Resumo: Este artigo apresenta o acervo oral construído pela Comissão da Verdade Milton Santos (UFBA) que disponibilizou no YouTube trinta (30) relatos de gravações de depoimentos com ex-estudantes e professores da UFBA a respeito do golpe e da ditadura. O contexto de produção das narrativas foi marcado pelo aniversário dos 50 anos do golpe de 1964 que atualizou a “guerra de memórias” sobre a ditadura, especialmente após a criação da Comissão Nacional da Verdade em 2012. O texto explora os testemunhos privilegiando o impacto do golpe de 1964 e do (pós) AI-5 para os sujeitos.
Palavras-chave: memória, Comissão da Verdade, ditadura militar.
Abstract: The article presents the oral collection built by the Milton Santos Truth Commission (UFBA) which made available on youtube thirty (30) reports of testimonies recordings with former UFBA students and professors about the coup and the dictatorship. The context of production of the narratives was marked by the 50th anniversary of the 1964 coup that updated the “war of memories” about the dictatorship, especially after the creation of the National Truth Commission in 2012. The text explores the testimonies privileging the impact of the coup of 1964 and the (post)AI-5 for the subjects.
Keywords: memory, Truth Comission, dictatorship.
Artigos
Sobreviventes da ditadura: testemunhos da Comissão Milton Santos de Memória e Verdade UFBA
Dictatorship survivors: testimonies of the Milton Santos Commission of Memory and Truth UFBA
Recepción: 30 Marzo 2022
Aprobación: 13 Junio 2022
[1]“Eu queria pegar, por um lado, uma referência, uma frase que li hoje de manhã, ou ontem, que diz assim: “Lembrar é resistir”. E eu acho que é isso que nós estamos fazendo aqui. Lembrar é resistir”. Essas palavras foram verbalizadas pelo ex-professor Arno Brichta[2] (2014) no seu depoimento à Comissão Milton Santos da Memória e Verdade da Universidade Federal da Bahia (CMV UFBA)[3]. Disponibilizado no Youtube de maneira inédita, esse é um dos trinta depoimentos que compõem o acervo da CMV UFBA reunindo testemunhos de pessoas que tinham vínculo com a UFBA durante a ditadura. Com as devidas mediações da literatura de testemunho inspirada na Shoah, testemunho aqui tem o sentido histórico “como também [é uma palavra adequada] no sentido de ‘sobreviver, de ter-se passado por um evento–limite, radical, passagem essa que foi também um ‘atravessar’ a ‘morte’” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 8).
Há inúmeras possibilidades de seleção e análise das memórias. No trecho acima, do Professor Brichta, ao menos quatro dimensões podem ser mencionadas para sugerir a relevância acadêmica do acervo: a) uma lembrança “saturada de escrita” (PORTELLI, 1997, p. 33); b) a presença da sábia frase de Halbwachs (1990) – “nunca estamos sós” – ao evocar memórias individuais povoadas de presença coletiva: c) o uso do pronome nós endossando o que Pollack (1992) percebeu na fala militante; d) a memória como ação, a memória como resistência.
Estímulo inicial à parte, os depoimentos são muito ricos. Três perguntas formuladas pela Comissão orientaram os testemunhos: “como você foi atingido pelo regime militar implantado em 1964 e que consequências isso teve em sua vida?; a UFBA, por meio de suas instâncias ou de seus membros, teve algum papel nos fatos em que você esteve envolvido?; você conhece ou presenciou outros fatos relacionados ao regime militar envolvendo estudantes, funcionários ou professores da UFBA?”. As interrogações possuem importância social e acadêmica, pois se articulam com as demandas contemporâneas por memória, verdade e justiça a respeito da violação de Direitos Humanos durante a ditadura. As questões também se afinam com a historiografia a respeito de como o golpe e a ditadura impactaram as universidades brasileiras e seus membros[4], especialmente após os relatórios das Comissão Nacional da Verdade e das Comissões Universitárias (FAGUNDES, 2013; FAGUNDES, 2018; FARIA, 2015; FONTES, 2018; MULLER; FAGUNDES, 2014).
Este texto demonstra fragmentos de dezessete (17) testemunhos a respeito do impacto da ditadura nas trajetórias dos narradores. Tem como fio condutor algumas respostas dos depoentes ao roteiro elaborado pela Comissão – mencionado acima – privilegiando relatos sobre a lógica repressiva advinda com o golpe de 1964 e, secundariamente, o (pós) AI-5. Ao mesmo tempo, muitas narrativas combinam elementos das três perguntas: discorrem sobre fatos, constroem interpretações sobre a experiência individual e coletiva, fazem referências a outras pessoas e à UFBA. Por essa razão, a escrita procurou aproveitar essas interseções.
A delimitação proposta prioriza pessoas que estiveram na UFBA entre 1964 e o AI-5. O recorte se refere a uma fase da ditadura privilegiada nos testemunhos de uma fração geracional moldada pelas experiências do golpe de 1964, do protagonismo do movimento estudantil na resistência à ditadura até o AI-5 – marco da entrada da ditadura na fase abertamente repressiva do terrorismo de Estado (PADRÓS, 2006) e do refluxo do movimento de massas de oposição. Esse é um dos inúmeros recortes possíveis que explora o banco de memórias da CMV UFBA enquanto uma “necessidade intelectual, moral e psicológica, que assume mais ou menos o risco de manter a ferida aberta e não admite nenhum prazo de reserva para compreender, colocar palavras sobre os acontecimentos percebidos e vividos como inauditos” (ROUSSO, 2016, p. 285).
Os testemunhos possibilitam a reflexão sobre a vida sob a ditadura e como as situações-limite foram contadas pelas narradoras e narradores incluindo os “custos psicológicos” (PORTELLI, 1997, p. 31) das experiências para os sujeitos enredados. Os relatos recuperam a experiência no plano subjetivo, na dimensão do sentimento e dos afetos. Constroem cronologias sobre o tempo da ditadura; indicam lugares de repressão e de resistência; dão visibilidade a militantes torturados e assassinados; apresentam redes de apoio familiares; enunciam personagens importantes da resistência. É um banco de memórias sobre o arbítrio. Nos beneficiamos dessa possibilidade também em razão das novas tecnologias que permitiram a gravação e difusão das sessões na internet.
Embora o trabalho da Comissão não tenha sido oriundo de um projeto de história oral, Joutard (2000, p. 42) lembra que “as novas tecnologias também multiplicam os documentos orais que não decorrem exatamente de história oral, mas aos quais precisamos dar atenção”. Preocupação semelhante foi afirmada por Lucchesi (2014, p. 51): “refletir sobre a memória disponível na internet, sob a perspectiva da história do tempo presente, que pode se valer de conteúdos divulgados na web como fonte, não é uma questão de menor (ou maior) importância que pensar as memórias em suportes materiais já estabelecidos, como o papel ou o microfilme”. Em um texto recente, autoras atualizam a percepção de que a “História oral chega ao século XXI catalisada pelas discussões da história pública, assim como pelas novas tecnologias, que colocam em questão novas formas de gravação, interação, preservação e difusão das narrativas orais e audiovisuais (ALMEIDA; FONSECA, 2021, p. 446), como é o caso do acervo da Comissão da Memória e Verdade UFBA.
