Resumo: Este artigo parte de um exercício comparativo sobre o 6º ano do ensino fundamental no Brasil (alunos de 11 anos, em média) e o 3º ciclo do ensino fundamental no Quebec (alunos de 11 a 12 anos). Um historiador e um pedagogo fazem uma análise comparativa dos programas curriculares dessas duas realidades. A partir dessa estratégia hermenêutica, colocam-se em discussão os conteúdos disciplinares específicos relacionados ao 6º ano no Brasil, juntamente àqueles do 3. ciclo primário no Quebec. Considerando as tensões disciplinares entre a Educação e a História, este artigo visa examinar a aprendizagem da História nas escolas, principalmente no que tange à construção curricular, ao desenvolvimento de competências e, em particular, do pensamento histórico.
Palavras-chave: educação, educação histórica, ensino de história, pensamento histórico.
Abstract: This article departs from a comparative exercise concerning the sixth-grade school in Brazil (11-year-old students, on average) and the third cycle of primary in Québec (students from 11 to 12 years-old). Both a historian and a pedagogue undertake comparative analysis of the school curricula in these two educational realities. From this hermeneutic strategy, we put under discussion certain themes related to the sixth grade in Brazil, along with the respective contents of the third cycle primary in Québec. Regarding the tensions between Education and History, this article aims to examine the learning of History at schools, primarily speaking of the curricular construction, the development of competencies, and of historical thinking specifically.
Keywords: education, historical education, teaching of history, historical thinking.
Seção Temática - Os desafios de ensinar e aprender história no tempo presente
Dimensões didáticas e disciplinares do Ensino da História: o caso do 6º ano do ensino fundamental no Brasil e do 3 e cycle du primaire no Quebec[1]
Teaching of history: the case of the sixth year of elementary school in Brazil and the 3e cycle du primaire in Québec
Recepción: 18 Marzo 2022
Aprobación: 16 Agosto 2022
Sistemas escolares, ensino público e privado, relevância do estado-nação, colonização, tudo isso coloca tanto o Brasil, quanto o Quebec nas tensões da modernidade. Há traços que inscrevem ambos os territórios em culturas históricas com características específicas, dentre elas: as formações disciplinares, a institucionalização da História e dos seus profissionais de ensino. O movimento que tornou a História uma disciplina nas universidades europeias durante os séculos XVIII e XIX, em certo sentido, retirou esse gênero literário de um campo de saber restrito à erudição das elites, assim como ocorria com a música ou a literatura ficcional. A História disciplinar tornava-se, naquele contexto, um tipo de conhecimento específico cuja base epistêmica pressupunha teorias, métodos e técnicas particulares a serem dominadas com anos de estudo e prática. Em campo correlato, o conhecimento histórico a ser ensinado nas escolas estava inserido em projetos civilizatórios, cuja ênfase incidia em ideias bastante cerradas de um percurso ocidental, cristão e de nações “gloriosas” (BARNABÉ, 2019; FARIAS JÚNIOR, 2019).
Tanto no Brasil quanto no Quebec, a escola de hoje, em muitos sentidos distante do ambiente intelectual de outrora, pretende ensinar uma história que seja instrumento de reflexão emancipadora sobre o devir humano, sobre a própria política, e, em particular, sobre a democracia. O ensino de história nas últimas décadas avançou sobre uma nova fronteira, aquela que almeja desenvolver não apenas conhecimentos factuais, de eventos e narrativas, mas habilidades intelectuais e críticas, muitas vezes denominadas como “pensamento histórico” (Brasil 2013, 2019; Ministère de L'Éducation du Québec, 2006). Os caminhos para o ensino da História na escola encontram-se nas mãos de diferentes profissionais e formações acadêmicas, como a de historiadores, didáticos da história e pedagogos, todos habilitados para ensinar a História em diferentes países e níveis. É precisamente nos diálogos entre essas áreas, bem como em seus tensionamentos disciplinares nos quais se constitui, como sói acontecer às construções curriculares, uma espécie de “cartografia de saberes e de poderes” (RALEJO; MELLO; AMORIN, 2021, p. 5). É nesta cartografia sobre a qual incidem os interesses deste artigo.
Nesse sentido, o presente trabalho pretende analisar os objetivos, temas, percursos e competências a serem desenvolvidos no ensino da História do 6º ano do Ensino Fundamental no Brasil (alunos de 11 anos, em média), segundo a Base Nacional Curricular Comum – BNCC, bem como o tratamento dado ao ensino de disciplina correlata no 3e cycle du primaire a partir do Programme de Formation de l’École Québécoise[2] (alunos de 11 a 12 anos). Em síntese, intenta-se responder duas perguntas: num primeiro plano, em que medida os estudos da História podem incentivar os alunos a refletirem sobre questões do mundo atual e, em segundo lugar, quais inconsistências e críticas se pode fazer às composições curriculares em cada um dos programas mencionados[3].
O avanço da História como uma disciplina a ser ensinada no cultivo da juventude teve como efeito a consolidação desse conhecimento no universo escolar no âmbito da formação e consolidação de projetos de nação. Tal processo, impossível de ser resumido aqui, se deu lentamente no Brasil. Tendo sido iniciado na segunda metade do século XIX, seguiu com a ampliação e organização de um ensino público na primeira metade do século XX, especialmente após os anos 1930 (Gomes; Pandolfi; Alberti, 2002).
Um conjunto de leis e de documentos vêm estabelecendo marcos regulatórios direta ou indiretamente para o ensino da História no Brasil. É uma longa jornada que remete à redemocratização e à Constituição de 1988. Desde a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996, cuja ênfase era: “[...] o desenvolvimento pleno do educando, a formação para o exercício da cidadania, a vida em sociedade e o mundo do trabalho” (Guimarães, 2016, p. 76), aos Parâmetros Curriculares Nacionais, PCNs (BRASIL, 1998), cuja transversalidade punha em relevo a postura crítica e a cidadania como eixos da participação social. Para isso, os PCNs propuseram temas transversais, bem como competências e habilidades em torno da ética, saúde, meio ambiente, orientação sexual, pluralidade cultural, trabalho e consumo. Malgrado todos os esforços em torno desse material inovador, os PCNs “não colaram” à época, especialmente no Ensino Médio. Assim a lógica disciplinar estanque continuou a predominar, fossem nos currículos, fossem nos manuais escolares que inundavam as escolas e pouco faziam refletir (Magalhães, 2006).
