (Liberdade/Escravidão; Objetivo dos Filmes; Cultura Guarani) permitiram com que os estudantes vissem, ouvissem e construíssem a partir dos filmes, representações outras sobre esses povos, os Guarani. Onde para alguns estudantes, esses povos deixam de ser associados exclusivamente a um passado, e passam a ter seu reconhecimento no presente. (RELATÓRIO FINAL DE ESTÁGIO - GRUPO 1, 2019)
Outro conjunto de atividades bastante significativo foi criado pelo Grupo 2 e envolveu literatura, oralidade e a produção de desenhos. Esse grupo selecionou provérbios, textos ou trechos de falas de escritores/escritoras indígenas que foram impressos e guardados em um saquinho plástico. Esses textos abordavam temas diversos como a vida, infância, natureza e cultura. A ideia era que cada estudante sorteasse, lesse e comentasse o texto. Para a realização da atividade, a turma foi convidada a estar em um espaço ao ar livre da escola e foi proposto que o debate fosse feito em forma de roda de conversa. No plano de aula dessa atividade, o objetivo indicado dizia respeito à importância da oralidade e dos valores das culturas indígenas.
A seguir, algumas fotos (Imagem 3 e Imagem 4) dessa atividade que foi realizada em um espaço fora da sala de aula. A escolha pelo “bosque” foi justificada pela dupla: “o foco foge do papel e do livro para uma roda de conversa, oralidade e transmissão de conhecimento pela fala” (RELATÓRIO FINAL DE ESTÁGIO - GRUPO 1, 2019).
A atividade que veio na sequência dessa foi feita em um segundo dia e na sala de aula. A turma recebeu novamente os textos lidos e sobre os quais conversaram e receberam como tarefa a proposta de escrever e desenhar sobre o seu conteúdo e as discussões feitas anteriormente. Nesse momento em específico, a intenção era registar através de narrativas o processo vivenciado na aula anterior para que os professores-estagiários pudessem acompanhar as ideias históricas em construção pelo grupo de estudantes. Os integrantes do Grupo 2, refletindo sobre a tarefa, escreveram que:
é possível compreender a utilização de desenhos como uma estratégia pedagógica capaz de provocar expressões dos/as alunos/as que talvez não fossem discutidas se solicitadas que a turma verbalizasse. Ao desenhar o/a aluno/a está diante de uma folha e do capital cultural que carrega, de modo que seja possibilitada a ele, a capacidade de colocar no papel aquilo que sabe sobre o assunto estudado. (RELATÓRIO FINAL DE ESTÁGIO - GRUPO 2, 2019)
Assim, observando os 21 desenhos feitos e os textos que foram apresentados junto a eles, entenderam que os seguintes aspectos foram abordados:
apelo à identidade aparece em 7 narrativas; a palavra tradição em 4; memória em 2; igualdade em 2; diversidade em 2; tempo em 2; liberdade em 1 e natureza em 1 também. É possível desta forma, perceber conexões com as aulas ministradas sobre estereótipos, onde foram discutidos os imaginários pré-concebidos acerca dos povos indígenas no Brasil, de modo a problematizá-los em suas representações como portadores de uma cultura única, congelada no tempo e, portanto, pertencente unicamente ao passado. (RELATÓRIO FINAL DE ESTÁGIO - GRUPO 2, 2019)
A seguir, a reprodução da atividade feita pela aluna I. No texto apresentado, a estudante fala de um garoto indígena que sofria bullying na escola e que por essa razão andava sempre sozinho. A situação muda quando na escola começam a estudar sobre os povos indígenas e aprendem que existiam muitos povos no Brasil. Um pedido de desculpa sela a paz entre as crianças.
A avaliação desse conjunto de atividades trouxe alguns pontos importantes para a dupla. No relato da aula por exemplo, comentaram sobre a dificuldade encontrada no formato escolhido: fora da sala, em roda e em situação de fala e escuta. A dupla apontou que tiveram muita dificuldade em falar e ouvir a turma e que entre eles a mesma situação se repetiu –, quando justamente a intenção era trabalhar a questão da importância da oralidade na cultura indígena. Percebi que havia de certo modo um desejo na dupla de reproduzir uma vivência espelhada na cultura indígena, no entanto, como conversamos posteriormente, essa “reprodução” não seria possível. Afinal, como crianças não indígenas, aqueles estudantes tinham outra experiência escolar e essa seria mantida independente do lugar onde fosse realizada a tarefa e das intenções dos docentes para a mesma.
Assim, a reflexão da dupla foi para outro caminho: não buscando falhas ou lacunas, mas centrando na compreensão dos significados que o grupo de estudantes deu aos textos lidos e como relacionaram ao conteúdo estudado ao longo das aulas. A dupla, então, percebeu que quando convidados a comentar os textos, os estudantes “estranharam” palavras, tiveram dificuldade em compreender algumas das ideias. Perceber, ainda que quando foram estimulados a desenhar e escrever seus trabalhos, indicaram uma apropriação da questão central do conjunto de aula: a importância de conhecer/reconhecer os povos indígenas em suas identidades. E, especialmente, o combate aos preconceitos – como a atividade citada destaca.