Dos 30 testemunhos, 90% foi dado por homens e três são de mulheres. Ainda não sabemos os critérios que orientaram a escolha dos depoentes. A quase totalidade é composta de pessoas socialmente brancas. Todas têm ensino superior e são críticas à ditadura. A maioria narrou a experiência do lugar de militante do movimento estudantil, embora alguns tenham testemunhado a partir da condição de docentes. Há casos de pessoas que transitaram da condição estudantil para o lugar de docente durante a ditadura mantendo vínculo com a UFBA.
Muitos tiveram engajamento político em organizações políticas de oposição à ditadura: Partido Comunista Brasileiro (PCB), Ação Popular (AP), Política Operária (POLOP), Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Esquerda Independente. Eram organizações de esquerda com características próximas do que Ansart (2019, p. 90) descreveu a respeito dos diversos “pequenos grupos políticos”: “número reduzido de pessoas implicadas, intensidade dos vínculos interpessoais, práticas de expulsão e recrutamento, dramatização das escolhas, radicalização das posições teóricas, riqueza da produção imaginária” (ANSART, 2019, p. 90-91).
Os depoimentos mencionam experiências desenvolvidas na cena pública e em diferentes ambientes e cursos: Teatro, Biblioteconomia, Faculdade de Filosofia, Faculdade de Direito, Politécnica, Arquitetura – dentre outros. As narrativas focam o período ditatorial 1964-1985. Dessas pessoas, 10 protagonizaram a experiência a partir do lugar de estudante e se concentram no período do pré e pós golpe de 1964; outras enfatizam os anos entre 1964 e 1968. Há também depoimentos que focam nos anos 1970. Alguns abordam os anos da transição.
Os depoentes são pessoas letradas. Alguns têm hábito em conceder testemunhos e selecionar conscientemente o que dizer. Um deles é Carlos Sarno[5]. Segundo ele, “nós estamos frequentemente [...] dando depoimentos e tal [...] e eu calculo [...], nos depoimentos e dependendo do tipo da natureza, [...] [o] que deve ser dado” (SARNO, 2014). As narrativas são influenciadas por “tradições ou recordações coletivas, porém também são ideias e convenções que resultam do conhecimento do presente” (HALBWACHS, 2004, p. 343). Alguns explicitam esses nexos ao mencionar livros, imprensa, cinema e a música como linguagens e fontes de informações sobre o período. Desse modo, é possível intuir que muitos depoentes agregaram informações a posteriori da experiência vivida. Brichta (2014) refletiu sobre isso explicitamente no seu depoimento tal qual demonstrado nas primeiras linhas do artigo. Carlos Sarno (2014) afirmou que “tem muito [sujeito] [...] aí fantasiado de bom moço, de jovem, de empresário [...] Se vocês virem um filme chamado “Cidadão Boielsen” vão ver que Boielsen era um empresário totalmente ligado à repressão”. Maria Liege Rocha[6] (2014) afirmou que conversou com alguns familiares no dia anterior ao depoimento na Comissão para esclarecer dúvidas sobre o passado.
As sessões da comissão foram gravadas em 2014, imersas no contexto global da “obsessão contemporânea pela memória” (HUYSSEN, 2000). A partir da percepção de que “o presente colore o passado” (POLLACK, 1989), os testemunhos estiveram marcados pela guerra de memórias sobre a ditadura – disputa que atravessa a sociedade brasileira desde o golpe de 1964 ganhando novos influxos a partir da abertura política e sendo atualizada com novos alvos e controvérsias ao longo do tempo (CARDOSO, 1994; MARTINS FILHO, 2002; NAPOLITANO, 2015, 2020; PEREIRA, 2015;SCHMIDT, 2007). O ano de 2014 deu novo fôlego à batalha impulsionada pelo aniversário dos 50 anos do golpe de 1964. A criação da Comissão Nacional da Verdade em 2012 e sua atuação em 2014 esquentou mais ainda a temperatura da batalha memorialística.
Pereira (2015, p. 864) afirma que o período esteve contraditoriamente marcado pelo aumento da negação, do discurso negacionista e por uma “inscrição frágil” de uma memória pública sobre o período ditatorial (PEREIRA, 2015, p. 893). Acrescenta a criação da Comissão Nacional da Verdade e sua desqualificação por parte da Nova Direita; a difusão da internet que viabilizou uma guerra de memória digital e a presença do PT no governo após oito anos de Governo Lula e tendo à sua frente uma ex-militante da esquerda armada “com certas políticas (reais e imaginárias) de ‘esquerda’, o que gerou ‘diversos tipos de ressentimento do presente e do passado-presente’” (PEREIRA, 2015, p. 890).
Napolitano considera que predomina no Brasil uma memória hegemônica crítica à ditadura influenciando as políticas de memória desenvolvidas pelo Estado em prol das vítimas, especialmente a partir de 1995. O autor afirma que:
Entre 2007 e 2014, as narrativas do trauma e das vítimas deram o tom das lembranças sobre o regime, e informaram a febre memorialista e as políticas de Estado, culminando na formação da Comissão Nacional da Verdade, no projeto Memórias Reveladas e outras iniciativas oficiais semelhantes dos vários entes federativos e instituições públicas (NAPOLITANO, 2020, p. 41).
A disputa foi amplificada pelos questionamentos ideológicos, políticos e morais ao PT, bem como pela veiculação no espaço público de “memórias inorgânicas e difusas, claramente de extrema direita, que chegaram a esboçar reedições patéticas da ‘marcha da Família’ e de passeatas pela ‘volta dos militares’”, eventos impensáveis antes de 2014/2015 (NAPOLITANO, 2015, p. 33).
A criação e o funcionamento da Comissão da Memória e Verdade UFBA devem ser compreendidos em meio a essas linhas de força mais gerais ressaltando que os testemunhos lidam com “questões sensíveis”: a emoção em relembrar o passado atravessado pela experiência de ruptura, golpe e violência; a tristeza da perda de pessoas queridas; as frustrações e as controvérsias do campo da resistência – dentre outros temas. Ou seja, as sessões estiveram atravessadas pela “memória em clima de tensão” (PEDRO, 2017, p. 34). Por um lado, os vídeos não registram conflitos oriundos da batalha memorialística – denúncia da ditadura versus negação/defesa do regime ditatorial pós-1964. Não mapeamos nenhum embate entre depoentes, nem entre eles e plateia, tampouco manifestações hostis como vaias. Em alguns casos, a plateia aplaudiu ao final do depoimento.
