Dossiê - Sensibilidades e História do Tempo Presente

A identidade ‘sitiada’[1]: a Comissão Nacional da Verdade na revista do Clube Militar

Besieged identity: the National Truth Commission in the revista do Clube Militar

Sonale Diane Pastro de Oliveira 1
Instituto Federal de Educação de São Paulo, Brasil

A identidade ‘sitiada’[1]: a Comissão Nacional da Verdade na revista do Clube Militar

Revista Tempo e Argumento, vol. 14, núm. 36, e0104, 2022

Universidade do Estado de Santa Catarina

Recepción: 22 Diciembre 2021

Aprobación: 28 Julio 2022

Publicación: 16 Septiembre 2022

Resumo: Com a criação da Comissão Nacional da Verdade, em 2011, o Brasil avançou na busca pela superação do legado da Ditadura Civil-Militar. Entretanto, os traumas vividos no período ainda são fontes de tensão, particularmente no que tange à memória e à identidade dos protagonistas desse conturbado período da História nacional. Nossa proposta é, partindo de referencial teórico acerca de memória, identidade e poder, analisar a reação dos militares – pautados pela perspectiva memorialista presente nos textos publicados pela Revista do Clube Militar – em defesa da identidade castrense, supostamente ameaçada pelo trabalho da referida Comissão.

Palavras-chave: Comissão Nacional da Verdade, memória, identidade, poder, Clube Militar.

Abstract: With the creation of the National Truth Commission, in 2011, Brazil has moved forward in the search to overcome the legacy of Civil-Military Dictatorship. However, the traumas experienced during the period are still sources of tension, particularly regarding the memory and the identity of the protagonists of this troubled period of National History. Our proposal is, based on theoretical reference about memory, identity and power, to analyze the military reaction - guided by the memorialist perspective present in texts published by the Military Club Magazine - in defense of the military identity, supposedly threatened by the work of the aforementioned Commission.

Keywords: National Truth Commission, memory, identity, power, Military Club.

Introdução

Passados quase trinta anos do fim da Ditadura Civil-Militar, período em que sucessivos governos excluíram de suas agendas a “incômoda temática”, em 2011, o Brasil finalmente aprovou a criação de uma Comissão Nacional da Verdade (CNV). Como parte das ações previstas pelo 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3, 2010)[2], à Comissão caberia apurar e esclarecer fatos e circunstâncias, identificar estruturas e instituições responsáveis por violações de direitos humanos na história republicana do país, bem como propor políticas públicas para preveni-las[3] (BRASIL, 2021).

A criação de Comissões da Verdade é parte fundamental dos processos de Justiça de Transição, um conjunto de medidas a serem adotadas por Estados que sobrepujaram regimes ditatoriais ou conflitos severos; trata-se de um modelo de justiça referendado por organismos internacionais, cujo referencial ético deve ser o compromisso com a dignidade humana; seu objetivo final, a consolidação da democracia (BRITO, 2009; ZYL, 2009).

De fato, superar um regime autoritário não implica, necessariamente, superar o seu legado, o que certamente influenciará nas práticas democráticas do porvir. Isso porque a memória das vítimas carrega o peso da violência sofrida; ocultá-la ou esquecê-la pode ter implicações negativas nos âmbitos público e privado da vida social, além de interferir na relação da sociedade com o Estado. Verdade e memória são as opções previstas nos processos de Justiça Transicional; caminhos para a reconstrução saudável do pacto democrático (BRITO, 2009; ZYL, 2009).

Apesar de inúmeros estudos[4] destacarem a importância decisiva desse trabalho de recuperação da verdade histórica para a reconciliação com o passado, esse enfrentamento traz à tona experiências de muito sofrimento e provoca profundas tensões políticas. Assim, o trabalho da Comissão Nacional da Verdade no Brasil foi – e, no cenário de polarização político-ideológica, ainda é – alvo de muita controvérsia e tema recorrente nos debates políticos, acadêmicos e midiáticos, sobretudo porque seu estabelecimento apresentou estreita relação com a ascensão política de um grupo cujo espectro ideológico permite, a segmentos militares, identificá-los como os inimigos de outrora.

Esse cenário contribuiu para a reação indignada e contumaz da caserna (e de simpatizantes), que se opuseram à atuação da CNV, acusando-a de revanchismo. A preocupação dos militares não está apenas em preservar, fortalecer e disseminar uma memória histórica específica acerca do período ditatorial, mas revela o intuito de defender a identidade do grupo que esteve à frente do Estado naquela circunstância.

Tendo isso em vista, e embasados em consistente arcabouço teórico acerca da relação entre memória, identidade e poder, nossa proposta é caracterizar a identidade que os militares buscam preservar, bem como sua percepção do ‘outro’, seu opositor político, ou seja, os responsáveis pela criação e condução dos trabalhos da CNV. Em virtude do novo paradigma de comunicação global, optamos pela análise do material disponível em uma plataforma de comunicação específica: a Revista do Clube Militar. Entendemos que a conjugação de todos esses elementos nos permitirá contribuir para o enriquecimento do debate teórico e político que envolve temática tão complexa e atual.

