Debates
Fechado em agosto de 2013 por risco de desabamento, o Museu do Ipiranga -USP, também conhecido como Museu Paulista da Universidade de São Paulo – fundado em 1895 e, desde então, um dos mais conhecidos e visitados do país – foi reinaugurado em 06 de setembro de 2022, durante as celebrações do bicentenário da proclamação da independência do Brasil. Durante as obras de restauro, modernização e ampliação da instituição, iniciadas no ano de 2019, foi executado pela empresa Scientia Consultoria Científica um projeto de prospecção geofísica e monitoramento arqueológico que atendeu demandas do licenciamento ambiental em que as obras foram acompanhadas por arqueólogos responsáveis pela verificação da presença/ausência de vestígios arqueológicos nas áreas afetadas pelas ações de engenharia e, em caso positivo, determinar a natureza, extensão, cronologia e significância dos vestígios no intuito de recomendar, junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), medidas a serem tomadas para a proteção dos bens arqueológicos identificados.
É sempre um desafio traduzir o trabalho do arqueólogo e os resultados das suas pesquisas em uma linguagem acessível e menos técnica. No caso do Museu do Ipiranga - USP, o desafio foi maior devido às características e ao contexto da cultura material identificada, geralmente vista como “lixo recente” sem valor ou significado, um material na maioria das vezes fragmentado, enterrado na área externa do museu, além de algumas poucas peças completas achadas no interior do edifício-monumento. Grande parte são tralhas do cotidiano, “pedaços de vida no chão”, como cacos de garrafas em Grès e vidro, copos de vidro, fragmentos de xícaras de porcelana, louças quebradas, metais enferrujados, moedas antigas, talheres oxidados, a dobradiça de uma porta, uma dentadura; materiais esquecidos, descartados ou enterrados propositalmente, mas que ganham, através do contexto e registro arqueológico, novas funções e significados que expandem o seu horizonte de expectativa ao serem transformados em documentos da cultura material, fonte de informação, permitindo que se tenha uma maior compreensão das trajetórias dos homens e mulheres que circularam pelo arredores e pelo interior do museu ao longo do tempo e das atividades que lá praticaram.
Esses são objetos relativamente comuns de serem encontrados em sítios arqueológicos históricos, mas o trabalho de monitoramento arqueológico despertou o interesse da mídia devido à descoberta de alguns achados que foram considerados inusitados na área interna do edifício-monumento. Essas peças não estavam associadas aos visitantes do museu, muito menos aos grandes vultos eternizados em seus corredores. Eram os objetos relacionados aos trabalhadores que ergueram, reformaram ou conservaram a edificação do museu em mais de um século de sua existência. Foi o caso de um chapéu encontrado no momento do desmonte do piso de primeiro andar do edifício-monumento, no espaço entre o teto do térreo e o piso do primeiro andar. O chapéu de feltro de aba mole (Figura 01) é popularmente conhecido como “chapéu cata ovo”. É um modelo comum entre trabalhadores rurais e urbanos que necessitam de uma barreira mecânica que os proteja da longa exposição ao sol ou de algum detrito que caia sobre a sua face, como agricultores, pescadores, pintores, marceneiros e pedreiros. Nenhum outro vestígio arqueológico foi encontrado associado ao chapéu, que foi identificado e coletado pela equipe de arqueologia. O fato é que o chapéu é capaz de presentificar uma ausência, para aqueles dispostos a enxergar nas marcas de historicidade deixadas nos objetos de um outro tempo, a vida que um dia neles habitou.
Já no entreforro do segundo andar da galeria oeste do edifício-monumento foram encontradas duas garrafas de vidros amarradas por um cordel (Figura 02), que parecem ter servido para aplacar a sede de algum trabalhador que um dia passou por ali. Teriam as duas garrafas sido erguidas ao teto pelo cordel que as amarrava, a fim de serem alcançadas por alguém que trabalhava no forro? Por que permaneceram por lá? Foram deixadas lá de propósito ou por esquecimento? O desafio da interpretação é quase sempre o problema mais difícil que se impõe aos pesquisadores, que precisam unir a capacidade de descrever o objeto com uma atitude de decifração de seus significados, buscando o contexto em que foi encontrado e informações sobre a sociedade que o fabricou, consumiu e descartou.
