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Recepción: 25 Abril 2021
Aprobación: 03 Marzo 2022
DOI: https://doi.org/10.5965/2175180314372022e0301
Resumo: Este artigo analisa as estratégias de assistência do Banco Mundial para o Brasil no período de 1990 a 2020, a fim de evidenciar qual foi a importância estratégica atribuída à austeridade fiscal e às reformas neoliberais, avaliar como o “combate à pobreza” foi acionado como retórica e mecanismo de legitimação da agenda neoliberal, problematizar as relações do Banco Mundial com o setor privado e as organizações da sociedade civil que são "parceiras" da instituição e, finalmente, discutir a importância decisiva das atividades de aconselhamento e consultoria do banco no país. As estratégias de assistência constituem a documentação mais importante na relação do Banco Mundial com o Brasil. A análise se detém nos anos de 1990 a 2002 (governos Collor, Itamar e FHC), de 2003 a 2016 (governos Lula e Dilma) e de 2016 a 2020 (governos Temer e Bolsonaro). O trabalho mostra que o modus operandi do Banco Mundial combina financiamento com aconselhamento, assistência técnica e pesquisa econômica a fim de disseminar orientações e práticas sobre o que os governos devem fazer e como, em matéria de políticas públicas. Argumenta-se que as relações do país com o Banco Mundial foram mais programáticas ou mais pragmáticas, dependendo do governo, mas sempre envolveram escolhas dos agentes nacionais sobre que rumos seguir e como fazê-lo em matéria de desenvolvimento. Evidencia-se que, durante trinta anos, o ajuste fiscal assumiu uma primazia normativa na agenda do banco, no sentido de anteceder e enquadrar toda e qualquer discussão sobre os rumos e os meios do desenvolvimento.
Palavras-chave: austeridade fiscal, liberalização econômica, ajuste estrutural, reforma do Estado, Banco Mundial.
Abstract: This article analyzes the World Bank’s assistance strategies for Brazil in the period from 1990 to 2020, in order to evidence the strategic importance attributed to fiscal austerity and neoliberal reforms, evaluate how the “assault on poverty” was used as rhetoric and a legitimation mechanism for the neoliberal agenda, problematize the World Bank’s relationship with the private sector and civil society organizations which are "partners" of the institution and, finally, discuss the decisive importance of the Bank’s advisory and consultancy services in the country. Assistance strategies constitute the most important documentation in the World Bank’s relations with Brazil. The analysis focuses on the periods from 1990 to 2002 (the Collor, Itamar and FHC administrations), from 2003 to 2016 (the Lula and Dilma administrations) and from 2016 to 2020 (the Temer and Bolsonaro administrations). The paper shows that the modus operandi of the World Bank combined funding with advisory services, technical assistance, and economic research, in order to disseminate advice and practices related to what governments should do and how they should do this in public policy questions. It is argued that Brazil’s relations with the World Bank were more programmatic or more pragmatic depending on the government, but always involved the choices of national agents over the directions to follow and how to do this in the question of development. It is evidenced that for thirty years the fiscal adjustment assumed a normative primacy in the Bank’s agenda, in the sense of preceding and framing all and any discussion about the directions and means of development.
Keywords: fiscal austerity, economic liberalization, structural adjustment, state reform, the World Bank.
O Banco e seus funcionários não intervirão em assuntos políticos de nenhum membro; nem tampouco serão influenciados em suas decisões pelo caráter político do membro ou dos membros interessados. Somente considerações econômicas serão relevantes para suas decisões, e essas considerações serão ponderadas imparcialmente (U.S. TREASURY, 1944, p. 65).
O líder eficiente dá ao público o senso de que a reforma pertence ao povo e não foi imposta de fora para dentro. A reforma do Estado requer a cooperação de todos os grupos da sociedade. A compensação dos grupos por ela afetados (que podem nem sempre ser os mais pobres) pode ajudar a garantir o seu apoio. Embora possa sair caro a curto prazo, a compensação valerá a pena a longo prazo (BANCO MUNDIAL, 1997a, p. 15).
Importar_Imgen5265c64616O Banco Mundial é o maior e mais antigo banco multilateral de desenvolvimento em atividade. Criado em 1944 durante a Conferência de Bretton Woods e em operação desde 1946, a instituição tem 189 países membros, cerca de 12.300 funcionários e escritórios espalhados em mais de 130 localidades ao redor do globo. Diferentemente do Fundo Monetário Internacional (FMI), que atua em situações de crise no balanço de pagamentos e concede empréstimos enormes condicionados à adoção de medidas macroeconômicas – em geral, bastante impopulares –, o Banco Mundial atua, de maneira contínua e discreta, em uma gama muito maior de áreas e domínios da vida econômica e social dos países em desenvolvimento. De fato, ao longo de quase oito décadas, a agenda da instituição se expandiu e se diversificou, passando a abarcar, além das áreas tradicionais de infraestrutura, energia e política econômica, também meio ambiente, educação, saúde, administração pública e governança das instituições, desenvolvimento rural e urbano, habitação e reconstrução nacional pós-conflitos.
O Banco Mundial fornece empréstimos e créditos para projetos e políticas, provê aconselhamento e assistência técnica a governos, produz pesquisa econômica especializada, combinada com serviços de consultoria, e articula agentes públicos e privados em favor de determinadas pautas em escala nacional e global, desempenhando papel de liderança na indústria internacional de ajuda ao desenvolvimento em inúmeros temas. Tais linhas de ação se reforçam mutuamente a fim de potencializar o produto principal da instituição, que é, precisamente, a capacidade de produzir e disseminar ideias, orientações e práticas sobre o que os governos devem fazer e como, em matéria de desenvolvimento capitalista. Nesse sentido, o dinheiro funciona como um instrumento para tornar os governos mais receptivos às visões e às propostas veiculadas pelo banco.
No Brasil, a atuação da entidade começou em 1949, quando o país contraiu o primeiro empréstimo. À exceção dos anos de 1953 a 1964 – quando um acúmulo de tensões com o governo federal resultou no declínio da sua carteira, a ponto de nenhum financiamento ter sido autorizado entre 1960-64 (GONZALEZ et al., 1990; MASON; ASHER, 1973; KAPUR; LEWIS; WEBB, 1997) –, a carteira da instituição só fez crescer e se expandir no país, ainda que de forma irregular e com destinações variadas. Historicamente, o país é o terceiro maior mutuário, atrás apenas da Índia e da China.
Importar_Imgen5265c64616Este artigo analisa a atuação política do Banco Mundial no Brasil no período de 1990 a 2020, com base na documentação da própria instituição, com destaque para as Estratégias de Assistência ao País. Trata-se da documentação mais importante para se entender as relações entre o banco e os países clientes. O trabalho tem cinco objetivos: primeiro, entender as razões que levaram o banco a emprestar cada vez mais para estados e municípios entre 2008 e 2014; segundo, evidenciar qual foi a importância atribuída à austeridade fiscal e às reformas neoliberais na agenda da instituição; terceiro, destacar como o “combate à pobreza extrema” foi acionado como retórica e mecanismo de legitimação da agenda neoliberal; quarto, problematizar as relações do Banco Mundial com o setor privado e as organizações da sociedade civil que são “parceiras” da instituição, e, por último, discutir a importância decisiva das atividades de aconselhamento, consultoria e análise no modus operandi do banco no país.[1]
Inicialmente, o artigo apresenta a carteira de empréstimos do Banco Mundial no Brasil, detalhando a sua alocação setorial, o montante autorizado e o número de operações contratado pelos entes federativos. Em seguida, analisa as estratégias para o país, enfocando três subperíodos: de 1990 a 2002 (governos Collor de Mello, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso), de 2003 a 2016 (governos Lula da Silva e Dilma Rousseff), de 2017 a 2020 (governos Michel Temer e Jair Bolsonaro). Ao final, uma breve conclusão.
Seguindo o dinheiro
Qualquer análise qualitativa das estratégias de assistência do Banco Mundial para o Brasil requer um exame prévio da carteira da entidade[2]. Nesse sentido, a tabela 1 apresenta a carteira de empréstimos autorizados para o país no período de 1990 a dezembro de 2020, tanto em valores, como em número de operações, distinguindo-os conforme a sua finalidade principal.
Em primeiro lugar, constata-se que o acumulado da carteira é de US$ 45,9 bilhões, em 315 operações. Ou seja, na média, o banco autorizou US$ 1,48 bilhão por ano. Em comparação ao Orçamento Geral da União de 2019 (R$ 3,2 trilhões), pode-se afirmar que o peso econômico do banco no país é pequeno.
