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Meninas “da Vida”: a Funabem e as “artes de governar” as crianças e adolescentes em situação de rua
Humberto da Silva Miranda
Humberto da Silva Miranda
Meninas “da Vida”: a Funabem e as “artes de governar” as crianças e adolescentes em situação de rua
Girls “of Life”: Funabem and the “arts of governing” street children and adolescents
Revista Tempo e Argumento, vol. 14, núm. 36, 0204, 2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
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Resumo: No final da década de 1980, a Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor - Funabem publicava o relatório Meninas da Vida , que objetivava debater o atendimento às meninas em situação de rua. Partindo de uma lógica prescritiva, com o objetivo de circular nacionalmente, o documento trazia recomendações aos chamados educadores sociais que, para a autoria do relatório, eram os agentes responsáveis pelo atendimento sociopedagógicos dessas meninas. Nesse contexto, este artigo tem a finalidade de analisar o discurso das estratégias apresentadas para o atendimento às meninas nesse relatório, problematizando o conceito de “meninas da vida” e das “artes de governar” as crianças e adolescentes em situação de rua. Destaca-se que esse período foi marcado pela efervescência da redemocratização, do qual emergia o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, que questionava as legislações e políticas baseadas na lógica “bem-estar do menor”, trazendo uma proposta pedagógica de reconhecimento dessas meninas como protagonistas de suas histórias. Desse modo, pretende-se colocar em tela como as relações entre a Funabem e o Movimento foram criadas, destacando para além das fissuras, como a questão da menina/mulher passou a ser reconhecida como um problema de política social, haja vista que até o final da década de 1970 a maioria das políticas produzidas pelo Estado foram marcadas pelo “apagamento” da condição da menina-mulher, classificando-as genericamente como “menores”.

Palavras-chave: menina, rua, Funabem, movimentos sociais.

Abstract: At the end of the 1980s, the National Foundation for Minors' Welfare - Funabem published the Meninas da Vida report, which aimed to debate the assistance to street girls. Based on a prescriptive logic, with the objective of circulating nationally, the document provided recommendations for the so-called social educators, who, for the authorship of the report, were the agents responsible for the socio-pedagogical care of these girls. In this context, this article aims to analyze the discourse of the strategies presented for assisting girls in this report, problematizing the concept of “girls of life” and the “arts of governing” street children and adolescents. It is noteworthy that this period was marked by the effervescence of re-democratization, from which emerged the National Movement of Street Boys and Girls, which questioned legislation and policies based on the logic of “minors' welfare”, bringing a pedagogical proposal to recognize these girls as protagonists of their stories. In this way, it is intended to put on screen how the relations between Funabem and the Movement were produced, highlighting, beyond the fissures, how the issue of the girl/woman came to be recognized as a problem of social policy, given that even the At the end of the 1970s, most of the policies produced by the State were marked by the “erasing” of the status of the girl-woman, classifying them generically as “minors”.

Keywords: girl, road, Funabem, social movements.

Carátula del artículo

Seção Temática - Infâncias e Juventudes: Perspectivas Transnacionais e Interseccionais

Meninas “da Vida”: a Funabem e as “artes de governar” as crianças e adolescentes em situação de rua

Girls “of Life”: Funabem and the “arts of governing” street children and adolescents

Humberto da Silva Miranda
Universidade Federal Rural de Pernambuco (PPGH/UFRPE), Brasil
Revista Tempo e Argumento, vol. 14, núm. 36, 0204, 2022
Universidade do Estado de Santa Catarina

Recepción: 15 Noviembre 2021

Aprobación: 16 Marzo 2022

Apresentação

Desde meados do século XIX, e mais notadamente do XX, assistimos às mais diferentes “artes de governar” meninos e meninas considerados “de rua” materializadas em legislações, programas e políticas sociais, que se desdobravam nas mais diversas formas de classificá-los/as, identificá-los/as e categorizá-los/as. O objetivo deste artigo é analisar o relatório Meninas da Vida, publicado pela Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor – Funabem, trazendo, a partir disso, resultados de pesquisas e a possibilidade de difundir uma proposta para o atendimento de meninas em situação de abandono, nas unidades estaduais chamadas de Fundação Estadual de Bem-Estar do menor, as conhecidas Febem’s.

A preocupação de protagonizar “as meninas” neste artigo parte da justificativa de colocar em tela o problema histórico de atendimento às crianças e adolescentes do sexo feminino nas unidades de internação. A historiografia nacional vem se dedicando a debater as diferentes “artes de governar” os chamados “menores”, destacando como nesse processo as políticas e legislações invisibilizaram a condição da mulher, da diferença de gênero, do feminino. Este artigo se volta, portanto, para aquelas que ao serem atendidas como “menores” tinham negadas suas condições de “menina mulher”.

Objetivo, pois, partir do argumento de que essa preocupação com o atendimento especializado a meninas em situação de conflito com a lei, e que eram encaminhadas para as unidades de internação, só passou a ser discutida de forma mais contundente na Funabem, a partir do final dos anos de 1970, e com mais intensidade nos anos de 1980, haja vista as mobilizações sociais ocorridas no cenário da Redemocratização política do país, neste período em foco. Até então, as meninas eram atendidas em espaços diferentes dos meninos, mas não existia uma política de atendimento que respeitasse as especificidades da sua condição e quando atentavam para tal, reproduziam a lógica patriarcal da educação feminina voltada para o universo doméstico (MIRANDA, 2014).

O próprio Relatório, que neste trabalho será o fio condutor das questões problematizadas no artigo, apresenta-se como um documento que demarca uma fase da administração institucional. Nesse período, a Funabem passava a discutir e produzir publicações voltadas ao atendimento das meninas, ou seja, visibilizando uma “nova questão”: como o atendimento às meninas, que viviam as mais diferentes situações de abandono e eram destinas à instituição, deveria ser executado? (FUNABEM, 1989).