O monitoramento arqueológico contribui para a formação de um interessante acervo com material muito distinto daquele originalmente pensado para o primeiro núcleo do Museu do Ipiranga - USP e das muitas e substanciais ampliações que ocorreram desde a sua inauguração, nos fins do século XIX. O Museu possui hoje um acervo de mais de 450.000 unidades, entre objetos, iconografia e documentação textual, datados do século XVII até meados do século XX, de grande relevância para a compreensão da história do Brasil e, especialmente, de São Paulo. O acervo que se formou através do projeto de monitoramento arqueológico registra a passagem de personagens que muitas vezes estiveram à margem desta história, a “arraia-miúda”, os trabalhadores que ergueram suas armações, se embrenharam nas entranhas de um edifício que não é monumental apenas em sua imponente arquitetura, mas nas múltiplas vivências que se desenrolaram em suas salas e jardins, história vista debaixo dos pisos, entre os forros.
O trabalho arqueológico acrescentou mais uma camada de informação e complexidade ao museu e não estaria completo sem a execução de ações de divulgação científica, etapa essencial do compromisso com a socialização dos conhecimentos produzidos, sendo imperiosa a necessidade de se planejar formas de envolver o público e permitir a sua interatividade (FRANÇA, 2015). Sob essa perspectiva, as ações de divulgação científica procuraram estar presentes no cotidiano das pessoas, cumprindo o seu papel de produzir o efeito de exterioridade da ciência, dialogando não apenas com os pares cientistas, mas ampliando ao máximo o seu público e alinhando iniciativas de popularização da ciência via socialização do conhecimento, garantindo o acesso democrático à informação (FERNANDES & SANTOS, 2013).
A Scientia Consultoria Científica buscou explorar formas variadas e acessíveis de mídias para divulgação, sendo que a internet cumpriu um importante papel nessa empreitada, ao permitir a socialização do conhecimento por meio de ferramentas digitais, como as populares redes sociais, espaços que permitem alcançar um grande número de usuários em busca ativa por socialização e troca de experiências. Utilizando a fanpage da Scientia Consultoria Científica no Facebook, foi produzida uma série de postagens destinadas a informar ao público sobre os trabalhos realizados durante o monitoramento arqueológico, seus métodos e seus achados.
Para além da mera exposição textual passiva de informações ilustradas com imagens, as postagens foram encaradas como instrumentos reflexivos e mecanismo de empoderamento do usuário da rede, que, ao ter contato com o conteúdo referente ao trabalho arqueológico realizado, pôde produzir seus próprios questionamentos e fornecer dados auxiliares à pesquisa. O material produzido pela Scientia posteriormente serviu de base para outra série de postagens realizadas pela equipe de comunicação do Museu do Ipiranga-USP em suas redes sociais oficiais, o que potencializou o alcance dos textos, suas informações e discussões levantadas.
Entre as várias postagens produzidas, uma delas se destacou por gerar um grande número de visualizações, comentários e compartilhamentos, tanto nos canais da empresa quanto nas redes do Museu Paulista, dando início a uma série de matérias jornalísticas em portais da internet, canais de televisão e até conteúdo em livro didático. Foi um texto que abordou um objeto encontrado em um vão entre a parede e o forro de uma das salas do museu: um pé esquerdo de chinelo emborrachado, com uma tira de cor escurecida, de modelo similar aos populares chinelos Havaianas ainda hoje comercializados (Figura 03). O objeto apresentava outro marcador socioeconômico interessante: segurando a tira por debaixo da sola havia resquícios de um prego oxidado, num conserto informal muito utilizado nesse modelo de palmilha com forquilha visando aumentar a vida útil do objeto e postergar a aquisição de uma nova peça.
No detalhe, resquícios do prego que serviu para remendar a sua tira.