Por outro lado, os testemunhos abordam temas controversos entre o campo crítico sobre a ditadura. São temas que atravessam a agenda historiográfica e o debate público sobre o regime ditatorial. A maioria usou a terminologia “golpe militar”. Já no que se refere à forma de nomear o período, o termo predominante foi ditadura. Alguns foram mais longe. Merece destaque o trecho de Carlos Sarno pela ênfase no argumento:
a sociedade civil foi cúmplice disso e há uma coisa muito ruim quando a gente coloca só no manto [...] dos Generais a responsabilidade por um tempo de violência e de arbítrio. Não! A sociedade é que permitiu [...] a grande mídia que favoreceu; é aí que deve se inscrever na porta da história bem na parede da história, né ? ‘Vocês foram cúmplices de uma ditadura que durou 21 anos, não é isso doutor Emiliano?’ [...] isso é muito importante: a gente não vê a ditadura apenas no aspecto militar. (SARNO, 2014)
Os depoimentos foram realizados em sessões oitivas que, neste texto, são pensadas como rituais atravessados pelas características de um encontro envolvendo uma comunidade política. Pierre Ansart (2019) aponta os significados do meeting – reunião, assembleia, comício, ato político – e, acrescento, oitiva – na circulação dos afetos políticos, na adesão a valores, propostas, comunidades e projetos. Os testemunhos estiveram vinculados às estruturas que mobilizam afetos. O passado foi recheado de afetos.
Muitos oradores falaram para seus pares virtuais ou presenciais. No caso dos presentes, algumas vezes houve uma espécie de monólogo dialógico com perguntas retóricas, menção a pessoas da plateia ou testemunhos anteriores. As ideias de Ansart podem ser tomadas de empréstimo novamente para pensar a oitiva como:
uma comunicação particular [que] se estabelece entre o orador e o público, um círculo de interações no qual o público é convidado a partilhar os sentimentos expostos, a encontrar no tom do orador, nas nuances de seus sentimentos, a imagem legitimada de seus próprios sentimentos. (ANSART, 2019, p. 23)
As identidades também foram atualizadas em conexão com o valor do ritual, qual seja, “o poder de representar grupos políticos; de fornecer legitimidade; de construir solidariedade; e de modelar as percepções da realidade política das pessoas” (KERTZER, 2001, p. 18). Todas estas dimensões estiveram presentes nas sessões “sem obrigar que as pessoas, reunidas, dividam a mesma interpretação sobre o significado dos ritos” (KERTZER, 2001, p. 18). Logo, houve pluralidade política mesmo com unidade na crítica à ditadura.
Alguns testemunhos salientaram gratidão à Comissão pela experiência do ato de testemunhar acrescida da emoção em revisitar a UFBA enquanto um lugar de memória. Ao final da oitiva, Júlio Guedes[8] (2014) agradeceu à Comissão “por registrar isso”. Outros depoentes acentuaram o afeto sublinhando o clima de amizade presente nas sessões. Amílcar Baiardi pontuou que:
aqui o clima é de reencontro, amizade. Eu acabo de chegar de um depoimento que fazia no Rio de Janeiro na Comissão da Verdade [...] aí o clima era muito pesado, porque era justamente sobre o que a vila militar [...] representava na época da repressão, onde eu tive preso. Com assassinatos, torturas. (BAIARDI, 2014)
Marcelo Cordeiro[9] (2014) iniciou seu depoimento se referindo aos “meus queridos amigos depoentes”. Já Eliete Telles[10] (2014) afirmou que “foi uma honra o convite” e agradeceu aos irmãos pela presença na oitiva prestigiando o depoimento. Gorgônio Araújo[11] (2014) louvou “a oportunidade de prestar esse depoimento aqui na UFBA, na minha casa [...] na minha velha casa da Faculdade de Direito”. Acrescentou: “estar na UFBA é uma homenagem! É uma homenagem que a Bahia presta à cultura, ao conhecimento, à verdade... meus parabéns a vocês e... eu torço para que o Brasil [...] se estenda por muito tempo como país democrático” (ARAÚJO, 2014).
É importante destacar que os depoimentos são fontes produzidas (FRANK, 1999) por uma demanda externa, a saber, uma Comissão de Memória e Verdade. Essa comissão materializava uma política de memória desenvolvida por frações do Estado e governos em conexão com organizações de familiares de desaparecidos políticos, movimentos de direitos humanos, instituições da sociedade civil etc. Trata-se de uma iniciativa representativa da Justiça de Transição, ou seja, “um conjunto de procedimentos jurídicos e políticos que tem por objetivo auxiliar nesta transição, revelando os crimes cometidos pelo Estado, reparando as vítimas, criando as condições para um novo pacto nacional” (ARAÚJO, 2012, p. 145).
Salientando que a Comissão não tinha poder de justiça, os depoimentos constituem um banco de memórias de denúncia do arbítrio e do quanto a experiência da violência marcou muitas existências (os depoentes, familiares e redes de amizade), dimensões (corpos, subjetividade) e camadas (violência física, psíquica, humilhação, medo, etc.). A sensação de muitas testemunhas foi aquela do “dever de memória” em condenar a ditadura e valorizar direitos democráticos, especialmente no contexto mencionado.
Alguns depoentes se distanciam da palavra “vítima” para nomear a experiência repressiva. Isso ocorreu possivelmente por uma interpretação política que associa a palavra vítima com passividade e derrota. Aqui há uma proximidade com o que Maria Paula Araújo identificou no Projeto “Marcas da Memória”:
Os depoentes que narram as torturas que sofreram parecem falar de algo que aconteceu com outra pessoa: falam com um aparente distanciamento [...]. Talvez para se protegerem dessa emoção e do que ela pode desencadear; ou talvez por uma posição política de recusar a vitimização. (ARAÚJO, 2020, p. 31-32)
No caso de mulheres como Iraci Picanço, é possível haver também uma demarcação de gênero buscando afastar qualquer interpretação que desvalorize o papel das mulheres na resistência à ditadura.
Acrescente-se que muitos se reconheceram como sobreviventes e vitoriosos. Amílcar Baiardi (2014)[12] afirmou que “somos mais longevos que eles [os torturadores]”. Déda[13] (2014) reiterou que “nós não somos vítimas... [...] somos sobreviventes. E isso me dá um orgulho danado!”. Brichta (2014) corroborou: “É verdade, somos sobreviventes!”. Sarno complementou:
somos sobreviventes né? De uma forma ou de outra, mesmo os que não lutaram ou que não pegaram em armas, mas que tiveram que suportar aquele período de mediocridade, de burrice, [...] de puxa-saquismo que foi esse período que nós vivemos na ditadura. (SARNO, 2014).