Memória, identidade e poder

Em meio às inquietações da pós-modernidade, alguns temas vêm ganhando maior relevância nos estudos das ciências humanas e sociais, entre eles, questões relacionadas à memória e à identidade, que são indissociáveis e decisivas nas relações de poder. Segundo Halbwachs (2006), devemos atribuir a memória à sociedade. Para Paul Ricoeur (2007, p. 131), uma vez que o indivíduo está inserido e sofrendo influências da sociedade, ele se lembra “enquanto membro de um grupo”. Superada a dicotomia entre indivíduo e sociedade, afirma-se que a memória é coletiva, originária da percepção interna e da apreciação moral do grupo acerca de suas experiências e dos fatos vivenciados coletivamente (CARDOSO, 2005); em outras palavras, é uma interpretação coletiva “do passado que se quer salvaguardar” (POLLAK, 1989, p. 9).

Todorov (2000) nos alerta para o fato de que a memória pressupõe seleção simultânea dos fatos que serão lembrados e esquecidos, uma interação entre conservação e apagamento, em geral, ligados a eventos de constrangimento ou de identidade na história de determinado povo (LE GOFF, 2003); portanto, não há neutralidade no ato de lembrar ou de escrever sobre o passado. Le Goff (2003), por sua vez, afirma que os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores dos mecanismos de manipulação da memória coletiva. Disso decorre a importância fundamental e decisiva dos atores – sua posição social, suas convicções e interesses – envolvidos no processo de construção e fixação, bem como os usos que se pretende desse passado recuperado (TODOROV, 2000). A narrativa final, que precisa ser aceita pelo grupo – agente coletivo do passado que o narrador supõe representar –, pode estar a serviço de projetos políticos específicos (CARDOSO, 2005).

Considerando, então, que a memória coletiva procura reter do passado aquilo que convém aos questionamentos do presente, é fácil compreender a relação entre memória e poder. Ricoeur (2007) afirma que a ideologia – que permeia o trabalho de reconstrução da história a ser rememorada – é o fator fundamental no que tange à manipulação da memória, pois atua distorcendo a realidade, justificando a ordem social e garantindo credibilidade ao sistema de poder. Em vista disso, temos a necessidade de problematizá-la (LE GOFF, 2003) e de questionar os resultados dos atos que se pretendem fundados sobre a rememoração do passado (TODOROV, 2000).

Sobre o tema, Ricoeur afirma que

a memória imposta está armada por uma história ela mesma ‘autorizada’, a história oficial, a história aprendida e celebrada publicamente. De fato, uma memória exercida é, no plano institucional, uma memória ensinada; a memorização forçada encontra-se assim arrolada em benefício da rememoração das peripécias da história comum tidas como os acontecimentos fundadores da identidade comum. (RICOEUR, 2007, p. 98)

Corroborando, Pollak (1989) destaca o caráter opressor da memória nacional. Esta, utilizando “instituições de memória”, visa a preservar “a alma e o princípio espiritual da nação” (CANDAU, 2011, p. 17), afirmação que nos remete às “tradições inventadas”, uma “tentativa de estruturar de maneira imutável e invariável ao menos alguns aspectos da vida social”, utilizando a história como “cimento da coesão grupal” (HOBSBAWM, 1984, p. 9-10, 21). Em última análise, essa memória nacional seria um instrumento de legitimação de instituições, relações de autoridade ou princípios morais (com forte carga emocional ou simbólica) os quais se quer preservar e/ou reforçar.

Entende-se, portanto, que as tradições estão associadas a uma prática discursiva deliberada, espécie de discurso da cultura nacional, algo que produz sentido, cria vínculos, constrói a identidade da nação ou sua “natureza essencial”, que deve resistir a qualquer vicissitude da história (HALL, 2006, p. 47).

Esses elementos não apenas fortalecem a convicção acerca de uma dada percepção do mundo, mas também reforçam a identidade dos indivíduos/grupos em relação à trajetória histórica da sociedade na qual estão inseridos. Em síntese, fixar memória é construir identidade; esta, por sua vez, predispõe os indivíduos a “‘incorporar’ certos aspectos particulares do passado, a fazer escolhas memoriais” (CANDAU, 2011, p. 19).

Para o trabalho ora proposto, é fundamental destacarmos a correlação entre memória-identidade-poder. Vários autores, a exemplo de Le Goff (2003), nos alertam para os problemas de identidade gerados pela falta de conexão dos indivíduos com um passado reconhecido. O tema é particularmente importante na atualidade, em função do papel da identidade enquanto quadro de referência, que garante aos cidadãos uma “ancoragem estável no mundo social” (HALL, 2006, p. 7).

Para Cuche (2002, p. 177), “todo grupo social é dotado de uma identidade, que corresponde à sua definição social, definição que permite situá-lo no conjunto social”. Segundo Hall (2006, p. 12), o “sujeito pós-moderno” não apresenta uma identidade fixa ou permanente. O resultado seria, então, a “perda de um ‘sentido de si’ estável”, situação que desestabiliza e perturba as relações sociais e seus valores, gera ansiedade e apreensão, assim como impacta as “paisagens políticas” e a luta pelo poder, em função da emergência de identidades rivais (HALL, 2006, p. 9).

Diversos estudos concluem que, além de ser uma construção social, a identidade tem caráter relacional. Para Candau (2011, p. 27), as identidades – espécie de consciência de si em meio às mudanças vivenciadas ao longo de uma trajetória – são “produzidas e se modificam no quadro das relações, reações e interações sociossituacionais [...] de onde emergem sentimentos de pertencimento, de ‘visões de mundo’ identitárias”.