Em segundo lugar, do total de 315 operações financeiras, 145 foram contratadas pela União (46%), 147 por estados (47%), e 23 por municípios (7%). Em valores, este é o grande diferencial do Brasil em relação a todos os demais países da América Latina: a importância de estados e, em menor grau, municípios como clientes do Banco Mundial.
Em terceiro lugar, US$ 13,4 bilhões foram empréstimos de ajuste (adjustment loans), que constituem uma modalidade de financiamento cujo objetivo é apoiar a adoção de determinadas políticas governamentais – por isso, integram a categoria de empréstimos baseados em políticas (policy-based loans), e não empréstimos para projetos específicos, como é o caso da maioria dos créditos concedidos. Os empréstimos de ajuste carregam condicionalidades (exigências) mais ou menos amplas e pressões informais que visam apoiar ou induzir mudanças na política macroeconômica em políticas públicas específicas no arcabouço jurídico ou na própria estrutura da administração pública (BABB, 2009; CARROLL, 2010; ENGEL, 2010; HARRISON, 2004; WOODS, 2006). Observa-se o grande peso dos empréstimos de ajuste na carteira para o Brasil, representando quase 30% do financiamento para a União e os estados, e quase 56% para municípios. Tal dado é muito relevante, pois mostra o interesse dos governos subnacionais em contratar empréstimos para reformar políticas públicas ou mesmo setores da administração pública.[3]
Já a tabela 2, por sua vez, apresenta os empréstimos autorizados para o Brasil (em valores e número de operações) de 1990 a 2020. Novamente, os dados são muito reveladores. Observa-se que foi durante o governo de Lula Inácio Lula da Silva que a atividade financeira do banco foi mais intensa como um todo (38%), bem acima daquela ocorrida durante os governos de Fernando Henrique Cardoso (FHC) (22,7%) e Dilma Rousseff (22,7%). Igualmente, foi durante o governo Lula que a União contratou mais empréstimos do banco, ao contrário do que sugeria o discurso oficial da época. Por outro lado, considerando o tempo de mandato, o governo Dilma foi o de menor contratação de empréstimos pela União – chegando a um patamar irrelevante –, mas foi durante o seu mandato que a carteira da instituição junto aos estados chegou ao máximo histórico, ultrapassando a fatia contratada pela União durante os governos dos demais presidentes pós-1989.
Outro dado relevante é que os empréstimos do Banco Mundial para o Brasil se concentraram nos estados (53%) – puxados pela alta ocorrida durante os mandatos de Lula e Dilma –, depois na União (42%) e, por fim, em municípios (5%), envolvendo um conjunto significativo, mas seleto, de relações entre a instituição e setores da burocracia, elites políticas e agentes econômicos privados estabelecidos em praticamente todo o país.
Importar imagenAinda chamam atenção a queda aguda da carteira durante o governo Temer – mas com relevante atividade de assessoria por parte do banco sobre ajuste fiscal (BANCO MUNDIAL, 2017b) – e a recuperação tímida durante os dois primeiros anos do governo Bolsonaro, em larga medida puxada pelo empréstimo de US$ 1 bilhão autorizado em outubro de 2020 para reforçar o Bolsa Família, já no contexto da pandemia da covid-19.[4]
Por fim, a tabela 3 informa o montante de compromissos financeiros autorizados ao Brasil no período de 1990 a 2020. Claramente, pode-se ver que o fluxo de empréstimos à União praticamente zerou em 2007-08, quando, então, o Banco Mundial redirecionou a sua carteira aos estados. Como se verá adiante, tal guinada não se deu por oposição do governo federal, mas com o seu apoio até 2014.
Estratégias do Banco Mundial para o Brasil
A análise que se segue se baseia em documentação do próprio banco, com destaque para as Estratégias de Assistência ao País (EAPs)[5] produzidas no período[6]. Volumosa e bastante complexa, esta documentação é a mais relevante na relação da instituição com os mutuários, pois é nela que o banco avalia a economia nacional, emite prognósticos em diversas áreas e apresenta a sua agenda de políticas, discriminando quais ações pretende desenvolver e com qual grau de prioridade.[7] Ao longo da implementação de cada EAP, há reuniões de monitoramento e avaliação do banco com autoridades nacionais. Revestido com uma linguagem técnica, trata-se de um documento político, na medida em que apresenta diagnósticos e orientações que pretendem incidir sobre a distribuição do fundo público e as relações de poder na sociedade.
De 1990 a 2002 – governos Collor, Itamar e FHC
A instabilidade macroeconômica e a crise política que marcaram os anos de 1990 a 1994 impactaram negativamente a expectativa do banco, expressa na EAP 1993, quanto ao volume de financiamento que seria contratado. Ainda assim, a EAP fixou as duas faces da mesma moeda que orientariam a ação do banco ao longo da década: ajuste fiscal e liberalização econômica, por um lado, e políticas focalizadas de alívio da pobreza extrema, por outro (BANCO MUNDIAL, 1995, p. 22; BANCO MUNDIAL, 2004, p. 8). Ao fazê-lo, seguia o seu programa político mais geral, expresso nos Relatórios sobre o Desenvolvimento Mundial de 1990 e 1991 (BANCO MUNDIAL, 1990, 1991; PEREIRA, 2010, 2015).
A EAP seguinte foi aprovada em junho de 1995, já sob a vigência do Plano Real. O clima de confiança era bastante diferente, já que o governo FHC era visto como “mais reformista” (BANCO MUNDIAL, 1995, p. 1), e a estabilização monetária parecia imune ao efeito de contágio da crise mexicana, detonada em dezembro de 1994.
A agenda para o Brasil englobava reformas macroeconômicas e setoriais
Importar imagen(como o aprofundamento da liberalização comercial, um extenso programa de privatizações, ampla desregulamentação da economia, liberalização do mercado de trabalho, reforma da seguridade social, etc.), reforma da administração pública, redução da pobreza extrema, formação de “capital humano” e melhoria da infraestrutura. Com base nesta agenda, o banco formulou a sua estratégia de assistência em cinco pontos: 1) apoiar as reformas estruturais nos níveis federal e estadual; 2) dar suporte à redução direta da pobreza extrema, mediante programas de saúde, educação, desenvolvimento rural e urbano; 3) financiar a expansão da infraestrutura; 4) apoiar e consolidar a gestão de recursos naturais e do meio ambiente, e 5) fortalecer a implementação de projetos e acelerar o ritmo de desembolsos (BANCO MUNDIAL, 1995, p. 15). O ajuste fiscal do Estado brasileiro era visto como necessário para a manutenção da estabilidade monetária e elemento de medição do compromisso reformador dos governos federal e estaduais. A redução da pobreza extrema, tida como o objetivo central da assistência (BANCO MUNDIAL, 1995, p. 13), decorreria da estabilização econômica, das reformas estruturais e da redefinição das políticas setoriais, o que “criaria o ambiente para um crescimento amplo e eficiente liderado pelo setor privado e forneceria o contexto para políticas anti-pobreza com foco na formação de capital humano” (BANCO MUNDIAL, 1995, p. 13). A luta contra a pobreza funcionava, assim, para legitimar a agenda neoliberal.
O deslocamento da carteira do banco para os estados apareceu como diretriz nesta edição. A leitura do banco era de que a Constituição Federal de 1988 havia reconfigurado o pacto federativo em favor da descentralização, atribuindo uma série de novas obrigações aos estados em matéria de políticas sociais, infraestrutura e meio ambiente. Por isso, “a EAP propõe uma mudança no sentido de concentrar o diálogo sobre políticas e o trabalho de assessoria, bem como os empréstimos, aos estados” (BANCO MUNDIAL, 1995, p. 1).
O Banco Mundial avaliava que mais da metade do gasto público ocorria em âmbito estadual e projetava, então, um ciclo abrangente de privatizações estaduais, em paralelo ao programa de privatização federal (BANCO MUNDIAL,
1995, p. 8).
Segundo a EAP 1995, a assistência do banco mudaria “cada vez mais para os estados” (BANCO MUNDIAL, 1995, p. 16), o que requereria: a) identificar as prioridades de reforma e linhas de ação; b) autorizar créditos que servissem como veículos para reformar a estrutura institucional subnacional, e c) emprestar a governos estaduais comprometidos com o ajuste fiscal. Para estados com baixa credibilidade, o banco emprestaria por meio de empréstimos federais.
Embora o dinheiro figurasse claramente como veículo de apoio ou indução a determinadas políticas, a EAP 1995 reconhecia que os empréstimos do banco eram “modestos em relação às necessidades do país”, razão pela qual “o conselho de políticas deve sempre ser um elemento proeminente do relacionamento” (BANCO MUNDIAL, 1995, p. 1).
