Resumo: Este artigo pretende discutir a emergência da luta por melhores condições de vida na periferia do Rio de Janeiro, no contexto de reaparecimento de movimentos e organizações de origem popular demandantes do usufruto ao direito à cidadania na cena política do país. Elegendo como sua fonte privilegiada o Jornal da Baixada, órgão jornalístico da chamada “imprensa alternativa” publicado no município de São João de Meriti-RJ na passagem entre as décadas de 1970 e 1980, nos propomos analisar a construção de uma narrativa que assumiu intencionalmente o objetivo político de construir uma percepção identitária acerca da Baixada Fluminense distanciada do estereótipo de ser esta uma região tradicionalmente associada à violência, à carência de serviços públicos e às práticas políticas clientelistas. Sem negar as dificuldades cotidianas vividas pelos seus cidadãos, o Jornal da Baixada buscou produzir um discurso fortemente politizado no qual se enfatizava a capacidade de mobilização e resistência organizada da população da Baixada Fluminense às autoridades e aos poderes constituídos no período de crise de legitimidade que caracteriza os últimos anos da ditadura civil-militar implantada após 1964.
Palavras-chave: imprensa alternativa, movimentos sociais, direito à moradia, Baixada Fluminense.
Abstract: This article aims to discuss the emergence of the struggle for better living conditions in the periphery of Rio de Janeiro, in the context of the reappearance of movements and organizations of popular origin demanding the enjoyment of the right to citizenship in the country's political scene. Choosing as its privileged source the Jornal da Baixada, journalistic organ of the so-called “alternative press” published in the municipality of São João de Meriti-RJ in the passage between the 1970s and 1980s, we propose to analyze the construction of a narrative that intentionally assumed the political objective of building an identity perception about the Baixada Fluminense distanced from the stereotype that this is a region traditionally associated with violence, the lack of public services and clientelist political practices. Without denying the daily difficulties experienced by its citizens, Jornal da Baixada sought to produce a strongly politicized discourse in which the capacity of mobilization and organized resistance of the population of Baixada Fluminense to the authorities and powers constituted during the period of legitimacy crisis that characterized the last years of the civil-military dictatorship implanted after 1964.
Keywords: alternative press, social struggles, right to housing, Baixada Fluminense.
Artigos
Imprensa alternativa e a luta pelo direito à moradia na Baixada Fluminense-RJ no alvorecer dos anos 1980
Alternative press and the struggle for the right to housing in the Baixada Fluminense-RJ at the dawn of the 1980s
Recepción: 14 Agosto 2020
Aprobación: 16 Mayo 2022
Um jornal criado como parte de uma estratégia de luta política e sua contribuição na compreensão de um momento da história recente do país que consideramos relativamente pouco estudado em perspectiva historiográfica. Tal se constitui o objetivo mais amplo do presente artigo ao abordar a repercussão dada pelo Jornal da Baixada à luta pelo direito à moradia, uma das lutas sociais eclodidas nas regiões metropolitanas brasileiras a partir da segunda metade dos anos 1970. Tais mobilizações políticas representam marcos no processo da chamada redemocratização do país formalizada em meados da década de 1980 tendo uma maior tradição de estudos no campo das ciências sociais e mais particularmente, em termos de sua delimitação geográfica, uma concentração da análise na região metropolitana da cidade de São Paulo.
Os anos finais da década de 1970 foram marcados pela piora das condições de vida da maioria da população brasileira na esteira da crise do chamado “milagre brasileiro”, isto é, o breve surto de crescimento econômico vivenciado pelo país nos primeiros anos da década. Uma das consequências desta precarização foi o florescimento de diversos movimentos de origem popular. Em especial, considerando o tema do presente trabalho, a reorganização das associações de moradores e de movimentos como o da luta contra a carestia.1
Ocorrida ainda sob as duras condições impostas pelos governos militares2, tal retomada teve importância capital no processo de fortalecimento e amadurecimento da sociedade civil brasileira, permitindo avanços substanciais na construção de uma concepção de democracia que fosse além do retorno das liberdades civis constitucionais.
Desde a década de 1960, a região situada ao norte do então estado da Guanabara e socialmente definida como Baixada Fluminense3 vivenciou o surgimento de associações e organizações de caráter comunitário cuja referência maior era o local de moradia. Precisamente no ano de 1960, foi realizado no então maior município da região, o Congresso dos Centros Pró-melhoramentos de Nova Iguaçu que veio a reunir diversas associações de moradores e viu posteriormente o atendimento de algumas de suas reivindicações por parte do poder executivo municipal (SILVA, 1993).