Essa identidade compartilhada foi atualizada pela memória que reiterou o “auto-reconhecimento como pessoa e/ou membro de uma comunidade pública” (DELGADO, 2006, p. 38). Já para compreender a noção do sobrevivente, vale destacar aspectos das respostas à pergunta elaborada pela Comissão: como você foi atingido pelo regime militar implantado em 1964 e que consequências isso teve em sua vida? Isso será feito nas próximas linhas.
Alguns depoimentos analisaram a questão sob uma ótica mais coletiva. Eliete Telles (2014) refletiu de modo mais amplo sobre a ditadura, especialmente sobre a perseguição na esfera familiar. Maria Liege Rocha (2014) corroborou essa dimensão no relato, evidenciando o impacto da ditadura na subjetividade e no comportamento das filhas. Dimensões da vida privada atravessaram o relato da ex-professora Iraci Picanço. Talvez sejam exemplos sugestivos para pensar em como o gênero molda a memória e o esquecimento (SALVATICI, 2005).
Carlos Sarno (2014) pontuou “esse sonho que fez com que toda uma geração enfrentasse de maneira quase que suicida porque era uma coisa meio desigual a luta contra a ditadura”. De acordo com Gorgônio Araújo (2014), “eu fui atingido como toda a minha geração. Nós fomos castrados nas nossas vocações políticas; nós fomos castrados na nossa liberdade de pensamento, nós fomos... impedidos de dar um destino mais nobre à nossa geração”. É um relato em 3ª pessoa do plural que reconhece uma filiação geracional para evidenciar o quanto o golpe e a ditadura foram experiências de ruptura que geraram frustração coletiva e a sensação do sonho interrompido. O narrador comenta a expectativa abortada de participação política nas lutas estudantis do início da década:
nós tínhamos tido uma participação brilhante no movimento estudantil, todos os meus colegas, meus companheiros, meus amigos, meus contemporâneos que participamos do movimento estudantil e nós participamos. Nós tínhamos tido momentos muito bonitos. (ARAÚJO, 2014).
Araújo (2014) indicou alguns destes momentos. “O primeiro [foi] a luta pela reforma da Universidade da Bahia. [...] uma luta que era da nossa geração para melhorar, para dar à Universidade da Bahia [...] um caminho mais desenvolvimentista”. Acrescenta que “participamos de uma greve, uma greve pública que a Bahia acompanhou, que o Brasil acompanhou e que deflagrou no Brasil inteiro movimento pela reforma universitária naquele momento nos idos dos anos é... 1960” (ARAÚJO, 2014). Em seguida, salienta a participação coletiva no “movimento pela manutenção da... da democracia na época da queda do Jânio Quadros, foi um outro momento belíssimo de altíssimo nível político” (ARAÚJO, 2014). Por último, narrou que “criamos na Bahia um CPC e eu fui ser o dirigente maior deste centro de cultura” (ARAÚJO, 2014).
Caloura na Faculdade de Direito, Eliete Telles (2014) indica elementos do clima político presente em alguns ambientes universitários à época. Sublinha que, paralelo à “dureza da Guerra Fria”, havia
um climão, uma época que havia frenesi, né, de desejo de participação na vida nacional, de contribuição para [...] se fazer ficar melhor e maior movidos por um grande ideal. Era mais ou menos o que havia entre os estudantes. E a faculdade de direito era um [bo]cadinho: era usina não só de ideias [...] a Faculdade de Direito tinha uma grande já tradição de luta. (TELLES, 2014)
Afirma que já “estava no magistério lecionando quando eu sou aprovada no vestibular e venho para Faculdade Federal de direito e aqui eu me liguei logo de imediato a toda aquela atividade política que era muito importante” (TELLES, 2014).
Os fragmentos acima indicam elementos do ideário da época e resumem as principais pautas protagonizadas pelo movimento estudantil brasileiro no início dos sessenta. Registrar essas memórias é importante para combater o esquecimento socialmente construído a respeito das lutas desenvolvidas pelo ME antes do golpe de 1964. Além disso, põe em relevo o papel do movimento estudantil da UFBA na luta pela reforma universitária. Basta dizer que o I Seminário Nacional de Reforma Universitária organizado pela União Nacional dos Estudantes foi realizado em Salvador e que o Presidente da UNE na época foi o baiano Oliveiro Guanais. Apesar desses elementos, a historiografia brasileira sobre movimento estudantil parece não reconhecer essa importância...
Alguns testemunhos foram feitos por pessoas que já estavam na UFBA antes de 1964. Nesses casos, a resposta a essa primeira pergunta elegeu o golpe enquanto um evento organizador das lembranças individuais e coletivas. De acordo com Othon Jambeiro[14]:
chegou a notícia de que tinha havido uma tentativa de golpe militar [...] não era que tinha havido um golpe, mas tinha havido uma tentativa de golpe militar [...] Vibramos com aquilo, aquilo nos deu uma alegria imensa [...] porque [...] a esquerda de maneira geral, não só o PCB mas todo o movimento de esquerda, acreditava piamente no que se chamava “dispositivo militar” de João Goulart que era dirigido pelo general Assis Brasil. Então nós ficamos muito contentes. (JAMBEIRO, 2014)
Eliete Telles (2014) compartilhou crença semelhante. Alega que ficou “ouvindo as notícias acordada. Aquela coisa esperando a reação e confiando no tal dispositivo militar e outras coisas que poderiam [gerar] reação”. A experiência comprovou a frustração dessas expectativas. Segundo Othon Jambeiro:
começamos a ver que as ruas tavam ficando vazias [...]. Pelas ruas começaram a circular muitos carros de militares, do exército, da marinha, da aeronáutica, pra lá e pra cá e a coisa esvaziando e as notícias que iam chegando eram as piores possíveis, quer dizer, o tal do dispositivo militar de Jango era uma farsa. (JAMBEIRO, 2014)
Ele apresenta a expectativa de resistência de uma frente de prefeitos na Bahia que também terminou não se concretizando. Já Eliete Telles afirma: “não houve reação. A gente ficou de certa forma à mercê do que viria e ficamos aguardando [o] que viria [...] foi cada vez ficando pior, mas desde o começo [...] foi ruim” (TELLES, 2014). Esses relatos se aproximam da imagem generalizada numa memorialística de esquerda de que a “derrota [foi] sem resistência” (ARAÚJO, 2007). Frustrada a resistência, Eliete Telles apontou que o medo e as orientações circularam para:
rasgar as coisas que eu tinha. Só anotações de [...] coisas ligadas ao próprio Partido Comunista que eu tinha. E aí daí eu não voltei mais nem para casa onde eu morava em Salvador nem para minha cidade e nem para a universidade [...]. De lá, fui para o restaurante universitário e lá também já estava o clima de busca de perseguição das pessoas. (TELLES, 2014)
De acordo com Othon Jambeiro:
no dia dois [de abril] a situação já tava dramática [...] e as notícias de várias pessoas já presas [...]. A residência universitária foi invadida pelo exército, [algumas pessoas] foram presas [...]. O número eu acho que era trinta e três ou quarenta e três estudantes foram levados, a maioria depois foi solta, é... E outros ficaram mais um tempo. (JAMBEIRO, 2014)
A caçada continuou. No dia três, Othon Jambeiro soube que “a polícia tinha invadido a casa dos meus pais lá em Senhor do Bonfim. Meus pais moravam lá na época, eram vivos e moravam lá. Tinham invadido a casa de meus pais, quebraram tudo”. Já Eliete Telles (2014) contou: “minha família, meus irmãos [...], nenhum deles era comunista, [...] ninguém tinha atividade que poderia considerar subversiva [...] todos foram chamados, ameaçados”; alguns “policiais armados ficavam em frente à nossa casa no interior [...] Todos sofreram esse terror, esse pânico” (TELLES, 2014). Além disso:
meu pai entrou em depressão porque tinha um filho preso, outra sumida, os filhos todos ameaçados, procurados, uma tensão danada no interior. Minha tia [...] que já era cardíaca, foi quem nos criou [...] ela piorou e veio a falecer [...]. Ela morreu nesse período. Foi outro choque para todo mundo. (TELLES, 2014)
A violência irradiada (PADRÓS, 2006) atingia os militantes, mas também as suas famílias enredando pessoas apenas pelos laços de parentesco. Segundo Othon Jambeiro (2014), a polícia que invadiu a casa de seus pais apreendeu “tudo quanto era livro que tinha lá que não tinha nada a ver [com política]”. Aroldo Misi (2014) afirmou que sua biblioteca foi esvaziada de livros vermelhos[15]. Em sintonia com uma linhagem autoritária, o livro se tornou prova de subversão e botim da suposta guerra revolucionária, conforme a visão mobilizada pelos golpistas.
