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História a múltiplas mãos: tempo presente, história pública e interdisciplinaridade
Luc Capdevila
Luc Capdevila
História a múltiplas mãos: tempo presente, história pública e interdisciplinaridade
Revista Tempo e Argumento, vol. 14, núm. 37, e0501, 2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
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Resumo: Luc Capdevila é professor na Universidade Rennes 2, na França, e membro da Unidade Mista de Pesquisa 6051 Arènes, vinculada ao Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) e dedicada à pesquisa interdisciplinar em Ciências Humanas e Sociais. Entre seus eixos de pesquisa, destaca-se a atenção às questões do tempo presente concernentes às dinâmicas sociais, culturais e de gênero de sociedades em guerra, particularmente no mundo ocidental e na América Latina. Temas como violências, identidades, memórias e gênero, perpassam seus trabalhos publicados nos últimos anos. Destaca-se, em sua produção, o livro Femmes, armée et éducation dans la guerre d’Ágerie, lançado em 2017 e Paraguay y sus guerras: Historia, memoria y construcción política, siglos XIX/XX, em 2021.

Em novembro de 2019, o professor Luc Capdevila esteve em Florianópolis para a realização de uma série de atividades promovidas pelo Instituto de Estudos de Gênero (IEG) e pelo Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Na mesma ocasião, proferiu a palestra intitulada “Mulheres, exército e educação na guerra da Argélia: objetos e métodos da História do tempo presente (1954/1962 – 2019)”, promovida pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGH), da Universidade de Estado de Santa Catarina (UDESC). Após a palestra, concedeu a presente entrevista[1] às professoras Mariana Joffily e Caroline Jaques Cubas. Nesta, fala de sua trajetória e atuação como historiador interessado pelas questões do Tempo Presente e da América Latina, destacando os métodos, conceitos e categorias que conformam, ao longo do tempo, suas práticas de pesquisa, bem como suas colaborações com colegas historiadores e de outras áreas das ciências humanas.

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Entrevista

História a múltiplas mãos: tempo presente, história pública e interdisciplinaridade

Luc Capdevila
Universidade Rennes 2, Rennes, Francia
Revista Tempo e Argumento, vol. 14, núm. 37, e0501, 2022
Universidade do Estado de Santa Catarina

Tempo & Argumento: Talvez possamos começar falando sobre a sua trajetória de pesquisa, os temas que lhe interessaram ao longo do tempo. Para, em seguida, passarmos a questões mais específicas a respeito de sua última pesquisa – que nos interessa particularmente, porque, em alguma medida, faz uma ligação entre a História do Tempo Presente e a História Pública.

Luc Capdevila: Quanto à minha trajetória, quando comecei a pesquisa para a tese – que discute a Liberação da França, em consequência da Segunda Guerra Mundial –, fiquei muito surpreso quando, ao pesquisar sobre esse período, me deparei com o fenômeno das mulheres tosquiadas (les femmes tondues), ou seja, mulheres castigadas pela Resistência Francesa, condenadas a terem as cabeças raspadas. Fiquei surpreso por se tratar de um fenômeno que era, ao mesmo tempo, massivo e sistemático, que parecia ser uma obsessão para os resistentes e franceses e francesas liberados, uma prioridade. Meu trabalho sobre a Liberação não se restringiu a esse fenômeno, mas foi um assunto que me ocupou bastante e foi por meio dele que me orientei para os estudos de gênero, de gênero e guerra.

Partindo do princípio de que as guerras foram momentos particulares de construção de gênero, em que o gênero adquire uma espécie de posição política, nesse contexto, juntamente com outros pesquisadores, sobretudo do CNRS (Centro Nacional da Pesquisa Científica) – Fabrice Virgili, cuja tese discorre sobre as mulheres tosquiadas; Danièle Voldman, com quem trabalhei bastante e que se interessava pelas questões de urbanismo e de habitação; também com François Rouquet –, criou-se um grupo de pesquisa sobre gênero e guerra no Instituto de História do Tempo Presente, cujo objetivo era estudar as guerras enquanto espaços de construção de gênero e, particularmente, de construção de identidades de gênero, procurando compreender qual seria seu impacto nesses conflitos. No grupo de pesquisa, estava prevista ainda a participação de uma norte-americana, Paula Schwartz, especialista da Resistência, que trabalhou bastante conosco (éramos cinco no início do grupo), mas que acabou não participando da escrita do livro Homens e mulheres na França em guerra[2].

Foi nesse cenário que, mesmo estando envolvido com outros temas, dei-me conta de que ficamos demais na Primeira e na Segunda guerras mundiais. Que, para mim, eram campos já bastante explorados, por isso muito conhecidos. Então, disse a eles que era preciso trabalhar dentro de uma perspectiva comparativa, era preciso trabalhar com outros conflitos.

Por razões pessoais, eu conhecia o contexto da Guerra do Paraguai e, por isso, decidi incluir o Paraguai em minhas pesquisas, por meio da problemática do impacto da Guerra do Paraguai sobre o gênero. Assim, voltei-me para o Paraguai, numa perspectiva histórico-comparativa, o que, na verdade, foi bastante complicado – a História Comparada é um mundo à parte. Além disso, e sobretudo – mas isso faz sempre parte da abordagem do historiador –, me deparei com outras problemáticas nos arquivos. Por exemplo, ia aos arquivos à procura das mulheres, e não as encontrava, encontrava homens. Procurei compreender por que esses homens haviam sido esquecidos.[3] Então, minha pesquisa evoluiu para uma outra abordagem, que envolve uma temática de História do Tempo Presente, ou seja, a relação que a sociedade paraguaia mantém com esse conflito – que ainda é muito particular. Por outro lado, trabalhei com a questão da memória – porque se trata de uma problemática de memória –, porém, buscando retornar à guerra para compreender qual tinha sido o seu processo de construção.[4]