Mas como problematizar essa “nova questão” sem antes debater a construção histórica da assistência às crianças e adolescentes considerados “menores”? O atendimento às meninas e aos meninos considerados “menores em situação irregular”, como preconizado pelo Código de Menores de 1979, era marcado sob a lógica de punição e controle sobre aqueles e aquelas considerados “abandonados”, “pobres” ou “infratores” e sobre eles se produziu uma “arte de governar”, ou como conceituou Michel Foucault, um “biopoder” sobre a vida, sobre o cotidiano, que estabelecia regras de controle social, normas de vigilância e punição, que deveriam ser aplicadas ao corpo que se buscava disciplinar (FOUCAULT, 2010).

Contudo, é preciso problematizar como foi produzido historicamente o discurso sobre o “menor” no Brasil e como se operou no campo da negação das relações de gênero e mais notadamente na própria invisibilização da condição das meninas. Os estudos da antropóloga Adriana de Resende Vianna sinalizam que, no final do século XIX e mais perceptivelmente nas primeiras décadas século XX, o problema da menoridade esteve muito atrelado à questão das crianças em situação de rua. Para Vianna (1999), a própria expressão “menor” passou a ser utilizada para identificar o “desvalido”, o “delinquente”, o “abandonado”. Segundo a pesquisadora, o uso de tais expressões, “embora tenha suas raízes na produção jurídica, consolidou-se e generalizou-se em boa medida por meio da ação policial” (VIANNA, 1999, p. 43).

Nesse cenário de controle social, a primeira metade do século XX foi marcada pela produção de diferentes dispositivos legais e socioassistenciais destinados às crianças e famílias que pertenciam às classes populares que viviam em situação de pobreza extrema. Nesse sentido, muitos desses dispositivos voltavam-se sobremaneira às crianças e adolescentes em situação de rua, ou como eram identificados, os “menores de rua”.

Ao retratar a história das crianças em situação de rua, na década de 1970, a historiadora Izabel Frontana (1999) afirma que as cidades brasileiras enfrentavam o problema das desigualdades sociais, que afetava diretamente o cotidiano de meninos e meninas pertencentes às famílias pobres e que encontravam nas ruas espaços de sobrevivência. A autora afirma ainda que:

A porta da casa e a rua definiam, assim, o limiar entre dois espaços, o privado e o público, este último apresentando-se como o único a oferecer oportunidades imediatas para determinadas necessidades e carências dessas crianças e adolescentes. Vivendo aglomeradas com as suas famílias em locais desprovidos de serviços e equipamentos públicos que proporcionassem uma socialização comunitária digna, livre de opressão e constrangimento, era natural que essas crianças buscassem nas ruas da grande metrópole a satisfação de suas necessidades infantis, afastando-se, desse modo, de sua comunidade original. (FRONTANA, 1999, p. 230)

De acordo com Frontana (1999), essas crianças e adolescentes possuíam famílias, mas viviam em condições de pobreza ou extrema pobreza. Alguns trabalhavam em atividades informais e outros praticavam ações ilegais, o que os tornava ainda mais susceptíveis ao controle e à vigilância do aparato policial e dos programas assistencialistas promovidos naquele período.

Naquele momento, as políticas de atendimento eram teoricamente planejadas pela Fundação Nacional do Bem-Estar do menor, a Funabem, e suas instituições estaduais denominadas Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor, as chamadas Febem’s. Contudo, a primeira década de atuação da Funabem-Febem foi marcada por invisibilizar as políticas voltadas para as meninas, mesmo que essa instituição fosse responsável por acolher meninas em diferentes situações de abandono. Ao analisar o discurso dos especialistas que elaboravam os documentos oficiais ou até as normativas e trabalhos pedagógicos da Fundação, Eleonora Brito (2007) afirma que a lógica desses profissionais era de generalizar meninos e meninas, concebendo-os apenas como menores e destaca:

Era visível também uma preocupação, compartilhada por aqueles ‘especialistas’, que promovia um ‘apagamento’ da clássica hierarquização de gênero, promotora da divisão das esferas masculinas e femininas entre o público e o privado. Nos discursos analisados [da Funabem], prevalecia uma atenção generalizada com o jovem, fosse ele homem ou mulher, e o perigo que a rua e o grupo representavam para a estrutura moral deles e delas. (BRITO, 2007, p. 181)

Ao analisarmos a atuação do Sistema do Bem-Estar do Menor, observamos como ele reproduzia o discurso do Código de Menores, legislação vigente na época de sua atuação. Desse modo, juntos, o sistema e o código, “apagavam” a condição das meninas no que tange à dimensão do sexo ou gênero, carregando consigo uma lógica generalista.

Mas quando a sociedade percebeu que o “desvio tem sexo”? Para responder tal pergunta, remeto-me ao momento de redemocratização da política brasileira, vivenciado no final da década de 1970. Sobre essa circunstância, a historiadora Eleonora de Brito (2007) aponta que, no período de vigência do Código de menores, as ações judiciárias foram realizadas a partir da justificativa de um discurso científico permeado pela lógica sexista e machista. Logo, partia-se da hipótese de que o “desvio tem sexo” e que a classificação atribuída pelo Juizado de menores aos casos de internação das crianças e dos adolescentes era pautada a partir das diferenças de gênero. Para a historiadora:

As representações de gênero devem ter conduzido as interpretações de seus operadores, chegando a prevalecer em relação a certos princípios norteadores daquele tempo (com as noções de assistência e proteção à menoridade, inscritas em seus fundamentos), e que lhe garantiriam sua especificidade. Em outras palavras, também nos antigos Juizados de Menores, as meninas e os jovens teriam sido submetidas na representação da mulher. Portanto, na Justiça de Menores, meninas e jovens, a quem foram atribuídas práticas de atos transgressores, sofreram, muito provavelmente, as consequências de sua dupla condição: eram mulheres e menores. (BRITO, 2007, p. 101)