Essa caça aos livros corrobora uma memória das anedotas (RIDENTI, 2000) envolvendo as trapalhadas da repressão na sua paranoia anticomunista. A apreensão de documentos e textos era parte do modus operandi repressivo. Telles (2014) afirma o quanto a mãe foi sagaz ao montar uma engenharia para botar “meus papeis para cozinhar em caldeirões” durante a noite para não chamar atenção dos vizinhos”, pois “nessas horas afloravam todas as subalternidades humanas, as rivalidades, as políticas do interior, as invejas, as raivas, competições [...]. Havia muitas denúncias” (TELLES, 2014). Aqui emerge uma instigante perspectiva que é o papel das pessoas comuns nas denúncias de subversão e na politização de rivalidades e conflitos para se aproveitar do clima ideológico propenso.
Othon Jambeiro acrescenta que:
tomaram o carro do meu pai e passaram a fazer diligências com o carro do meu pai e a me procurar lá em qualquer lugar, e a ordem era, [...] Vivo ou morto! Eles criaram uma [força-tarefa] [...] Deve ter sido criado pelo serviço de inteligência da polícia militar pra poder justificar aquele movimento todo em torno de mim. Eles criaram uma notícia de que eu tinha feito um curso de guerrilha na China e tinha voltado com a patente de coronel do exército chinês - coisa estúpida, absolutamente estúpida. E por isso aquela perseguição. E eles começaram a vasculhar tudo em Senhor do Bomfim à minha procura. (JAMBEIRO, 2014)
Othon Jambeiro conseguiu fugir para a casa de um amigo de seu pai. Entretanto, um dos filhos era lacerdista e tinha amigos de direita. Seria perigoso ficar lá especialmente pelos amigos que “tão aí na rua atrás de comunista porque existia também isso, né? Muitos civis se aproveitavam do momento [...] [e atuaram] como policiais”. A solução proposta pelo amigo do pai foi a seguinte:
Eu tenho um amigo que é capitão do exército. Pra você não ser morto, [...] a solução que eu lhe dou é eu chamar esse capitão, ele lhe prende e lhe leva pro quartel do exército. E eu peço a ele pra ele ligar, pra ele falar com o exército, ligar pra polícia militar e comunicar que você tá preso pelo exército, sob proteção do exército. (JAMBEIRO, 2014)
Isso foi discutido e acatado. Foi preso e mandado “imediatamente pro Barbalho” – um dos lugares da repressão em Salvador. O depoente narrou as condições degradantes na prisão:
ficamos numa cela. Não tinha cama e era proibido entrar cama. As famílias se movimentaram pra levar. Não era permitido. Nós ficamos 19 dias sem tomar banho, sem escovar os dentes, sem lavar roupa, sem ver um pingo d´água, só pra beber um caneco de água diariamente. 19 pessoas dentro de uma cela que cabia cinco ou seis [...] E uma lata no canto da sala que era o sanitário. Sua necessidade você tinha que fazer ali na vista de todo mundo. E todo mundo ali, o mau cheiro ficava e era ali, aquela lata... Depois vinha um soldado, abria, diariamente vinha, abria, levava aquela lata pra outro lugar e era isso: você não tinha direito de sair da cela. Nós ficamos 19 dias assim, sem... sair pra absolutamente nada; nem banho de sol, nem nada, nada, ... A comida vinha numa bandejão. Em cima da cela era o alojamento dos sargentos, e... uma vez, inclusive, um sargento tava escovando o dente e cuspiu dentro... Vinha uma lata de café de manhã e cuspiu dentro da lata de café. O tratamento era brutal assim no sentido de ameaça, é... Eles ficavam o tempo todo de metralhadora em punho com a bala na agulha e avisava, a bala na agulha, “se você, qualquer coisa que você faça era metralhado diretamente. Você não tem direito à sua vida aqui”. Aí depois de 19 dias eles permitiram que a gente tivesse um... Um banho de sol e permitia que a gente tomasse um banho por dia [...] Depois de cinquenta e poucos dias nós formos transferidos. (JAMBEIRO, 2014)
A prisão também esteve no currículo político de Iraci Picanço[16]. Ela afirma que não sofreu tortura física, mas psicológica – que “não se mede. Só se sente de modo geral” (PICANÇO, 2014). Entretanto, disse:
eu vi torturados naquela época, especialmente quando passava encontrei ele. É um grande líder, presidente do sindicato dos [petroleiros]...Foi depois deputado aqui, Mário Lima. Que eu só cruzei com ele sendo levado por umas pessoas quase arrastado e eu não tive outra iniciativa, só a de tentar pegar no braço dele que o sujeito me tirou o braço. E [vi] também um líder sindical do petroleiro que era o Plínio [...] que com quem fui até acareada no sentido de confirmar ou não que eu integrava o Partido Comunista. Esse tava realmente acabado de tortura. Mas teve a hombridade de, pelo menos no meu caso, que a pergunta básica é essa: “ela frequenta o 51?” Era o 51, era o número do endereço do Partido Comunista [...] e Plínio, no meu caso, acabado, jogado numa cadeira. (PICANÇO, 2014)
Picanço (2014) expressa gratidão ao afirmar que Plínio “teve a dignidade de dizer - “não, nunca vi”. E eu me livrei dessa”. A ex-professora organizou o testemunho a partir do golpe. Segundo ela, ninguém foi trabalhar nos primeiros dias após o golpe:
Dias depois nós fomos para ver como ia se conduzir [...] e de repente sobem dois funcionários [...] Sobem correndo pra dizer: “Olha, lá embaixo tem um jipe e dizem que vieram buscar Iraci” [...]. E aí eu tive que sair por uma escadinha atrás, conduzida por um professor da UFBA. (PICANÇO, 2014)
Ela conta que foi para a casa deste professor e lá encontrou outra pessoa:
E lá fiquei, fugindo da repressão. E, dias depois, era dia de pagamento e eu sobrevivia com meu salário [...] Eu fui pra receber dinheiro em uma fila grande, as professoras ali... [...]. De repente, alguém vem lá de trás... a fila era grande... lá atrás volta correndo e diz: “Olha, [...] tem um jipe ali. Estão na fila dizendo... [que estão] procurando Iraci. E aí eram minhas companheiras de luta de professores primários. (PICANÇO, 2014)