Acervo Scientia Consultoria Científica.Sabe-se que o chinelo original da marca Havaianas surgiu no Brasil em 1962, quando a São Paulo Alpargatas se inspirou no design de um típico calçado japonês conhecido como Zori, formado por um fino solado de palha de arroz e tiras de tecido. No calçado brasileiro, o formato do grão de arroz serviu para inspirar o desenho presente na textura da palmilha. Inicialmente, tais chinelos foram comercializados através de caixeiros-viajantes, vendidos em simples sacos plásticos, sendo sistematicamente associados a consumidores de baixa renda. Empresas como a Clark e a Sayonara também produziram chinelos similares. Baratos, eles se tornaram tão populares que, em 1966, quando a Alpargatas fez o registro de patente da sua invenção, o modelo de chinelo já era largamente falsificado no mercado nacional. Ainda na década de 1960, a empresa estampou na sola do chinelo a marca “Havaianas”, para diferenciá-la das imitações, alertando os consumidores para que adquirissem apenas as Havaianas legítimas. Pela ausência do selo Havaianas na sola e com um desenho geométrico nas tiras que não lembram a estilização produzida originalmente pela Alpargatas, uma das hipóteses é a de que o chinelo encontrado numa parede do Museu Paulista provavelmente seja uma falsificação do modelo básico das Havaianas que foi utilizado e descartado por um trabalhador que realizou alguma obra ou reparo pontual no edifício-monumento.
Na história das coisas banais, a arqueologia oferece a oportunidade de fazer registros da memória das diversas comunidades diretamente relacionadas com os sítios em que os objetos são localizados, desenvolvendo um referencial de valores presentes naquele cotidiano. O pé esquerdo de um chinelo carcomido, de sola gasta e com a tira remendada com um prego encontrado num vão do Museu do Ipiranga foi tema de uma postagem nas redes sociais com um convite à reflexão inspirado nos questionamentos produzidos por Maria Helena Versiani: se todos os bens que integram o mundo constituem bens culturais, posto que estão relacionados às diferentes maneiras de viver ao longo do tempo e do espaço histórico, por que alguns são musealizados e outros não? O que determina a sua preservação para as futuras gerações e a sua valorização como fonte de pesquisa e conhecimento, enquanto outros bens culturais são descartados ou secundarizados? (VERSIANI, 2016, p.1) Qual deveria ser o destino do chinelo? Ele deveria ser jogado fora? Integrado ao acervo do museu? Utilizado em ações educativas? O que os leitores e as leitoras da postagem fariam se a decisão fosse deles? Essas foram indagações que fizemos ao divulgar o achado inusitado.
Além do relato sobre o achado, o texto postado nas redes sociais aproveitou para fazer uma deferência à efeméride do centenário da Semana da Arte Moderna de 1922 junto com o bicentenário da Independência, na forma de uma provocação: conta-se que no último dia de programação oficial do evento, o compositor Heitor Villa-Lobos (1887-1959), com um calo inflamado nos pés, subiu ao palco para tocar sambas, chorinhos e maxixes, vestindo casaca e calçando sapato em um pé e chinelo no outro. Caso o chinelo utilizado por Villa-Lobos em 1922 fosse encontrado, haveria alguma dúvida sobre a sua incorporação ao acervo da instituição?
As respostas fornecidas pelos internautas foram muitas e variadas, com quase mil comentários no somatório das redes sociais oficiais dos canais do Museu e da Scientia no Facebook e no Instagram. Parte significativa defendeu a sua incorporação ao acervo da instituição, com argumentos diversos (SCIENTIA CONSULTORIA CIENTÍFICA, 2022; MUSEU DO IPIRANGA, 2022a; MUSEU DO IPIRANGA, 2022b):
· Luiz Henrique Assis Garcia - Definitivamente para a reserva técnica. Além de ser, no geral, um registro material que documenta hábitos de calçar que por muito tempo se apresentavam exclusivamente entre as classes populares, é também o testemunho indireto do trabalho cumprido dentro do prédio da instituição, ajudando a contar sua própria história.
· Maria Cristina Telles Ferreira - O que determina o uso/ fruição/ forma e função de determinado objeto museológico é o objetivo e a coerência com os objetivos/ missão do museu: seu perfil e sua comunidade, que caminham alinhados e em busca de criação em seu conceito de expansão e conteúdo….
· Jael Carvalho - Se fosse do Villa Lobos não teriam dúvida em preservá-lo...
· Barbara Benz - Interessante o questionamento... Este chinelo é digno de nota arqueológica porque estava na parede do museu. Talvez tenha sido usado para alisar cimento, talvez estivesse no pé do operário e arrebentou de novo… e ali ficou no fim da obra. Certo que todos chinelos tem história para contar, mas e o espaço para tanta memória?!?!
· Nadir B Lopes - Preserva, faz parte da história ou de uma história - o Trabalhador que usou deixou a Própria Pegada, isso é Arte!