Na EAP seguinte, aprovada em junho de 1997, a centralidade das funções de aconselhamento e assistência técnica foi mais uma vez ressaltada, agregandose, então, o reconhecimento do papel catalisador que o banco poderia cumprir:
Importar imagenO valor agregado do Grupo Banco Mundial ao esforço de desenvolvimento do Brasil é impulsionado muito mais pelas contribuições como um catalisador para reforma e para investimentos prioritários em áreas onde o Banco pode transmitir sua experiência global, bem como inovação, e menos pela contribuição financeira direta a esta grande e dinâmica economia.
(BANCO MUNDIAL, 1997b, p. 14)
Coerente com o reconhecimento da importância muito mais política e intelectual do que financeira da sua atuação no país, o banco qualificou o seu relacionamento com o Brasil como uma “parceria” em prol de interesses comuns. Nesse sentido, assinalou que o programa de assistência (financeira e não financeira) expressava um processo gradual de seletividade, que levava em conta as vantagens comparativas do banco, incluindo o seu papel como catalisador de ações em prol do crescimento econômico e da redução da pobreza. O avanço das reformas neoliberais foi, mais uma vez, reafirmado, destacando-se o aprofundamento da austeridade fiscal, principalmente dos estados, mediante empréstimos de ajuste e programas estaduais (BANCO MUNDIAL, 1997b, p. 1).
A guinada da carteira de empréstimos aos estados prosseguiu, sinalizando que o banco continuaria a trocar opiniões com o governo federal sobre empréstimos para investimento diretamente aos estados, os quais receberiam garantias do governo federal e seriam monitorados pelo banco, que, por sua vez, calibraria os desembolsos conforme avançasse o ajuste fiscal. Desse modo, “os esforços de reforma seriam medidos pelo progresso no aumento do superávit primário” (BANCO MUNDIAL, 1997b, p. 18).
A EAP 1997 também destacou a centralidade das funções de aconselhamento, assistência técnica e assessoria intelectual. Especificamente, o banco planejava focar em sete grandes áreas de consultoria: 1) reformas estruturais e da gestão pública (qualidade e eficiência do gasto, seguridade social, legislação trabalhista, privatizações, marcos regulatórios); 2) alívio da pobreza rural e urbana (com foco no Nordeste); 3) educação (formação de professores, educação infantil, papel do setor privado); 4) monitoramento de indicadores macroeconômicos; 5) delimitação das questões de longo prazo do desenvolvimento (exportações, competitividade, finanças públicas, etc.); 6) revisões de despesas públicas para reforçar e monitorar as reformas administrativas estaduais, e 7) divulgação de experiências de reforma brasileiras e internacionais (BANCO MUNDIAL, 1997b, p. 18-19).
Importar imagenEm março de 2000, o banco aprovou uma nova EAP, a última do período do período 1990-2002. Reiterando o apoio ao governo FHC, assinalou que:
No passado recente, o Brasil fez avanços impressionantes em seu programa de reforma econômica e social em direção a uma economia moderna, dirigida pelo setor privado e integrada aos mercados internacionais. Isso inclui rápido progresso do programa de privatização, fortalecimento adicional e modernização do setor bancário privado e grande impulso para melhorar a educação. O Governo respondeu de forma muito eficaz a uma série de choques externos nos últimos dois anos. (BANCO MUNDIAL, 2000, p. i)
Por outro lado, segundo o banco, o país não estava imune a choques externos e internos, razão pela qual tinha de avançar ainda mais nas reformas estruturais e microeconômicas restantes, a fim de reduzir o “custo Brasil”.
Segundo essa EAP, no Brasil “o papel financeiro do banco é pequeno, mas não insignificante” (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 26), quando se tinha em vista o grosso do investimento para o setor público, principalmente em estados mais pobres. De todo modo, mais importante do que o financiamento em si era a combinação de crédito e consultoria “em áreas onde o governo tem fortes compromissos com reformas importantes” (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 26).
Mais uma vez, o banco assinalou que o seu programa seguia critérios de seletividade, que levavam em conta o caráter essencial da cada ação (sua importância e custo) para se avançar nos objetivos gerais, levando em consideração: a) a coerência com os objetivos do governo, tal como expressos no Plano Plurianual (PPA) de 2000-03; b) o papel estratégico ou catalítico da ação em favor das reformas, e c) uma vantagem comparativa clara do banco, tendo em vista o mix de suas possíveis ações (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 30-31).
Importar imagenUm tema novo em relação às EAPs anteriores foi a relação do banco com organizações da sociedade civil.[8] É interessante destacar que a colaboração operacional dessas entidades (principalmente ONGs) em projetos governamentais financiados pelo banco aumentou gradativamente, a nível global, desde o início da década de 1990, à medida que os Estados se retiravam da prestação de serviços públicos nas áreas social e ambiental, terceirizando-os a ONGs (DEZALAY; GARTH, 2002; KAMAT, 2004; NELSON, 1995). No Brasil, não foi diferente (IBGE, 2004). Tal colaboração, segundo o banco, assumia diversas formas dependendo da área temática e do tipo de projeto, incluindo: a) a contratação de peritos das organizações sociais para monitorar e avaliar projetos; b) o financiamento a elas por meio de pequenas doações; c) a representação de tais organizações em conselhos decisórios de projetos, e d) o convite a elas para que coadministrassem a implementação de projetos (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 30).
De 2003 a 2016 – governos Lula e Dilma
A EAP seguinte data de dezembro de 2003 e se refere ao período 2004-07. Segundo ela, “o avanço das reformas nos últimos oito anos proporcionou uma base sólida para o novo governo”, sendo que “a nova administração federal se comprometeu com a austeridade fiscal, com o estabelecimento de metas de inflação e com o cumprimento dos contratos da dívida” (BANCO MUNDIAL, 2003, p. 17). Ademais, dizia o banco, a “credibilidade” do governo Lula havia se firmado graças à implementação da previdência social. Ao mesmo tempo, a instituição salientou a orientação do novo governo em promover um crescimento mais equitativo e acelerar o progresso social. Assim, para o banco, “o compromisso do governo com a estabilidade econômica e a agenda de reformas é muito firme. [...] a combinação de disciplina macroeconômica, reformas estruturais e políticas sociais eficazes pode levar a um ciclo virtuoso de melhor qualidade de vida para todos no médio prazo” (BANCO MUNDIAL, 2003, p. 46).
Importar imagenA primazia do ajuste fiscal atravessou toda a EAP 2004-07, salientando que, com a Lei de Responsabilidade Fiscal (aprovada em 2000), o foco passou da mera garantia do equilíbrio fiscal para uma maior sustentabilidade e qualidade do ajuste, em conjunto com a implantação do regime de metas de inflação. Assim, “com uma gestão fiscal e monetária responsável e o contínuo fortalecimento das normas e instituições fiscais, o Brasil ampliará progressivamente a sua reputação e credibilidade”. Ao mesmo tempo, para o banco, seria fundamental quebrar a “rígida estrutura do orçamento governamental”, decorrente da “ampla vinculação de receitas e das elevadas despesas obrigatórias”, por meio, por exemplo, da desvinculação das receitas da União e de mudanças na legislação do funcionalismo público (BANCO MUNDIAL, 2003, p. 43).
Mais uma vez, o banco reconheceu que, como emprestador, a sua carteira não era significativa no país: “O Brasil é a nona maior economia do mundo. Os empréstimos do Banco Mundial para o país representam somente cerca de 0,4% do PIB e menos de 4% do financiamento externo”. Daí, novamente, a reafirmação das vantagens comparativas da instituição, como “a transferência de conhecimento” e o “diálogo político”. Além disso, o banco teria a habilidade de “fortalecer a capacidade institucional” (inclusive por meio de capacitação de técnicos), fornecer financiamentos competitivos e flexíveis e catalisar recursos de fontes diversas (BANCO MUNDIAL, 2003, p. 64-65). Pode-se depreender da EAP 2004-07 que os empréstimos cumpriam um papel político ao induzirem ou potencializarem reformas de políticas públicas. Nas suas próprias palavras: “o valor real dos empréstimos do Banco se revela quando os seus recursos prestam assistência a políticas, programas ou projetos que implicam em melhor qualidade das despesas públicas, bem como em aprimoramentos e reformas das políticas” (BANCO MUNDIAL, 2003, p. 65).