A saga de Iraci Picanço continuou. Dessa vez, o destino para fugir da repressão foi o apartamento de familiares. Iraci continuou evidenciando a solidariedade de professores da UFBA – comportamento acentuado em outros relatos:
nesse meio tempo enquanto eu estava procurando ver como caminhava a ditadura e como agiríamos, o professor Calazans e o professor Batista Neves procuraram minha mãe em casa [...]. Perguntaram por mim, ela disse que não sabia. Não se dizia onde eu estava, mas [...] [informaram] que eles queriam me dizer que eu não voltasse à faculdade. Foi uma orientação do reitor. Que minha contratação estava na mesa do reitor, não tinha sido ainda efetivada, e que em seguida ele ia guardar isso e deixar passar... Eu me recordo minha mãe dizendo assim: “vai passar, depois ela volta a trabalhar”. E aí foi minha primeira demissão a partir do golpe. (PICANÇO, 2014)
Narrativas sobre demissões estiveram no repertório dos depoentes. Foram fatos corriqueiros no imediato pós-golpe. Apesar de toda a perseguição sofrida, Iraci Picanço se distanciou do lugar de vítima. Seu testemunho se aproxima do aspecto identificado por Marta Rovai (2017) acerca de memórias femininas que não se vitimizam, apesar das adversidades das relações de gênero. Pelo contrário, ressalta a autora, “as palavras ditas e as lembranças selecionadas remetem a diferentes formas de violência [...] para revelar táticas de coragem construídas cotidianamente na dimensão privada ou na esfera pública, demonstrando que elas não são estanques nem isoladas uma da outra” (ROVAI, 2017, p. 8).
A pluralidade de formas de violência desencadeada com o golpe moldou a vida de muitas pessoas e famílias. Selecionamos um caso emblemático. Eliete Telles narrou as consequências sofridas por sua famíl
todos [os irmãos] foram chamados, ameaçados [...] abertamente pelos esbirros que estavam lá com o sargento do tiro de guerra e [...] e um Tenente que foi para lá para fazer investigação e [...] que depois vem tomar conta do nosso do [Inquérito Policial Militar] IPM dos Universitários aqui em Salvador. Ele começou a trabalhar lá em Nazaré [e] investigava a família toda. E tem uma série de questões de um deles [...] passando assim “quero falar com você. Estou precisando falar com você”. Você nunca dizia o que era até com eles. [...] tem pessoas dizendo isso e aquilo e não era nada fundado e não houve qualquer coisa em relação a Ele [um irmão]. O outro irmão ficou preso um dia inteiro detido um dia inteiro [...] aguardando que fosse chamado [para depor] [...]. Depois do interrogatório, resolveu sair de Nazaré. (TELLES, 2014)
Acrescenta, ainda, que “policiais armados ficavam em frente à [...] nossa casa lá no interior” para impedir a saída de familiares (TELLES, 2014). O pânico se instalou na família. Queimar os documentos era a palavra de ordem, mas como fazer isso sem gerar suspeita? Como já mencionado, acrescentou que “mamãe [ia] botar os papéis [comprometedores] meus para cozinhar em caldeirões” para não gerar suspeitas entre os vizinhos. O pai entrou em depressão “porque [um] filho [estava] preso, a outra sumida e os filhos todos ameaçados e procurados. [Foi] uma tensão danada no interior” (TELLES, 2014).
Telles contou outra história para indicar “como o clima era [pesado] realmente quando o árbitro e legalidade predomina [e] as garantias são suspensas. O clima é de absoluta insegurança, incerteza [...] [e] de mesquinharia” (TELLES, 2014). Ela afirmou que a irmã foi ameaçada em cima de uma versão infundada de que “ela teria ido à noite na delegacia [...] para rasgar documentos” (TELLES, 2014). Ela foi chamada para “um interrogatório de horas e horas e foi ameaçada de ser levada para Salvador presa [...] mas, felizmente, contra ela, [a repressão] não conseguiu nada [que a incriminasse]” (TELLES, 2014).
Telles (2014) afirma que foi indiciada em dois IPMs: um “dos Universitários comunistas [...] a partir de denúncia de colegas [...] de faculdade [e o] outro do CPC”. Ela comenta a respeito da reação de algumas pessoas: “tinham medo até de passar na porta, de falar com as pessoas envolvidas em processo. Me lembro Tereza dizendo: - Não é lepra, mas pega” (TELLES, 2014). Esse é um exemplo de estigma – argumento depreciativo da identidade (GOFFMAN, 1978) - construído contra a militância a partir de uma acusação moral e médica (VELHO, 1999). Telles (2014) foi denunciada no IPM do CPC mas “aí tem um gesto fantástico aqui [d]o nosso professor Raul Chaves que compunha [a] frente de advogados que estavam defendendo os presos políticos – junto com Jaime Guimarães, Pedreira Lapa, Ronilda [Noblat]”. Nesse momento, a depoente leu um trecho de uma peça jurídica para enaltecer a generosidade e capacidade jurídica do Professor na defesa dos denunciados no Processo judicial.
Também a respeito da dimensão familiar na retaguarda afetiva e, ao mesmo tempo, sendo alvo de violência, Carlos Sarno (2014) comentou sobre a avó:
soberana dos seus 80 anos. Se submetia à revista humilhante para me visitar na prisão da Mata Escura. Tinha uma um verme humano [...] [que] revistava inclusive senhoras de 80 85 anos. Devo a eles o amor total e [...] a capacidade de resistir [e] de me manter sereno e firme em meio à dor e o medo. Quem diria que o jovem libertário um dia falaria tão bem da instituição familiar. (SARNO, 2014)
Os fragmentos apresentados são representativos de algumas experiências repressivas a partir do golpe de 1964 que atravessaram as trajetórias de muitos depoentes da CMV UFBA. Como demonstrado, essas testemunhas organizaram a resposta para a primeira pergunta a partir da deposição de Goulart. A ruptura veio acompanhada de violência e fúria repressiva desencadeada contra apoiadores do bloco reformista – independente de relação orgânica com a esquerda. Perseguição, prisão, ameaça, pânico, fuga, clandestinidade e medo foram fantasmas e experiências que afetaram essas pessoas e o seu entorno.