Considerações finais: a História Indígena na formação de professores
Temos [...] enquanto docentes não-indígenas uma responsabilidade, em minimamente questionar a ausência de narrativas indígenas inerentes em nossas práticas educacionais, pois se há ausência dessas narrativas, temos a presença de outras tantas, que podem, ainda que sem a intenção, contribuir para a manutenção de estereótipos e estigmas essencialistas sobre essas populações e, portanto, enquanto educadores, teríamos aqui um problema. (ARTIGO FINAL DA INTEGRANTE 2 - G1, 2019)
O texto acima foi escrito por uma das integrantes do grupo 1 em seu artigo final da disciplina, no entanto não creio ser errado dizer que a reflexão poderia ter sido assinada pelos/as demais estagiários/as. A ideia de que docentes não indígenas tenham responsabilidade no questionamento sobre as ausências de narrativas de/sobre indígenas nas escolas mobilizou as escolhas feitas pelo conjunto composto por estagiários e estagiárias cujos trabalhos foram analisados neste artigo. Trata-se, portanto, de um compromisso coletivo frente a uma temática de interesse igualmente de todos, sendo algo sobre o qual devemos nos debruçar como pesquisadores/as do Ensino de História.
Como posto na parte introdutória deste artigo são muitos os desafios para promover alterações nas formas e conteúdos relacionados ao ensino de História Indígena no Brasil. Felizmente, muitos avanços também têm acontecido e as pesquisas realizadas neste campo nos apresentam alguns caminhos, sendo justamente o incentivo na formação docente, o principal deles. Ricardo Bezerra e Tatiane Almeida (2018), em texto que discute a presença da história e cultura dos povos indígenas na educação básica, lembram que a existência da Lei 11.645/2008 não significou uma alteração na formação de professores/as. E que, assim, “professores e estudantes da educação básica têm se questionado sobre o que pode ser feito para trabalhar melhor a temática indígena na escola” (BEZERRA, ALMEIDA, 2018, p. 5). Esses autores, e outros colegas da área, lembram que o investimento na formação docente, na criação e divulgação de materiais para atender a demanda de estudos sobre as populações indígenas brasileiras são estratégias apresentadas nos diferentes dispositivos legislativos referentes ao assunto como caminhos para estabelecer a história e a cultura indígenas como questões curriculares.
A intenção inicial deste artigo foi justamente mobilizar formas de compreender a realização do Estágio Supervisionado (um momento importante da formação de professores/as) como uma etapa também fundamental para a sensibilização de profissionais frente à temática da História Indígena. Assim, a apresentação e discussão das atividades desenvolvidas pelos grupos de estagiários/as buscou evidenciar experiências de um processo que foi desenvolvido desde a tarefa inicial, de pensar um projeto de ensino e pesquisa, à avaliação do mesmo – considerando que cada umas das pessoas envolvidas precisou escrever um artigo sobre a pesquisa feita, bem como que cada um dos grupos apresentou relatório sobre a experiência. Tratou-se aqui de ilustrar tais vivências e ainda analisar alguns de seus efeitos na formação desses professores e de seus/suas estudantes.
No processo de apresentar as escolhas temáticas e de descrever as atividades, pude revistar os movimentos teóricos e metodológicos feitos por esses grupos de discentes do curso de História. Importante marcar algumas impressões. Foi possível notar que ainda temos como algo muito forte: o peso da tradição de aulas expositivas e, nesse sentido, muitos dos planos de aula partiram de aulas expositivas ou de atividades centradas na fala docente. É necessário ressaltar que desses movimentos de exposição, os grupos partiam sempre para ações didáticas em que as turmas eram incentivadas a produzir, a debater e, portanto, a participar da construção do conhecimento.
No que tange à seleção de conteúdos destacou-se o compromisso em mobilizar os pressupostos da Nova História Indígena e da Lei 11.645/08 e suas Diretrizes. Também é importante marcar o movimento de diversificar os materiais usados nas aulas e em suas atividades que foram mobilizados como suporte do processo de conhecimento funcionando, assim, como documentos a serem analisados segundo os pressupostos da História.
O texto das Diretrizes Operacionais para a Implementação da História e das Culturas dos Povos Indígenas na Educação Básica – entre outras questões – destaca que a inserção da temática nos Currículos das instituições de Educação Básica tem rebatimentos diretos na Educação Superior notadamente nos cursos destinados à formação de professores. A ideia é a da circulação de saberes e de um impacto na formação de profissionais. Concordando com o exposto no referido documento, além dessa questão vir dos espaços escolares, cabe às instituições de ensino superior entender sua responsabilidade no processo. Afinal, como um processo com muitas demandas se faz necessário que diferentes instituições sejam espaços para buscar possibilidades de atendê-las.