Na verdade, continuei sobre a temática de gênero, porque, ao trabalhar nos arquivos paraguaios, o que me interessava era trabalhar com os veteranos da Guerra do Paraguai e compreender qual era o discurso que eles tinham conseguido produzir sobre a guerra. Na minha opinião, era o caminho essencial, pois foi ali que tudo começou. Encontrei esses veteranos, seus discursos, nos arquivos do Ministério da Defesa. Uma espécie de fonte muito particular: nos anos próximos a 1900, o governo paraguaio decide se encarregar dos veteranos que não podiam trabalhar, e, para obter uma pensão, eles precisavam narrar a guerra. Encontrei todos esses relatos. Daí pude fazer estudos ao mesmo tempo qualitativos e estatísticos sobre esses relatos, e me dei conta de que seus discursos sobre a guerra eram, na verdade, contraditórios. Quando diziam: “nós resistimos, nós combatemos, nós somos heróis”, diziam ao mesmo tempo: “nós somos responsáveis pela catástrofe”. A partir daí, compreende-se que é um discurso que dificulta a construção de uma memória, porque é demasiado contraditório.

Pude perceber depois, pesquisando, que estes veteranos estão presentes nas cidades paraguaias durante os anos 1900. Estão lá, participam das reuniões públicas, mas, quando falam, ao mesmo tempo em que fazem o auditório chorar, eles mesmos estão muito confusos. Então, de repente, compreendi a situação. Compreendi que, na verdade, é outra geração que está assumindo as narrativas sobre a guerra: a geração pós-guerra, a geração daqueles que nasceram depois da guerra. Retiram apenas parte destes discursos, aquilo que é compatível com a construção do nacionalismo, mas deixam de lado o que é contraditório. E são eles que escrevem, não são os veteranos. Por consequência, continuando a trabalhar sobre gênero e guerra, segui pesquisando o lugar do gênero na construção da memória e da identidade paraguaia. Efetivamente um trabalho de História do Tempo Presente, porque parto do Paraguai atual, que tem uma relação muito particular com sua memória, e esses conflitos. Retorno à Guerra da Tripla Aliança para tentar compreender o que se passou e, depois, prossigo pela linha do tempo para compreender essa relação que se construiu entre o momento da guerra e a sociedade paraguaia contemporânea. De modo que estou tanto numa abordagem que é de História do Tempo Presente, quanto numa abordagem que trata de questões de gênero, dessa vez diferente daquela que realizei em relação à Guerra da Argélia, já que, de fato, trabalho na sociedade paraguaia dando preferência a uma abordagem de observação participante. Significa que pude observá-la – estava imerso nessa sociedade – de dentro. Depois testei os resultados, que apresentei em conferências e publicações.

Morei no Paraguai nos anos 80, mas, nessa época, não pesquisava. Depois ia regularmente, mantive fortes relações com colegas paraguaios, e um certo número das minhas publicações, ao menos para mim as mais importantes, foram publicadas no país. Isso também me permitiu acompanhar a recepção da pesquisa.

Tempo & Argumento: E como foi essa recepção?

Luc Capdevila: Foi boa, porque eles se reconhecem na interpretação. Publiquei um livro sobre a Guerra do Paraguai[5], uma coedição argentina e paraguaia. O livro é bastante difundido na Argentina e, também, no Paraguai. Acho até que a pesquisa foi mais bem recebida na Argentina do que no Paraguai. Mas no Paraguai foi lido, discutido e, a partir disso, fiz conferências, particularmente na Universidade Católica e na Universidade Nacional – na Universidade Nacional foi intenso, mas deu tudo certo (risos); na Universidade Católica, a recepção foi mais entusiástica. Em resumo, o livro é bem conhecido e apreciado.

Tempo & Argumento: Qual foi o passo seguinte?

Luc Capdevila: Vamos seguir nos grandes momentos da História do Tempo Presente. Depois da Guerra do Paraguai, ou melhor, dos prolongamentos da Guerra do Paraguai, dei prosseguimento, junto com um etnólogo do CNRS, chamado Nicolas Richard, a um trabalho sobre a experiência dos indígenas da Guerra do Chaco. A problemática, ali, foi observar que, na historiografia, os indígenas do Chaco estão ausentes, mesmo vivendo no Chaco. Parecia problemático escrever uma história que não levasse em consideração os indígenas – por questões políticas, humanistas, mas paralelamente por questões históricas –, para explicar como essa população conseguiu atravessar a guerra entre o Paraguai e a Bolívia. Então, chegamos bem rápido à ideia de que, de fato, a Guerra do Chaco foi mais do que uma guerra internacional, foi uma guerra de colonização, ou seja, foi a própria guerra que permitiu a colonização do Chaco pelas tropas beligerantes e, neste caso, pela tropa paraguaia, que venceu o conflito. Juntamente com Nicolas, estabelecemos um programa de pesquisa interdisciplinar que associa história e etnologia – os historiadores trabalhavam nos arquivos e os etnólogos no seu ateliê de etnologia. No ateliê de etnografia, estavam Nicolas, Pablo Barbosa (um colega brasileiro, do Rio de Janeiro) e, na Bolívia, Isabelle Combès. Assim, paralelamente, eles montaram ateliês de memória nas comunidades e coletaram, nas diferentes comunidades, cerca de 80 relatos sobre a Guerra do Chaco.

Tempo & Argumento: Não se trata, então, propriamente de História Oral, pois são relatos tomados por antropólogos dentro de outro quadro metodológico?

Luc Capdevila: Sim, outra metodologia. São ateliês de memória. Eles pediam às pessoas que falassem sobre guerra e as deixavam falar livremente. É por isso que prefiro falar de narrativas.