A historiografia das mulheres registra que foi somente no final da década de 1970 que a questão das meninas ganhou notoriedade no Brasil, período marcado pela rearticulação dos movimentos sociais, inclusive, do Movimento feminista. De acordo com as historiadoras Carla Pinsky e Joana Maria Pedro:

A atuação feminista também tem sido relevante no sentido de chamar a atenção para os diversos tipos de violência que têm as mulheres como alvo privilegiado. Desde meados dos anos 1980, as feministas reivindicam com muita ênfase uma política social preocupada com a segurança das mulheres nas ruas e nos lares, punições mais severas para o estupro e a violência doméstica, programas de proteção às vítimas e campanhas de conscientização nas escolas e nos meios de comunicação. (PINSK; PEDRO, 2003, p. 304)

Esse discurso de proteção e antiviolência está efetivamente articulado ao movimento realizado pelos movimentos sociais e organizações da sociedade civil, que passaram a denunciar as violências sofridas pelas meninas que viviam as mais diferentes formas de violação da dignidade humana, seja nas suas famílias, no trabalho doméstico, nas unidades de internação ou nas ruas. Esse período foi marcado pela transição para a democracia, iniciada no governo do presidente-general Ernesto Geisel, em 1974, sendo sucedida no governo do general João Baptista Figueiredo. Como afirma a historiadora Samantha Viz Quadrat, foi na década de 1980 que se tornou “possível acompanhar o retorno do povo brasileiro às ruas” (QUADRAT, 2014, p. 7), quando uma “nova geração” de brasileiros passou a atuar na vida política.

Mulheres, de forma individual e mais notadamente coletiva, passaram a erguer bandeiras em defesa de seus direitos nos mais diferentes setores da sociedade. Dentre eles, as organizações não governamentais e as universidades, por exemplo, passaram (ou voltaram) a se tornar espaços de produção sobre os direitos das mulheres. Para Felícia Reicher Madeira (1997), o próprio Movimento feminista contribuiu para a mudança das metodologias de investigação ou “desvios da produção acadêmica”, nos quais as pesquisadoras protagonizaram a produção sobre as questões políticas, econômicas, sociais e culturais que norteavam o universo das mulheres, do feminino e do próprio feminismo.

Nesse tempo marcado por tantas mudanças e reapropriações de práticas e articulações políticas e sociais, surgiu o movimento em defesa das crianças e dos adolescentes em situação de rua, e com ele o debate sobre as meninas em situação. Segundo Maria Stela Graciani (2009), o momento foi fortemente marcado pela atuação da Pastoral do menor e de diferentes organizações que se aliançaram em defesa do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua.

O Movimento nacional, então, passou a questionar a relação do aparato policial e suas abordagens e a denunciar como as diferentes formas de exploração aconteciam nos espaços institucionais. Ressalta-se que, historicamente, o número de meninas circulando nas ruas das cidades é bem menor que os meninos. Contudo, ao passo que elas estavam lá visíveis ao aparato policial e a outras instituições de controle, estavam ao mesmo tempo invisíveis às políticas públicas que se preocupavam com sua condição feminina de mulher.

Importante ressaltar que mesmo com a criação de espaços institucionais destinados às práticas de confinamento ou reclusão das meninas, o Estado – na maioria das vezes – não atuava no sentido de abarcar as demandas específicas no que se refere à sua condição de menina/mulher. Os registros apontam que a ideia que fundamentava a atuação das unidades de internação feminina era a separação do espaço físico dos meninos e que as atividades realizadas que atendiam o universo feminino eram voltadas para a aprendizagem dos serviços domésticos[1].

Em linhas gerais, o Movimento nacional também participou e reivindicou as políticas públicas voltadas para população de rua com foco na integridade da pessoa, ou seja, questionando o viés de controle e higienização social[2]. Os anos de 1980 se tornaram, pois, efervescentes no debate sobre as “artes de governar” as crianças em situação de rua, provocando diferentes tensões e diálogos entre instituições governamentais e organizações da sociedade civil. Sobre essa questão, Maria Filomena Gregori (2000) explica que:

Até a década de 1980, era significativa a limitação de dados sobre as famílias de meninos de rua. Além de ser um campo novo de investigação, as análises empregavam como suporte de dados extraídos dos censos e de pesquisas nacionais por mostra de domicílios (PENADS), que, por tornarem foco aspectos demográficos, pouco revelavam sobre a estrutura e a dinâmica familiar. (GREGORI, 2000, p. 73)

Segundo Gregori (2000), foi na década de 1980 que o próprio conceito de “menor de rua” passou a ser problematizado, quando os estudos etnográficos “indicavam que os meninos de rua não são abandonados no sentido literal do termo” (GREGORI, 2000, p. 74). Assim, ao ser questionado, o termo “menor” passou a ser substituído por criança ou adolescentes, de forma que, para os profissionais e/ou lideranças que atuavam nos movimentos sociais, ele passou a ser substituído por meninos e meninas.

Para entender esse processo, recorro mais uma vez aos estudos da historiadora Eleonora Brito (2007), que defende a ideia de que as dinâmicas da vigilância e coerção praticada sobre as meninas eram visibilizadas a partir do “caráter moral” patriarcal e machista. Nessa perspectiva, para a pesquisadora:

Crianças e jovens do sexo masculino eram, com maior frequência, interpelados na rua, reservado à atuação mais evidentes de poderes disciplinadores, como, por exemplo, o aparato policial. As garotas eram abordadas das transgressões ocorridas, com maior frequência no espaço privado [...] Quanto às meninas, por óbvio, também sofreram o efeito de normas bastante atuantes, mas, via de regra, no espaço privado essas normas estão muito voltadas à inibição e à correção de desvios de “caráter moral”, naturalizados como característicos do sexo feminino, e, para elas, a vigilância funcionaria como uma forma de dobrar essa natureza, enquadrando-as igualmente às regras de seu “gênero”. (BRITO, 2007, p. 159)

Dentre as práticas de visibilização ou invisibilização permeadas pelos interesses adultos, por suas vezes marcados pela lógica sexista e heteronormativa, produziram-se práticas sociais e discursivas sobre as meninas que circulavam nas ruas das cidades brasileiras. Não há como produzir a história das meninas em situação de rua sem debater como a própria produção política de atendimento as percebia a partir das regras morais patriarcais, pelas quais era direcionado o olhar do sistema de justiça, dos aparatos policialescos e até da assistência social e educacional.