A partir de meados dos anos 1970 veremos um novo ascenso da mobilização de organizações populares e operárias na região. A exemplo do que ocorreu na década precedente, em que o Partido Comunista Brasileiro (PCB) teve forte presença naquele processo de mobilização, desta vez ocorrerá uma significativa participação do Partido Comunista do Brasil (PC do B) na organização política de associações de moradores e no movimento sindical também redivivo à época.4
A criação do Jornal da Baixada foi uma iniciativa de militantes da Ala Vermelha, uma corrente dissidente do Partido Comunista do Brasil (PC do B).5 Na primeira metade da década de 1970 esta organização política de esquerda faz a opção por uma maior inserção nas lutas populares que ganham impulso na região da Baixada Fluminense a partir de meados daquela década.
Uma das iniciativas concebidas a fim de ajudar a organizar politicamente a população da região se constituiu na edição de um jornal que se constituísse como um espaço de visibilidade dos graves problemas sociais que marcavam a vida dos moradores da Baixada Fluminense, mas principalmente repercutisse e animasse as formas de enfrentamento político nascentes naquele momento.6
O Jornal da Baixada, apesar de sua existência relativamente curta e estrutura de produção quase amadora, aparece como uma fonte significativa não somente ao permitir um retrato das lutas sociais nos anos de transição entre o regime ditatorial instalado a partir de 1964 e a formalização do retorno a um regime de garantias democráticas básicas, mas também por se constituir ele mesmo em iniciativa de atuação política intencional no contexto daquelas lutas.
Aqui nos propomos discutir a atuação do Jornal da Baixada visando repercutir e potencializar a mobilização politicamente organizada dos moradores da Baixada Fluminense em uma das questões prementes na passagem dos anos 1970 para os anos 1980: a questão do direito à moradia.
A luta pelo direito à habitação emergiu no Brasil com maior força nos anos finais da década de 1940, como consequência direta do impulso dado ao processo de industrialização e urbanização no período pós-Segunda Guerra Mundial.
O crescimento inédito da população urbana, notadamente nos grandes centros industriais em expansão, resultou em uma permanente escassez de moradias nas grandes cidades do país. A ocupação de espaços cada vez mais distantes do centro das cidades ou de espaços físicos considerados inapropriados e sem valor para o uso como local de moradia, tais como morros e encostas ou as calhas dos rios, deu origem à criação de loteamentos e favelas com maior ou menor proximidade das áreas centrais das metrópoles, dependendo da geografia particular de cada uma destas.
O aumento dos custos da moradia nas áreas urbanas mais centrais logo trouxe como consequência direta o recurso às ações de despejo contra aqueles que não conseguiam mais arcar com o valor dos aluguéis ou que se encontravam no caminho das grandes obras de remodelamento das cidades, a fim de adaptálas às novas demandas postas pelo seu crescimento no sentido da industrialização. A esses despejados se somavam os milhares de imigrantes vindos do interior ou de regiões mais pobres do país.
Ser “despejado” significava não apenas uma profunda humilhação para os indivíduos e as famílias nessa situação, mas, muitas vezes, uma nova condição marcada pelo desespero e pelo abandono. Contra essa possibilidade se concretizam ações de caráter coletivo politicamente organizadas, mas também uma miríade de pequenas resistências de indivíduos isolados ou de grupos de inquilinos.
Segundo Nabil Bonduki, os inquilinos buscavam, ao lado do recurso mais constante à contestação judicial da ordem de despejo, também muitas vezes por meio da imprensa e de manifestações de rua, “mobilizar a opinião pública [visando] criar um clima emocional capaz de pressionar o juiz a não assinar a ordem de despejo ou a adiá-la por um prazo maior de tempo” (BONDUKI, 1988, p. 117). No contexto político da época, era ao Estado que se dirigiam os apelos dos atingidos pelas ações de despejo em nome do poder de regulação daquele, estabelecido a partir da década de 1930, sobre os vários campos da vida social do país. Porém, o processo de reorganização das áreas metropolitanas centrais mostrou-se irreversível em longo prazo.