Na mesma linha, Denys Cuche (2002) afirma que “a construção da identidade se faz no interior de contextos sociais que determinam a posição dos agentes e por isso mesmo orientam suas representações e escolhas.” Tratar-se-ia de uma elaboração em oposição a outros grupos, o que leva o autor a propor o termo “identificação” e a ressaltar a importância dos mecanismos de diferenciação por eles utilizados. Assim, “a identidade social é, ao mesmo tempo, inclusão e exclusão: ela identifica o grupo [...] e o distingue dos outros” a partir de um mesmo referencial, um ponto de vista (CUCHE, 2002, p. 177, 182-183).

Na contemporaneidade, afirma Montero (1997, p. 63) a “identidade [...] e a diversidade se carregam pois de significados simbólicos” com grande capacidade de mobilização e de visibilidade na cena política, porque combinam “interesses e pertencimentos [...] criando lealdades afetivas e personalizadas”; sua eficácia depende da competência na manipulação de elementos culturais, ou seja, de um sistema simbólico que garanta solidariedade social (BOURDIEU, 1989).

Para Montero (1997, p. 64), não é a diferença que interessa nela mesma, mas “o jogo de forças que organiza o campo de sua construção simbólica”. Desse modo, a questão central que emerge diz respeito às representações identitárias –de si e desse ‘outro’ – que emergem nesse jogo de forças. A autora destaca que, historicamente, os julgamentos sobre o outro sempre são depreciativos, a ele são atribuídas características pejorativas visando ao exercício do poder hegemônico; logo, a produção identitária nunca é inocente (MONTERO, 1997).

Segundo Silva (2000, p. 80) dividir, classificar, hierarquizar, atribuir valores ou “demarcar fronteiras” são mecanismos de afirmação e reafirmação nas relações de poder; para tanto, afirma o autor, as identidades precisam ser representadas, ou seja, precisam comunicar uma significação, um sentido que rege as relações dos indivíduos com o mundo e orienta as condutas sociais (JODELET, 1993).

Em vista dessas considerações, voltamos nosso olhar para o objeto de análise proposto, e o jogo de forças e interesses se revela. Sabendo que “o poder de identificação depende da posição que se ocupa no sistema de relações que liga os grupos” (CUCHE, 2002, p. 185-186), depreendemos a condição privilegiada da Comissão Nacional da Verdade: criada sob os auspícios do governo, sua produção histórica ganha contornos de “história oficial”. Essa condição fortalece a potência de sua narrativa, bem como a capacidade de disseminação de conteúdo simbólico que evoca a memória nacional. Uma vez que se trata de grupo político identificado como opositores políticos de outrora, o trabalho da CNV acende o sinal de alerta entre os militares.

Com seu senso de unidade, seu apego às tradições e temendo a erosão da “identidade mestra” da corporação (HALL, 2006, p. 21) – uma identidade que muito deve à atuação política que tiveram no contexto da luta anticomunista –, setores ligados às Forças Armadas organizaram o contra-ataque, buscando defendê-la e reforçá-la, conforme verificamos no estudo de caso que segue.

“Nós” e “eles”: os militares em defesa de sua identidade

Segundo Pollak (1992, p. 207), “quando a memória e a identidade estão suficientemente constituídas e instituídas, os questionamentos vindos de grupos externos [...] não chegam a provocar a necessidade de se proceder rearmações [...] no nível da identidade coletiva”. Para Giddens (2000, p. 57), “em situações mais tradicionais” – e, inferimos, em se tratando de instituições mais tradicionais, caso das Forças Armadas – “o senso de identidade é sustentado em grande parte pela estabilidade das posições sociais ocupadas pelos indivíduos na comunidade”.

Pela reação e empenho de setores ligados aos militares em reafirmarem a memória e a identidade da caserna, podemos inferir que o trabalho da Comissão Nacional da Verdade poderia se transformar em um abalo de proporções sísmicas na identidade militar, produzindo um terreno fértil para a disputa identitária no jogo de forças que envolve, ainda hoje, a temática da ditadura civil-militar no Brasil.

Em virtude do caráter discursivo da produção da identidade e da diferença, optamos, nesse trabalho, por analisar textos publicados na Revista do Clube Militar[5], publicação do Clube Militar, fundado em 1887. Apesar de não integrar o Exército, o Clube – e, por extensão, a Revista –, estaria: “destinad(o) fundamentalmente a estreitar os laços de união e solidariedade, entre os oficiais das Forças Armadas e a colaborar na preservação do seu prestígio e conceito [...]” (PIMENTEL, 2014, n. 453, p. 3), afirmação que nos remete à defesa da coesão interna identitária do grupo.

Logo na capa de todas as edições analisadas, o lema: “democracia, soberania, unidade nacional e patriotismo” situa o leitor quanto aos princípios e valores que pautariam a publicação e, subentende-se, o comportamento do segmento militar. Nesse sentido, e segundo editorial, a direção da Revista “procura selecionar obras as mais abrangentes e que se coadunem com os princípios que norteiam a linha basilar do pensamento julgado adequado ao momento político-institucional por que passa a nação brasileira” (EDITORIAL..., 2012, n. 445, p. 2); no caso, podemos enquadrar a polêmica derivada da criação da CNV, ao final de 2011.

Revista organizada e de fácil leitura, reúne vasto material e promove intenso debate em torno de temáticas diversas. São artigos, entrevistas, reproduções de textos e de notícias publicados em jornais de grande circulação, resenhas de livros, opinião de leitores, fotos e divulgação de eventos. Os artigos são assinados por militares e por profissionais civis de diferentes áreas, cujo pensamento, em geral, reforça a leitura de mundo dos militares.