Com a emergência do Movimento nacional e com atmosfera de mobilização em defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, muitas organizações sociais (da chamada sociedade civil ou organizações não governamentais – Ong’s) passaram a pautar o problema das meninas a partir do ideário do Movimento feminista, questionando as formas de atendimento, de educação e de tratamento em relação à realidade feminina. Mas, como o sistema Funabem-Febem passou a lidar com a questão das meninas em situação da rua, é o que veremos a seguir.

“Meninas da Vida”: quem está à “margem da margem”?

Em 1989, a Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor, a chamada Funabem, publicou o Relatório Meninas da Vida. Assinado pelo educador Antônio Gomes da Costa, que atuava naquela época na gestão da Fundação, o documento tinha como objetivo orientar os educadores sociais no trabalho cotidiano com as meninas em situação de rua. O relatório foi apresentado como fruto dos debates realizados em um colóquio, que, por sua vez, tinha o objetivo de debater a questão do atendimento às meninas em situação de rua.

Analisar os documentos produzidos pela Funabem no final dos anos de 1980 é um desafio, haja vista que nesse período a instituição passava por reformulações internas, enfrentando questionamentos sobre sua atuação, vindos de diferentes setores da sociedade, dentre eles, os movimentos sociais que atuavam no campo de assistência às crianças e adolescentes em diferentes situações de abandono[3]. Essas tensões estão explícitas em diferentes documentos publicados pela instituição, inclusive, no relatório aqui em foco.

Tipologicamente, o relatório se apresenta como fonte histórica, que registrou como a instituição Funabem atuava no campo do atendimento socioassistencial, apresentando uma proposta de como deveria ser praticado o atendimento às meninas nas unidades de internação no país. Ao longo de suas páginas, o discurso de cunho formativo ganhava contornos de prescrição, sendo destinado aos agentes sociais que atuavam nas instituições públicas ou de caráter assistencialista no atendimento às meninas consideradas abandonadas ou em conflito com a lei.

Nele, Antônio Gomes da Costa – que se apresentava como gestor/coordenador da pesquisa –, e a equipe da Funabem reconhecem os problemas sociais da população de rua como uma das “várias faces da degradação social” vivenciada pelas meninas, que até então não possuíam uma política de atendimento específica que se voltasse para elas. Mesmo sendo apresentado como organizador do documento, há indícios de que o texto foi produzido com a contribuição da equipe técnica da Funabem (pedagogos, psicólogos, jornalistas e outros profissionais), os quais serão reconhecidos por mim como autores desse relatório.

Ao me debruçar sobre tal documento, percebi que algumas questões norteadoras estavam presentes nas suas primeiras páginas, fazendo parte de uma preocupação em busca de entender/compreender as diferenças entre meninos e meninas no âmbito do atendimento. Contudo, as questões colocadas transcenderam o debate específico do atendimento às meninas em situação de rua, buscando entender o problema a partir de questões mais amplas, como:

Por que que existem mais meninos no Sistema de Bem-Estar que meninas? [...] Por que existem mais homens no sistema penitenciário que mulheres? [...] Por que existem mais mulheres na prostituição que homens? [...] Por que as mulheres são mais vítimas do trabalho irregular e sub-remunerado do que os homens? (FUNABEM, 1989, p. 6-8)

Os questionamentos produzidos pela equipe da Funabem referem-se às diferentes dimensões que norteiam os problemas relacionados às meninas em situação de rua. Destaca-se, primeiramente, a preocupação com os espaços do Sistema de Bem-Estar, ou seja, a própria Funabem e suas instâncias estaduais denominadas Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor – Funabem. E, além disso, aponta também sobre o próprio sistema penitenciário adulto. Outra questão relevante, a meu ver, é a pergunta que remete à condição das mulheres no “trabalho irregular” e a consequente “remuneração”.

Considero que, mesmo que relevante, essa preocupação extrapola o problema central das meninas em situação de rua, mas sinaliza também uma preocupação institucional fortemente demarcada pela equipe técnica da Funabem. Essas perguntas trazem nas suas entrelinhas o lugar institucional daqueles que organizaram o colóquio e que produziram o relatório, uma vez que trazem no seu texto questão fundantes que se distanciam do problema central. Dito de outro modo, falam das meninas em situação de rua a partir da Funabem, da instituição.

Contudo, é importante ressaltar que tais perguntas não podem ser analisadas distantes do próprio cenário da época, fortemente marcado pela atuação de diferentes organizações sociais e até pelo próprio Movimento feminista que passou a questionar as medidas até então estabelecidas. A pesquisadora Leda Lavinas (1997) afirma que, na década de 1980, várias instituições governamentais foram levadas a produzir pesquisas e políticas a partir da preocupação das relações de gênero, entre elas instituições dos poderes executivos e legislativos. Para a pesquisadora, além da própria Fundação, destaca-se a Frente Parlamentar da Infância, coletivo responsável por conduzir o debate da aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente no Congresso Nacional.

No entanto, na perspectiva de Lavinas (1997), o primeiro coletivo social que questionou o lugar das meninas nas políticas públicas voltadas para crianças em situação de rua foi o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, sendo “o único que explicita a dimensão de gênero, revelando na sua dominação que a vivência no espaço de rua não é genérica, comum para ambos os sexos” (LAVINAS, 1997, p. 19).