Dessa forma, o crescimento das cidades, alimentado pela afluência constante de novos contingentes populacionais para elas atraídos em busca de melhores condições de vida, trouxe como uma das suas consequências a ocupação de vastas áreas do entorno das metrópoles que antes constituíam um espaço essencialmente ruralizado tanto em sua paisagem quanto nas suas funções de cinturão verde e de lugar de veraneio eventual ou constante para as famílias urbanas em condição de aproveitá-lo como tal.
Via de regra, este espaço geográfico ao mesmo tempo próximo e distante dos grandes centros urbanos sofreu um rápido e acentuado processo de loteamento e ocupação mais ou menos desordenada por parte das famílias que não encontravam condição de arcar com os custos cada vez mais elevados da moradia nas regiões mais centrais do espaço urbano propriamente dito, nas quais se concentravam, então, as oportunidades de emprego.
No caso da Baixada Fluminense, parte da região metropolitana da cidade do Rio de Janeiro, sua ocupação como resultado do processo acima apontado teve suas origens na transformação das fazendas e chácaras cobertas por laranjais, cuja decadência se iniciou com o advento da Era Vargas (1930-1945), resultando em loteamentos que fatiavam as propriedades antes existentes e se espalharam pela região, principalmente em torno das vias férreas.
Mas foi a partir das décadas de 1950 e 1960 que a região teve acentuados efeitos da transformação na sua paisagem física e social, com a chegada contínua de cada vez maiores levas de famílias migrantes, particularmente da zona da mata mineira e do estado do Espírito Santo, e mais tarde também de estados da região Nordeste e o rápido crescimento populacional de suas cidades.
Com isso, a ausência de opções de moradia para uma população em franca expansão se torna um fenômeno presente no contexto da região a partir dos anos 1970. No entanto, em um movimento iniciado ainda nas décadas de 1940 e 1950, foi o Estado, e não mais exclusivamente a iniciativa privada, quem assumiu o empreendimento de patrocinar a construção de habitações populares por parte de particulares lançando mão com esse fim do Banco Nacional de Habitação (BNH).7
Ocorre que já na primeira metade dos anos 1970 ficava claro para os mutuários que assinaram contratos com as financeiras autorizadas pelo BNH a construírem conjuntos habitacionais, utilizando recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), que estes não teriam condições de arcar com os custos das prestações.
E, como havia ocorrido no primeiro período de escassez de moradias para a população subalterna das principais áreas urbanas do país, começaram os despejos. E, nos anos finais da década de 1970, a resistência frente a eles e a luta pelo direito à moradia por parte dos moradores dos conjuntos habitacionais do BNH.
Nesse sentido, esta luta específica em sua particularidade geográfica e social – ocorrida no município de Nova Iguaçu, então o maior da Baixada Fluminense e dizendo respeito a um segmento específico da população urbana: aquele que possuía condições de almejar adquirir uma casa própria financiada8 – aparece em última instância como uma das manifestações de um movimento político maior que pode ser caracterizado como sendo o de emergência de uma série de lutas e sujeitos coletivos que as produziram no período que marca o início do fim dos governos ditatoriais pós-1964.
A marca comum entre esses diversos movimentos consistiu no fato de que foram motivados pela necessidade inicial de reação a uma situação que havia chegado ao limite do suportável e que passava a ser percebida dessa forma por um grupo maior de indivíduos, sendo que o movimento de mobilização coletiva que se seguiu apresentou imediatamente suas reivindicações como sendo uma luta por um direito que lhes estava sendo negado. Como afirma Eder Sader, ao falar sobre o movimento de saúde da zona leste da cidade de São Paulo, este seria “um processo pelo qual uma carência é percebida como negação de um direito que provoca uma luta para conquistá-lo” (SADER, 1988, p. 261).
Visando discutir as formas assumidas por essa luta em particular recorreremos ao uso de uma fonte primária que apresenta uma natureza híbrida, posto que se apresenta simultaneamente como fonte da pesquisa realizada e como agente participante do processo histórico em tela, haja vista que sua narrativa dos acontecimentos foi ela mesma parte de um movimento de educação política dos moradores da Baixada Fluminense como um todo.
A Baixada Fluminense, em termos de conceituação geográfica, constitui a região litorânea que se inicia no centro-sul do estado do Rio de Janeiro e se estende até a sua região nordeste, sendo constituída por vários municípios do entorno da cidade do Rio de Janeiro, tendo como limites, além desta, as baías da Guanabara e de Sepetiba, e as montanhas da Serra do Mar. Formada originalmente por terrenos alagadiços, que se alternam com pequenas elevações, esta região foi predominante rural até a década de 1930 (GEIGER; COELHO, 1956).