Muitos anos se passaram e foi preciso a aprovação das leis 10.639/03 e 11.645/08 para garantir o ensino das Histórias e culturas Africanas e Indígenas. Ambas aparecem desdobradas nas Diretrizes Curriculares Nacionais - DCNs (2013), nas formas de educação étnico-raciais. Tais leis e regulamentações tiveram importantes impactos nos currículos universitários, o que garantia que tais temas fossem objeto da atenção dos discentes durante o seu percurso de formação acadêmica.
Em um país no qual o racismo estrutural é considerado um tema tabu, até mesmo não percebido como um problema real, as leis acima mencionadas permitem que a escola se torne, ainda que por meio de um longo processo, “um palco de construção de identidades individuais e sociais contempladas pela diversidade de contribuições históricas de uma sociedade multicultural e pluriétnica” (Moraes, R. F.; Campos, 2018, p. 16). Se essas mudanças apontam para demandas oriundas da sociedade, as disputas pelo poder de determinação do currículo atravessam diversas camadas, desde as interpartidárias até as profissionais e de cátedras; em suma, em torno de conteúdos mais adequados ao ensino da História na escola (Goodson, 2007; Torres; Ferreira, 2013). Há muitas memórias subterrâneas em um Brasil que ainda não é de negros, índios e pobres, mas que aparece de forma crítica nas histórias outras, às vezes, como contado aos milhões no carnaval do Rio de Janeiro, pela Escola de Samba – Estação Primeira de Mangueira em 2019 (Beserra; Lavergne, 2018; MOERBECK, 2021; MOERBECK; GOUVEA DE SOUSA, 2019; Pollak, 1989, 1992; Silva; Meireles, 2017 p. 10-11).
De toda maneira, o quadro histórico que mais interessa a este artigo é aquele constituído após a redemocratização de 1988, pois é quando se consubstancia um conjunto de ações, em que se pese suas idas e vindas, em torno da estruturação de um corpus reflexivo e normativo para a educação escolar no Brasil, dentre esses, o da própria BNCC do Ensino Fundamental (2019).
O 6º ano de escolaridade na BNCC circunscreve, em linhas gerais, a Antiguidade e o Medievo. Se mirarmos numa pequena amostra de cursos de licenciatura no Brasil, veremos que as disciplinas relativas aos referidos componentes curriculares estão localizadas, à exceção da UNIFESP, nos três primeiros períodos do curso de licenciatura em História[4]. Deve-se considerar que as grades curriculares são uma importante macrovisão dos cursos, indicativas tanto de concepções historiográficas e tendências, como daquilo que se pode esperar dos egressos.
Preliminarmente, o que se pode depreender é o fato de que ainda predominam as formas europeias no ordenamento das temporalidades a serem estudadas. Tais formas partem da articulação (econômica, política, social etc.) de vários continentes à modernidade da Europa, a partir da qual se estabelece um tipo de cognição do devir histórico de caráter universalizante, hoje considerado flagrantemente parcial em suas escolhas epistêmicas (MOERBECK, 2021). Pese-se, no entanto, o fato de o conteúdo de muitos dos programas das disciplinas das instituições supramencionadas tecer críticas a esse tipo de macrovisão curricular tradicional. Certamente, há dificuldades em se conseguir levar a crítica tão contumaz ao eurocentrismo para uma reformulação global dos currículos de graduação em História (Francisco, 2017).
Foram difíceis as marés que trouxeram à luz a última versão da BNCC na área de História. Trata-se do documento mais recente, sem dúvida o mais relevante para se pensar os conteúdos comuns, obrigatórios em nível nacional, para todos os anos do ensino fundamental (Santos, 2019; Silva; Meireles, 2017). Não deixa de ser compreensível, embora um tanto quanto irônico, o fato de o Estado, e isso não se refere apenas ao caso brasileiro, querer se imiscuir no direcionamento do ensino da História como disciplina escolar. Fato esse que, geralmente, se relaciona à escolha das narrativas mestras do “romance nacional”, bem como aos temas relevantes e sensíveis à educação histórica das gerações futuras. Atravessada pelos mais diversos conflitos, a noção de adequação dependerá sempre de agentes políticos envolvidos não apenas no Estado, mas em organizações da sociedade civil interessadas nessa dimensão do saber escolar, sejam elas mais conservadoras ou progressistas (Éthier; Lefrançois, 2018; Falaize, 2014; Laville, 1999; Pereira; Seffner, 2018).
Como vem sendo frisado em alguns trabalhos, o domínio da história e de seus profissionais vem sendo ampliado, vide a quantidade cada vez maior de doutores que se formam no Brasil. Por outro lado, essa mesma área vem sofrendo ataques violentos, muitas vezes oriundos de outsiders, em especial nas redes sociais, que parecem querer mostrar que a produção da História não requer uma expertise especial, aproximando-a ao senso comum, cujo produto final prescindiria de maiores cuidados teóricos e metodológicos. Isso faz parte dos tensionamentos de um país que passa por uma onda neoconservadora muito forte, cuja base ideológica é complexa, difusa e mesmo paradoxal.
Tais ondas singram em tendências neopentecostais exacerbadas de moralismo anacrônico e tacanho, liberalismo com forte ligação aos capitais financeiros e militares reformados ou não, cujo saudosismo da “linha-dura” busca o revisionismo de fatos consensuais no ambiente acadêmico; ou mesmo porque se sentem como salvadores de uma nação-em-perigo mergulhada na corrupção e na imoralidade da política da democracia liberal. A despeito do fato de a política na nova república brasileira ainda estar longe de ser um exemplo de idoneidade em relação ao erário público, uma breve leitura de trabalhos de historiadores mostraria que não só de moralidade vivia o regime militar, que em muitos casos os militares receberam apoio de setores industriais e civis e que uma simples troca de agentes civis por militares no Brasil contemporâneo é apenas uma falsa mimese de outrora (Campos, 2014).