Vale ressaltar, que como fonte primária, analisamos somente textos assinados por oficiais militares, bem como seções sob a responsabilidade da Comissão Editorial[6]. Além disso, outro critério adotado foi de ordem temática: os textos selecionados abordam, direta ou indiretamente, a celeuma em torno do trabalho da Comissão Nacional da Verdade e assuntos correlatos. Seguindo a proposta, o período analisado comporta desde o momento da assinatura da lei que criou a CNV (novembro/2011) à publicação do relatório final (dezembro/2014)[7].

Em geral, os textos são pautados pela coesão memorialista. Segundo editorial, a publicação preocupa-se em oferecer à sociedade – sobretudo à “juventude universitária” – discussões sobre temas de interesse nacional – destaque para o “conhecimento dos fatos históricos verdadeiros [...] ocorridos no período pós-64 no Brasil” – e que, segundo a Revista, “lhes têm sido omitidos na imprensa, nas escolas” (A VISÃO..., 2013, n. 448, p. 2). Nessa perspectiva, no período analisado, as publicações convergem para os temas mais polêmicos ensejados pela criação da CNV, responsável pela emergência de uma identidade rival: o golpe de 1964 e a ditadura subsequente, as violações aos direitos humanos e a luta armada, a Lei da Anistia, Verdade e Memória históricas.

No que se refere ao “movimento militar” de 1964, são unânimes em torno do caráter revolucionário, contrarrevolucionário ou salvacionista (e não golpista) do evento. Como regra, negam – ou minimizam – a repressão imposta pela ditadura civil-militar aos opositores. Em Manifesto assinado coletivamente, afirmam: “Nós, que vivemos integralmente este período, jamais aprovamos qualquer ofensa à dignidade humana, bem como quaisquer casos pontuais que, eventualmente, surgiram [...] erros foram cometidos pelos dois lados. Os embates não foram iniciados por nós, pois não os desejávamos” (MANIFESTO..., 2014, n. 454, p. 3)[8].

Segundo a narrativa predominante na Revista, às vésperas da chamada “revolução de 1964” e diante da “desordem generalizada”, do “iminente perigo” que ameaçava o país, as Forças Armadas, “conscientes e dignas, sentindo os anseios populares [...] cumpriram seu dever constitucional” [...] “de defender a Pátria, a lei e a ordem. [...] A Pátria precisava ser socorrida. [...]”; seria, portanto, “um dever moral” das Forças Armadas, afirma o general Jonas Correia Neto, em artigo intitulado “A Verdade” (CORREIA NETO, 2013, n. 448, p. 17).

Enfatizam que a ação militar de 1964 visava a coibir a quebra da lei, da ordem e da disciplina; sua luta seria “para impedir a implantação da ditadura comunista” (A VISÃO..., 2013, n. 448, p. 2). Tratar-se-ia de um “movimento democrático” que teria contado com amplo apoio de “brasileiros patriotas, extremamente preocupados com os rumos que a subversão dos princípios éticos, morais, disciplinares, hierárquicos, de ordem e progresso, da lei e do direito implantada no País [...]” (COSTA, 2014, n. 452, p. 2). Os valores tradicionais presentes nesse discurso, ou seja, a defesa das tradições garantiria uma espécie de prerrogativa (nesse caso, moral) exclusiva para a interpretação correta da realidade.

O gesto ‘altruísta’ de 1964 e o regime subsequente, entretanto, teriam se tornado, na atualidade, alvos de uma “verdadeira mitologia histórica” construída pelas esquerdas (AUGUSTO, 2014, n. 452, p. 90). Segundo os relatos, apesar de terem cumprido uma missão com “a coragem de ficar ao lado do verdadeiro interesse nacional, evitando que a nação mergulhasse na treva comunista”, os “bravos patrícios” (BANDEIRA, 2014, n. 452, p. 5) foram transformados em alvos preferenciais de grave “injustiça” por parte da Comissão Nacional da Verdade, ao situar “agentes do estado como possíveis executores de crimes”, “ao mentir sem pejo a cerca[9] de militares honrados e leais à Nação brasileira lançando-lhes a lama de falsos crimes, enodoando seus nomes e de seus familiares”; verdadeira “mácula a ser limpa!”. Descortina-se, nessas afirmações, o objetivo de contrapor-se ao trabalho em curso – entenda-se, pela Comissão Nacional da Verdade. Assim, seria obrigação das FA “se manifestarem, até mesmo judicialmente, na defesa de sua história e de seus integrantes” (PIMENTEL, 2015, n. 455, p. 2).

Com esse intento, e na medida em que o trabalho da CNV avançava, os artigos abordando a temática da “verdade” se tornaram mais numerosos e ostensivos, marcando fortemente os debates da Revista[10]. A título de exemplo, vale citar edição especial lançada em abril de 2014, em cuja capa se destaca o seguinte título: “31 de Março de 1964: a Verdade” (31 DE MARÇO..., 2014, n. 452)[11]. Sobre essa edição, no volume seguinte, explicam: “a diretriz que a norteou foi incisiva: ater-se aos fatos, sem ilações, trazendo ao leitor a Verdade, comprovada com documentos da época”; garantir aos leitores a “oportunidade de conhecer a Verdade histórica, tão frequentemente escamoteada e deturpada pela ação dos derrotados pelo Movimento [de 1964]” (EDIÇÃO..., 2014, n. 453, p. 8).