· Sergio Raposo de Medeiros - Parabéns pela ideia de criar a pergunta e permitir essa reflexão. Já era simpático deixá-lo na reserva técnica, mas pelo debate gerado, a peça ganhou uma nova dimensão e deve fazer parte da exposição permanente, com o contexto de ser testemunho de uma época (que se trabalhava de chinelo), uma homenagem as pessoas comuns que fizeram (e fazem) possível o Museu existir e funcionar e, por fim, da questão do que se escolhe ou não para fazer parte do acervo. Mais uma vez, parabéns pela genial ideia!!!
· Beatriz Schmidt - Preservado e exposto! Afinal, o chinelo representa muito da cultura brasileira, é uma veste que utilizamos desde muito tempo, antes mesmo de fundar as famosas sandálias Havaianas e por isso as pessoas devem ver isso de perto, quantas transformações já passaram e principalmente surgir a indagação de quem era esse trabalhador, o chinelo foi esquecido ou deixou lá propositalmente? Essas indagações traz [sic] ao público o mistério e também cada pessoa interpretará quem foi o trabalhador de uma forma diferente. Portanto, essa peça se faz importante não somente no cotidiano dos brasileiros e na história, deve ser exposto no Museu.
· Jorge Tostes - O museu expõe um quadro que não retrata a realidade. A imagem de Dom Pedro montado num cavalo branco é uma idealização do momento, ele e sua comitiva se deslocaram com burros. Nesse sentido, esse chinelo remendado e carcomido é muito mais representativo de nosso povo, que é a essência de nosso país.
· Rosália Falcão - Preservado. Ali está a história de muitos brasileiros. Quantos aqui conhecem alguém que teve um chinelo desse ou sabe de alguém que fez o mesmo com um? Isso é a história viva de um povo.
· Ellen de Oliveira - Deve ir para o acervo! Mostrando que o museu foi construído pela classe trabalhadora que deu um jeito no chinelo com um prego. Vida real!
· Fatimalopes Violetas - Isso mostra que o trabalhador não tinha segurança nenhuma usando um calçado desse, talvez, trabalhando nas alturas, e como mostra o chinelo, quem usou não tinha condições de comprar outro, era explorado no seu trabalho, deve ser preservado.
· Rodrigo Alves Coelho - Eu concordo com a abordagem arqueológica. É uma peça icônica do vestuário de época, ainda usada no presente. Atualmente, a marca se destaca como um produto relativamente popular, considerando que ela se tornou menos acessível na atualidade, porém, no início de sua produção era vendida como um dos calçados mais acessíveis do país. Mais do que um simples calçado, a peça por si só conta uma história, podemos observar a intervenção do seu usuário para recondicioná-la ao uso, os desgastes provocados pelo tempo e o motivo do seu aparente abandono no local. Quem era seu usuário? Como ele era? Aonde vivia? Quais eram seus hábitos? A qual classe social ele pertencia? Qual sua função ali? São perguntas que a peça não pode responder de imediato, podendo apenas nos dar uma pista ou um recorte do passado.
· Rose Maciel - Essa é a pergunta que se fazem os pesquisadores da Vila Itororó. O conjunto de casas foi construído em cima de casinhas antigas, utilizando materiais usados. Durante décadas os moradores fizeram alterações nas residências. Agora, no momento do restauro, a pergunta é: "Vamos voltar até qual camada de construção? O que é realmente autêntico que valha ser preservado?". A discussão do que merece ser preservado é longa e muito importante. Objetos de luxo e objetos simples têm a mesma relevância histórica.
· Rafael Puertas de Miranda - Eu acho que a peça deve permanecer no acervo do próprio Museu do Ipiranga para não nos esquecermos jamais de que esse formidável equipamento cultural paulistano, provido e preservado pelo trabalho do brasileiro, é de todos. Um surrado chinelo perdido de um operário, portanto, não é vergonha: é identidade.
Outros discordaram sobre a relevância dada à descoberta e, para muitos, o questionamento sobre qual destino dar ao objeto já era absurdo, pois o pé de chinelo encontrado no museu deveria ser simplesmente descartado como lixo (SCIENTIA CONSULTORIA CIENTÍFICA, 2022; MUSEU DO IPIRANGA, 2022a; MUSEU DO IPIRANGA, 2022b):
· Edineusa Bezerril - Se derem uma passada nos lixões das cidades, irão encontrar chinelos muito velhos, sandálias sem as tiras, carcomidas, latas de tintas de obras com pincéis usados pelo tempo, roupas velhas, até bordadas e sujas, bonequinhas sem cabelos que pertenceram a alguma criança. Tudo, tudo veio de algum lugar, usado por alguém que talvez não mais exista. Bem, e aí?