Tempo & Argumento: No coletivo? As falas não eram tomadas individualmente?

Luc Capdevila: Nas comunidades, não é possível atuar a portas fechadas. Tudo é feito publicamente, junto à comunidade, com pessoas passando e escutando as histórias. E a partir desses relatos, pudemos trabalhar, por um lado, o processo de colonização e, por outro, a maneira como as populações atravessaram o conflito: ou diretamente envolvidas, ou mobilizadas como auxiliares, ou completamente integradas às tropas, enquanto vítimas etc. Além disso, sobretudo observar as suas trajetórias, isto é, entender como essas populações foram gradualmente expulsas de seu território para, em seguida, serem reagrupadas, ou nas missões, ou em torno dos centros de colonização. Foi também inteiramente um trabalho de História do Tempo Presente, porque se trata, igualmente, de transformar a representação desse acontecimento nas sociedades paraguaia e boliviana

Tempo & Argumento: E foi a primeira vez que houve acesso aos relatos dos atores?

Luc Capdevila: Não exatamente, porque é possível encontrar relatos em corpus produzidos pelos antropólogos. Desde os anos 1970 e 1980, os antropólogos trabalham também com os indígenas enquanto atores políticos, e não apenas enquanto atores antropológicos.

Tempo & Argumento: Em sua trajetória de pesquisa, foi a primeira vez em que houve atores que falavam, que contavam suas histórias? Porque, quando você trabalhou com a Primeira e a Segunda Guerra...

Luc Capdevila: Não exatamente, porque já tinha feito entrevistas para minha tese, sobre a Liberação na Segunda Guerra Mundial. Isso foi nos anos 1990, há trinta anos, e, naquela época, ainda existiam pessoas que haviam passado pela Segunda Guerra Mundial, os resistentes, alguns dos quais entrevistei.

Tempo & Argumento: Você fez entrevistas seguindo um método de História Oral, coletiva, pública?

Luc Capdevila: Não, foram entrevistas clássicas. Portanto, o essencial de meu corpus, do meu material para a tese, foram arquivos públicos, relatórios dos prefeitos, arquivos judiciários das depurações legais. Nesse sentido, um trabalho acadêmico clássico – mas já desenvolvido no escopo dos trabalhos da Segunda Guerra Mundial –, com entrevistas que consegui realizar com alguns atores. Não foram muitas, mas consegui obter algumas horas de entrevistas. Ao menos tive essa experiência. Mas não era minha ideia, não era sistemático. Continuava achando que era preciso dar prioridade aos arquivos.

Então, foi mais ou menos assim: observação participante, muita discussão in loco, no Paraguai, sobre a guerra do Paraguai, e lá estávamos numa outra abordagem de História do Tempo Presente, praticamente uma abordagem de História Regressiva – fala-se do presente para ir em direção ao passado –, além disso, uma abordagem sistemática de confrontação entre os testemunhos e os arquivos, a partir do momento em que trabalhei sobre a guerra do Chaco. Depois da guerra do Chaco, embora tenha feito outras coisas, buscamos, no grupo, simplesmente uma evolução metodológica que aprofundasse uma História do Tempo Presente.

O trabalho sobre a Guerra da Argélia, acho que é, talvez, o mais bem-sucedido em termos de História do Tempo Presente, porque, ali, há realmente uma confrontação entre os testemunhos com os arquivos públicos. Conto com isso, porque há momentos em que os arquivos públicos não só não dizem tudo – sempre digo que os arquivos são lugares de poder, o que é evidente –, mas também, dado o contexto, o espaço das mulheres nessa experiência do serviço de formação dos jovens na Argélia é praticamente inexistente nos arquivos públicos.

A mulher está ausente nos arquivos por duas razões. A primeira é porque elas não dependem das Forças Armadas, por isso, não aparecem nos arquivos militares; elas não são gerenciadas pelas Forças Armadas. Nos arquivos militares, há apenas mulheres militares, portanto, aquelas que eles formaram. Por outro lado, existem muitos elementos sobre o serviço de formação de jovens mulheres na Argélia, pois foram as Forças Armadas que, com sua logística, permitiram o funcionamento deste organismo. Pensei que as encontraria nos arquivos coloniais, que estão conservados em Aix-en-Provence, mas também não as encontrei lá.

Na verdade, existem alguns rastros. Porém, digamos, não há sequer um dossiê sobre as monitoras. Nenhum. Acredito que isso se deve ao fato de os arquivos terem sido dispersados quando da dissolução do organismo, após a independência da Argélia, em julho de 1962. Era o organismo que, efetivamente, gerenciava as monitoras. Na minha opinião, esses arquivos foram perdidos. Portanto, existe bastante coisa em Aix-en-Provence que não é redundante com aquilo que se encontra nos arquivos militares, mas, por outro lado, não encontrei o que procurava sobre as monitoras. Daí a necessidade de trabalhar efetivamente com as personagens envolvidas, que conservaram arquivos, em particular aquelas que ficaram na Argélia. Pois, as que retornaram à França, no momento da Independência, em 1962, abandonaram tudo. Já aquelas que ficaram na Argélia como cooperadoras, ou porque eram argelinas, conservaram muitas coisas. Conservaram aulas, boletins, materiais, muitas coisas. Há, como sempre em arquivos privados, muitíssimas fotografias, cartas etc.

Não mencionei antes, mas trabalhei também com um antigo oficial encarregado de lançar licitações, para a realização das compras – era preciso primeiro lançar licitações e aguardar que as empresas respondessem, para fazer aquisições. Desse modo, ele conservou vários documentos que não encontrei nos arquivos militares, eram relatórios que ele tinha redigido, extremamente interessantes, porque ele ia nas moradias, além disso, estava a par do que estava acontecendo. Ali, nesses relatórios, havia muitos elementos sobre as monitoras. E, também, tinha conservado as plantas das moradias, já que ele mesmo as tinha construído. Ou seja, eram muitas informações.