Segundo o general de exército Costa (2012, n. 445, p. 3) – em seu discurso de posse como presidente reeleito do Clube –, o Brasil vivia, no início de 2012, momentos difíceis, entre outros aspectos, “decorrentes [...] de pressões [...] que [visavam] abrir antigas feridas que dizem respeito a fatos que já foram julgados e anistiados”, declaração que indica a opção militar pelo esquecimento. Em última análise, a CNV representaria os interesses políticos e ideológicos dos derrotados em 1964, objetivando reescrever a História. Tratar-se-ia de um trabalho de “doutrinação mentirosa, principalmente sobre os fatos que cercam a contrarrevolução de 1964”, levado a efeito por “aqueles que foram [...] afastados pela contrarrevolução” e que chegam ao poder, “beneficiados pela Lei da Anistia” (FERREIRA, 2013, n. 447, p. 5).

Reforçando a argumentação, em outro artigo, sinopse de um livro, lê-se: “hoje, os integrantes da frente de esquerda, que se apresenta solidamente enquistada no Poder, [...] voltam-se, especialmente, para as novas gerações, cujas mentes buscam envenenar com argumentação falaciosa, repetida à exaustão” (PARA A SUA .., 2014, n. 452, p. 137). Para tanto, uma “novilíngua” –espécie de “pirataria semântica” com propósitos ideológicos – estaria sendo produzida pela “esquerda mundial”, de modo a ressignificar a compreensão de conceitos fundamentais no debate, iludindo e confundindo os cidadãos. A título de exemplo, o autor cita que o termo “democrático”, quando utilizado pela esquerda significa, na realidade, comunista, socialista, sindical (BANDEIRA, 2012, n. 444, p. 4 - 5).

Vale salientar que os textos analisados destacam, com frequência, a relação passado/presente: um passado que remonta a 64 e ao regime subsequente e o presente, que se impôs com a chegada da “esquerda” ao poder. Observa-se, também, que mesmo quando o tema específico da Comissão não é abordado, os textos tangenciam ou aludem ao embate memorialista e identitário vivenciado desde sua criação, ao final de 2011.

No contexto, portanto, consideram-se alvos de uma execração pública e afrontosa e defendem que as Forças Armadas seriam “a reserva moral de nossa Pátria e uma das últimas barreiras a impedir a vitória dessas ideias alienígenas [entenda-se, o comunismo] em nossa Pátria” (FERREIRA, 2013, n. 447, p. 4). Valendo-se desse entendimento, asseguram que “só não se orgulha de suas Forças Armadas quem não conhece a HISTÓRIA. À mentira só há um antídoto: a VERDADE” (AUGUSTO, 2014, n. 452, p. 91, grifos do autor).

Assim, em se tratando de recuperar sua construção identitária, observa-se que a abordagem relacional e binária – nós e eles –, apontada por inúmeros estudiosos, é a tônica das declarações. Interessante destacar que o discurso salienta as diferenças de cunho moral que existiriam entre os militares e os supostos opositores, “inimigos de todos esses anos [que] nunca pararam de nos injustiçar. É sua revanche” (CORREIA NETO, 2013, n. 448, p. 17); inferimos que se referem ao grupo político vinculado à CNV. Segundo eles,

parte do grupo que chegou ao poder é o que de pior a política pode produzir em termos de ética, moral, pudor, escrúpulo e todas as demais virtudes que nós militares veneramos. São esses que defendem o comunismo e querem reescrever a história a seu modo. Foi contra eles que lutamos naquela época e vencemos. (FERREIRA, 2013, n. 447, p. 5)

Em referência à conduta dos militares e das Forças Armadas, os termos recorrentes são “honra, verdade, lealdade e justiça”. Em contraposição, ao se referirem aos opositores, de ontem e de hoje, emergem termos como “criminosos”, “quadrilha de aproveitadores” (FERREIRA, 2013, n. 447, p. 4), “ex-terroristas” (CORREIA NETO, 2013, n. 448, p. 17). Note-se que as declarações pejorativas acerca do oponente são extremadas e não utilizam subterfúgios ou meios-termos.

Essa abordagem maniqueísta, que atribui características positivas e desejáveis aos militares – apresentados como parâmetros de licitude e moralidade –, e caracteriza seus oponentes como abjetos é, segundo Silva (2000), estratégia clássica de fixação da identidade, “uma construção que se elabora em uma relação que opõe um grupo aos outros grupos com os quais está em contato” (CUCHE, 2002, p. 182). Nesse caso, cabe enfatizar, uma identidade sempre permeada pela perspectiva memorialista acerca da ditadura civil-militar, principal período investigado pela CNV.

No que tange especificamente à CNV e ao relatório final produzido, as publicações seguem a mesma linha. A adjetivação utilizada revela o propósito de inferiorizar moralmente os seus componentes e demais envolvidos e de desqualificar e desacreditar o trabalho realizado: “Comissão Esquerdista da Vingança” (BANDEIRA, 2012, n. 444, p. 5), “Comissão Nacional da Meia Verdade” (BANDEIRA, 2014, n. 454, p. 4), Comissão de Revanche (ELIA, 2014 apud BANDEIRA, 2014, n. 454, p. 4), “desacreditada”, “espúria” (PIMENTEL, 2015, n. 455, p. 2), “despropósito” (EDITORIAL, 2013, n. 447, p. 2), “órgão depreciativo das Forças Armadas” (MANIFESTO..., 2014, n. 454, p. 3). Sobre o relatório: “absurdo”, “peça requentada”, “risível e parcial”, “coleção de meias verdades, calúnias e mentiras” (RELATÓRIO..., 2015, n. 455, p. 3), “relatório leviano”, “ignomínia imperdoável” (PIMENTEL, 2015, n. 455, p. 2), “memória unilateral” (PEREIRA, 2015, n. 455, p. 6).