· Cris C Con - Descartem. Se forem guardar tudo que encontrarem, sem conexão com qualquer pessoa ou história, vai parecer casa de acumulador que se apega até a uma sacola de mercado.
· Marcelo Dentello - Foi descartado de forma incorreta e seu lugar é no lixo, isso não tem relevância alguma, só para a esquerda mimizenta e drogada. Invertem tudo.
· Sandro Quintal - Não mostram UM capacete paulista de 1932, o primeiro capacete de aço fabricado no Brasil, mas se deslumbram com um chinelo remendado. Esse é o museu dos paulistas…
· Nelson Tadeu Marcena Rodrigues - Talvez o próprio dono do chinelo o jogou fora, pois o utilizou pra passar o rejunte no piso. Se parece lixo, provavelmente o seja. Descarte de forma correta e tudo bem!!!
· Gustavo Daniel Randi - Tanta coisa interessante e realmente importante na reserva técnica que nunca foi (e talvez nunca será) exposta, e vocês se preocupam com um chinelo estropiado. Mas, não é de se admirar. É bobagem atrás de bobagem, condutas e decisões pífias e desacertadas da administração no Museu. Bem, é só ver a que ponto chegou a estrutura do prédio, esses mais de dez anos fechado ao público, para entendermos que, sim, uma havaiana é de suma importância. Chimpanzés aplaudam, por obséquio. (...) Esse chinelo, que já estava remendado, simplesmente estragou de vez, o cara arremessou no vão e pronto. O certo seria ter jogado no lixo. Não tem nada de histórico nisso aí. Se enfileirar todas as havaianas que já estouraram no mundo dá pra fazer um corrimão daqui até a Lua. (...) Tem história sim: a história de um pedreiro mal educado que ao invés de jogar o chinelo no lixo preferiu arremessar entre a parede e o forro. É a história do povo brasileiro. Nua e crua. (...)
· Fernando Mauro - Hahahahhaa, de quando é esse chinelo? Não sei se tem valor histórico…. Se a fabricante não quer… lixo. Tem tanta coisa de valor histórico que precisar ser preservada e que não é…
· Felipe Correa - Lixo! Mas, os lixões poderiam ganhar uma grana cobrando entrada para “visita a objetos históricos”, de acordo com alguns aqui.
· Ricardo Corbetta - Já tive várias peças historicas destas comigo e joguei fora todas! Caraca, uma havaianas peça de museu? Me poupe.
· Marcos Custodio - Em um país sem memória, que não cuida de suas crianças, a discussão sobre preservar uma havaianas velha com um prego é risível se não fosse triste.
· Cesar Campiani - Só mais o deslumbre com uma simples gambiarra que faz parte da realidade de 99% dos brasileiros, mas que provavelmente é novidade para os 1% de privilegiados que estão brincando de dirigir instituições museológicas no país. Agora, peguem o dinheiro de uma bolsa e vão pra alguma conferência em Paris, apresentar essa sensacional descoberta.
· Usuário Eduardo - Todo(a) arqueólogo(a) sofre de colecionismo. Se não consegue, dá esse pedaço de lixo pra mim que eu jogo fora. De boa!
· Fernando Velôzo Gomes Pedrosa - Essa postagem é patética! Mostra um museu que já não entende a sua função cultural pública. Lamentável…
· Tony Oliveira - Joga fora, tá velho, vai pesquisar o quê nesse chinelo, gente? É um par de chinelo velho, que algum pedreiro deixou por zueira
· Lucas Alexandre de Nbbdsdpm - Qualquer coisa, menos expor no Museu do Ipiranga.
· Marcos Andolphatto - Opinião é opinião, então respeitem, peguem o que jogam no lixo do banheiro do museu e coloquem em exposição, vai de acordo com vários palpites que eu li. Por isso ficou fechado por anos.