No entanto, a partir justamente da ocupação acelerada da porção mais próxima da cidade do Rio de janeiro a partir dos anos finais da década de 1950, o toponímico passou a definir um espaço social e geográfico mais particular, formado pelas áreas urbanas ou em processo de urbanização que se formaram ao longo das ferrovias e da Via Dutra, rodovia que liga as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Foi, inclusive, a construção desta rodovia que deu o impulso definitivo para a ocupação mais acelerada desta porção particular da região, tendo como centro a cidade de Nova Iguaçu.
Em meados do século XX, com a promoção de obras de drenagem, a Baixada passou gradativamente da condição de área de economia rural para a de periferia urbana. A construção dos ramais ferroviários e o loteamento de grandes áreas, principalmente nos municípios de Nova Iguaçu e de Duque de Caxias (que posteriormente perderiam parte de seu território para os novos municípios de São João de Meriti e Nilópolis), atraíram milhares de trabalhadores saídos da cidade do Rio de Janeiro e imigrantes vindos de outras regiões que ali se fixaram pela possibilidade de compra de terrenos baratos e pelo transporte relativamente fácil e rápido para os locais de trabalho (PRADO, 2000; PEREIRA, 1977; TORRES, 2004).
As transformações sociais na região foram extremamente rápidas. Em Nova Iguaçu, principal município da Baixada Fluminense, houve um aumento significativo da população. Se nesse município, em 1950, havia um total de 45.649 habitantes, esse montante chegava, em 1960, a 727.140. Isso fez desse mesmo município o que apresentou o mais rápido crescimento entre os de maior população do país. E, se naquele mesmo ano de 1950, quase a metade dos seus moradores residiam na área rural (46,6%), no ano de 1980 eram considerados residentes na sua área rural apenas 0,29% de sua população. E nesse mesmo ano de 1980, Nova Iguaçu havia se transformado na sétima maior cidade do país em número de habitantes com um total de 1.094.805 (MAINWARING, 1989, p. 209).
Processos semelhantes ocorreram em todas as cidades da Baixada Fluminense, com a evidente constatação de que o aumento populacional não foi acompanhado de uma adequada urbanização e da expansão de serviços urbanos essenciais, como educação e saúde. Ao mesmo tempo, a região sediou grandes empreendimentos industriais estatais, como a Fábrica Nacional de Motores (FNM) e a Refinaria Duque de Caxias (REDUC), além de empresas privadas, tais como químicas e metalúrgicas de grande porte, empresas alimentícias e de transportes e um sem-número de pequenas empresas que deram à região uma importância econômica considerável.
Entre 1978 e 1980, a partir da difusão das experiências associativas por locais de moradia, foram realizados esforços de organização e coordenação dessas experiências em nível municipal, e Federações de Associações de Moradores foram sendo fundadas nos principais municípios da região. O modelo foi o Movimento de Amigos de Bairros (MAB), em Nova Iguaçu, mas processos semelhantes levaram ao nascimento da Associação de Bairros de Meriti, depois Federação das Associações de Moradores de São João de Meriti (ABM), e Movimento de União de Bairros (MUB), em Duque de Caxias. A composição política das direções desses movimentos levou-os a prestar solidariedade e a buscar colaborar com as mobilizações sindicais, como as de metalúrgicos e de professores, além de apoiar os movimentos pela anistia política e pelo retorno à democracia (MAINWARING, 1989; SILVA, 1993).9
Nesse contexto, que combinava o declínio do Regime Militar, a rearticulação e atuação de movimentos comunitários e sindicais e a crise econômica, a fundação e atuação de um órgão da imprensa alternativa10, Jornal da Baixada (doravante nomeado JOB), assume relevância particular pelo papel a que se propôs: o de dar voz e articular as diferentes frentes dos movimentos sociais atuantes nos municípios da região.
Este jornal, como afirmado anteriormente, foi editado no município de São João de Meriti entre os anos de 1979 e 1980 por militantes da Ala Vermelha do Partido Comunista do Brasil (PC do B) e contava com a colaboração de jornalistas independentes na sua confecção.11 Em um momento histórico em que a ditadura civil-militar vigente desde abril de 1964 entrava em sua fase mais aguda de crise de legitimidade, o JOB se propôs oferecer uma abordagem alternativa dos problemas da Baixada Fluminense, dando voz aos movimentos sindicais e populares que atuavam em municípios da região, além de apoiar e exercer funções de organização política no contexto do processo de renascimento dos movimentos sindical e popular nos anos finais da década de 1970.