Em várias ocasiões, apontam a suposta falta de isenção, de imparcialidade e de credibilidade da CNV, que estaria sob o comando de “comissários comunistas” (BANDEIRA, 2014, n. 454, p. 4); seu trabalho estaria, portanto, contaminado pela “orientação socialista dos comissários” (RELATÓRIO..., 2015, n. 455, p. 3). Criticam o fato de não investigarem os crimes da esquerda, ações de “terroristas, guerrilheiros, sequestradores e assassinos esquerdistas que tentavam tomar o poder à força e estabelecer no País um governo totalitário comunista de modelo soviético, chinês ou cubano”; a esses “angelicais terroristas” somente “proteção e indenizações” (RELATÓRIO..., 2015, n. 455, p. 3), acusam.

Para o grupo, ao mesmo tempo em que o relatório teria relegado as ações da esquerda ao “esquecimento fraudulento” (PIMENTEL, 2015, n. 455, p. 2), concentrou-se em “apurar os excessos dos agentes do Estado, que combatiam guerrilheiros terroristas” (ELIA, 2014 apudBANDEIRA, 2014, n. 454, p. 4) e chegaram ao “resultado injusto e infeliz na busca por atender, sabe-se lá, que intenções inconfessáveis” (PIMENTEL, 2015, n. 455, p. 2). Além disso, denunciam a maneira tendenciosa (e até ilegal) com que a Comissão estaria colhendo depoimentos e a falta de honradez de seus membros, “ditos intelectuais, mas extasiados pelas ideologias de esquerda e pela notoriedade” (PEREIRA, 2015, n. 455, p. 7). Segundo destacam, as investigações envolveriam “falsidades, meias verdades, ações coercitivas e pressões de toda ordem” valendo-se, para seus propósitos, de “testemunhas inidôneas e de alguns grupos, cuja ideologia é declaradamente contrária aos princípios que norteiam as nossas instituições militares” (MANIFESTO, 2014, n. 454, p. 3).

Movidos pelo “ódio e o desejo de vingança” (RELATÓRIO..., 2015, n. 455, p. 3), por meio de sua narrativa, a CNV estaria imputando às Forças Armadas a criação de “organizações militares criminosas especializadas em torturas, fornos crematórios, casas de terror, acidentes com artistas e até a utilização de répteis peçonhentos em interrogatórios” (PEREIRA, 2015, n. 455, p. 7).

Em tom de revolta e denúncia, afirma-se que “os que defenderam a Lei e a Ordem, são hoje execrados, indistintamente rotulados de ‘torturadores’” (BRAGA, 2014, n. 452, p.7). Em contrapartida, a Comissão teria transformado os supostos criminosos em “heroicos defensores [da] ‘democracia’” (MANIFESTO..., 2014, n. 454, p. 3); na verdade, uma democracia “do proletariado, esta à semelhança dos antigos regimes russo, chinês ou albanês, ou então dos atuais regimes cubano e bolivarianos”, rebatem (PEREIRA, 2015, n. 455, p. 6). Apesar de “já quase beatificados”, seriam os opositores “terroristas e guerrilheiros assassinos e criminosos” (BANDEIRA, 2014, n. 454, p. 4), responsáveis por crimes que estariam sendo esquecidos pela CNV: “atentados, sequestros com mortes, assassinatos bárbaros de inocentes, [...] justiçamentos, roubos a bancos, instituições e casas de governantes” (PEREIRA, 2015, n. 455, p. 7).

Sustentam que a Comissão se mostra empenhada em desmoralizar as Forças Armadas. Atingiriam, assim, “um patrimônio imaterial conquistado, século após século, por milhares de pessoas dedicadas à verdadeira causa da Pátria”. Defender esse patrimônio seria “uma questão de honra institucional” (PIMENTEL, 2014, n. 455, p. 2). Com essa finalidade, o Clube Militar teria entrado com representação junto ao “Ministério Público Federal contra a parcial e revanchista Comissão Nacional da Verdade”, afirma o general Gilberto Rodrigues Pimentel (BANDEIRA, 2014, n. 453, p. 7). Diante desse quadro, e em defesa do direito ao “contraditório”, sugerem a criação de uma “Segunda Comissão Nacional da Verdade [...] constituída por militares e civis comprometidos com os ideais democráticos” e que contariam “a verdade do outro lado” (PEREIRA, 2014, n. 455, p. 6-7).

Nitidamente, procuram demarcar uma fronteira entre ambos os grupos e a inflexão do discurso revela toda a ansiedade e urgência que esse propósito carrega. Cientes do poder derivado da “crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia” (BOURDIEU, 1989, p. 15), empenham-se em construir não apenas um relato histórico alternativo, mas, principalmente, uma identidade com elevado suporte moral, que os distinguiria dos demais compatriotas e legitimaria sua perspectiva analítica. Assim, para fortalecer a coesão do grupo em torno dessa identidade altamente positiva, bem como buscando uma suposta coesão nacional capaz de conectar presente-passado, recorrem à questão da tradição, nesse caso, uma “tradição sitiada”, para usarmos a expressão de Giddens (2000, p. 58), ou seja, ameaçada pela CNV.