De toda maneira, recuando muito pouco no tempo, a produção da versão final da BNCC, durante o governo Michel Temer, já havia sido marcada por pressões neoconservadoras. Fortemente aparelhada em alguns Estados, um bloco conservador defendia, até bem pouco tempo atrás, um projeto de lei conhecido como “Escola sem partido”[5]. Essas pressões, ainda que mais difusas à época, fizeram com que houvesse a exclusão do texto final, por exemplo, de debates relativos ao conceito de gênero, ao passo que o ensino religioso ganhava corpo. Por fim, foi em torno de grupos políticos que desqualificavam o professor por meio da noção de doutrinação e reificavam representações exemplares do passado que as decisões relativas à formatação final da BNCC foram tomadas (Penna, 2017).
Em linhas muito sucintas, pode-se dizer que a versão final de História da BNCC foi fruto de tensões expressas nas próprias divisões internas do campo acadêmico (CERRI; COSTA, 2021; MOERBECK, 2021; Moreno, 2019). A primeira versão tinha o mérito de tentar propor uma nova configuração ao ensino de História, a partir de linhas articuladas à história nacional e com maior atenção às populações indígenas. No entanto, as suas bases eram frágeis, não apenas na forma como reorganizava toda a estrutura do que seria estudado nas escolas a partir de então, mas na maneira como desqualificava as histórias Antiga e Medieval, circunscrevendo-as tão somente ao nível das formas quadripartites de um percurso temporal cujo centro dinâmico é a Europa (Brasil, 2015, p. 251).
Embora seja verdade que a História Antiga, inclusive a judaico-cristã, verdadeiro componente ideológico de projeto de Estado, tivesse sido instrumentalizada no ensino brasileiro como lugar primeiro das origens da civilização ocidental desde o XIX, este viés deve ser combatido (Barnabé, 2019, FARIAS Junior, 2019). Outrossim, devem ser refutadas as reconfigurações feitas durante o regime militar de 1964, momento em que houve fortes pressões junto às universidades para que mudassem seus programas, o que tornava a História Antiga lugar de desconexão e alienação em relação às questões do presente (da Silva, 2010; Leite, 2020; MOERBECK, 2021). O que se quer frisar aqui é que os estudos relativos à Antiguidade e à História Antiga na escola avançaram muito desde a redemocratização e, em particular, a partir do início do novo milênio. Em suma, as histórias que correspondem à realidade Mediterrânica (multifacetada em suas ecologias, regiões e dinâmicas culturais) não podem ser subsumidas aos rótulos, percursos e juízos que lhes foram atribuídos pela historiografia oitocentista (Bovo; Degan, 2017) .
Em termos mais simples, a História Antiga entendida como uma forma, uma unidade de inteligibilidade criada para dar conta de um processo específico, como bem definira Norberto Guarinello (2003), não pode ser considerada per se e a priori como europeia ou eurocêntrica sem que isso recaia em essencialismos pouco úteis à avaliação histórica. O que deve ser posto em questão são as configurações do discurso etnocêntrico, que podem manipular os conteúdos históricos e torcê-los para propósitos que correspondam a ideologias contemporâneas e a projetos de poder. Assim, estudar a Grécia Antiga como base da civilização ocidental é reificar um percurso civilizatório profundamente excludente; no entanto, estudar o papel da mulher na família grega ou romana antiga pode desvelar um conjunto muito rico de comparações para serem incorporadas ao desenvolvimento do pensamento histórico (Guarinello, 2003; MOERBECK, 2018).
Abundantes e relevantes são os subsídios que sinalizam caminhos para uma educação histórica mais ampla, tanto no que se refere à importância em se reconhecer conhecimentos outros, ressignificando formas de saberes por séculos tornadas invisíveis e subalternizadas, quanto chamando a atenção aos perigos do “mito do ego não-situado” na filosofia ocidental (Grosfoguel, 2007, p. 213). Essa ponderação, em específico, intui dizer que o cogito requer que o pesquisador se torne visível, localize claramente a sua presença dentro de uma corrente intelectual e social (Brasil, 2015; Mignolo; Walsh, 2018; Oliveira; Candau, 2010).
Um dos problemas centrais da primeira versão da BNCC é que ela apaga quase totalmente os conhecimentos da História Antiga em função da crítica ao eurocentrismo, tradicionalmente enraizado nas formas de apresentação utilizadas para esses períodos históricos. De novo, a grande questão que os redatores da primeira versão da BNCC não perceberam ou não reconheceram é que o mundo antigo não pode ser identificado com o passado europeu moderno ipso facto, a não ser por uma metonímia que, na verdade, era um projeto reconhecidamente político. Colocando em outras palavras, a economia moderna está para o oikonomikós antigo, assim como a Europa de Heródoto está para a de Jules Michelet, ou seja, se faz necessário avaliar com muito cuidado tais termos dentro dos ambientes históricos nos quais foram cunhados.
A História dos conceitos e a etnografia da leitura são correntes de pensamento e perspectivas analíticas bastante conhecidas e que não podem faltar a quem pretende se imiscuir na confecção de um currículo (DARNTON, 1992; Koselleck, 1992), especialmente, de programas que pretendam dar conta do que concerne à dimensão do poder que atravessa as próprias formas de conhecimento (Silva, T., 2007), a “cartografia” a que nos referimos na introdução deste trabalho.
A História Antiga passa por um processo de crítica pós-colonial há bastante tempo, o que inclui a reavaliação de seus muitos temas, períodos e unidades de análise (Bernal, 1987, 2005; Gebara da Silva, 2017; Goody, 2008). Descolonizar a História Antiga não se faz aniquilando-a das salas de aulas, mas reintegrando-a ao programa a partir de questões que tornem suas conexões com o presente significativas. É preciso entender isso como um caminho para mostrar que as histórias Persa, Grega, Egípcia e Romana merecem o seu reboot no campo do ensino, fazendo-se, assim, justiça a uma existência fora da sombra que lhe foi projetada pela historiografia oitocentista e pela invenção da civilização ocidental (Vlassopoulos, 2011).