Além disso, evidentemente, há entrevistas, testemunhos que são absolutamente essenciais, porque isso me permite trabalhar para além da memória. Isso me permite trabalhar sobre a maneira como elas perceberam suas trajetórias. Isso me permite trabalhar sobre suas trajetórias, sobre suas motivações, procurando entender por que elas acabaram nesta organização, pois se trata de uma iniciativa voluntária. E isso me permitiu trabalhar sobre as práticas de educação nas salas de aula. Foi assim que pude trabalhar sobre a questão da língua, sobre a questão de qual técnica pedagógica elas utilizavam, entender por que elas não trabalhavam mais com a questão do esporte – algumas me disseram: “bom, sim, fazemos atividades esportivas”; mas outras: “não, isso é impossível, os pais não querem.” Para saber como isso acontecia nas famílias. Algumas me diziam que discutiam mais com as avós, pois eram as avós que tomavam as decisões; e outras me diziam: “não, não, antes era preciso convencer o pai”. Em alguns casos, elas me diziam que as discussões eram com os homens.

Uma das monitoras que, justamente porque tinha uma ótima relação com uma das famílias, foi convidada para um casamento, depois teve que retornar à residência para tenta recuperar a moça – que após se casar, teve que abandonar a escola -, trabalhando a questão com o pai, o tio e o irmão da moça.

O que não disse é que dava para perceber que há um personagem chave nas famílias, porém, também era aquele que impedia a escolarização das moças: o irmão mais velho. Várias vezes, durante a entrevista, o irmão mais velho surgia como aquele que era mais reticente, o mais resistente à escolarização. As argelinas têm uma relação bastante negativa com seus irmãos, porque eles têm autoridade sobre elas.

Tempo & Argumento: Eles eram escolarizados? Porque poderia ser uma questão de inveja das irmãs.

Luc Capdevila: Geralmente não, eram mais velhos, então, tinham abandonado a escola. Mas o que umas das monitoras me disse foi que, para conseguir convencer os parentes a deixarem as meninas voltarem a escola, ela explicou para eles que era melhor que suas filhas fossem alfabetizadas, porque assim elas é que escreveriam para a família, ao invés de eles terem que passar por um escrivão público, ou por um vizinho que soubesse escrever. Ela me disse que nisso, de repente, percebia os homens refletindo, e foi um tio que disse ao pai: “mas ela tem razão, ela tem razão”; e, de repente, o tio diz: “eu vou enviar minha filha”. Portanto, sabemos disso, unicamente, devido aos testemunhos.

Contudo, o mais interessante é observar que, como já disse, os testemunhos podem contradizer os arquivos e os arquivos podem contradizer os testemunhos. Para isso, é preciso realmente cruzar as informações e se complementam muito bem, porque, quando vemos nos arquivos que há essa vontade da hierarquia de tomar cuidado com a língua e, em seguida, quando se fala com as monitoras, observa-se que, de fato, elas falam árabe e que, quando elas não falam árabe, havia uma monitora que falava. Isso é realmente apaixonante.

Depois, o que encontro dessa colaboração conjunta entre a História Colaborativa e a História do Tempo Presente é a relação que se construiu com os atores, porque, quando se trabalha com eles, aprendem muitas coisas sobre si mesmo, e são exigentes.

Tempo & Argumento: Você já tinha uma experiência de escrever a várias mãos com colegas ou mesmo com colegas de outras disciplinas. O que não é uma coisa óbvia, normalmente se trabalha sozinho, e isso já é complicado, visto que, às vezes, o pesquisador se contradiz consigo mesmo. Como foi construir uma história coletivamente com os atores? O que é menos comum ainda é que ali, entra-se um pouco no campo do espaço público. Trata-se de um cruzamento entre a pesquisa e a demanda que vem dos atores. Como foi isso?

Luc Capdevila: Sobre a experiência de escrita a várias mãos, ela muda de acordo com os autores com os quais escrevo. Há autores com os quais se consegue realmente escrever de maneira fusional. Com Danièle Voldman, eu começava a escrever e depois lhe enviava o texto; ela o revisava, avançava e me retornava, eu revisava e avançava e assim por diante, trabalhamos muito bem. Tive uma experiência parecida com um jovem colega, Damien Larrouqué, um cientista político, acabamos de escrever nosso primeiro artigo a duas mãos e funcionou muito bem. Tenho outros colegas com os quais trabalhei de outra maneira, cada um escreveu a sua parte. Nos relíamos, mas cada um escreveu sua parte. Basicamente, um dos problemas que se colocam na escritura a duas, três ou a quatro mãos é a maneira como construímos o texto. Eu, por exemplo, tenho uma escrita linear: vou da primeira até a última linha. Há colegas que têm uma escrita que é mais impressionista, escrevem em fragmentos. E, neste caso, é mais complicado trabalhar com eles, porque é preciso que terminem seu texto para que seja possível tentar articular os dois textos. Em resumo, tenho experiências muito diferentes dependendo dos autores com quem trabalho.

Você falou também sobre trabalhar com colegas de outras disciplinas. Trabalhar com cientistas políticos não é exatamente como trabalhar com os etnólogos. Neste caso, existe mais que um problema de escrita, é também um problema de concepção do conhecimento. Há aí uma questão de relação com o conhecimento, de que tipo de conhecimento está sendo transmitido. Em alguns casos, temos textos que são justapostos. Com Nicolas Richard, escrevemos livros nos quais redigi uma parte e ele outra, cada um escreveu os seus capítulos, coisas assim, mas tivemos também a experiência de textos realmente escritos a dois, ou seja, partimos de uma estrutura, tem um que inicia e o outro segue, e dessa maneira conseguimos chegar a textos que são realmente híbridos, no plano disciplinar. Escrevemos vários artigos que misturam completamente história e antropologia.