A EAP 2004-07 orientou a ação do Banco Mundial segundo o conceito de seletividade programática, definida como a relevância de uma intervenção para as metas de longo prazo do país (definidas no PPA), em vez de objetivos setoriais mais limitados. Em lugar de intervenções únicas e isoladas, a instituição apoiaria um conjunto de iniciativas articuladas em vários setores, buscando gerar efeitos multiplicadores ao catalisar recursos de várias fontes. Orientado para resultados, tal enfoque priorizaria projetos em que o banco tivesse vantagens comparativas e demonstrassem contribuições mensuráveis para os objetivos estabelecidos (BANCO MUNDIAL, 2003, p. 66-67).
Importar imagenA seletividade programática focalizou, então, em cinco grupos de atividades: 1) manutenção do papel central dos empréstimos de ajuste (até 50% do limite total) para atender às necessidades de financiamento do balanço de pagamentos e apoiar a realização das reformas estruturais; 2) novos programas setoriais financiados por múltiplas fontes em um fundo único (SWAPs), o que daria maior flexibilidade aos desembolsos e poderia mais facilmente ser atrelado a resultados mensuráveis; 3) apoio a estratégias multissetoriais, rural e urbana, nos níveis estadual e municipal, incluindo, por um lado, transformar a articulação com os governos estaduais em estratégias amplas de reforma e, por outro lado, priorizar a conversão dos municípios em clientes; 4) dar continuidade às atividades analíticas e de consultoria, envolvendo atores locais, e 5) consolidar a atuação no Nordeste e aumentar o foco na região Norte (BANCO MUNDIAL, 2003, p. 12-13).
Para calibrar a dosagem de empréstimos conforme a implementação das reformas e políticas esperadas, o banco assinalou que utilizaria indicadores de desempenho mais flexíveis, dada a complexidade da arquitetura institucional envolvida. O desempenho do governo seria objeto de revisões semestrais entre o banco e representantes do Planejamento e da Fazenda (BANCO MUNDIAL, 2003, p. 99).
Em maio de 2008, o banco aprovou a Estratégia de Parceria com o País (EPP) referente a 2008-11. O relatório destacou que o Banco Mundial atuava em nichos específicos, emprestando cerca de US$ 2 bilhões por ano, em uma economia cujo PIB era de US$ 1 trilhão e onde o BNDES fornecia cerca de US$ 35 bilhões por ano. Reconheceu-se, então, que a atuação do banco seria seletiva, mas sob novo enquadramento:
O Banco não deve participar de áreas nas quais o Brasil possui conhecimento e capacidade de administração própria;
O Banco não pode atuar como um “governo paralelo” no Brasil, engajando-se em todos os desafios enfrentados pelo País;
O trabalho analítico do Banco precisa se concentrar menos em “o quê” e mais em “como”, e na melhor interação das atividades de transmissão de conhecimento, de empréstimo e naquelas financiadas por fundos fiduciários; e
O Grupo Banco Mundial deveria enfocar principalmente os desafios estruturantes de longo prazo, para os quais o Brasil ainda não encontrou soluções e a experiência internacional pode ter especial valor, que foram identificados pelos líderes brasileiros como desafios paradigmáticos. (BANCO MUNDIAL, 2008, p. 17-18, grifo nosso)
O trecho citado reflete uma postura essencialmente pragmática com o objetivo de preservar um grande cliente, em um contexto de manutenção firme do chamado tripé macroeconômico (baseado em superávits primários, metas de inflação e câmbio flutuante), crescimento da economia brasileira (em 2008, o país obteve o “grau de investimento” atribuído por agências de classificação de risco), grande volume de reservas internacionais (passando de US$ 32 bilhões em 2002 para US$ 206 bilhões no final de 2008), afirmação política do país diante da banca multilateral (simbolizada na devolução de recursos e quitação antecipada da dívida com o FMI em 2005-06) e protagonismo diplomático do Brasil nas relações internacionais. A percepção da instituição era clara: “o risco para o Banco de não adotar uma nova abordagem flexível em um dos nossos maiores clientes de renda média é a irrelevância” (BANCO MUNDIAL, 2008, p. 6).
A EPP 2008-11 ressaltou o fato de que, no quadriênio anterior, os empréstimos para a União haviam predominado, principalmente em grandes operações de ajuste. Agora, porém, a conjuntura econômica havia mudado e o governo federal requeria do banco um novo programa:
Com o rápido aumento de suas reservas cambiais, o Governo deseja que o enfoque do programa da instituição mude na direção de: (a) um sólido programa de assistência técnica, de tamanho relativamente modesto, no nível federal; e (b) um grande programa de financiamento com os estados, que atenda às suas prioridades e em conformidade com a Lei de Responsabilidade Fiscal. Este novo programa, voltado predominantemente para os estados, é caracterizado por um “senso de oportunidade baseado em princípios” no qual os governadores que estiverem interessados em trabalhar com o Banco definem suas prioridades e a instituição responderá apresentando um conjunto bem articulado de princípios (apoiados em trabalho analítico e experiência no Brasil e no estrangeiro). (BANCO MUNDIAL, 2008, p. 5)
Embora o giro do Banco Mundial aos estados tenha começado durante os governos Itamar e FHC – ao que parece, muito mais por iniciativa da instituição – , foi durante o segundo mandato de Lula que houve uma verdadeira guinada, em resposta à demanda federal. De fato, sem o engajamento dos ministérios da Fazenda e do Planejamento, não seria possível ao banco deslocar a sua carteira nessa magnitude, pois são estes órgãos que estabelecem o equilíbrio entre os empréstimos para os três níveis da federação, a prioridade a ser atribuída às demandas de financiamento e assistência técnica de todos os ministérios, bem como as normas de envolvimento do banco com as administrações subnacionais (BANCO MUNDIAL, 2008, p. 23-24).
Importar imagenAdemais, segundo o Banco Mundial, os empréstimos aos estados podiam servir como veículos para planejar e dar vazão a grandes programas federais nas áreas de saúde, educação, energia, meio ambiente e gestão de recursos hídricos. Assim, iniciativas estaduais apoiadas pelo banco seriam vistas por tais ministérios como “uma excelente oportunidade para expandir os seus programas nacionais, que a instituição ajuda com frequência a planejar” (BANCO MUNDIAL, 2008, p. 25).
Além dos estados, foi nesta EPP 2008-11 que apareceu, pela primeira vez, uma diretriz clara sobre o relacionamento do banco com municípios:
O Governo Federal especificou que o Banco poderá se envolver com os municípios apenas em circunstâncias especiais [...], quando houver externalidades significativas [...] e quando o projeto gerar receita para o município. De modo geral, o governo não deseja que o Banco conceda empréstimos aos municípios quando houver recursos internos disponíveis. (BANCO MUNDIAL, 2008, p. 26)
Segundo o banco, a sua atuação junto a municípios se concentraria na reforma da gestão pública e no aumento da competitividade municipal pela atração de capitais, assim como na adoção de mecanismos orientados para resultados na oferta de serviços urbanos.
A importância das Atividades de Análise e Assessoria (AAA) era decisiva na relação com o Brasil, mas, “à medida que o país muda, o mesmo ocorre com a natureza dessa atividade” (BANCO MUNDIAL, 2008, p. 29). É bastante evidente aqui a mudança de tom e enfoque, menos indutivo e diretivo e mais colaborativo, vendo tais atividades como força auxiliar das prioridades do governo que estivessem em linha com a agenda do próprio banco. Assim, dizia a EPP 2008-11, “como uma resposta à constante demanda do Brasil, será atribuída maior ênfase às atividades de AAA que abordam como a política deve ser implementada e menos o que deve ser feito” (BANCO MUNDIAL, 2008, p. 29). O aconselhamento era entendido como ativo estratégico, a ser calibrado em “questões estratégicas de conteúdo político altamente sensíveis [...] nas quais o governo brasileiro valoriza a combinação do conhecimento e do ‘selo de aprovação’ do Banco” (BANCO MUNDIAL, 2008, p. 29).
Importar imagenOutra questão relevante levantada pela EPP 2008-11 foi a importância da relação com o Brasil como um elemento de inovação institucional para o próprio banco, em matéria de instrumentos financeiros, condições de empréstimo mais flexíveis, uso de moeda local, assistência técnica a estados para que convertessem partes de sua dívida em dólares para real (como no caso do RJ), projetos com liberação de resultados com base em resultados, mais agilidade entre a idealização dos projetos e sua implementação, além de empréstimos a estados e municípios sem garantias soberanas (BANCO MUNDIAL, 2008, p. 29-30).