É preciso exercitar um olhar para aquele mundo pretérito sem o filtro moderno, sem se autodeclarar mais ou menos ocidental, enfrentar a alteridade fora do caminho “inevitável” do progresso da civilização ocidental. Por fim, da mesma forma que há esforços em repensar a ideia de História do Brasil fora dos marcos apenas europeus, é preciso pensar de forma séria em como a História pré-moderna (Antiga; Medieval e por que não a indígena?)[6] constitui parte de uma conjunto de histórias que merecem ser estudadas e compreendidas a partir do presente (HARTOG, 2003a, 2014; MOERBECK, 2017; NEVES, 2022).
Os conteúdos de História Antiga e Medieval suprimidos na primeira redação da BNCC foram reinseridos na sua atual versão. Baseados em um princípio de História Geral/Universal, a integração da Antiguidade ao referido programa escolar ainda opera por meio de um sentido Europeu do devir histórico com a quantidade dos conteúdos se tornando uma finalidade em si. Em suma, lá está organizado um percurso vinculado às divisões e temporalidades europeias, o que fez da última versão uma espécie de déjà vu, com alguns avanços e inovações quanto às formas de organização e seleção de temas a serem estudados se comparados ao manifesto maniqueísmo da segunda versão (Funari, 2016; Santos, 2019).
Na BNCC, o léxico atinente aos procedimentos básicos do ensino e da aprendizagem para o segundo segmento do Ensino Fundamental são conduzidos por três ou, dependendo da avaliação, quatro verbos principais, a saber: identificar; desenvolver e reconhecer/interpretar. Isso significa dizer que os alunos deveriam ser capazes de: 1) identificar os eventos históricos mais relevantes à História Ocidental; 2) desenvolver a competência de refletir sobre a produção, circulação e utilização de documentos históricos, em diferentes registros culturais e de suporte, além de; 3) reconhecer e interpretar diferentes versões de um mesmo fenômeno para que se possa desenvolver “habilidades necessárias para a elaboração de proposições próprias” (Brasil, 2019, p. 414).
Se o segundo ponto parece pacífico, pois acena à relevância em se trabalhar com fontes em sala de aula, o primeiro é um tanto quanto espinhoso. E ele é perigoso porque naturaliza a África e a América dentro de uma lógica ocidental, assim: “os eventos selecionados permitem a constituição de uma visão global da história, palco das relações entre o Brasil, a Europa, o restante da América, a África e a Ásia ao longo dos séculos” (Brasil, 2019, p. 414). Note-se que aqui, enviesada e tacitamente, se naturaliza a ideia de uma história eurocêntrica, baseada nas relações centro-periféricas estabelecidas a partir dos processos de colonização do século XVI.
A referida abordagem merecia uma defesa teórica mais consistente em um documento tão relevante quanto a BNCC. Dever-se-ia, assim, elencar razões que justificassem tal abordagem em detrimento de outras possibilidades. Note-se que não se trata nem de uma “história global” à moda do que propõe no campo historiográfico os autores alemães Georg Iggers (Iggers; Wang; Mukherjee 2016) e Jörn Rüsen (Rüsen, 2008), nem mesmo a que pensa as conexões em termos mais espaciais, como a de Sebastian Conrad (Conrad 2017), mas, tão somente, a reprodução da envelhecida História Geral das Civilizações, animada pela necessidade de se lhe incluir o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígenas, garantido nas leis 10.639/03 e 11.645/08. Essa fragilidade teórica poderia ter sido matizada pelo terceiro procedimento, o das perspectivas e diversas narrativas, mas a apresentação a partir de um exemplo de uso de fontes da Guerra do Paraguai é assaz limitada. Assim, ainda ficamos no âmbito das relações estabelecidas pelo resto do mundo com o centro, a Europa (Brasil, 2019, p. 415).
As unidades temáticas relativas ao 6º ano de aprendizagem são: “História: tempo, espaço e formas de registros”; “a invenção do mundo clássico e o contraponto com outras sociedades”; “lógicas de organização política; trabalho e formas de organização social e cultural” (Brasil, 2019, p. 418-419).
Os objetos do conhecimento relativos à primeira unidade temática põem em relevo as formas de compreensão humana do tempo e a produção de cronologias que lhes são derivadas. Igualmente, dá-se atenção às formas de registro do conhecimento histórico, o que está relacionado, novamente, ao uso de fontes em sala de aula. Na parte final da primeira unidade, sobretudo teórico-metodológica, o assunto principal é sustado para se adentrar no tema da hominização e dos processos de longuíssima duração que incluem desde as origens humanas até as migrações ao continente americano.
O principal alerta que se deve assinalar a essa parte é menos a introdução teórica e metodológica, efetivamente bem-vinda, mas a falsa impressão que se pode passar ao docente e ao estudante de que tais questões começam e se encerram no 6º ano. Ao contrário, considerando o progressivo desenvolvimento dos discentes quanto às habilidades do pensamento histórico, esses pontos deveriam ser recorrentes, sendo reintroduzidos a cada etapa diferente, ou como uma progressão de aprendizagens, como fizera o Quebec (2009) para tal finalidade, ou ainda com um entendimento mais fino de como funciona a organização das habilidades do pensamento histórico (CERRI, 2011; LEE, 2006; MAPOSA; WASSERMAN, 2009).
Com efeito, novos desafios concernentes à metodologia da história e ao uso de fontes surgirão a cada ano. Assim, o emprego de conceitos, técnicas e métodos deve ser pensado a cada novo tema, a cada novo período letivo, quando advierem necessidades de se conhecer novas fontes e novas chaves de leitura pertinentes. É um processo gradual em que, com o passar dos anos, os alunos vão dominando estruturas linguísticas, aprendendo a interagir de forma mais complexa com seus colegas de classe e passando a desenvolver habilidades que concernem à interpretação, seja de textos, de fontes orais ou iconográficas.
A segunda unidade temática possui caráter especialmente conceitual e mesmo paradigmático. É uma unidade especialmente difícil de ser introduzida a alunos de 11 anos de idade. Até mesmo porque, desenvolver a ideia da “invenção do mundo clássico”, embora pertinente, coloca-os frente a frente com noções de verdade objetiva, de coisa em si, da pesquisa histórica como forma de ideação e de representações que são forjadas em uma linguagem metadiscursiva. Não restam dúvidas de que os docentes deverão ser especialmente criativos e lúdicos para seguirem tal recomendação (Brasil, 2019, p. 418).