· Roberto Stangret - Isso é arte??? Pra ser preservado... No lixo se encontram milhares delas, cada qual sua história. Essa é arte que a esquerda gosta de aplaudir: Insignificante. Inadequada. Inapropriado. Desprovido de qualquer beleza. Ausência total de valores. Arte tem que ter beleza... Tem que ter significado... Tem que ter inspiração do artista...
· João Cândido Martins - Entendo que esse objeto específico encontrado no vão do forro guarda uma história e revela hábitos. Por outro lado, o modelo havaianas ainda é de uso comum na sociedade e uma breve visita de três minutos ao depósito de lixo de qualquer cidade brasileira vai possibilitar o encontro de uns cinco ou seis desses, todos carregando histórias. Vem ao caso preservar e expor todos?
Mais do que buscar uma resposta supostamente correta sobre o destino do chinelo, a intenção foi abrir um diálogo multifacetado sobre como os museus devem funcionar, se comunicar e proporcionar a reflexão sobre a concepção do seu espaço e do seu acervo. A postagem colaborou também para desfazer algumas impressões consagradas em torno da arqueologia, ainda bastante associada a descobertas glamourosas em torno de grandes vultos, grandes eventos, grandes estruturas, objetos “valiosos e vistosos”; de tempos distantes e não às raspas e restos da vida cotidiana. A discussão que se desenvolveu nas redes sociais expôs um debate simbólico entre diferentes formas de conceber o espaço museológico, as tensões de valores estéticos, vieses historiográficos e ideológicos, as distintas perspectivas sobre o que cabe ou não num museu, o que deve ser valorizado, pesquisado, conservado, exposto e o que deve ser descartado desta história.
As tensões trazidas à tona pelo debate vão ao encontro da guinada metodológica em torno da abordagem do acervo do museu empreendida pela direção da instituição. Segundo a curadora Vânia Carneiro de Carvalho, o museu está empenhado em estudar a vida e a cultura material associada ao cidadão comum, outrora negligenciado:
Nós estudamos os meios pelos quais os homens se apropriam da materialidade para se constituírem enquanto indivíduos. (...) Afinal, não somos seres abstratos. Temos um corpo, nosso corpo interage com o meio-ambiente, e o meio-ambiente é formado por coisas. A investigação desse fenômeno nos estimula a sair de uma área celebrativa, dando protagonismo a novos sujeitos históricos. (...) Isso teve um impacto direto na aquisição de coleções. Nossa reserva técnica foi mudando de cara (...). Era algo muito claro para quem lia nossos artigos e acompanhava nossa produção acadêmica. Mas, o grande público não percebeu. (...) Grupos mais conservadores se revoltaram contra a inclusão de determinados itens, exatamente como tem acontecido com esse chinelo na internet. Para eles, é inaceitável que o museu não esteja fixado na celebração da Independência. (...) A pessoa que se irrita com um chinelo é a mesma que despreza um batedor de claras ou um pilão de socar milho. Mas, isso vai estar ali, no mesmo piso que o Pedro Américo (...) Nossa ideia é mostrar que as atividades manuais, tão desdenhadas por determinados segmentos, exigem competências e saberes específicos, que os trabalhadores dominam muito bem. Aliás, teremos galerias inteiras tomadas por chinelinhos de trabalhadores (ROQUE, 2022).
A fala de Vânia Carneiro de Carvalho ilustra como o trabalho institucional em torno das memórias é uma disputa de poder em meio a conflitos e contestações. O destino que será dado ao chinelo de um trabalhador ou à tela apoteótica "Independência ou Morte", de Pedro Américo, será o resultado dos embates entre poder e memória na lida com os acervos, em especial, de um espaço com a responsabilidade de trabalhar a cultura material como documento e testemunho de vidas passadas. Como relembra Mário Chagas, essas articulações e a forma como elas atravessam e utilizam determinadas sobrevivências, representações ou reconstruções do passado no presente demonstram como nenhuma forma de relação com o passado é, em si mesma, emancipadora ou coercitiva (CHAGAS, 2002, p. 43-44), mas resultado de um processo de construção em que nada deve parecer natural. Para Chagas, a memória – voluntária ou involuntária, individual ou coletiva – é sempre seletiva e resultado das suas articulações com os dispositivos de poder e das implicações de se politizar as lembranças e os esquecimentos. “O poder é semeador e promotor de memórias e esquecimentos” (CHAGAS, 2002, p. 43) e é sempre importante compreender quais ideias permeiam os campos de construção do pensamento histórico, das áreas do conhecimento das Ciências Humanas, seus impactos nas práticas museológicas e na “imaginação museal” do público e das comunidades no entorno das instituições.