O Banco Mundial (2008, p. 14-15) continuou advogando a mesma agenda de liberalização econômica e reforma do Estado, centrada na manutenção da austeridade fiscal, no aumento da eficiência do gasto público – “fazer mais com menos”, segundo o clichê –, na desregulação do mercado de trabalho e na redução do “custo Brasil” (diminuição dos custos para se fazer negócios). Com a guinada forte para estados e municípios, um leque imenso de possíveis ações nessa direção se abriu.
Por fim, a EPP 2008-11 apresentou possível apoio do Banco Mundial a algumas iniciativas da política externa brasileira no âmbito da cooperação sul-sul – comumente vista como contraponto às instituições de Bretton Woods –, ligadas a temas, como o combate à febre aftosa e à gripe aviária na região, a difusão de agrocombustíveis e a tecnologia agrícola na América do Sul e na África, a difusão de programas de transferência condicional de renda (tendo o Bolsa Família como exemplo bem-sucedido) e investimentos no programa de Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA). Segundo a documentação, “a discussão das modalidades e instrumentos específicos para fortalecer essa cooperação estão em andamento no Banco em geral e entre a instituição e o Brasil” (BANCO MUNDIAL, 2008, p. 28).
Outra dimensão desse mesmo esforço consistia na possível assistência do
Banco Mundial para “melhorar a qualidade ambiental e social das operações do BNDES” fora do Brasil, uma vez que esta instituição financeira era uma importante protagonista tanto na América do Sul, como na África (BANCO MUNDIAL, 2008, p.
28).
Importar imagenFinalmente, até mesmo o apoio à internacionalização de empresas brasileiras em algumas linhas de ação entrou no rol do GBM, o que mostra que, enquanto business, a cooperação para o desenvolvimento podia ser impulsionada de maneiras muito diversas:
Um importante elemento para que o Brasil se torne global é a crescente participação das empresas nacionais no exterior. Esse objetivo é apoiado pelo enfoque da IFC [Corporação Financeira Internacional] na assistência às empresas brasileiras para entrar nos mercados estrangeiros, especialmente nos países da AID (por exemplo, a Companhia Vale do Rio Doce em Moçambique e o programa de combate à AIDS da Odebrecht em Angola). (BANCO
MUNDIAL, 2008, p. 29)
Em setembro de 2011 saiu a EPP 2012-15, exaltando os avanços ocorridos desde 2003 e apontando o Brasil como um grande caso de sucesso:
Na última década o Brasil tem feito progresso econômico e social admirável e está a caminho de um crescimento inclusivo e ambientalmente sustentável. Desde 2003 tirou 22 milhões de habitantes da pobreza e construiu uma economia estável, a qual conseguiu superar com êxito a crise econômica global de 20082009. É o único país grande de renda média que conseguiu combinar o crescimento econômico com a redução da
desigualdade. (BANCO MUNDIAL, 2011, p. i, grifo nosso)
Elencando como desafios centrais a aceleração do crescimento, a redução da desigualdade – a despeito de seu progresso recente, o Brasil permanecia entre os dez países mais desiguais – e o aumento da sustentabilidade ambiental, o Banco Mundial assinalou que focalizaria quatro objetivos estratégicos: a) aumentar a eficiência dos investimentos públicos e privados; b) melhorar a qualidade e expandir a prestação de serviços públicos para famílias de baixa renda; c) promover o desenvolvimento econômico regional por meio de políticas melhoradas e investimentos em infraestrutura, e d) melhorar a gestão sustentável de recursos naturais e atender à crescente demanda mundial de alimentos (BANCO MUNDIAL, 2011, p. ii).
Mais uma vez, o banco dimensionou o seu tamanho diante da economia brasileira e assinalou as suas vantagens comparativas como catalisador de recursos e assistência técnica capaz de gerar inovações institucionais replicáveis:
Os empréstimos do Banco Mundial continuaram limitados em relação ao tamanho do Brasil: em 2011 foram equivalentes a 0,3% total das despesas públicas. Essa restrição de volume limitou o potencial do Banco Mundial de ter um grande impacto direto no desenvolvimento por meio dos seus projetos [...]. Foi tomada então uma decisão consciente para maximizar o papel catalítico e tático do Banco Mundial, com uma forte ênfase no apoio a intervenções inovadoras que, ampliadas, forneceriam benefícios que poderiam exceder em muito o impacto direto dos projetos originais. (BANCO MUNDIAL, 2011, p. 13, grifo nosso)
Segundo o documento, a demanda de Brasília se concentrava em serviços de consultoria e assistência técnica para a elaboração de estratégias e programas, deixando em segundo plano os empréstimos. Já em relação aos entes subnacionais, o governo federal estaria interessado no apoio do banco “como uma forma de fortalecer a implementação das políticas nacionais, desde a estrutura de responsabilidade fiscal até programas estratégicos de investimentos sociais e em infraestrutura” (BANCO MUNDIAL, 2011, p. iii). Ou seja, a atuação da instituição junto a estados e municípios era considerada como um veículo da política federal.
Sobre este ponto, o documento informou que, no quadriênio anterior (2008-11), três quartos do total de compromissos haviam ido para estados e, em menor grau, municípios. Mesmo assim, segundo o Banco Mundial, a instituição manteve um forte relacionamento com Brasília, “tanto diretamente como por meio do seu trabalho no nível subnacional, muitas vezes atuando como agente do governo federal nos seus esforços para melhorar a sustentabilidade fiscal subnacional e a implementação de políticas nacionais” (BANCO MUNDIAL, 2011, p.
14, grifo nosso).
De fato, a centralidade das funções de aconselhamento e assistência técnica em geral, e na mediação entre o governo federal e os governos subnacionais, em particular, atravessa toda a EPP 2011-15. Uma dimensão estratégica dessas funções diz respeito à articulação do Banco Mundial com uma seleta gama de agentes locais, por meio da qual se geram a internalização e a apropriação (ownership) de determinadas pautas, premissas e categorias, o que potencializa a sua capacidade de persuasão e convencimento (WILLIAMS, 2008). Como diz o documento: “as intervenções do Banco Mundial enfocaram a geração de conhecimentos e não apenas a transferência de conhecimentos” (BANCO MUNDIAL, 2011, p. 13). Em um país como o Brasil, seria precisamente essa a principal vantagem comparativa da instituição:
A reputação de excelência técnica e imparcialidade nas consultorias é o que faz do Banco Mundial um parceiro confiável do Governo Federal para negociar com entidades subnacionais [...]. Tal reputação é o resultado de um compromisso de longa data de investimentos voltados para o conhecimento global, mediante associação com acadêmicos e peritos locais. (BANCO MUNDIAL,
2011, p. 43)
Ao mesmo tempo, é relevante notar que a articulação seletiva com agentes locais trouxe inovações operacionais para o próprio banco, como os projetos multissetoriais voltados para resultados e os empréstimos de ajuste municipal (BANCO MUNDIAL, 2011, p. 13).
A estrutura da EPP 2011-15 tomou como base o programa de governo da presidente Dilma, definindo quatro objetivos principais: a) aumentar a eficiência dos investimentos públicos e privados a fim de impulsionar a capacidade de crescimento com a geração de empregos e renda, principalmente nas regiões mais pobres; b) aumentar a qualidade dos serviços públicos para famílias de baixa renda e expandir o seu fornecimento por meio de canais públicos e privados; c) promover o desenvolvimento econômico regional por meio de políticas públicas, investimento em infraestrutura e apoio ao setor privado, e d) melhorar a gestão sustentável de recursos naturais, ajudando a atender à crescente demanda global de alimentos. Para cada um desses objetivos, previu-se um extenso rol de ações, sendo que o primeiro deles era o que vertebrava todos os demais e envolvia um detalhado programa de reformas na gestão fiscal e no setor público, principalmente em estados e municípios, associado à ampliação de parcerias público-privadas (PPPs) (BANCO MUNDIAL, 2011, p. 17-18).
Salientando que o seu programa, no Brasil, trabalhava com todas as esferas de governo, o setor privado e a sociedade civil, o Banco Mundial reafirmou que seus recursos seriam empregados conforme os seguintes princípios: flexibilidade, seletividade, inovação (“apoio a investimentos inovadores e reformas de políticas cujo impacto possa ser aumentado por meio da reprodução entre as regiões do Brasil e no exterior”) e alavancagem de recursos de múltiplas fontes (BANCO MUNDIAL, 2011, p. 40).
Importar imagenDe todas as estratégias aqui analisadas, a EPP 2011-15 foi a mais detalhada no que diz respeito à interação com representantes do setor público, do setor privado, da sociedade civil e de círculos acadêmicos. Porém, em momento algum, ela identificou tais “representantes” por nome, cargo ou organização. De fato, o anonimato dos que interagiram com a instituição em reuniões formais de consulta foi a regra de todas as estratégias emitidas no período de 1990 a 2020. De todo modo, vale dar mais atenção a essa dimensão, pois esta edição traz informações importantes sobre a interação política e social do banco no país.