Aqui, um dos problemas é de origem, pois ver o mundo clássico como invenção/representação requer alto grau de abstração intelectual e filosófica que é inapropriada para a faixa etária em questão. Os docentes que acompanham os pequenos alunos desse ano escolar entendem do que se está falando. Parece o típico caso em que um importante tema acadêmico é simplesmente espelhado no universo escolar sem maiores cuidados daqueles que o puseram na BNCC. Ainda que a BNCC tenha passado por processos de consulta pública, é insuspeito dizer que é pouco provável que os docentes do nível básico tenham opinado quanto à dificuldade em se desenvolver tais reflexões nessa faixa etária.
Mário Carretero e César Lopez responderam melhor a essa questão. Tais autores ponderam que apenas com aproximadamente 16 anos os jovens passam a considerar as possibilidades de uma imagem ser descolada de uma realidade objetiva. Por exemplo, os discentes têm dificuldade em ver o mundo pictórico como uma abstração da realidade até essa idade, como uma figura de linguagem icônica, ou seja, um signo visual metafórico, alegórico, irônico, hiperbólico, entre outras. Assim, é apenas por volta dessa idade que os discentes começam a perceber as possibilidades múltiplas de interpretações e mediações intelectuais entre uma dada imagem e a realidade que supostamente ela representa (Carretero; Lopez, 2009, p. 79-81).
Outro importante autor, Kieran Egan, mostra-nos que, entre os nove e 12 anos de idade, ocorre a passagem da fase “mítica” à “romântica”. É por isso que as crianças dessa faixa etária gostam tanto de super-heróis, contudo, é também o período em que, progressivamente, se torna mais clara a relação entre realidade e ficção. Note-se que se trata de uma região de transição, na qual, a partir dos 13 anos, os alunos já buscam articular esquemas integradores da realidade, isto é, leis e regras mais gerais para o funcionamento do mundo, o que pode levar ao chamado “típico comportamento adolescente”, geralmente considerado pelos adultos como inflexível em suas certezas (Egan, 1998).
Sam Wineburg, em artigo recente, mostrou a dificuldade de alunos de uma faixa etária próxima a qual discutimos interpretarem fontes, mesmo as “mais evidentes”, parecendo “bebês na floresta” (Wineburg, 2019, p. 83). Portanto, é fora de propósito, pouco sensível, beirando a falta de inteligência dos redatores, impelir discentes em tenra idade a “discutir o conceito de Antiguidade Clássica, seu alcance e limite na tradição ocidental, assim como os impactos sobre outras sociedades e culturas” (Brasil, 2019, p. 419). Pode parecer apenas um jargão, mas para desconstruir uma representação historiográfica tão forte, a da invenção do mundo clássico, seria desejável que os alunos construíssem algo antes, quer-se dizer, que compreendessem as sociedades antigas fora de uma caracterização que tem a ver com a ideia de Europa pós-renascentista, iluminista e racionalista-industrial.
Na terceira unidade, o foco é a política, desdobrada em noções da participação, cidadania e das formas de governo nos impérios. Embora sejam questões importantes, não se vai muito além de afirmar que se deve “caracterizar o processo de formação da Roma Antiga e suas configurações sociais e políticas nos períodos monárquico e republicano”. Isso nada mais é do que oficializar o que já era feito no país (Brasil, 2019, p. 419). Como os conteúdos da História Antiga e Medieval, anteriormente divididos entre o 6º e 7º anos, foram comprimidos apenas no 6º ano, o longo período medieval começa e finda com a sensação de que tudo passou muito rapidamente e sem maiores cuidados. Na quarta unidade, dedicada ao Medievo, fala-se em servidão e escravidão, lógicas comerciais, temporais e religiosas e fica-se com a impressão de que o docente terá muito trabalho em emprestar um sentido inteligível e não fragmentado ao aprendizado de temáticas e temporalidade tão abrangentes.
Um ponto de luz para o 6º ano é o último objeto do conhecimento: “o papel da mulher na Grécia e em Roma, e no período medieval” cujas habilidades são “descrever e analisar os diferentes papéis sociais das mulheres no mundo antigo e nas sociedades medievais” (Brasil, 2019, p. 419). A pergunta é: por que os outros objetos desse ano também não buscam uma integração temática? É tão difícil tentar se descolar de uma cronologia tradicional, de uma narrativa linear como pontos de partida para a aprendizagem histórica? Por que não investir nos cortes temáticos que são tão apreciados em nível superior para poder entender certos fenômenos como o da escravidão, o da circulação econômica, das guerras, conflitos sociais e da formação dos territórios? Por que não se pode apresentar em paralelo uma História do Mediterrâneo Antigo e mostrar as formas de integração cultural, econômica e social, por exemplo?
Note-se que há avanços, a BNCC preconiza que se estude: “O Mediterrâneo como espaço de interação entre as sociedades da Europa, da África e do Oriente Médio” para desenvolver as habilidades de “descrever as dinâmicas de circulação de pessoas, produtos e culturas no Mediterrâneo e seu significado” (Brasil, 2019, p. 418-19). De todo modo, o que se questiona aqui é: por que não investir nessa unidade de análise como nova forma de inteligibilidade do mundo antigo (mediterrânico)? Certamente, seria um quadro mais abrangente para a formação do currículo, mais interativo e mais atualizado face aos estudos da Antiguidade (MORALES; GEBARA DA SILVA, 2020). Enfim, a aparição da unidade mediterrânica é bem-vinda, mas tímida.
Reformulando uma das questões propostas na introdução, isto é: Quais inconsistências e críticas se podem fazer à formação e ao ensino naquilo que é preconizado pela BNCC? Deve ser enfatizado que as diferentes mitologias, expressões arquitetônicas e literárias podem ser excelentes portas de entrada para se falar de questões religiosas, da apropriação das ordens clássicas pelo Estado moderno, dentre tantas outras coisas além da própria Antiguidade (MARQUES, 2021). Por que não incentivar a comparação entre as fontes literárias como tragédias, comédias, hinos, poesias líricas com os escritos epigráficos antigos, a numismática, dentre outros, que poderiam pôr em relevo uma significativa gama de alteridades existentes entre os povos antigos e também desses com a leitura dos alunos?