Escrevemos um texto sobre a questão do gênero na Guerra do Chaco para ver como a guerra é um lugar de transformação do gênero, ao mesmo tempo, entre homens e mulheres e do ponto de vista dos homens. Escrevemos um texto também sobre a história das sensibilidades, como é possível pensar em uma história das sensibilidades no contato entre os paraguaios e os indígenas. É um texto do qual gosto muito, porque parto, do meu lado, do modo como os militares e os exploradores percebem seus contatos com os indígenas. Está cheio de elementos sobre os odores, a relação deles com os alimentos, esse tipo de coisas. E Nicolas descreve o lado dos indígenas, de como eles se encontram completamente desprovidos, porque se deparam com um alimento, o arroz, por exemplo, e não sabem o que fazer. Ele explica que, na prática indígena, quando se compartilha, o pedaço de carne, em particular, é dividido. E há peças específicas para os idosos, para eles, são oferecidos os pedaços mais gordurosos, por exemplo, mas com o arroz, eles não sabem o que fazer. São experiências, encontro de culturas disciplinares que são apaixonantes.

Agora, no contexto da História Pública, é muito diferente, porque há uma demanda social e minha responsabilidade é a de escrever um livro científico. Nesse sentido, a produção do livro se mantém completamente individual. Mas há colaboração na elaboração do livro, ou seja, num primeiro momento, quando se discute a estrutura, o espírito do livro, sobre como vamos fazê-lo de modo a transmitir as ideias. Depois, passo à escrita, e aí, então, apresento os textos e discutimos os conteúdos. Como expliquei, havia desacordos particulares na maneira de apresentar as coisas. Por isso, para chegar a um acordo com a associação, decidi privilegiar a apresentação dos arquivos e dos testemunhos na construção da escrita.

Tempo & Argumento: Os testemunhos estão no livro?

Luc Capdevila: Sim, embora não integralmente, são passagens dos testemunhos. Em alguns casos, podemos encontrar narrativas mais ou menos longas, em outros, apenas citações. Mas construí o livro colocando em diálogo os arquivos públicos, os arquivos privados e os testemunhos.

Tempo & Argumento: E sobre a demanda das monitoras, o que elas esperavam do livro?

Luc Capdevila: Elas queriam que falasse sobre o serviço de formação dos jovens na Argélia. É um ponto cego da historiografia. Não apenas pelo fato dessa formação não estar presente nos livros acadêmicos – o que, para mim, foi uma surpresa. Dentro da Guerra da Argélia, talvez seja possível entender que se trate de um acontecimento menor, ainda que tenha um lugar relativamente importante. Mas que esteja completamente ausente na história da juventude durante a Guerra da Argélia. Considerando que existem teses importantes que foram defendidas... Ainda assim, não há uma linha, nenhuma referência. É a mesma coisa nos livros sobre as mulheres na Guerra da Argélia – e, também, nas teses defendidas –, estão absolutamente ausentes. Então, a demanda das monitoras era a de que se soubesse, antes de morrerem, o que haviam feito. Era disso que se tratava. Foi por isso que elas tinham me pedido, no início, algo como uma tese. Mas não era uma tese o que tinha que ser feito, era um livro, e elas estão contentes com ele. E estão muito presentes nele, é possível ver isso nas fotos delas no livro, assim como no próprio texto.

Tempo & Argumento: Houve concessões importantes?

Luc Capdevila: Não, na essência não, nenhuma concessão. Por ter colocado as fontes no centro da narrativa, foi possível encontrar uma escrita científica na qual estivesse presente, em sua diversidade, o conjunto de atores. De outra maneira, teria sido bem mais complicado.

Tempo & Argumento: Pelo fato de haver um argumento de autoridade das fontes em relação ao que elas pensavam?

Luc Capdevila: Exato. Há momentos em que elas me diziam: “não, veja bem, isso não está certo, não se pode dizer isso.” E eu contestava: “mas não sou eu que o digo e, sim, o General Salan”, por exemplo. Danièle Voldman me disse, quando enviei o livro a ela: “Realmente me perguntava como você iria sair dessa” (risos). Enfim, deu tudo certo.

Tempo & Argumento: E não se trata de um argumento de gênero? Dizer que era um general, então ele tem voz de autoridade, porque era um homem, que estava em uma posição importante.

Luc Capdevila: Não, o argumento está nos arquivos. Assim, se está nos arquivos, não sou eu que estou dizendo. Também não são elas. São os arquivos. É essa a relação que elas têm com o texto. A partir do momento em que sou eu que digo, neste caso, podemos discutir. Foi a concessão que fiz, mas, ao mesmo tempo, estou de acordo com esta concessão.

Trabalhei com as categorias coloniais. Então, o que era dito na administração colonial: “eles são todos franceses, a Argélia são três departamentos franceses”. E as categorias coloniais são: os franceses muçulmanos, para ser mais exato, são os franceses de origem norte-africana ou franceses muçulmanos – isso varia conforme o momento – e os franceses de origem europeia. Então, eu tinha que ser capaz de fazer a diferença entre as comunidades.

Tempo & Argumento: “Origem” é a categoria?

Luc Capdevila: O termo utilizado pela administração colonial é “francês de origem europeia”, ou seja, de linhagem europeia. Eles podem ter nascido na Argélia, mas são de origem italiana, espanhola, francesa etc. Naturalmente, como vocês entendem, eu teria preferido trabalhar com as categorias “argelino” e “francês”, mas acabei me convencendo de que perderia em complexidade. Então, decidi trabalhar com as categorias históricas, as categorias daquela época, para poder permanecer na lógica do período. Para mim, a tarefa do historiador é também compreender como as pessoas do passado viveram sua época.