Pais, mães, irmãos, irmãs, amigos, filhos, demais familiares e cônjuges não estiveram blindados da lógica repressiva. Muito pelo contrário. Em muitos casos, foram empurrados pelo vendaval repressivo que emergiu a partir do golpe e foi se institucionalizando com a ditadura. Neste sentido, merece destaque outro acontecimento organizador das lembranças de alguns depoimentos: o AI-5 e a cassação de matrículas. Vejamos alguns fragmentos a respeito das memórias sobre as medidas.
Baixado em 13 de dezembro de 1968, o AI-5 institucionalizou o arbítrio. A universidade não ficou imune ao clima político de intolerância com a oposição. Estudante de economia, José Sérgio Gabrielli[17] relembrou o ambiente de 1968, mais especificamente alguns eventos locais e nacionais, bem como a atmosfera internacional. Sublinhou 1968 como um ano de “reações desproporcionais. [Era] como enfrentar tiros de fuzis como bola de gude”. Para Eduardo Saphira (2014), “de 1965 a 1968 nós ainda tivemos um grau de liberdade que possibilitou movimentação, contestação, confronto com o regime militar que foi totalmente abalado a partir do AI-5. Esse é o período realmente ditatorial”. João Coutinho (2014) afirmou que “até 1968 tinha um discurso ambíguo. [...]. Em 1968, eles tiraram a máscara e assumiram mesmo um governo de força [com o AI-5]. [...] uma perseguição implacável”.
Ainda assim, Motta argumenta que
os membros da linha de frente da repressão demandavam instrumentos legais, pois alguns Reitores tentaram expulsar os alunos e os atos foram anulados pela Justiça. Havia também o receio do protesto estudantil no retorno às aulas. Por essa razão, o Conselho de Segurança Nacional montou legislação direcionada para conter o ativismo dos estudantes. (MOTTA, 2014, p. 154)
A cassação do direito de matrícula na UFBA é um dos fatos que desperta indignação entre os testemunhos. Eduardo Saphira (2014)[18] afirmou que a cassação foi feita “de uma maneira assim totalmente por debaixo do pano”. Carlos Sarno (2014) não se deteve muito no tema. Apenas mencionou: “não foi uma expulsão formal quando eu fui impedido de continuar minha vida na universidade”. Fernando Passos (2014) se desestabilizou emocionalmente e chorou no início da oitiva ao tratar desse tema a ponto do seu primeiro testemunho ser transferido para outra data. Na segunda oportunidade, alegou que foi um dos acontecimentos mais dolorosos de sua vida. “Do ponto de vista do meu futuro, da minha vida [...] a cassação foi muito ruim”. Ele acentua uma mágoa profunda, “uma frustração que está dentro de mim [...] e foi a universidade, a ditadura que fez isso”. E sublinha: “nunca consegui desvendar se foi uma ordem [e] de quem foi”; mencionou apenas que “a UFBA teve esse papel maldito na minha vida” (PASSOS, 2014).
Maria Liege Rocha entrou na Escola de Biblioteconomia em 1967. Se engajou no movimento estudantil, atuou no Diretório Acadêmico e participou do Congresso da UNE em Ibiúna. Sua trajetória é moldada por essa experiência e suas consequências. Em suas palavras:
a UFBA se antecipou em alguns casos até o [Decreto] 477. Eu mesmo fui cassada antes do 477; logo depois foi que veio o 477. Então, eu fui impedida de me matricular em 69 [...] como impedida de frequentar escola de biblioteconomia na época. Nós fizemos várias assembleias dos Estudantes [...] para me manter na escola e isso causou um certo temor na diretora da escola e logo depois eu e meu pai fomos chamados à Polícia Federal e o diretor da Polícia Federal - Luiz Artur - na época disse para meu pai que, se eu voltasse a pisar qualquer dependência da escola de biblioteconomia, eu seria presa em flagrante. (ROCHA, 2014)
Docente do Instituto de Física e chefe do colegiado naquele período, Roberto Argolo (2014) afirmou que solicitou da Reitoria um comunicado oficial sobre a medida. O Reitor teria dito que a ordem teria vindo da 6ª Região Militar e sem documento escrito. Segundo o professor, o colegiado matriculou os alunos. Estudante de Física na época, João Coutinho corroborou ter havido resistência à medida no Instituto. Acrescenta que, segundo “o pessoal da repressão”, “o Diretor [...] se negou a dar informações sobre a gente [4 estudantes de Física presos]” (COUTINHO, 2014).
Alguns desses ex-estudantes conseguiram concluir o curso anos depois. O retorno à instituição e o clima político à época foram temas de reflexão. Eduardo Saphira (2014) comenta que quando retornou para a Faculdade, em 1971, “era o reino do silêncio e da delação!”. Essa percepção é corroborada pelo memorial do Professor Istvan Jancsó (2004, p. 21) que ressaltou o ambiente tenso atravessado por inimizades, esperanças e desconfianças após o AI-5 sublinhando o quanto a “onipresença da ditadura tornara-se terrivelmente pesada”. José Sérgio Gabrielli (2014) acentuou que “era um clima muito ruim esse em 1969”.