Há um capítulo que resume os comentários feitos durante reuniões para a preparação da EPP “com diversos clientes federais, estaduais e municipais, o setor privado e a sociedade civil, englobando cerca de 100 interlocutores diretos, incluindo sete governadores de estado”. Como o programa do banco cada vez mais se direcionava para os níveis subnacionais, “as consultas tiveram um foco específico em clientes e grupos interessados estaduais e municipais”. Segundo o banco, tais consultas “englobaram todas as cinco regiões do país, representando mais de 70% do PIB brasileiro e 65% da população do país” (BANCO MUNDIAL,
2011, p. 61).
De modo geral, segundo a EPP, os representantes de entes subnacionais salientaram a importância dos recursos econômicos do banco e o papel da instituição para a melhoria da administração pública:
A participação do Grupo Banco Mundial é essencial para incrementar o espaço fiscal para investimentos, elevando os padrões de gestão pública, desenvolvendo estratégias de desenvolvimento multissetoriais e gerando capacidade nos estados mais pobres. O apoio do Grupo Banco Mundial para soluções de desenvolvimento inovadoras e de definição de caminhos foi bastante apreciado, mas os governos subnacionais ressaltaram que o apoio financeiro do Banco Mundial continua a ser a parte central da parceria. (BANCO MUNDIAL, 2011, p. 61)
Ademais, segundo o documento, os representantes dos estados valorizavam o assessoramento do Banco Mundial para a criação de uma “cultura gerencial” na administração pública:
Vários estados solicitaram que o Banco Mundial os ajude a profissionalizar a gerência fixa do setor público por meio de planos de carreiras bem-definidos, protegidos da interferência política. Para isso, seria necessário ir muito além de uma mera capacitação, criando uma cultura gerencial. A gestão para resultados é vista por muitos estados e municípios como o melhor caminho a seguir.
(BANCO MUNDIAL, 2011, p. 63)
A perspectiva gerencial mencionada pelos agentes remete à chamada Nova Gestão Pública (NGP). Impulsionada pelo Banco Mundial (1991 e 1997a) como referência normativa para uma reforma global dos Estados, tal vertente aplica conhecimentos e instrumentos da gestão empresarial ao setor público, com o objetivo de aumentar a eficiência (“fazer mais com menos”), a eficácia e a responsabilização (accountability). A NGP promove como princípios a separação radical das funções de provedor, executor e usuário, a fragmentação dos serviços públicos em unidades de gestão mais autônomas (para que concorram por recursos) e a gestão baseada em resultados aferíveis por métricas. Nessa lógica, o Estado não deve ser o único (ou mesmo o principal) fornecedor do serviço (educação, saúde, etc.), que pode ser prestado por empresas ou por entidades privadas sem fins lucrativos, seja por terceirização, seja mediante parcerias público-privadas (OSBOURNE; GAEBLER, 1992; OSBORNE; PLATRIK, 1998).
Voltando ao documento, tanto as organizações sociais, como os representantes do setor privado pleitearam mais diálogo com o banco, solicitando-o que “expandisse sua política para incluir mais parceiros e vozes nas suas operações desde o início”, inclusive na definição de prioridades políticas (BANCO MUNDIAL, 2011, p. 62).
Algumas organizações sociais também propuseram uma colaboração mais orgânica no ciclo de projetos e na definição de políticas, salientando a dimensão “produtiva” (econômica) da sua atuação, em função da sua capacidade de criar “capital social”, sugerindo com isso a possibilidade de receberem financiamento para o seu fortalecimento institucional:
Algumas OSCs [organizações da sociedade civil] mencionaram que a CPS [Estratégia de Parceria de País] ainda diferencia os atores de desenvolvimento de forma artificial e que a visão do Grupo Banco Mundial deveria mudar para que o setor produtivo não fique restrito ao setor privado. A sociedade civil e os movimentos sociais também são forças econômicas importantes para o desenvolvimento, criando capital social especialmente na Amazônia, onde esses grupos desenvolvem programas e antecedentes técnicos para atividades produtivas sustentáveis. O Grupo Banco Mundial poderia oferecer instrumentos adicionais para integrar as OSCs nos projetos desde o início, incluindo as discussões sobre processos e políticas e, de forma mais ampla, para apoiar trabalhos independentes por parte da sociedade civil. [...] para atingir algumas dessas metas, foi sugerido que os programas do Grupo Banco Mundial incluam uma determinada porcentagem de recursos para fortalecer as OSCs, semelhante ao que faz o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). (BANCO MUNDIAL, 2011, p. 70, grifo nosso)
Na perspectiva funcionalista do Banco Mundial (GROOTAERT; VAN BASTELAER, 2002), “capital social” designa os valores e as normas que governam as interações entre os indivíduos e as instituições em que estão inseridos, sendo considerados fundamentais para a confiança e a coesão social necessárias ao crescimento econômico e ao bem-estar. Adotado e difundido pelo banco como o “elo perdido” (the missing link) na teoria do desenvolvimento, tal conceito engloba todas as relações sociais antes desconsideradas por economistas neoclássicos, contribuindo para obscurecer as relações de poder e de classe (FINE, 2008, 2007, 2002; HARRISS, 2006, 2002).
De volta ao documento, um ponto que merece destaque é que representantes do setor privado (empresarial) enfatizassem o papel do Banco Mundial não apenas como financiador, mas também como agente de coordenação entre os investimentos público privado:
O setor privado apontou que os investimentos públicos e privados não são coordenados, principalmente no nível subnacional, e que o apoio do Grupo Banco Mundial para uma melhor capacidade de planejamento desses investimentos seria uma grande contribuição para a eficácia dos investimentos. [...] a “guerra fiscal” entre os estados que estão competindo pelos investimentos é um exemplo claro dos efeitos nocivos dessa falta de coordenação [...]. A capacidade de convergência e o selo de aprovação do Banco Mundial poderiam ajudar a conseguir um ponto decisivo na área.
(BANCO MUNDIAL, 2011, p. 64, grifo nosso)
É digno de nota que um dos poucos pontos de discordância de fundo entre as partes consultadas (setor público, empresas e organizações sociais) foi o das parcerias público-privadas:
A CPS [Estratégia de Parceria de País] poderia aumentar o foco nas parcerias público-privadas (PPPs) como uma alternativa eficiente para os investimentos públicos diretos. O Banco Mundial poderia ajudar a desenvolver a estrutura técnica para esses instrumentos no Governo Federal. [...] especificamente, o governo solicitou mais atenção do Grupo Banco Mundial para o fortalecimento de experiências como as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs) e as Organizações Sociais de Saúde (OSs). Algumas organizações da sociedade civil não acreditam na necessidade de impulsionar mais investimentos, principalmente usando instrumentos do setor privado como as PPPs. De acordo com elas, o esforço deveria ser para reduzir o pagamento de juros sobre o saldo da dívida e liberar mais recursos públicos para os serviços sociais. (BANCO MUNDIAL, 2011, p. 64, grifo nosso)
Por fim, dando sequência à estratégia anterior, até a cooperação sul-sul foi incorporada como uma oportunidade de aumentar a sua influência, “desenvolvendo em conjunto com o governo brasileiro parcerias triangulares que articulem as iniciativas de cooperação Sul-Sul com as iniciativas multinacionais, regionais e binacionais lideradas pelo GBM” (BANCO MUNDIAL, 2011, p. 43).
De 2017 a 2020 – governos Temer e Bolsonaro
Após seis anos (dois a mais do que orginalmente previsto), o banco produziu mais uma EPP para o Brasil. Datada de maio de 2017 – portanto, costurada sob e com o governo Temer –, refere-se ao período de 2018 a 2023, também um período de seis anos, mais extenso que os anteriores, e segue em vigência. A consigna de todo o relatório pode ser resumida em uma única expressão: ajuste fiscal.