Sem se falar no estudo da evolução das técnicas, o que poderia desfazer o senso comum de que o que é mais “velho” é necessariamente ultrapassado ou menos evoluído, uma noção muito comum em jovens que crescem olhando para telas digitais e interagindo no rizoma das redes. Seria, inclusive, uma forma de enfatizar a multilinearidade da própria noção de progresso e como cada civilização se relacionou com aspectos atinentes às necessidades da sua própria existência. Enfim, o desafio do professor será grande em tentar desdobrar as temáticas relativas ao mundo antigo e medieval de tal maneira que façam sentido nas escolas contemporâneas. Uma boa leitura inicial ao docente pode ser olhar o Material suplementar para o redator de currículo, instrumento de apoio à BNCC, ao menos, aqui, há impulso criativo quanto ao desenvolvimento de transversalidades temáticas[7].
Em suma, deve-se pensar as múltiplas culturas da Antiguidade e as dimensões do medievo fora do peso impingido pela filosofia e historiografia dos séculos XVIII e XIX, que as modelaram um tanto quanto à sua imagem e semelhança. Nesse mesmo sentido, não se deve pensar essas culturas acima das demais. A integração não hierárquica desses conteúdos às histórias de populações ameríndias e afro-brasileiras é um compromisso sine qua non para se tentar restituir às dimensões da formação, os componentes culturais do Brasil.
O Quebec é uma das dez províncias do Canadá. A partilha das competências neste país ou a divisão dos poderes é uma das características principais de seu federalismo, a educação e a gestão dos sistemas educativos se constituem como uma responsabilidade exclusiva de cada província. A democratização do ensino na referida província ocorreu, sobretudo, com as profundas transformações sociais ocorridas na segunda metade do século XX. Tendo a ortodoxia como norma, bem como uma ideologia conservadora global como ponto de referência (Rioux, 1968), o ensino das ciências humanas no primário do Quebec visava, antes dos anos 1960, à formação do cristão e do patriota por meio da inculcação de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores cristãos pré-determinados (Dupuis, 1977, 1979; Dupuis; Laforest, 1983; Laforest, 1989).
No início dos anos 1960, o Quebec possuía um déficit importante em relação a outras sociedades industrializadas, notadamente no que se refere à educação (Lenoir; Laforest, 1995). Foi necessário, no entanto, aguardar a tomada do poder pelo Partido Liberal de Jean Lesage para que a situação começasse a evoluir. Mergulhado em uma era de industrialização da economia, de urbanização de populações agrícolas e de modernização de suas estruturas sociais, a sociedade québécoise conheceu um período de profundas transformações (Charland, 2005; Dufour, 1997). Desde a ascensão ao poder dos liberais, o seu primeiro-ministro adotou um conjunto de leis conhecidas pelo nome de Grande Charte de l’éducation que veio modificar radicalmente o cenário educacional. A mais conhecida foi, no entanto, a instituição da Comissão de investigação sobre o ensino – Commission Parent (1964) – que tinha como responsabilidade tomar ciência da organização e do financiamento da educação do Quebec e de emitir recomendações ao governo (Audet, 1971).
Se no programa dos anos 1980, estruturado por objetivos comportamentais (Québec, 1981), as ciências humanas, como disciplina escolar, visavam essencialmente à aquisição de conhecimentos e de aprendizagens de habilidades técnicas, dentro do novo currículo, elas visam ao desenvolvimento de competências disciplinares e à construção de saberes essenciais. Além disso, por meio da articulação de competências disciplinares e de saberes essenciais às competências transversais e aos domínios gerais de formação, essa disciplina escolar veicula novas problematizações socioeducativas. Assim, a ela incumbe contribuir plenamente à realização da nova missão da escola, a de instruir, de socializar e de qualificar as novas gerações, especialmente por meio da construção de uma visão compartilhada do mundo (Québec, 2001a). Nesse sentido, os fundamentos basilares dos procedimentos de ensino e de aprendizagem foram também repensados. Enquanto o programa por objetivos comportamentais estava baseado em uma abordagem neo-behaviorista inspirada nos trabalhos de Bloom (1956, 1979), o novo currículo reivindica abertamente uma abordagem construtivista do ensino e da aprendizagem.
Mais precisamente, o objetivo geral do domínio do universo social, no qual está inscrita a História, é o de permitir ao aluno “construir a sua consciência social para agir como cidadão responsável e esclarecido” (Québec, 2001a, p. 165). Para fazê-lo, o programa de estudos identifica um conjunto de competências disciplinares a serem desenvolvidas: construir a sua representação do espaço, do tempo e da sociedade no primeiro ciclo do primário; ler a organização de uma sociedade no seu território, interpretar as transformações de uma sociedade e do seu território e abrir-se à diversidade das sociedades de seus territórios no segundo e terceiro ciclos do primário. Nestes, o desenvolvimento dessas competências se apoia no estudo de diferentes sociedades, predeterminadas pelo programa de formação (Québec, 2001a, p. 174-178).
A lógica organizacional do programa pressupõe duas etapas distintas, embora interligadas. A primeira consiste em identificar os componentes e a dinâmica organizacional das sociedades estudadas. A segunda, que só pode ser realizada a partir dos resultados obtidos na primeira etapa, refere-se à construção de uma explicação argumentativa quanto às causas e às consequências das transformações ou das diferenças entre as sociedades no tempo e no espaço.
Os saberes essenciais ligados às características naturais e humanas das sociedades e dos seus territórios representam, de certa forma, os dados brutos e descritivos que serão postos em relação para desenvolver os conceitos que aperfeiçoarão a grade de interpretação do aluno quanto às dinâmicas e às diversidades socioespaciais. Essa grade não pode, todavia, ser elaborada independentemente do desenvolvimento e da aplicação de procedimentos de aprendizagem de caráter científico que vêm assentar uma tal construção sobre bases racionais e reflexivas. O programa curricular é, por sinal, bastante explícito a respeito dessa questão. Menciona-se, quanto a isso, que para desenvolver as competências prescritas, o aluno deve seguir uma operação que se pode designar sob o vocábulo de Procedimentos de pesquisa e de tratamento das informações geográficas e históricas (Québec, 2001a).