Nesse contexto, ao tratar das “meninas”, o relatório buscava construir um discurso comparativo em relação aos meninos, trazendo aspectos das relações de poder construídos no convívio cotidiano. Para os técnicos da Funabem, tais relações eram marcadas por diferentes formas de violência, dentre as quais:

Os meninos de rua nunca tomam as meninas na mesma condição como iguais. Se não as hostilizam e rechaçam, como fazer com os mendigos, eles têm com elas relações de cooperação nas estratégias de sobrevivência, de uso sexual e mesmo de amizade. Elas nunca são consideradas iguais. Há degraus na relação. (FUNABEM, 1989, p. 7)

Diante dessa observação, pergunto-me em que parte dos degraus as meninas se encontram. Nesse trecho do relatório, elas são colocadas como “desiguais” e essa desigualdade era marcada pela fragilidade, ou seja, eram postas em degrau inferior. Inclusive, no decorrer das páginas, a ideia era reforçada quando a preocupação se referia à questão da segurança pública. Para os redatores e redatoras do relatório, as meninas representam uma “ameaça menor” à sociedade. De acordo com o relato:

Mesmo quando envolvidas em esquemas divergentes de geração de renda, as meninas representam uma ameaça menor à tranquilidade da população que os meninos. Suas estratégias de sobrevivência incluem formas inofensivas, como a mendicância e a prostituição, ou pouco ofensivas, como o furto, o tráfico e as várias formas de vigarice. Isto não exclui o fato de que, em casos mais raros, algumas meninas apareçam envolvidas em assaltos e agressões armadas. (FUNABEM, 1989, p. 6-8)

Percebo, pois, que o texto em destaque reproduz o seu discurso a partir da lógica da subalternidade da condição das meninas no convívio cotidiano. Como afirma a historiadora Silva Arend (2012), setores da sociedade brasileira produziram um discurso sobre as meninas que reforçava as características da “docilidade, meiguice, serenidade e resignação”, demarcando, inclusive, o contraponto com chamados “varões”, os meninos, que, por sua vez, eram caracterizados pela “coragem, poder de decisão e competitividade” (AREND, 2012, p. 71).

É preciso, inclusive, registrar que, mesmo sendo produzido no período efervescente da atuação do Movimento feminista, o relatório não se aproxima de questões pautadas por ele. Registra-se que as práticas discursivas também se processavam a partir da preocupação das relações de gênero ou de respeito à condição da menina-mulher, a partir do binarismo “masculino e feminino”. Para entender tal relação, recorro aos estudos da filósofa Judith Butler, que, ao analisar tal perspectiva de abordagem, afirma-nos que:

A noção binária de masculino/feminino constrói não só a estrutura exclusiva em que essa especificidade pode ser reconhecida, mas de todo modo a especificidade do feminino é mais uma vez totalmente descontextualizada, analítica e politicamente separada da constituição de classe, raça, etnia e outros eixos de relações de poder. (BUTLER, 2015, p. 23)

O que está no foco do relatório é analisar o atendimento às meninas em situação de rua a partir do sexo. Nessa perspectiva, o relatório ainda traz informações sobre a violência sexual, sinalizando que esse cotidiano também era marcado por essa forma de exploração. Daí o relatório dedicar um considerado espaço para o debate desse problema social, buscando explicar as causas da violência. Retomando as palavras do documento:

Sabemos que é grande o número de adolescentes do sexo feminino vítimas de violência pessoal e social. Na família, no trabalho (especialmente no doméstico), na prostituição no mundo do crime organizado, nas repartições policiais e nas instituições de confinamento. Contudo, a presença de meninas fazendo das ruas seu espaço de luta pela sobrevivência, de moradia e de vida, enfim, em todos os seus aspectos é um fenômeno numericamente irrelevante, se comparado, por exemplo, com os de meninos nesta mesma condição. (FUNABEM, 1989, p. 6)

Ao me debruçar sobre o relatório, os resultados da análise apontaram-me que a sua preocupação norteadora esteve centrada em entender/explicar o número menor de meninas em situação de rua, quando comparado aos meninos. Argumentando na defesa de que elas representam “menor risco social”, reconhecendo que nas relações cotidianas elas são diferentes, uma vez que os próprios meninos não as reconhecem como iguais e relatando que elas são exploradas de forma diferente pelos adultos, que estabelecem outras relações de exploração focadas na “exploração sexual e financeira”.

Complementando a análise, dialogo com a historiadora Rachel Soihet (2011), que, por sua vez, analisa a construção dessas imagens a partir de diferentes segmentos da sociedade, como a medicina social, a jurisprudência e outros, que buscaram assegurar a si características femininas. Soihet (2011) afirma que essas imagens fundamentadas por “razões biológicas”, justificavam a “fragilidade, o recato, o predomínio das faculdades afetivas sobre as intelectuais, a subordinação da sexualidade à vocação maternal” (SOIHET, 2011, p. 45).

Assim, os autores e autoras do relatório buscavam construir enquadramentos sobre o perfil das meninas, defendendo a ideia de que elas estavam “na margem da margem”, uma vez que sofriam dupla violação, por viverem nas ruas e por serem mulheres. Nesse âmbito, o relatório passou a ter um caráter denunciador quando aborda a exploração sexual praticada pelos meninos e adultos, dentre eles os policiais, e afirma: “Policiais corruptos e outros adultos do submundo da delinquência voltam-se para as meninas mais com intuito de explorá-las do que de, pura e simplesmente, de reprimi-las. A repressão muitas vezes decorre dos mecanismos de exploração sexual e financeira” (FUNABEM, 1989, p. 7).