No que se refere à instituição militar, destacam os “princípios basilares e constitucionais das Forças Armadas: a disciplina e a hierarquia”, tradição que ontem e hoje nortearia as forças militares e justificaria a elevada credibilidade junto ao povo. No que tange ao país, atribuem um papel fundante às Forças Armadas na constituição do Estado Nacional Moderno, condição que lhes garantiria o posto de guardiões dos interesses nacionais ou, em outras palavras, o seu direito irrevogável de intervir na vida política nacional, ontem, e quiçá, hoje, em atendimento ao ‘clamor das ruas’: “As Forças Armadas Brasileiras nunca foram intrusas na História. Seus ocupantes não constituem uma casta distante do povo. Ao contrário: são povo fardado! Legalistas por natureza, sempre que tiveram que intervir na vida nacional foi a chamado da Nação” (BRAGA, 2014, n. 452, p. 7-9).

Os relatos nos revelam que setores das Forças Armadas transformaram o anticomunismo, cujas origens no Brasil remontam às primeiras décadas do século XX, em amálgama identitário, elemento estruturante de seu presente. Quanto à intervenção de 1964, sustentada por representações grandiloquentes – “matriz de significação” (SILVA, 2000, p. 5) –, foi convertida em acontecimento heroico, garantindo uma ligação afetiva fundamental para a identidade militar. Atribuindo-se, portanto, um tradicional papel de guardiões da nacionalidade, de valores que consideram a essência nacional – sempre uma “fonte poderosa de significados” (HALL, 2006, p. 49) –, procuram preservar e fortalecer seu lugar num mundo sob o risco de desmoronar, ameaçado pelo trabalho da CNV.

Como objetivo mais amplo e final, a Comissão pretenderia a revisão da Lei da Anistia (BANDEIRA, 2014, n. 454) e sua alteração parcial, “de maneira que os agentes do Estado, que combateram e venceram as tentativas comunistas de tomada do poder no Brasil, não sejam protegidos pela dita Lei” (RELATÓRIO..., 2015, n. 455, p. 3). Na avaliação de Pereira (2015, n. 455, p. 7), “[...] a Lei da Anistia foi sábia. Ela tornou viável uma transição conciliadora e pacífica entre os dois lados confrontantes, por mais de 30 anos. [...]”. A CNV, entretanto, teria agravado a “crise brasileira, quebrando qualquer possibilidade de conciliação [e fomentando] ainda mais o clima de desunião presente no país” (PEREIRA, 2015, v. 455, p. 7). Assim, os ataques contra as Forças Armadas representariam uma ameaça à estabilidade nacional; tratar-se-ia de um verdadeiro desserviço à nação.

A análise sobre o relatório final reflete essa percepção:

Após três anos de trabalhos e elevados custos, o que se pode deduzir do relatório final da comissão é que a memória é unilateral, a verdade aparece pela metade e a reconciliação está a cada dia mais distante e difícil. A imparcialidade preconizada pela lei não foi atendida e o maniqueísmo está presente, a propalar que existe o "lado bom", o seu, e o "lado mau", o outro. E, ainda - sem surpresas para quem acompanha o tema -, o relatório propõe que a Lei da Anistia seja reformulada, responsabilizando criminalmente os agentes do Estado, um escopo obsessivo das esquerdas brasileiras. (PEREIRA, 2015, n. 455, p. 6)

Reagindo a essa ameaça, e falando em nome da coletividade, afirma o Manifesto (2014), assinado por generais do Exército da Reserva:

Sempre que pode a Comissão Nacional da Verdade açula as Forças Armadas, exigindo que elas peçam desculpas. Assim, militares inativos, por poderem se pronunciar a respeito de questões políticas, têm justos motivos para replicarem com denodada firmeza. [...] O que nós, militares, fizemos foi defender o Estado brasileiro de organizações que desejavam implantar regimes espúrios em nosso país. Temos orgulho do passado e do presente de nossas Forças Armadas. [...] Nós sempre externaremos a nossa convicção de que salvamos o Brasil! (MANIFESTO..., 2014, n. 454, p. 3)

Sempre enfatizando a preocupação com a possível distorção dos fatos, uma “releitura da História” (COSTA, 2014, n. 452, p. 2), e claramente equivocados quanto ao dinamismo do ofício do historiador, ratificam sua perspectiva memorialista: “a História que não se apaga nem se reescreve” (VIEIRA, 1999 apud31 DE MARÇO.., 2014, n. 452, p. 10).

Desqualificam e repudiam a CNV e seu relatório, acusando-o de mentiroso, tendencioso e parcial; um trabalho que estaria, supostamente, a serviço de um projeto de poder autoritário e sectário. Frente a isso, reafirmam seu compromisso com o restabelecimento da “verdade”, fundamental para a defesa da história e da identidade castrense, da qual muito se orgulham. Asseguram que, em nome desse passado grandioso e sustentados por um espírito de sacrifício, não transigirão no cumprimento de sua missão em defesa de valores considerados superiores e, nesse sentido, afirmam que, com base na Verdade, pretendem “remexer o passado [...] ainda que fiquem[os] com apenas um olho” (AUGUSTO, 2014, n. 452, p. 91), pronunciamento que denota a franca disposição para o confronto político.

Parece claro que o segmento militar se sente envolvido numa espécie de “guerra” identitária, memorialista e narrativa, supostamente patrocinada por antigos adversários políticos que, uma vez no poder, teriam colocado em prática uma política ressentida e revanchista. Ainda que sutilmente, destacam a possível contribuição da CNV para o acirramento das disputas e para polarização política crescente, que vem desgastando o tecido social nos últimos anos.