Essa operação comporta os grandes componentes que seguem: tomar conhecimento de um problema; se interrogar; se questionar; planejar uma pesquisa; coletar e tratar a informação; organizar a informação e comunicar os resultados de sua pesquisa (Québec, 2001a). Por sinal, o desenvolvimento da grade de interpretação do aluno não pode ser colocado fora do incremento de algumas competências ditas transversais, de ordem intelectual, notadamente aquelas vinculadas ao desenvolvimento do pensamento crítico ou de operações cognitivas complexas. Como, por exemplo: a identificação de elementos pertinentes às situações-problema; a seleção de informações ou de estratégias pertinentes; a formulação adequada de uma questão e de seus desafios, etc. O quadro 1 que segue, extraído de Lebrun et Araújo-Oliveira (2009) apresenta uma síntese dos principais elementos constitutivos do Programa de Estudos Sociais do 2º e 3º ciclos do primário no Quebec, exceto para os dados da terceira coluna (objetos de ensino e de aprendizagem) que relevam da interpretação da autora.
Muito mais “social” do que o programa anterior, que estruturava o ensino em função de uma dupla progressão: uma baseada na extensão progressiva dos campos de exploração (rua, bairro, cidade, região, província, país etc.) e a outra centrada na progressão cronológica (da chegada dos colonizadores franceses aos dias atuais), o novo programa concentra-se, explicitamente, na dinâmica interativa das sociedades. Por sinal, ausente no antigo programa, a perspectiva comparativa sincrônica e diacrônica, que acompanha a aprendizagem ligada à argumentação, constitui uma novidade importante (Laurin, 2001).
Sem promover uma didática social, é forçoso reconhecer as rupturas profundas que marcam uma nova concepção disciplinar. Por um lado, os apelos à construção de uma explicação quanto às causas e às consequências das transformações e das diferenças entre as sociedades no tempo e no espaço se contrapõem ao caráter propositivo dos saberes escolares (Astolfi, 2004; Develay, 2004). Estamos longe dos “4R”, quatro características essenciais que parecem impregnar fortemente o ensino dessa disciplina, a saber: o ensino de Resultados (saberes) considerados como verdades absolutas imutáveis; a Recusa da dimensão política, ocultando questões políticas, ideológicas e éticas que são inerentes aos saberes escolares; o Referencial consensual que visa a evitar o debate e a pluralidade de pontos de vista e o Realismo que conduz à reificação do saber (Audigier, 1997).
Por outro lado, essa configuração pressupõe repensar a capacidade de programação dos saberes escolares. Com efeito, nem as sociedades em estudo, nem a lista de saberes essenciais identificados para cada uma das sociedades, nem a perspectiva cronológica permite entrever explicitamente “que algumas noções deveriam ser ensinadas antes ou após outras noções, em suma, que a lógica dos saberes determinaria, por si só, a sucessão de aprendizagens” (Develay, 1993, p. 21). A lógica do desenvolvimento de competências disciplinares pressupõe, a priori, a repetição do mesmo tipo de análise e interpretação, a partir dos mesmos parâmetros físicos e humanos (geográficos e históricos), embora aplicados sobre sociedades distintas. Na ausência de um indicador sobre os conceitos-chave a serem desenvolvidos, e que pudessem ser reinvestidos na análise da sociedade, cabe ao docente identificar os objetos de ensino e de aprendizagem.
Na medida em que a operacionalização das novas orientações se tornar responsabilidade dos docentes (Lessard; Portelance, 2001), eles serão convidados a um importante trabalho de caráter didático e axiológico (Develay, 1993, 1995). Cabe se questionar em que bases serão efetuados esse duplo trabalho? Muitos elementos podem influenciar essa dupla operação. Por um lado, o ensino da Geografia e da História se inscreve na primazia de longa tradição escolar focalizada na transmissão de um corpus de saberes sobre a sociedade à qual pertence o aluno. É improvável que as chamadas ao desenvolvimento de competências disciplinares centradas na análise da organização socioespacial e na interpretação de conteúdos do novo programa de universo social sejam suficientes para quebrar totalmente a referida primazia. Por outro, numerosas pesquisas (ARAÚJO-OLIVEIRA, 2018, 2008; 2021; LaROUCHE; ARAÚJO-OLIVEIRA, 2014;Lebrun; Lenoir, 2001; Lenoir; Maubant; Routhier, 2008; Spallanzani; Biron; Larose; Lebrun; Lenoir; Masselter; Roy, 2001) colocam em evidência um discurso concentrado nas dimensões psicopedagógica, socioafetiva e organizacional por parte dos docentes do primário, deixando entrever uma interpretação do conceito de competência voltado particularmente às competências ligadas à socialização (Larose et al., 2005).
Enfim, a articulação de diferentes componentes do programa de formação da escola do Quebec, (Québec, 2001a), notadamente no que diz respeito à ancoragem do ensino disciplinar nos domínios gerais de formação, gera algumas ambiguidades suscetíveis de reforçar a propensão dos docentes em privilegiar a socialização numa perspectiva de adesão em detrimento dos aportes intelectuais das Ciências Humanas. Com efeito, a ancoragem do ensino das Ciências Humanas nos domínios gerais da formação, considerada pelo Conselho Superior de Educação (2007) como estando “impregnados de uma disposição para propor valores, a qual não se encontra necessariamente equivalência nos estudos disciplinares especializados” (p. 9), contribui a colorir fortemente as finalidades associadas a esse ensino. Em suma, a estruturação curricular por competências levanta numerosas interrogações quanto às configurações que daí podem advir.
Parafraseando uma das nossas primeiras questões neste artigo, é preciso tocar na questão de quais períodos, temas e delimitações cronológicas podem ser mais relevantes ao ensino de História na escola. Uma das formas mais interessantes de se responder a essa pergunta é menos se digladiar em temas ou períodos tomados aprioristicamente como mais ou menos importantes. Não se trata tão somente de uma guerra narrativa, embora seja isso também. As narrativas não hegemônicas são maneiras de se combater a opressão que atravessa o âmbito discursivo, que impõe um entendimento elitista em um país que sofre as múltiplas mazelas da desigualdade social.