Eliette Telles (2014) foi uma das alunas que teve seu direito de matrícula cassado. Em meados dos anos 1970, após uma odisseia para fugir à perseguição e sobreviver, soube que alguns companheiros que tinham sido cassados em 1969 haviam conseguido reabertura de matrícula na universidade. Ela conseguiu reabertura de matrícula para 1976. Entretanto:
antes disso e menos de um mês que [...] estava aqui, a minha filha veio a falecer, que para mim foi um duro golpe porque o pai dela nunca mais conseguiu ver a filha porque ele estava preso ainda em Recife. Passou 40 dias sob tortura [e] incomunicável e ainda teve que ouvir do Miranda que era o Fleury de Pernambuco [...] que eu tinha sido presa e que minha filha estava no asilo. Depois, quando meu sogro foi visitar ele, disse [na] hora de ver ele que aquilo foi mentirinha. Isso é mentirinha? Isso é uma barbaridade. (TELLES, 2014)
Telles voltou para UFBA e em 1976 terminou o curso. Alega que foi presa na associação dos funcionários públicos da Bahia no dia do lançamento do livro sobre a Guerrilha do Araguaia. Lá ficou por dez dias incomunicável. “Eu sozinha numa cela e eles em duas celas: cinco em cada um. Depois fomos transferidos [...] para o Barbalho porque nós todos temos nível universitário” (TELLES, 2014). Após alguns dias, o ex-companheiro levou as filhas para visitá-la na cadeia. Ela conta que
durante muito tempo, elas quando andavam com a gente na rua seguravam na mão [...] [quando] vi[am] um policial perguntava[m] “esse é do bem ou é do mal” porque o do mal era o que tinha levado a mãe delas presa. E isso foi uma constante na nossa vida [...]. [Novamente,] em 84 [...] [o] meu apartamento em Brotas foi de novo invadido pela Polícia Federal que levaram mais de 50 livros nossos ficaram a manhã inteira revistando almofadas brinquedos e etc. (TELLES, 2014)
Maria Liege Rocha (2014) guarda marcas das experiências e indica as consequências para a família. Ilustra com o exemplo da filha mais velha que
passou o primeiro ano da vida dela indo visitar o pai toda quarta e sábado comigo. E o primeiro aniversário dela nós fizemos - eu e Teresa, que era casada com Paulo Pontes [...] um bolinho e uma comemoração, se a gente pode dizer isso do primeiro aniversário dela e do filho de Paulo Pontes na penitenciária Lemos de Brito em 78. (ROCHA, 2014)
Ela afirmou que “Teodomiro dos Santos tirou uma foto de Lia [...] colocou ela atrás das grades e escreveu no chão “Anistia!” (ROCHA, 2014). E essa foto dela foi um símbolo da luta da anistia.
Embora os testemunhos passeiem por diferentes temporalidades, muitos registraram sua percepção geral sobre a trajetória. Escolhemos um fragmento para encerrar. Ao realizar um balanço da experiência de testemunhar, Sarno (2014) comentou que
a primeira palavra é regurgitar. [...] é assim que eu encaro o depoimento sobre o tempo da ditadura. Não são lembranças nem denúncias nem sequer testemunhos. A memória é regurgitada [como] coágulos de memória que depois volta comer por que se torna impossível expeli-lo como um vômito. Então eu sempre acho que quando eu falo sobre a ditadura eu sou o ator regurgitando. É como se você trouxesse a comida de volta para [que a] boca não vomitasse [...] de novo... (SARNO, 2014)
Os fragmentos a respeito do impacto da ditadura nas vidas dos depoentes ilustram a riqueza do acervo da Comissão Milton Santos de Memória e Verdade UFBA. Eles permitem ampliar a abordagem hegemônica dos testemunhos – a ênfase na polaridade repressão/resistência – rastreando indícios da adesão de setores civis ao ambiente repressivo e hostil à esquerda, a exemplo da presença de civis caçando comunistas na rua e/ou agindo como forças policiais. Possibilitam identificar a cultura do medo enquanto um dispositivo fundamental para a ditadura. São sugestivos para pensarmos numa sensação de sufocamento em que o cotidiano de determinados sujeitos e seu entorno social esteve atravessado pela onipresença da vigilância e do Estado. Abrem brechas para refletir sobre temas instigantes como o papel das famílias para o aparelho repressivo e para a resistência e sobrevivência dos opositores.
A legitimidade e a valorização dos testemunhos reconhecidas neste texto não significam necessariamente diluir as fronteiras entre memória e historiografia, tampouco uma “fidelidade memorial” (FERREIRA, 2012, p. 112). Ilustremos o argumento com dois exemplos. 1) No caso da recusa por parte de alguns depoimentos no uso da palavra vítima, essa é uma interpretação singular da palavra socialmente compartilhada por alguns testemunhos, mas que esvazia o significado básico de vítima entendida como “pessoa ferida, violentada, torturada, assassinada ou executada por outra”. A violência do golpe e da ditadura foi direcionada para instituições, sujeitos, corpos e trajetórias produzindo vítimas. Ao mesmo tempo, esses sujeitos agiram, resistiram dentro de determinada correlação de forças e foram protagonistas de ações que têm sua importância social e acadêmica. Não há contradição entre reivindicar a pertinência de nomear aquele que sofreu a violência da ruptura institucional como vítima e demarcar seu papel enquanto sujeito histórico. 2) O segundo exemplo diz respeito ao modo de organizar o tempo. Se é instigante reconstituir a sensação presente nos testemunhos a respeito da violência hipertrofiada após o AI-5, convém reiterar o discurso historiográfico que delimita o início da ditadura a partir de 1964.
Pesquisa sugestiva será explorar as clivagens de gênero na memória. As narradoras se reconhecem como protagonistas. Elas não assumem a “posição de se colocar à sombra e de não reconhecer suas próprias atuações, seus méritos”, como mapeou Joana Maria Pedro (2017, p. 45) numa outra pesquisa. Ao mesmo tempo, continua a autora, “a memória é gendrada, e a forma da narrativa de memória também o é. O reconhecimento de si como protagonista, como personagem histórico, é atravessado por relações de gênero” (PEDRO, 2017, p. 51). O que se percebe são testemunhos comprometidos “com as feridas da memória, mas não com a memória ferida, porque também reveladora da ousadia e do desejo de superação. Mais do que isso, com a busca contínua pela denúncia, pela publicização e pelo enfrentamento das dores” (ROVAI, 2017, p. 7-8).
A questão da maternagem e das relações de gênero entre a militância poderia ser explorada. Numa impressão inicial, os depoimentos de mulheres acentuam a dimensão da família e dos filhos com mais ênfase. Ou seja, é interessante investigar o “modo como as histórias são narradas” (SALVATICI, 2005, p. 33) e como o gênero foi mobilizado nos testemunhos de homens e mulheres. Inspirado em Orellan (2020, p. 229-232), um dos aspectos para avaliar a questão é a própria emoção como uma categoria analítica sugestiva para enriquecer o debate em geral e particularmente mapear como as expressões emocionais ligadas intimamente ao poder e à autoridade são expressas por homens e mulheres nos testemunhos.
Outro desafio do acervo é analisar a linguagem corporal dos depoentes. Joutard (2000, p. 35) assinalou “o interesse da gravação em vídeo, que permite capturar também gestos e expressões”. Ao mesmo tempo, pondera: como interpretar “as mímicas e gestos?”. Michel Frisch defende que “vozes, rostos e expressões corporais estão no âmago daquilo que torna a história oral apaixonante”, mas salienta que “a transcrição textual tem sido a base principal para o envolvimento” (FRISCH, 2016, p. 63). O diálogo interdisciplinar é fundamental para sofisticar o olhar a ponto de decodificar esse corpo que também testemunhou nas sessões oitivas, chorou e se emocionou. Afinal “a gestão das emoções” cria “uma expressão facial pública e uma exibição corporal” (HOCHSCHILD, 1983, p. 6-7 apud ORELLÁN, 2020, p. 225-226). Sejamos capazes de decifrá-las!