Observando os diferentes trabalhos feitos pelos grupos de estágio que participaram dessa experiência de trabalho foi possível perceber que o fato de terem cursado uma disciplina de História Indígena na graduação teve impacto extremamente positivo. Inicialmente, porque os grupos demonstraram ter acesso e apropriação de aspectos teóricos relativos à disciplina, o que pode ser constatado quando observamos aspectos como a bibliografia usada na produção dos planos de aulas e na seleção dos materiais das aulas. E ainda nas intenções pedagógicas apontadas nos projetos de ensino, nos planos de aula e nos artigos analisados no presente texto.
O acesso às discussões teóricas fez sentido quando justamente a teoria fundamentou a prática docente. Assim, quando os grupos precisaram mobilizar os saberes que desenvolveram na disciplina o fizeram estabelecendo planos de aula nos quais os conteúdos selecionados e os materiais didáticos foram pensados alinhados aos pressupostos da Nova História Indígena. Como já citado, a intenção dos grupos era dar a conhecer as diferentes culturas indígenas do estado e do país para que preconceitos e visões estereotipadas fossem questionados pelo grupo de estudantes. Portanto, dar protagonismo aos personagens que estavam sendo estudados foi um objetivo que atravessou as ações docentes analisadas aqui.
Nas considerações finais de seu relatório, o Grupo 1 avaliou o processo através de uma frase que, penso, ilustra bem o processo vivenciado por todos/as: “É importante destacar que faíscas de mudanças se acenderam, a partir da temática trabalhada” (RELATÓRIO FINAL DE ESTÁGIO – GRUPO 1, 2019). E essa me parece ser de fato uma boa forma de avaliar as atividades feitas. Sobretudo, levando em consideração os elementos apresentados na sequência da afirmação feita em que foi dito que não buscaram uma mudança instantânea, mágica. Como outros temas, o abordado aqui precisa de um debate de longo prazo, com mudanças que demandam tempo para se consolidarem. Mas, se não há mágica, há sim um trabalho necessário a ser feito, a longo prazo como aponta o mesmo grupo:
Esse processo de mudança nunca é linear, mas no momento que a reflexão é permitida e encontra base no pensamento do aluno, todo um universo de possibilidades é construído. Nesse sentido, pudemos ver na condução das aulas alunos que passaram a tomar mais cuidado com o significado de certas palavras, passaram a identificar alguns estereótipos comuns aos povos indígenas. (RELATÓRIO FINAL DE ESTÁGIO - GRUPO 1, 2019)
E qual é, portanto, o impacto de todo esse processo para a construção de docentes sensíveis ao ensino de História Indígena? Por que o estágio fez diferença na formação dessas pessoas como professores e professoras de História comprometidos com essa temática?
Encontro resposta para essas perguntas mobilizando um aspecto que observei quando recebemos a temática de História Indígena como objeto dos estágios. E este aspecto foi o entusiasmo dos/as discentes, algo que percebi através da mobilização feita durante todo o processo e nos momentos de orientação e demais conversas, fossem comigo ou com a supervisora no campo de estágio. Esse entusiasmo se fez perceber a partir do momento que entenderam a relevância do tema e também quando se perceberam responsáveis por ele.
Em “Ensinando a transgredir”, bell hooks fala do entusiasmo como uma ação pedagógica potente e, portanto, mobilizadora. “O primeiro paradigma que moldou minha pedagogia foi a ideia de que a sala de aula deve ser um lugar de entusiasmo, nunca de tédio.” (HOOKS, 2017, p. 16). A ideia que está associada aqui é a de que o aprendizado pode ser empolgante, divertido e crítico sem necessariamente ser fixo ou atender a esquemas rígidos para garantir sua validade e efetividade. Não é ainda um processo natural, aja visto que “Na comunidade da sala de aula, nossa capacidade de gerar entusiasmo é profundamente afetada pelo nosso interesse uns pelos outros, por ouvir a voz uns dos outros [...]” (HOOKS, 2017, p. 16). Como resultado de um esforço coletivo, o entusiasmo pode motivar professores/as e estudantes. E quando ele parte dos professores e professoras é significativamente importante visto que como responsável inicial do processo, esses/essas têm a responsabilidade de movimentar as ações pedagógicas e seu desenvolvimento.
Em um texto em que discute a figura do professor com um adulto de referência, Fernando Seffner (2016) chama atenção para a relevância da ação docente como maneira de preparar jovens para a participação no espaço público. O autor lembra que tradicionalmente o/a professor/a de História é visto como alguém que tem como função apresentar o mundo e seu passado através dos fatos estudados. No entanto, mais do que isso, aulas de História podem servir para que estudantes percebam suas “marcas de existências” e com (e a partir) delas possam participar do debate público com consciência e solidariedade.
Os/as estagiários/as envolvidos/as nas atividades aqui analisadas foram movidos pelo entusiasmo, sentimento que se expandiu como ação docente e que se efetivou em forma de compromisso com o conteúdo a ser trabalhado e com sua profissão. Foram professores/as que entenderam ser referência na formação cidadã de seu grupo de estudantes. Dessa maneira, investir na formação de professores/as entusiasmados/as com temas caros à cidadania, à diversidade, ao respeito às narrativas mais plurais é, portanto, um compromisso para uma História igualmente mais diversa e plural.
Referências
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Notas