No contexto de uma profunda recessão nos últimos três anos está claro que o modelo de crescimento do Brasil precisa ser ajustado. O crescimento da “Década de Ouro” entre 2003 e 2013 foi amplamente baseado em condições externas favoráveis, consumo alimentado por crédito e uma força de trabalho em expansão. A rápida criação de emprego foi o motor da redução da pobreza, enquanto uma expansão de programas sociais direcionados ajudou a reduzir a pobreza extrema. No entanto, nos últimos três anos, as restrições estruturais ao crescimento potencial tornaram-se interligados. A expansão fiscal entre 2011 e 2014 exacerbou as necessidades de ajuste [...]. Desde o final de 2014, o Brasil está em profunda recessão (BANCO MUNDIAL, 2017a, p. 5)
Da parte do banco, o ajustamento requer uma reorientação de novos serviços de empréstimos e serviços de consultoria e análise em torno de três focos: a) ajuste fiscal e eficácia do governo; b) investimento e produtividade do setor privado, e c) desenvolvimento equitativo e sustentável. A EPP 2018-23 prevê um reengajamento da instituição no nível federal para apoiar o governo na abordagem do ajuste fiscal e na melhoria do “ambiente de negócios”. Ademais, a implementação do grande portfólio de projetos já em andamento, voltados à reforma da gestão pública, principalmente a nível estadual, enfatizará ainda mais a adoção de modelos que prometem economizar recursos e aumentar a eficácia. Continua o envolvimento no gerenciamento de recursos naturais, com o objetivo de alavancar parcerias globais em apoio ao papel de liderança global do Brasil nessa área. Finalmente, a EPP prevê um papel maior para o Banco Mundial na defesa (advocacy) do ajuste fiscal e das reformas estruturais pendentes
(trabalhista, previdenciária, tributária, novo ciclo de privatizações, etc.) (BANCO MUNDIAL, 2017a, p. 5).
Importar imagenA EPP 2018-23 assume um tom abertamente militante, que destoa das duas edições anteriores. Note-se como a defesa da austeridade fiscal se combina com os discursos pró-equidade e de combate à pobreza extrema, advogando a tese de que é possível e necessário cortar gastos públicos em saúde e educação que beneficiam “os que estão em melhor situação” (BANCO MUNDIAL, 2017a, p. 20). Quando observamos de perto a quem o banco se refere, à luz da estrutura de distribuição de renda e riqueza patrimonial e financeira do Brasil (CHANCEL et al., 2022; MEDEIROS; CASTRO, 2018; SOUZA, 2018), constatamos que, na verdade, são setores de renda média, que tem mais a ver com a classe trabalhadora do que com os segmentos privilegiados da sociedade, dado que a linha de pobreza fixada pela instituição é muito rebaixada[9]. Em momento algum o banco mira na fração mais rica da sociedade (o 1% do topo da pirâmide), que não é usuária de serviços públicos de saúde e educação, não depende da previdência social, dispõe de inúmeros meios de evasão fiscal e, em termos relativos, é muito pouco tributada, beneficiando-se da enorme injustiça tributária que marca historicamente o Brasil.
Outro tema central é o da competitividade, que implica, para o banco, a constituição de uma economia plenamente globalizada, segura e rentável ao capital privado em geral, o que requer o desmonte de qualquer instrumento de nacionalismo econômico e um ambiente regulatório que proteja os investidores privados:
O GBM [Grupo Banco Mundial] apoiará o governo na tentativa de aumentar a concorrência no mercado. Primeiro, ele se concentrará nas atividades de advocacia para construir evidências e consenso público para o desenvolvimento liderado pelo setor privado, inclusive nos mercados financeiros, enquanto apoia oportunidades de reformas de políticas [...]. O valor que o setor privado pode trazer por meio de investimentos, PPPs e outros instrumentos depende fundamentalmente da qualidade do ambiente regulatório. (BANCO
MUNDIAL, 2017a, p. 23)
A militância em favor da competitividade global e o combate à política industrial praticada pelo governo Dilma aparecem claramente em outro trecho, assinalando um ponto de divergência entre o banco e frações capitalistas domésticas, mas também evidenciando a busca de aliados locais na academia e no empresariado:
É provável que as reformas sejam fortemente contestadas por grupos de interesse que se beneficiam do atual conjunto de programas de política industrial (incluindo isenções fiscais e subsídios a crédito) [...]. O GBM fará parceria com acadêmicos brasileiros e internacionais para demonstrar a ineficácia de políticas anteriores. [...] Também serão buscadas visões mais amplas do setor privado, facilitando fóruns de negócios e colaborando com associações de negócios. [...] o sucesso nessa área seria refletido na redução do custo de negócios do Brasil (BANCO MUNDIAL, 2017a, p. 24).
O receituário de ajuste fiscal preconizado pela EPP 2018-23 foi detalhado em outro importante documento, publicado meses depois (BANCO MUNDIAL, 2017b). Advogando a tese de que o setor público no país gasta muito e mal, e por isso gera iniquidades que prejudicam os mais pobres, o banco apresentou um extenso rol de prescrições em favor do corte de recursos no funcionalismo público, mudanças no modelo de compras públicas, mais uma rodada de reforma na previdência social, além de mudanças na estrutura de financiamento da assistência social, da saúde e da educação[10], com o objetivo de manter o teto de gasto definido pela Emenda Constitucional 95/2016. Novamente, o discurso do combate à pobreza e às desigualdades é usado para legitimar a austeridade fiscal.
Importar imagenA eclosão da pandemia da covid-19 em 2020 trouxe à tona a necessidade de mais recursos públicos e maior capacidade de planejamento e ação por parte dos Estados, questionando os clichês neoliberais que advogam economias “lideradas pelo mercado” (market driven economies). Frente a tudo isso, o Banco Mundial modificou algum ponto a sua agenda política? A resposta é não. No extenso relatório dedicado aos impactos da covid-19 no Brasil, o Banco Mundial (2020b), a despeito da defesa de ações temporárias que resultam no aumento do gasto público, segue advogando a primazia do ajuste fiscal e a retomada da agenda de reformas neoliberais – iniciada pelo governo Temer, continuada pelo governo Bolsonaro, mas paralisada em 2020 devido à eclosão da pandemia e à débil articulação política do governo no Congresso[11]. Alguns pontos dessa agenda são: a) a desvinculação do gasto público em saúde do patamar mínimo definido constitucionalmente a fim de dar mais “flexibilidade” aos gestores públicos; b) o congelamento da folha de pagamentos do funcionalismo público, combinado com a suspensão da progressão na carreira e a interrupção (exceto em saúde e segurança) de novas contratações[12]; c) um ciclo de reformas previdenciárias estaduais, e d) maior controle, vigilância e sanção sobre o desempenho fiscal dos entes federativos a fim de manter o teto de gastos. Ademais, o Banco também preconizou “a independência de jure do Banco Central do Brasil” (BANCO MUNDIAL, 2020b, p. 143) – que acabou sendo aprovada um ano depois pela Lei Complementar nº 179/2021. Para viabilizar tal agenda, o Banco Mundial anunciou que desempenharia abertamente o papel de advocacy (2017a, p. 23), o que mostra o caráter abrangente, politizado e intrusivo da sua atuação.
Conclusões
O banco não pode exercer controle direto sobre as políticas dos Estados clientes, razão pela qual ele tem de usar formas indiretas de influência e persuasão a fim de convencer os governos a realizarem determinadas medidas, articulando visões e interesses em comum. Nessa dinâmica, o dinheiro se combina com o aconselhamento, a assistência técnica e a pesquisa econômica, reforçando-se mutuamente. Como o próprio banco reconhece, os empréstimos funcionam como veículos para disseminar ideias, orientações e práticas sobre o que os governos devem fazer, e como, em matéria de desenvolvimento. Significa dizer que, do ponto de vista do Banco Mundial, a eficácia das suas ações depende da construção, por fora e por dentro dos espaços nacionais, de visões de mundo e interesses mútuos com elites políticas e intelectuais, nichos burocráticos, frações de classe e organizações sociais, entrincheirados tanto nos aparelhos de Estado, como na sociedade civil.
O exame do caso brasileiro durante de 1990 a 2020 mostra que a relação com o Banco Mundial envolveu barganha, filtragem e tradução local das normas e ações prescritas pelo banco. Dependendo da situação econômica do país, bem como da coalizão de poder no governo, as relações tenderam a ser mais programáticas ou mais pragmáticas, mas sempre envolveram escolhas por parte dos agentes nacionais sobre que rumos seguir com que grau de prioridade e mediante quais instrumentos de política pública. O caráter abrangente, politizado e intrusivo da atuação do Banco Mundial não se deu em detrimento de preferências e decisões de agentes locais, mas em conexão com elas.
A análise da carteira autorizada para o Brasil – terceiro maior cliente histórico – evidenciou que os empréstimos de ajuste representaram, na média, 29% do total dos compromissos financeiros de 1990 a 2020, o que mostra a relevância desse tipo de operação.