Nesse trecho, o documento especifica que adultos “delinquentes” e “policiais corruptos” estão entre os responsáveis por explorar sexualmente as meninas. Ao pintar com tintas mais fortes o desenho da exploração sexual, os redatores reforçaram o problema historicamente vivo da sociedade brasileira e que se refletia diretamente na atuação do atendimento da Funabem-Febem. Destaca-se, então, como a perspectiva moralizadora do relatório centra-se na identificação mais direta de quem praticou a violência, de forma mais generalista, sem contextualizar o cenário social, econômico e político na qual a violência se insere.

Contudo, ainda assim, abriu um espaço para o reconhecimento da violência praticada por agentes do Estado, nesse caso, os policiais. Nessa perspectiva de “enquadrar” quem pratica as violências, os/as redatores/as do relatório sinalizam que as violências se processam entre as próprias meninas:

Sabemos que, no bando, os momentos de submissão (às vezes tirânica) predominam em muito sobre os momentos de fruição de uma pretensa liberdade. Não somos daqueles que romantizam a vida de rua. No interior destes grupos existe solidariedade e partilha, mas também existem também opressão, exploração, abuso e violentação. As grandes, espertas e fortes dominam sobre as pequenas, fracas e bobas. (FUNABEM, 1989, p. 13)

Destaco as tentativas de enquadramento que permeiam o relatório ao sinalizarem os conflitos cotidianos das meninas em situação de rua, classificando-as a partir de uma dicotomia discriminatória: grandes/pequenas, fortes/fracas, inteligentes/bobas. Percebo que esse reconhecimento em relação ao atendimento às meninas em situação de rua traz consigo a própria concepção de criança e adolescente, que as identificam, classificam e adjetivam como aquelas que estão à “margem da margem”.

Todavia, o que está à“margem da margem” é praticar uma forma de enquadramento daqueles/as que buscavam produzir uma política de atendimento fundamentada na percepção de que essas meninas se diferenciavam dos meninos a partir do sexo. Fato que era marcado por uma dicotomia discriminatória: os meninos estavam “à margem”, pela condição do abandono, da pobreza, das diferentes formas de violência; mas as meninas estavam “à margem da margem”, pela condição do abandono, da pobreza, das diferentes formas de violência e por pertencerem ao sexo feminino.

Nesse processo, o relatório também traz a sua crítica àqueles que “romantizam a vida de rua”, desenhando o cotidiano a partir das disputas práticas entre aquelas meninas nas nuances do convívio social. Esse trecho sinaliza, mesmo de forma muito sutil, que as disputas não se processavam apenas entre as meninas, mas também entre os/as adultos que atuavam no atendimento. Mesmo não sendo meu interesse maior neste trabalho, não pode ser desconsiderada a crítica aos grupos que atuavam naquela época no atendimento[4].

Na continuidade da discussão, recorro mais uma vez aos estudos da pedagoga Maria Stela Santos Graciani (2009), que contemplam a historicidade dos movimentos sociais que se mobilizaram em defesa dos direitos da criança e do adolescente, destacando as diferentes atuações dos chamados educadores sociais no que se refere ao atendimento dos meninos e meninas em situação de rua. A autora nos convida a refletir acerca das relações entre os defensores dos direitos humanos e os do Código de Menores e sua “doutrina da situação irregular”. Para Graciani (2009), os defensores dos direitos humanos defendiam uma “ruptura radical”, envolviam igrejas, sindicatos e as instituições não governamentais.

Contudo, percebo que o relatório é um documento histórico fundamental para pensarmos as questões subjetivas que permeiam a estrutura narrativa. Destaco que, ao colocar em tela o “bando” como tática de violência coletiva, atrevo-me a percebê-lo como resistência das meninas ou como uma tática de sobrevivência. Compreendo esse bando como uma forma de aliança produzida pelas meninas para enfrentar as mais diferentes formas de abuso e exploração; exploração essa praticada pelos/as próprios/as agentes do Estado, como os/as próprias/as redatores do relatório reconheceram.

Nesse ponto, chamo atenção para o próprio título do relatório, “meninas da vida”, que traz consigo uma ideia muito difundida pela memória coletiva, que remete à classificação das “mulheres da vida” ou das “mulheres da vida fácil”. Quem eram as mulheres da vida? Profissionais do sexo, prostitutas, mulheres cuja trajetória de vida fora marcada pelo abandono e diferentes formas de violências, mas, que buscavam sobreviver e resistir das mais diferentes maneiras[5].

E foi a partir da (in)visibilidade dessas meninas que a Funabem – o Estado – buscava produzir uma governamentalidade sobre essas agentes sociais. Na tentativa de entender essa “arte de governar”, o Estado buscava produzir uma “ordenação, distribuição, acumulação e circulação” de um discurso que procurava apresentar-se como “verdadeiro” sobre essas meninas, sendo materializado em dispositivos de controle sobre suas vidas (SILVEIRA, 2015).

Dialogando mais uma vez com Judith Butler (2017), os enquadramentos atuam para “apreender as vidas”, para “diferenciar as vidas”, para “produzir vidas”. Daí a pertinência de perceber e analisar criticamente as tentativas de enquadramento das vidas produzidas por aqueles/as que buscam “reconhecer a vida”, seja para incluir ou excluir as pessoas. Ao buscar “visibilizar” a questão da diferença e ao procurar “enquadrar” um ponto de vista, os/as redatores do relatório reproduziram uma forma de pensar as meninas em situação de rua a partir da discriminação que as reconhecia como “da vida”.

A produção do “educador social” e suas atribuições no atendimento às “meninas da vida”

Um dos interesses da Funabem consistia em divulgar o relatório Meninas da Vida mais diretamente ao público das pessoas que atuavam no atendimento das meninas em situação de rua, mais notadamente, os chamados educadores sociais. O caráter de prescrever orientação a essas pessoas fazia parte do seu objetivo e do enunciado do seu discurso.