Considerações finais

A instalação da Comissão Nacional da Verdade, no Brasil, foi combustível de intensas disputas, em virtude das suscetibilidades que o tema mobiliza. Sua proposição tardia e as limitações impostas à sua atuação revelam a falta de consenso e a complexidade que cercou tal iniciativa. Nesse sentido, recorrendo ao necessário aparato teórico, nossa análise procurou refletir sobre os interesses que envolvem os campos da memória e da identidade, instrumentos indissociáveis de uma luta de poder que, num processo crescente no Brasil atual, perpassa os domínios de construção simbólica acerca de um período particularmente caro às Forças Armadas.

Após vinte e um anos de hegemonia política (e apesar das prerrogativas militares garantidas pela Constituição de 1988 e de sua capacidade de adiar e limitar a atuação da CNV)[12], a partir da década de 1990, os militares enfrentaram crescente constrangimento à sua influência, a exemplo da criação do Ministério da Defesa (em 1993), que visava a adequar o papel das Forças Armadas a um ambiente político mais democrático.

Nesse contexto, portanto, a reação dos militares em defesa de sua identidade e a produção de representações que legitimem sua conduta no passado ganharam contornos de uma disputa política. Para além de recuperar sua imagem e coesão interna, interessava construir uma visão consensual (e negativa) da realidade e do ‘outro’, identificado com governos de esquerda, que ascenderam ao poder no início do século XXI. Com isso, despertariam a atenção e poderiam induzir ao medo e à insegurança os cidadãos, o que poderia impactar seu comportamento político-eleitoral, conforme aponta Castells (2009).

Por sua capacidade de mobilização e de aliciamento moral, esse esforço de fixação identitária pode ser compreendido como um importante capítulo da guinada conservadora que se observa no tenso ambiente político do país desde o início da década de 2010. Nesse sentido, os resultados já podem ser percebidos, com a ressonância desse discurso por setores específicos da sociedade, em grandes manifestações de rua ocorridas ao longo dos últimos anos. A defesa de uma nova intervenção militar na política nacional pode ser apontada como expressão mais nítida desse embate.

De fato, a observação desses e de outros aspectos que perpassam a atual luta pelo poder reforçam nossa convicção de que vivemos um momento decisivo na história do país. Nesse ambiente, urge discutir as divergências de maneira democrática, o que exige o corajoso diálogo com o passado.

Referências

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Notas

1 Expressão adaptada de Giddens, 2000, p. 58
2 Decreto 7037/2009, atualizado pelo Decreto 7177/2010. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D7037.htm
3 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.htm. Acesso em: 17.04.2015. Destaque-se que as primeiras iniciativas nesse sentido remontam ao governo FHC: Lei nº 9.140/1995, que reconheceu a responsabilidade do Estado brasileiro pela morte de opositores à ditadura de 1964 e instituiu Comissão Especial com poderes para deferir pedidos de indenização e para investigar a localização de corpos de pessoas desaparecidas; Programa Nacional de Direitos Humanos I e II (1996 e 2002, respectivamente). Nesse sentido, a criação da CNV representa o avanço expressivo de uma agenda estatal de "prevalência dos Direitos Humanos” que remonta ao início da redemocratização (artigo 4º da Constituição de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm.) Acesso em: 17 set. 2021
4 Sugerimos: Zyl (2009); Brito (2009)
5 Disponíveis em: https://pt.calameo.com/books/00181959880ce4b6a4397. A seleção dos textos foi realizada ao longo do mês de setembro de 2021. Dentro do escopo temporal da pesquisa, analisamos os números 443 ao 455 da Revista. Cabe salientar que o número 455 abrange os meses de novembro e dezembro de 2014 e janeiro de 2015, por isso, foi incorporado ao material analisado.
6 São elas: “Editorial”, “Palavra do Presidente” (no caso, presidente do Clube Militar), “O pensamento do Clube Militar”, “Novos Camaradas”, “Painel”, “Para sua estante”.
7 Relatório Final da CNV disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=571 acesso: 08 out. 2021.
8 O referido manifesto é assinado por inúmeros generais de Exército da Reserva, ex-integrantes do Alto Comando do Exército, muitos deles ex-ministros de Estado e ex-Ministros do STM, conforme consta na página 40 desse número da Revista. Segundo afirma a Revista, o documento reproduzido foi, inicialmente, publicado no Jornal OESP, em setembro/2014
9 Na citação, mantivemos a grafia do texto original
10 Isso vale, inclusive, para artigos de personalidades externas ao círculo militar, como jornalistas, professores e diplomatas que, de certa forma, avalizavam a narrativa da caserna. Lembramos que esses textos não são alvos deste estudo
11 Seria uma edição especial em comemoração aos 55 anos do “Movimento Democrático” de 1964. Edição com o maior número de páginas do conjunto analisado, teria sido um projeto do Conselho Editorial da Revista, definido no ano anterior. Em suas 143 páginas, apresenta vasta documentação, com análises sobre os antecedentes do golpe, as realizações dos governos militares, gráficos, fotos de jornais da época, entre outros materiais
12 Sobre o tema, ver: OLIVEIRA, Sonale Diane Pastro de; MARINHO, Maria Gabriela Silva Martins da Cunha. Memória, História e Relações de Poder. Revista História e Cultura, Franca, v. 4, n. 3, p. 327-347, 2015.

Notas de autor

1 Doutora em em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC). Professora do Instituto Federal de Educação de São Paulo (IFSP). São Paulo, SP – BRASIL
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