Importar imagenComo país periférico e dependente, o Brasil demanda investimento externo. Ocorre que, comparado ao PIB doméstico ou ao tamanho do orçamento público nacional, o financiamento oriundo do Banco Mundial é pouco significativo. Mesmo assim, ao longo dos trinta anos aqui considerados, a instituição fez 315 operações financeiras (10,5 por ano, quase uma por mês), direcionadas a inúmeras áreas e finalidades, o que evidencia um alto nível de atividade no país e abrangência setorial bastante significativa, chegando até mesmo a pegar carona na cooperação sul-sul para expandir sua influência e assistência financeira. Para compensar o baixo impacto direto relativo da maioria dos empréstimos, ao longo do período, o banco passou a se concentrar no papel catalítico e tático de suas intervenções, no sentido de fomentar inovações institucionais que, uma vez ampliadas (replicadas no seio da administração pública), forneceriam resultados que pudessem exceder em muito o impacto direto dos projetos originais.
Mostrou-se que o governo FHC foi o que mais contraiu empréstimos de ajuste e que esse tipo de operação representou 47% de toda a carteira do banco destinada à União naquele período, sinalizando a opção política desse governo em utilizar tais empréstimos como alavancas para reformar determinadas políticas públicas. Por outro lado, revelou-se que foi durante o governo Lula que o financiamento total autorizado pelo banco chegou ao máximo, bem acima do patamar alcançado durante os governos FHC e Dilma. Foi também durante o governo Lula que a União contratou mais empréstimos do banco (pouco acima que o governo FHC).
A análise mostrou que estados e, em menor grau, municípios se tornaram clientes relevantes do Banco Mundial no país. Evidenciou-se que o valor autorizado à União durante o governo Dilma desceu a níveis irrisórios, o que foi contrabalançado pelo pico de empréstimos aos estados, ultrapassando o que a União contraiu durante os demais governos no período. De fato, nos anos de 2008 até 2014, os estados se tornaram os maiores clientes do Banco Mundial, com a garantia e o aval do governo federal. Segundo a documentação do banco, inclusive a instituição teria funcionado muitas vezes como agente do governo federal para reorganizar a situação fiscal subnacional e auxiliar na implementação de programas nacionais. Até que ponto isso se deu e em quais áreas, é algo difícil de mensurar e demandaria estudos de caso.
Importar imagenO exame da documentação revelou a centralidade das atividades de aconselhamento, consultoria e análise no modus operandi do Banco Mundial no país. Com efeito, a capacidade de intermediar informações, produzir indicadores quantitativos e prestar consultoria sobre inúmeros temas se mostrou tão ou mais importante que os empréstimos, dependendo das circunstâncias. Evidentemente, o grau de acesso do banco a informações estratégicas e tomadores de decisão no país depende da qualidade do seu relacionamento com nichos burocráticos e governos. De todo modo, ficou claro que tais atividades visaram dar suporte às prioridades financeiras e políticas da instituição.
O banco normalmente reveste com argumentos técnicos propostas de cunho político, que incidem sobre a distribuição do fundo público e as relações de poder na sociedade. Ocorre que a distinção entre técnica e política não é simples. Um mesmo agente – como o Banco Mundial – com frequência desempenha ambos os papéis, dependendo das circunstâncias. Propostas técnicas modelam decisões e políticas públicas somente quando elas têm aderência aos objetivos, interesses e concepções que orientam a ação política dos governos. Nesse sentido, a reputação de “excelência técnica” de que goza o
Banco Mundial, a credibilidade de suas avaliações e a valorização do seu imprimatur decorrem não apenas dos consideráveis recursos materiais que a instituição detém, mas também da sua capacidade de estabelecer interlocução e produzir um determinado senso comum compartilhado por “profissionais do desenvolvimento” espalhados na academia, na sociedade civil e no aparelho estatal.
Ao longo de trinta anos, o Banco Mundial deu centralidade ao ajuste fiscal e a um conjunto amplo de reformas neoliberais em todas as estratégias aqui analisadas, embora com algumas nuances. O ajuste assumiu uma primazia
Importar imagennormativa, no sentido de anteceder e enquadrar toda e qualquer discussão sobre os rumos e meios do desenvolvimento nacional. Associado a ele, esteve presente a ideia de combate à pobreza extrema, que funcionou como elemento de legitimação tanto do ajuste fiscal como das reformas liberalizantes. Assim, manejando uma linha de pobreza muito baixa (acima da qual todos figuram, em algum grau, como “privilegiados”), o banco estimulou e apoiou políticas de privatização de empresas públicas, reformas regressivas da previdência social e mudanças que precarizaram a legislação trabalhista em favor do capital, sempre em nome de mais “equidade”. Que fique claro: ao advogar o combate à extrema pobreza, o Banco Mundial não se refere a políticas redistributivas que incidem sobre os detentores da extrema riqueza patrimonial e financeira do país. Austeridade fiscal e focalização do gasto social nos mais pobres conformaram o binômio que orientou todas as estratégias de assistência do Banco Mundial, em
oposição ao princípio universalista das políticas sociais previsto na Constituição Federal de 1988.
As nuances acima referidas estão presentes nas estratégias de 2008 e 2011, abrangendo o segundo mandato de Lula e todo o primeiro de Dilma. A julgar pela documentação do Banco Mundial, naquele período, o governo brasileiro ditou os termos da relação, praticamente interrompendo a contratação de novos empréstimos em 2007-08, o que levou a instituição a reconhecer que não podia atuar como um “governo paralelo” no Brasil e que deveria se concentrar menos em “o quê” fazer e mais em “como” fazer, conforme as prioridades definidas pelo governo federal. Sem adotar uma postura mais “flexível”, o risco para o banco era o de se tornar “irrelevante” para um dos seus maiores clientes. O tom das declarações do banco visivelmente mudou naquele período, tornando-se menos prescritivo e mais colaborativo em relação às prioridades definidas pelo governo brasileiro. O chamado “senso de oportunidade baseado em princípios” significava exatamente isso: o governo definia as áreas nas quais a participação do banco era solicitada, e o banco avaliava onde e como ele deveria (ou não) se engajar. Então, uma vez mantido o chamado tripé macroeconômico a nível federal, naquela conjuntura a agenda neoliberal prescrita pela entidade apareceu de forma mais matizada e diluída em sua atuação subnacional, dando ênfase a programas estaduais e municipais de ajuste fiscal e privatização, reformas da administração pública (em sintonia com o gerencialismo), implantação de PPPs e mudanças em marcos regulatórios, além de projetos de investimento nas áreas tradicionais de transporte, energia e infraestrutura.
Importar imagenAs relações com o empresariado e a sociedade civil em geral – mantidas em anonimato, mesmo quando feitas em consultas formais – indicam que o campo de interlocutores no país é seleto, ainda que tenha se ampliado ao longo do período, principalmente com a “marcha aos estados” em 2007-14. Segundo a documentação, em 2011, no início do governo Dilma, expoentes do setor privado reconheciam o papel do Banco como indutor de reformas gerenciais do Estado brasileiro e agente de coordenação de investimentos públicos e privados, valorizando o “selo de aprovação” do Banco Mundial para a difusão de PPPs. Já as organizações sociais (basicamente, ONGs) também reconheciam o banco como “parceiro” em projetos sociais e ambientais, reivindicando mais participação no ciclo de projetos e na interlocução sobre prioridades de investimento, inclusive solicitando a possibilidade de receberem diretamente fundos da instituição. Por outro lado, algumas delas se mostravam críticas ao modelo das PPPs, defendendo o papel do Estado na prestação de serviços sociais essenciais e o combate ao rentismo. Em termos gerais, o que mais chama atenção na documentação neste ponto é o caráter permanente do trabalho de convencimento, persuasão e articulação que o Banco Mundial realiza junto ao setor privado e à sociedade civil em geral, nos mais diversos âmbitos, manejando recursos econômicos que lubrificam relações, ora mais programáticas, ora mais pragmáticas, sempre com o auxílio de agentes locais entrincheirados em nichos da academia e do setor público.
Cabe concluir que, por sua atuação política, financeira e intelectual, o Banco Mundial tem sido um agente importante de neoliberalização do Estado brasileiro no período pós-1988. Essa trajetória não se modificou com a pandemia da covid19 em 2020-21, haja vista que as recomendações da instituição ao país sinalizaram a continuidade desse ideário.
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Notas
reports/documentlist?display_title=country%20assistance%20strategy&displaytitle_select=allw ords&srt=docdt&order=desc&count_exact=Brazil [acesso jan 2021].
O papel da CFI não será discutido aqui.
(https://brasilaberto.worldbank.org/pt/benchmark). No mesmo período, o DIEESE calculava como salário mínimo necessário o valor de R$ 5.800,98
(https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html#2020).
U.pdf).