Para a Funabem, os educadores sociais eram os agentes que prestavam o serviço de atendimento às meninas em situação de rua. Na tentativa de produzir uma imagem sobre a “menina da vida”, a Funabem buscava também produzir um enquadramento do chamado educador/a social, ao reconhecê-los/as como responsáveis no processo pedagógico. Esse reconhecimento foi baseado em critérios de classificação centrados nas suas atribuições técnicas e pautado no que deve ou não deve fazer o educador social, que, por sua vez, era sempre identificado a partir do gênero masculino.

Nessa busca de produção de “papéis”, a autoria do relatório buscava orientar o trabalho cotidiano desses/as agentes, enquadrando-os a partir de uma perspectiva disciplinar. As atribuições eram fortemente descritas a partir de imagens e cenas da convivência cotidiana, buscando chamar atenção para a não sobreposição das suas atribuições. De acordo com o documento:

O educador não deve pretender nunca assumir papéis para as quais geralmente não seja preparado, como um psicólogo ou de planejador social. [...] A intervenção pedagógica temente "não se deve mergulhar no ego de cada educanda, a ideia é a estruturação do cotidiano" um esforço de ensino/aprendizagem nos âmbitos social e individual. (FUNABEM, 1989, p. 16)

Essa forma de pensar os “papéis sociais” dos educadores sociais estava atrelada diretamente ao modo como esses redatores – a equipe técnica da Funabem – percebiam a própria ideia de assistência às meninas que viviam em situação de rua. No trecho acima, a ideia de intervenção pedagógica trazia consigo um viés tecnicista, prescritivo e fundamentalmente disciplinar. Para a autoria, a finalidade do trabalho do educador social estava interligada aos princípios que fundamentavam a própria ideia dos idealizadores da Funabem.

Ao se debruçarem sobre os fundamentos pedagógicos do relatório, passaram a prescrever como os/as educadores sociais deveriam atender as meninas em situação de rua, ressaltando a possibilidade de institucionalizá-las nas unidades da Funabem ou das entidades a ela conveniadas. A autoria deixava transparente a ideia de que “As meninas que estão nas ruas poderiam, ainda de fora de suas famílias, estar no trabalho doméstico ou confinadas nas instituições do sistema de bem-estar do menor” (FUNABEM, 1989, p. 13).

Esse discurso, permeado pela lógica assistencial do bem-estar, é fundado, na verdade, no liberalismo conservador e sexista (que também era acompanhado pelo ideário institucionalizador), por trazer a ideia de que o lugar da menina em situação de rua ou de vulnerabilidade social era no “trabalho doméstico”, ou seja, na cozinha. Aqui, o “sistema de bem-estar social” era apresentado como uma alternativa para o “confinamento” delas. Para a autoria do relatório, nos espaços de confinamento, os/as educadores/as sociais deveriam promover as lições do “cotidiano como matéria: lavar-se, comer, trabalhar, cuidar do corpo, rezar, passear, namorar e dormir” ou aprender “novas posturas”, desaprendendo e “se automatizando na conduta de cada uma delas”, assim eram prescritas as atribuições dos educadores sociais no documento (FUNABEM, 1989, p. 16-19).

Naquele momento, a autoria pretendia produzir uma lógica de atendimento que buscava o controle sobre o corpo das meninas. O corpo que deveria acordar e dormir sob o controle dos “educadores” produzidos pela Funabem. Ao refletir sobre as “artes de governar” as crianças e adolescentes que vivenciam as mais diferentes violações de direitos humanos, Diogo Soares da Silveira (2015, p. 57) afirma que, no Brasil, muitas políticas foram pensadas a partir da elaboração de um “dispositivo de poder governamental”, que buscava moldar, adestrar, ordenar e transformar os corpos de crianças e adolescentes.

Nos espaços de confinamento, os educadores deveriam: “trabalhar o individual no coletivo”; “ter a noção do trabalho coletivo”; e “trabalhar a sensibilidade com rigor”. Mesmo a estrutura do projeto pedagógico sinalizando que os/as educadores/as deveriam respeitar a dignidade das meninas e as suas trajetórias, os idealizadores do relatório buscavam construir um “padrão” de educadores”, no qual se prescrevia que eles deveriam possuir “um projeto de vida delineado” (FUNABEM, 1989, p. 16-19).

Nesse sentido, o documento ao mesmo tempo que prescrevia o “respeito à trajetória” das meninas, afirmava que cabia ao educador “distanciá-las das ruas” e fazer com que elas rompessem “com a cultura da rua (dos costumes e hábitos)”. As contradições do relatório sinalizavam que o próprio reconhecimento das diferenças das meninas era marcado pela reprodução de uma visibilidade marcada pela negação das próprias trajetórias delas, uma vez que “romper com a cultura da rua” ou “distanciá-las das ruas”, remete ao controle e vigilância de sua trajetória pessoal (FUNABEM, 1989, p. 16-19).

Não há como estudar as repercussões entre os educadores/as sociais, uma vez que, no decorrer da pesquisa, não encontramos documentos que registrassem a recepção do público alvo para o qual o relatório era destinado. Contudo, é importante destacar que a lógica do confinamento como alternativa de atendimento era questionada pelo Movimento Nacional de Meninas e Meninas de Rua, visto que na década de 1980 a internação era apresentada como a última saída, já que se buscava o fortalecimento de vínculos.

Contudo, os trabalhos realizados por Maria Stela Graciani (2009) sinalizam que os educadores e educadoras sociais não reconheceram a lógica do confinamento como alternativa ao atendimento, uma vez que questionavam a ideia de que a prática pedagógica só acontecesse em espaços físicos institucionais de confinamento. Contrariamente, esses educadores buscaram produzir de forma coletiva o que chamaram de Pedagogia Social de Rua, posto que eles entendiam as ruas como espaços de educação e de possibilidade de novas formas de convivência e aprendizagem (GRACIANI, 2009).