Mas isso é um debate, uma discussão. As categorias históricas são mais operacionais que as categorias, digamos, científicas, que são elaboradas pelos pesquisadores? Seja como for, nesse livro, tomei essa decisão. Foi assim que contornei a situação. É uma concessão. Tinha que ir nessa direção, para concluir um texto que fosse legível para todos e que respondesse às exigências de uma publicação científica.

Tempo & Argumento: A respeito da produção de conhecimento, como você vê essa experiência em relação às experiências anteriores? Há uma relação de igualdade com os atores? Essa abertura na direção delas aportou algo de novo do ponto de vista epistemológico?

Luc Capdevila: Sim, penso que é fascinante. Acredito que, desse modo, nosso ofício ganha um outro sentido. Pois trabalhamos ao mesmo tempo para a comunidade científica e para a sociedade. Então, acho muito empolgante, além disso, a gente aprende muito mais coisas. É muito mais rico, porque a experiência humana é única. E essa experiência humana não é encontrada nos arquivos.

Tempo & Argumento: Mas isso se pode encontrar também com a História Oral. O fato que elas leiam, releiam, validem, revisem...

Luc Capdevila: Quando você está próximo dos atores, você compreende melhor. Entre elas, claro, há personalidades, umas mais fortes do que outras. Mas esta proximidade com os atores – mantendo a distância cientifica necessária, pois claro que construí relações profundas com elas – faz com que você entre verdadeiramente, eu diria, na intimidade histórica delas. Entende? Enquanto na História Oral, você permanece à distância. Há mesmo uma fronteira e uma assimetria. Você ainda é o pesquisador que interroga um ator, então ainda há um grau de subordinação, é você que coloca as questões, enquanto, neste caso, elas participaram na elaboração do questionário.

Tempo & Argumento: Não há nisso um perigo de ser um pouco colonizado pelos atores, que são, ao mesmo tempo, fontes? (risos)

Luc Capdevila: Não. Acredito que faz parte da experiência também. É verdade que se eu tivesse feito esse trabalho 30 anos atrás, poderia ter sido mais complexo, de um ponto de vista científico e profissional. Acho que não o teria feito, na verdade. Não o teria feito, porque é difícil de trabalhar, pois, afinal, existem problemas políticos que se colocam.

Tempo & Argumento: E como são essas questões políticas?

Luc Capdevila: Há momentos em que elas dizem coisas que não encaixam. Como a questão [da negação] da tortura, por exemplo. E digo para elas: “não, isso não cabe”. Temos que tomar distância, apenas isso. Mas nem por isso elas mudam de opinião. Esses são também os limites da colaboração. O livro pôde ser escrito, elas aprenderam muitas coisas sobre elas mesmas. Acompanhei-as nesse trabalho, ao mesmo tempo de memória e de visibilização de suas experiências, mas não alterei os pontos de vista delas sobre a colonização.

Tempo & Argumento: O ponto de vista do livro sobre a colonização é o seu?

Luc Capdevila: Elas estão presentes no livro por meio dos seus testemunhos. Mas sigo sendo o autor do livro.

Tempo & Argumento: Então se trata muito mais de uma concessão da parte delas?

Luc Capdevila: Sim, isso mesmo.

Tempo & Argumento: Sobre a memória das monitoras, no livro, você fala das trajetórias e dos ressentimentos também. O que foi mais marcante, durante os testemunhos, sobre o trabalho delas como monitoras?

Luc Capdevila: Elas têm a sensação de terem sido instrumentalizadas. É um sentimento muito forte. Não explicaram a elas o que iriam fazer e em qual situação se encontrariam. Porque passaram por situações muito difíceis, muito perigosas. E foram, de certa forma, ludibriadas. Quando foram transferidas do serviço de formação para os centros sociais, viram-se em situações muito complicadas. Ao mesmo tempo, o que impressiona e é significativo é que elas sentem que foram protegidas. Em particular pelos nacionalistas argelinos. Todas as vezes em que elas se encontravam em situação de perigo, alguém sempre estava lá para ajudá-las. Depois tomaram conhecimento de que, de fato, havia um responsável das organizações nacionalistas.

Há, no livro, passagens e situações de perigo, e o tempo todo se vê que há pessoas que compreendem perfeitamente quem são elas, mas, ainda assim, as protegem: porque são jovens, são mulheres, enfim, não fazem mal a ninguém. De fato, mesmo dentro de certos pontos de vista, ainda que participassem [da colonização], elas só faziam o bem, instruindo, ensinando.

Então é isso: o sentimento de terem sido instrumentalizadas, mas de terem sido protegidas. O que mais me impressionou foi perceber o lugar das emoções na construção da memória, quer dizer, perceber que aquelas que passaram por momentos de medo intenso traduziram isso de maneira muito forte nos testemunhos. Percebe-se que a memória que elas conservaram é uma memória muito dolorosa. Por outro lado, aquelas mais entusiastas e que conheceram memórias com as quais foi mais fácil de conviver mantiveram uma memória positiva, mesmo que também tenham passado por experiências dolorosas. É então essa ideia de ligação entre memória e emoção, isso me parece um fator significativo de construção tanto da memória individual, quanto da coletiva.