Algumas respostas à singela pergunta sobre o que fazer com o chinelo do Museu do Ipiranga - USP parecem demonstrar que as noções da “museologia social”, cujos pressupostos estão preocupados em deslocar o foco do objeto para os homens e mulheres que o produziram e/ou consumiram, considerando-os como “sujeitos produtores de suas referências culturais, e engajada nos problemas sociais, de uma forma integral, das comunidades a que serve o museu” (TOLENTINO, 2016, p. 31-32) ainda encontra resistência à quebra das hierarquias de poder. O chinelo que calça o pé de um trabalhador, o chapéu que lhe protege a cabeça, as garrafas de água que lhe amenizam a sede são objetos que ajudam a compor um acervo que permite ao museu fazer um exercício de empoderamento de sujeitos portadores de memória distintos daqueles habitualmente privilegiados nas grandes exposições.
Neste caso, a arqueologia demonstrou que, às vezes, um museu também pode esconder pequenos segredos em suas frestas, objetos à margem do seu acervo conhecido, peças inicialmente não pensadas como parte da sua coleção, esquecidas à sombra do que é visível, entre vestígios e restos de ações humanas naquele espaço. Como num poema de Bertolt Brecht, o trabalho arqueológico formulou perguntas de um trabalhador que lê: Quem construiu o Museu do Ipiranga - USP, o edifício-monumento? Nos livros e exposições, quais nomes estão registrados? E suas estruturas, tantas vezes reformadas, quem a reconstruía sempre? Em que casas viviam aqueles que a edificaram? No dia em que o edifício-monumento ficou pronto, para onde foram os pedreiros? Tantas histórias, tantas questões.
Referências
CHAGAS, Mário. Memória e Poder: Dois movimentos. In: Cadernos de Sociomuseologia [S.I.], V19, n. 19, jun. 2002.
CHAGAS, Mario; ASSUNÇÃO, Paula; GLAS, Tamara. Museologia social em movimento. In: Cadernos do Ceom. Ano 27, nº 41. Chapecó: Unochapecó, 2014, 429- 436.
FERNANDES, Jéssica Luana; SANTOS, Simone Cabral Marinho dos. Redes sociais e divulgação científica: possibilidades para socialização do conhecimento. In: Anais V FIPED. Campina Grande: Realize Editora, 2013.
FRANÇA, Andressa de Almeida. Divulgação Científica no Brasil: espaços de interatividade na Web. Dissertação (Mestrado em Ciência, Tecnologia e Sociedade). UFSCar, São Carlos, 2015.
MUSEU DO IPIRANGA. Arqueologia: chinelo. São Paulo, 13 abr. 2022a. Facebook: @museudoipiranga. Disponível em: https://www.facebook.com/museudoipiranga/photos/a.918998834788699/5618037001551502/. Acesso em 31 de out. 2022.
MUSEU DO IPIRANGA. Arqueologia: chinelo. São Paulo, 13 abr. 2022b. Instagram: @ museudoipiranga. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CcThoQ3v5zO/. Acesso em 31 de out. 2022.
ROQUE, Daniel Salomão. Os mistérios e polêmicas que cercam um chinelo no Museu do Ipiranga. BBC News Brasil. São Paulo, 08 mai. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-61305153. Acesso em 31 de out. 2022.
SCIENTIA CONSULTORIA CIENTÍCIA. Um chinelo na parede. São Paulo, 09 mar. 2022. Facebook: @scientiaconsultoriacientificaltda. Disponível em: https://www.facebook.com/scientiaconsultoriacientificaltda/posts/pfbid02BPsz4oNz6U93SJogja6RLDWwMnvg2xpSPkTFYwK66Z8jgCvApEkkqF13aXX1VYfTl. Acesso em 31 de out. 2022.
TOLENTINO, Atila Bezerra. Museologia social: apontamentos históricos e Conceituais. In: Cadernos De Sociomuseologia, vol.52, nº 8, 2016.
VERSIANI, Maria Helena. “Patrimônio cultural: modos de ver e conhecer”. In: Anais do VIII Seminário Nacional do Centro de Memória. Unicamp: São Paulo, 2016.