A História, não apenas a escolar que é nosso tema aqui, pode e deve ser uma barreira de proteção, um instrumento que possibilite aos alunos desvelar os véus sombrios de estruturas excludentes que assolam o Brasil, mas também de questões e tensões culturais muito latentes no Quebec, como quase tudo o que gira em torno da dimensão do aprendizado e manutenção da língua francesa. Seja como for, como bem marcaram dois didáticos da história no Quebec, o aprendizado da História pode ajudar os jovens a lutarem (ou a se defenderem) contra alguns males do mundo, como a pobreza, a homofobia, a misoginia, o racismo e tantas outras de uma lista nada glorificante aos dias contemporâneos (Éthier; Lefrançois, 2018).
É claro, nessa seara sempre haverá partidários com diferentes propostas e prioridades. Devemos, e o uso da primeira pessoa do plural é absolutamente intencional, perguntar: quais objetos de História Antiga e Medieval são mais propícios ao desenvolvimento do pensamento histórico no caso brasileiro? De forma similar: como deve funcionar o exercício comparativo de diferentes temporalidades e espacialidades. À moda de uma "geo-história neobraudeliana", tal como a estruturada no Quebec para o aprendizado da disciplina de Estudos Sociais pelos alunos de 11 anos de idade? A organização do programa do último ano do 3º ciclo do primário no Quebec pode ser útil para se pensar o 6º ano brasileiro? Se nos afastarmos um pouco da centralidade dos conteúdos descritivos, visando ao conjunto de habilidades complexas que constituem as bases, poderemos focar nos instrumentos que permitem aos alunos aprenderem, como diria Pierre Vilar, a pensar historicamente, a olhar de forma crítica e reflexiva o devir histórico (Vilar, 1987). Assim, se o propósito maior da aprendizagem da História na escola é desenvolver o pensamento histórico, é preciso realizar, portanto, uma “alfabetización histórica” (Carretero; Lopez, 2009, p. 76).
Essa alfabetização a qual Carretero e Lopez se referem está relacionada ao que muitos chamam de pensamento histórico, a saber: a consciência histórica, (Carrasco; Molina; Puche, 2014; Rüsen, 2001, 2016; Schmidt; Barca; Martins, 2011), a relevância histórica, (Wineburg; Martin; Monte-Sano, 2012), o uso das fontes, (Bloch, 2002; Cardoso, 1997), a empatia histórica (Lee, 2003, 2006; Wineburg, 2001), as dimensões ética e política da história, (Avila; Nicolazzi; Turin, 2019; Turin, 2018, p. 188), a compreensão de elementos heurísticos e a perspectiva histórica (Duquette, 2015; Hartog, 2003; Kramer, 1989; Wineburg, 2001). O quadro do desenvolvimento do pensamento histórico não é um monólito e precisa ser desenvolvido na prática escolar. Assim, cada situação pedagógica, como as vivenciadas em um ano letivo do 6º ano do Ensino Fundamental e durante o 3e cycle du primaire, requer instrumentos adequados, escolhidos e organizados segundo as necessidades e as habilidades de cada faixa etária e de acordo com cada problema histórico tomado como ponto de partida nas aulas.
A abordagem por competências, implantada no Quebec tanto no nível primário (QUÉBEC, 2001a), quanto no secundário (QUÉBEC, 2003), visa ao desenvolvimento de um “saber-agir fundado na mobilização e na utilização eficaz de um conjunto de recursos” (QUÉBEC, 2001a, p. 4) no seio do qual o aluno recorre “notadamente às aprendizagens formais realizadas em contexto escolar e àquelas da vida cotidiana [...] [onde] os conhecimentos possam servir de ferramentas para a ação” (QUÉBEC, 2001a, p. 5). A abordagem por competências se vê investida da missão de reunir, até mesmo de reconciliar, os saberes escolares disciplinares e sua utilização nas situações da vida cotidiana e profissional. A noção de competência convida, de alguma maneira, a superar as oposições entre o senso comum e o saber escolar formalizado; o objetivo do segundo alimentando o primeiro de maneira a sistematizá-lo em uma base rigorosa e científica. Bem como sublinha Moniot (2001, p. 71), “o ensino não existe para banir o sentido partilhado, mas para fazê-lo adentrar de forma ativa e responsável”.
As propostas de Audigier apoiam essa ideia:
de um lado, o ensino das ciências sociais tem por finalidade ajudar os alunos a organizar a sua experiência, a refletir sobre o mundo no qual eles vivem, a transmitir o senso comum refletido e a refletir sobre o senso comum constantemente presente; por outro, este ensino se empenha em introduzir o aluno a universos já constituídos que falam do passado e do presente dos seres humanos de uma certa maneira. (AUDIGIER, 2004, p. 49-50)
A abordagem por competências está em condições de fornecer um caminho para reunir o senso comum e os saberes constituídos? A resposta é incerta tanto para o Quebec quanto, muito provavelmente, para o Brasil, cujas incertezas, no momento da escrita deste artigo, transbordam a seara especificamente educacional.
Há inconsistências de parte a parte que foram marcadas durante o texto, mas, ainda vale ressaltar que, se de um lado, como enfatizam Jonnaert, Barrette, Boufrani e Masciotra (2004), “a introdução desta abordagem apresenta riscos, tanto pela ausência de verdadeiras reflexões sobre os seus fundamentos epistemológicos e teóricos quanto pela apropriação anunciada de uma lógica de mercado e econômica no campo da educação” (p. 688), do outro, deve-se notar que a própria conceitualização da noção de competência, bem como os meios de sua operacionalização e de sua avaliação permanecem um ponto assaz nebuloso que quase não permite clarificar a noção e, consequentemente, de utilizá-la de maneira apropriada nas práticas de ensino em meio escolar (Jonnaert et al., 2004; Jonnaert, 2006).
Se o quadro conceitual de segunda ordem e o metodológico são ferramentas centrais à pesquisa histórica e ao modus operandi do historiador, não seria enganoso afirmar que o uso deles, mudando o que deve ser mudado, naturalmente, pode ser muito útil aos discentes em seu percurso escolar. Em poucas palavras, é preciso ensinar a pensar historicamente.