Uma das monitoras, alguém que hoje está próximo da extrema-direita, que tem medo dos árabes, não parava de contar justamente esses momentos de pânico ao longo da guerra de uma maneira que nunca esqueci. Até que disse a ela: “na verdade, todas vezes em que você teve medo, a responsabilidade era das Forças Armadas francesas, por essa violência, não dos árabes”. Poderiam ter sido árabes, e algumas das monitoras foram mortas. Elas foram igualmente ameaçadas pela extrema-direita [francesa] e pela OAS (Organização Armada Secreta). Elas se encontravam numa situação em que, ao mesmo tempo, podiam ser ameaçadas pelos nacionalistas argelinos, pela FLN (Frente de Libertação Nacional) e pelos extremistas colonialistas que viam nesse organismo um ambiente que era bastante favorável [aos nacionalistas]. Houve centros educativos que foram bombardeados pela OAS. Um dos intelectuais que mencionei, Mouloud Feraoun, era, na realidade, um dos inspetores dos centros socioeducativos. Foi assassinado pela OAS. Algumas monitoras também foram assassinadas.

Tempo & Argumento: E quanto às estratégias bem concretas de construção do texto. Você escrevia e depois reunia todas essas 40 mulheres num mesmo lugar? Como fazia?

Luc Capdevila: Não, era impossível reunir todas. Foram duas monitoras, principalmente, que realizaram as releituras. Enviei o texto a elas. Foram elas que estiveram mais mobilizadas no grupo.

Tempo & Argumento: Foram as porta-vozes da associação?

Luc Capdevila: Isso mesmo. E foram elas que, na sequência, realizaram todas as demandas para obter as autorizações das outras monitoras, das outras pessoas envolvidas.

Tempo & Argumento: E isso retornou na forma de observações escritas?

Luc Capdevila: Exato. E por telefone também. Falamos bastante por telefone.

Tempo & Argumento: E sobre a instrumentalização da educação, que é possível observar nas ações do Serviço. De onde vem a inspiração de, naquele momento, utilizar a educação como forma integração? Porque vemos isso também em outros momentos e outros lugares, como os Estados Unidos durante a guerra. Você encontrou algo a esse respeito nas fontes?

Luc Capdevila: Sim, é, ao mesmo tempo, o esforço da ação conjunta realizada por Jacques Soustelle e Germaine Tillion, ao se inspirarem particularmente nas políticas educativas voltadas aos indígenas no México. Além do mais, por outro lado, o papel das Forças Armadas naquilo que se vê com as políticas de alfabetização, instrução, profissionalização, voltadas aos indígenas, desde os anos de 1910, 1920. E por parte dos militares, no contexto da guerra revolucionária, o fato de sistematizar uma ação, porque ali, não há escola militar, há uma escola do FLN, uma escola de nacionalistas argelinos. Eles estão em concorrência direta.

Tempo & Argumento: Há muitas categorias envolvidas no seu trabalho. Há questões do gênero, claro, mas também questões territoriais, de geração, de religião, entre outras. Aqui, no Brasil, temos um forte debate sobre a interseccionalidade, e gostaríamos de ouvi-lo um pouco sobre isso. Destas categorias, quais são mais significativas nas suas fontes e como você lida com elas? Questões de gênero, religiosidade, território e de identidades também, do pertencimento, e talvez a questão da nacionalidade.

Luc Capdevila: Sim, porque são todas identidades múltiplas. E isso me permite perceber, de fato, categorias que podem ser trabalhadas a partir da inserseccionalidade, não de modo teórico, mas de modo estritamente empírico, observando casos particulares. Por exemplo, há uma diferença de fundo entre as monitoras de origem europeia e aquelas de origem norte-africana. As monitoras de origem europeia são oriundas principalmente das classes populares e da pequena classe média, e são mulheres jovens, que têm motivações diversas, mas são mulheres jovens que querem tentar progredir na carreira, porque sua situação na Argélia está travada. Então, elas veem no serviço de formação um lugar para receber uma formação diplomada e obter um ofício. As monitoras de origem africana têm um perfil um pouquinho diferente: provêm de ambientes integrados, ambientes norte-africanos integrados ao espaço colonial. São alfabetizadas, francófonas, mesmo que falem o árabe. Elas têm um nível de estudos que pode ser um pouco inferior àquele das de origem europeia, mas que é, no mínimo, um nível de estudos de nível primário, com um diploma de estudos primários, de modo que elas sabem ler, escrever, contar etc. E vêm de ambientes que são de um nível social um pouco mais elevado no contexto colonial. O que quer dizer que o pai delas geralmente é um pequeno funcionário, mas no âmbito colonial. E elas buscam, em geral, mais do que uma profissão, deixar suas famílias. Trata-se de uma iniciativa de emancipação. Assim, podem até manter boas relações com o meio familiar, mas há essa aspiração de emancipar-se da família, do peso da sociedade muçulmana. Elas, inclusive, podem receber apoio das famílias. Geralmente, elas têm esse apoio, que pode ser variado, pode ser do pai, da irmã mais velha. Encontraremos a mesma situação do lado das europeias, pode ser a avó, que terá esse papel, pode ser a mãe. Mas não com a mesma motivação: mais busca de emancipação pessoal do lado das muçulmanas, mais procura de promoção social ou de oportunidades profissionais, ou seja, aspiração por um ofício, do lado das europeias.

E a questão que me colocou um dos colegas sobre a relação com os homens, também podemos ver como a relação matrimonial com os soldados pode fazer parte desse projeto de emancipação. Ter uma relação estável com um oficial é igualmente um meio de poder entrar na França, por exemplo. Então, neste ponto, temos essa questão de relação com a interseccionalidade. Mas algo que me parece também importante é que, por parte das monitoras de origem norte-africana, elas vão deixar a Argélia – algumas saíram muito cedo, logo no final da guerra, e outras saíram mais tarde, porque fugiam de uma situação de violência na Argélia, ou por uma situação econômica inaceitável – mas todas conservaram laços com a Argélia. Retornam regularmente, têm um passaporte argelino, têm, geralmente, dupla nacionalidade. Já as europeias não mantêm laços com a Argélia Gostariam voltar, mas, na maioria das vezes, não voltam. Procuram manter laços e até conseguem, mas são laços individuais, não com o país.