É preciso, então, a partir desse contraponto, analisar as tensões produzidas em torno do atendimento das meninas em situação de rua. Para autoria do relatório, os/as educadores/as da Funabem tinham a instituição como espaço de atuação. Mas, para os educadores que atuavam diretamente com as meninas, a rua poderia tornar-se um espaço onde as práticas pedagógicas poderiam ser vivenciadas.

Percebo aí não só as fissuras em relação ao entendimento do espaço para o atendimento das meninas, mas a própria diferença de perspectiva sobre os fundamentos do atendimento socioassistencial. A partir dos estudos de Graciani (2009), percebemos como a atuação dos educadores/as sociais, homens e mulheres de diferentes idades, condições sociais (mesmo a maioria pertencendo aos setores populares da sociedade) e formações profissionais, aliançaram-se a um propósito pedagógico fundamentados na Teologia da Libertação e no pensamento do educador pernambucano Paulo Freire (GRACIANI, 2009).

Diferente dessa ideia de educador social, apresenta-se o “modelo” produzido pela Funabem. A autoria do relatório buscava construir um discurso de educador a partir de padrões de comportamento e sentimento. A proposta não consistia apenas em roteirizar as práticas “ideais de atendimento”, mas em estabelecer um padrão de conduta, de procedimento, apregoando como esse agente deveria pensar a situação das meninas por eles/as atendidas. Para além de ditar uma pedagogia considera “ideal”, a proposta consistia em produzir uma identidade do educador social a partir do enquadramento com viés disciplinar.

Na procura de produzir uma proposta de atendimento às meninas em situação de rua, os técnicos e técnicas da Funabem produziram um discurso de educador social voltado para que o atendimento acontecesse na instituição, dentro “dos muros” das unidades do Sistema de Bem-Estar, estabelecendo “papéis sociais”, ditando regras e produzindo padrões de comportamento e sentimento. Tal prática discursiva estabelecia estratégias disciplinares materializadas nas técnicas de adestramento moral e comportamental não só das meninas, mas dos/as próprios/as educadores.

Entre (in)visibilidades e enquadramentos: considerações finais

Ao atuar na vida privada e coletiva das meninas em situação de rua, a autoria do Relatório Meninas da Vida buscou produzir uma governamentalidade sobre o atendimento às garotas que vivenciavam as mais diferentes formas de abandono, a partir do objetivo de prescrever como deveria ser realizado o atendimento nas instituições socioassistenciais, com foco no chamado Sistema de Bem-Estar do Menor. O documento trazia o discurso marcado pelo reconhecimento da menina como sexo oposto do menino, reproduzindo um discurso marcado por uma dicotomia discriminatória baseada em masculino/feminino. Nesse processo, buscava-se operar uma produção de um saber destinado a operar um sistema de poder a fim de moldar, adestrar e disciplinar as meninas.

O relatório Meninas de Rua é a materialização de um Estado que não estava contra ou a favor das garotas em situação de abandono, mas que buscava atuar no universo microssocial de seu cotidiano, buscando produzir “rompimentos” com a cultura da rua e estabelecendo novos padrões de comportamento e sentimentos. Para uma intervenção direta no cotidiano dessas meninas, o Estado buscava moldar as pessoas responsáveis pelo atendimento a elas, os/as educadores/as sociais. Os técnicos e técnicas da Funabem, portanto, passaram a produzir um “modelo” educado, prescrevendo técnicas de atendimento e ditando padrões pré-estabelecidos de um suposto “perfil ideal”.

Contudo, é preciso chamar atenção também para as fissuras apresentadas nas entrelinhas do texto, que traziam no seu discurso sinais das tensões entre aqueles que percebiam que, para além da instituição, a rua poderia ser espaço de atendimento socioassistencial dessas garotas, não as concebendo como “meninas da vida”, mas como “meninas de rua”. Assim, a partir desse reconhecimento, os educadores buscaram articular outra forma de mobilização, materializada no Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, que, por sua vez, buscavam construir outros fundamentos sociopedagógicos.

A partir da atuação do movimento, percebo como a própria ideia de rua foi modificada, uma vez que suas lideranças se aliançaram em defesa de reapropriação desses espaços físicos e sociais. A rua passava, então, a ser utilizada como espaço de aprender e ensinar, de praticar novas sociabilidades, corroborando o que afirma Judith Butler sobre a importância de “corpos que se aliancem” e produzam reivindicações e enfrentamentos diante das condições de “negligência sistêmica que permitem que as pessoas morram” (BUTLER, 2018, p. 17).

As práticas de poder-saber demarcam, pois, operações em torno de “seres enquadrados”, a partir de uma proposta que busca “romper” com as ruas e produzir uma cultura institucional baseada na lógica disciplinadora. Ao buscar “romper” com as ruas, essas meninas deixavam de “ser da vida” e passavam a ser “da casa”, tanto na condição de esposa como na de empregada doméstica, de modo que os/as autores/as do referido relatório buscavam apagar o passado, manipular o presente e determinar o futuro dessas meninas.

Material suplementario
Referências
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Notas
Notas
1 Sobre a atuação da Funabem-Febem: MIRANDA, Humberto da Silva. Nos tempos das Febems: memórias de infâncias perdidas (Pernambuco/1964–1985).
2 Para entender as políticas de controle e vigilância sobre o cotidiano de meninos e meninas em situação de pobreza e de rua, ver: SANTOS, Marco Antonio Cabral. Criança e criminalidade no início do século. In: DEL PRIORI, Mary (org.). História das crianças no Brasil. 6 ed. São Paulo: Contexto, 2009, p. 210-230
3 Sobre a atuação da Funabem ver: DAMINELLI, Camila Serafim. Uma Fundação para o Brasil jovem: Funabem, Menoridade e Políticas Sociais para infância e juventude no Brasil (1964-1979).
4 Aqui, abre-se uma janela de possibilidade para uma pesquisa sore as relações entre o governo e a sociedade civil nas produções de políticas de atendimento
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