Tempo & Argumento: Sobre as escalas de análise: há temas bastante presentes nas suas pesquisas, como violência, feminização, entre outros. Gostaria que você falasse um pouco dos desafios, porque são temas que estão sempre presentes no seu trabalho, em uma grande escala, mas também você os utiliza em contextos que são diferentes de tempo e de espaço. Como você articula essas diferenças?

Luc Capdevila: Primeiro, trabalha-se muito. Porque a cada vez isso quer dizer apropriar-se ou reapropriar-se de uma historiografia e de fontes de naturezas completamente diferentes. Há dois pontos. O primeiro é que acredito que é simplesmente uma questão de interesse. Adoro mergulhar nos arquivos. Não fico tranquilo com as sínteses, com as iniciativas excessivamente teóricas, sinto-me sempre mais frágil. Por outro lado, quando faço um trabalho de fundo nos arquivos, publico apenas quando tiver circundado a questão. Assim, me sinto mais sólido, mais armado, para usar uma metáfora masculina. Ao mesmo tempo, tenho a sensação de ter compreendido aquilo que estava pesquisando e posso passar a outra coisa, mudar de tema. Sobre a relação com a violência, acredito que seja mais uma relação instrumental. Quer dizer que, se trabalho com a violência, é mais do que a violência, trabalho sobre o acontecimento. E o faço porque são lugares de produção de arquivos. O acontecimento é uma fábrica de arquivos, e consigo tirar proveito disso.

Tempo & Argumento: Quer dizer que não se trata de estudar a violência em si, mas ela estaria no pano de fundo. Está presente, mas não é o objeto de sua pesquisa.

Luc Capdevila: Sim, é isso. Não é a guerra em si o que me interessa. Tive uma experiência de história mais clássica com Danièle Voldman. Escrevemos um livro sobre o tratamento dos mortos durante as guerras [6] clássicas, trabalhamos a maneira como as sociedades tratavam os mortos da guerra, os cadáveres, desde a Revolução Francesa até o início dos anos 2000, paramos em setembro de 2001. Tínhamos começado a trabalhar um pouco sobre esse assunto, os dois, mas de maneira tangencial. Eu trabalhava mais sobre os rituais funerários, ou seja, os enterros, esse tipo de coisa. Porque, com frequência, acontece isso: há um colóquio que propõe esse tipo de tema, então a gente vai pesquisar... Depois, tivemos a proposta de um editor para publicar um livro sobre o assunto. E fizemos o livro. Mas, quando o terminamos, Danièle e eu nos dissemos “não faremos isso nunca mais!”. É muito difícil, muito difícil. Há pesquisadores que são mais do que apaixonados por essa questão de violência, de extrema violência. Mas Danièle e eu estávamos em um momento de formação, e esse livro nos conduziu, a ambos, a terrenos aos quais não queremos retornar.

Trabalho sobre guerras, é verdade, mas não é a questão da violência que me atrai, é mais a questão de ver como as sociedades se organizam, como isso pode afetar as dinâmicas sociais e culturais. Para mim, é um laboratório interessante nesse plano. Os historiadores gostam das coisas que se movimentam, das mudanças. Penso que as guerras são lugares que são, em última análise, talvez mais fáceis de delimitar no tempo. Minha tese se desenvolve sobre um período bastante curto. Vai de agosto de 1944 ao final de 1946. Mas o que me interessava era ver como a sociedade se organizou ao final da ocupação. Pude fazer um trabalho bastante aprofundado e depois desenvolver pontos particulares, mas, após um certo tempo, tive a sensação de ter circundado o tema. Então, passei para outra coisa, mas, na realidade, conservando o mesmo aparato teórico.

Tempo & Argumento: A questão do gênero?

Luc Capdevila: Sempre. Mas também progredindo nos métodos. Sim, porque, afinal de contas, há um gap entre a maneira como eu trabalhava há 30 anos e a maneira como trabalho hoje.

Material suplementario
Notas
Notas
1 Entrevista realizada na modalidade oral, originalmente no idioma francês, transcrita e tradudiza em português por Simone Christina Petry (http://lattes.cnpq.br/5867821663351559).
2 CAPDEVILA, Luc; VOLDMAN, Danièle; Rouquet, François; VIRGILI, Fabrice. Hommes et femmes dans la France en guerre (1914-1945). Paris: Editions Payot, 2003, 368 p.
3 A Guerra do Paraguai (1864-1870) é célebre por ter dizimado um contingente extremamente significativo da população masculina do país. CAPDEVILA, LUC. Una guerra total: Paraguay, 1864-1870. Ensayo de historia del tiempo presente, 2ª edição, Buenos Aires: SB editorial, Coleção Paraguai contemporáneo, 2020, 512 p.
4 CAPDEVILA, Luc. Paraguay bajo la sombra de sus guerras. Historia, memoria y construcción política, siglos XIX/XXI. Buenos Aires: Sb Editorial, Coleção Paraguai contemporáneo, 2021, 276 p.
5 CAPDEVILA, Luc. Una guerra total: Paraguay,1864 – 1870: Ensayo de historia del tempo presente. Traducido por Ana Couchonnal. Asunción (Paraguay): Centro de Estudios Antropológicos de la Universidad Católica; Buenos Aires (Argentina): Editorial Sb, 2010, 544 p.
6 CAPDEVILA, Luc; VOLDMAN, Danièle. War Dead Western Societies and the Casualties of War (19th/20th centuries). Edimburgo: Edinburgh University Press, 2006.
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