Sem negar em nenhum momento as difíceis condições de vida dos cidadãos da Baixada Fluminense, o JOB construiu uma narrativa que valorizou aquilo que a imprensa não priorizava: a transformação da região como resultado da mobilização e da ação política dos próprios moradores e trabalhadores.
Em sua primeira edição, datada de 15 de maio de 1979, o JOB apresentava-se da seguinte maneira à população, definindo desde já sua linha editorial na frase exposta em maiúsculas POBRE, ATREVIDO, INDEPENDENTE, a equipe editorial do jornal afirmava que o mesmo:
Nasce do esforço dos moradores e trabalhadores da Baixada e conta com a colaboração de um grupo de jornalistas. O Jornal da Baixada quer estar junto das associações de bairro, dos sindicatos de trabalhadores e de outras entidades da região para transmitir suas opiniões, levantar suas reivindicações, exigir soluções. É mais um instrumento de luta pela melhoria das condições de vida do povo. [...] O Jornal da Baixada nasce para viver a vida do povo da Baixada Fluminense. (POBRE..., 1979, p. 2)
O JOB, dessa forma, cumpriu primeiramente um papel de se apresentar como espaço de divulgação e amplificação das reivindicações que irromperam na região por melhores condições de trabalho, pela posse da terra e particularmente das mobilizações referentes à melhoria das condições de moradia, transporte, segurança, saúde e educação.
No entanto, a originalidade do JOB consistiu especialmente no fato de não ter se limitado a dar visibilidade a tais lutas, mas ter conscientemente atuado como articulador entre os movimentos populares de moradores e as organizações operária e camponesa na Baixada Fluminense no contexto da crise do Regime Militar.
Assumindo posição fortemente contrária ao regime ditatorial e seu desdobramento nas ações do governo estadual do Rio de Janeiro e das correntes políticas hegemônicas nos municípios da Baixada Fluminense, o JOB buscou uma “elevação do nível intelectual e moral” da população da região através do mencionado esforço de articulação dos diversos sujeitos políticos coletivos fortemente atuantes na região, mostrando que as reivindicações particulares destes últimos deveriam tanto se fortalecer mutuamente, quanto só poderiam encontrar sucesso mais duradouro na mudança do regime político então vigente no país.
Sabendo das duras limitações às quais aquelas lutas eram submetidas em virtude não somente das condições impostas pelo regime ditatorial como também pela crise econômica que afetava a todo o país, consideramos também que as práticas daqueles movimentos contribuíram para o refazer da identidade da Baixada Fluminense. Lembrando aqui que processos assemelhados ocorreram em várias partes do país naquele período histórico, ressignificando identidades sociais e regionais e as práticas políticas dominantes.
A narrativa proposta pelo JOB torna pertinente também a referência ao pensamento do historiador inglês Edward P. Thompson, que, tomando como exemplo histórico a construção da classe trabalhadora inglesa, insiste na importância de se considerar que a consciência decorrente da identidade de classe não pode ser entendida à margem do processo histórico, mas como um constante fazer, relacionando-se com as outras classes presentes na sociedade, escrevendo e reescrevendo tradições. Conforme este autor: “a consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais” (THOMPSON, 1987, p. 10).
Trama diabólica: sonho da casa própria vira um pesadelo. Em 15 de junho de 1979, estampada em caixa alta, essa frase encimava a capa do primeiro número da publicação em tela.
A manchete indicava uma das principais e mais constantes lutas dos moradores da Baixada, politicamente organizados ou não: aquela referente ao direito à moradia e às condições de infraestrutura necessárias ao usufruto deste mesmo direito.
As páginas do JOB, portanto, nos oferecem um retrato privilegiado das lutas referentes àquelas questões na Baixada Fluminense no momento em que a face negativa do acelerado crescimento urbano pelo qual passou o país a partir já dos anos 1960, não tinha mais como ser encoberta, dadas as novas condições de distensão política criadas justamente pela onda de mobilização de diversos setores sociais, particularmente na segunda metade dos anos 1970.
A expansão das áreas periféricas metropolitanas, impulsionadas pela rápida industrialização das maiores cidades brasileiras, trouxe consigo a necessidade de maior oferta de habitação para os contingentes populacionais que foram crescentemente se deslocando para aqueles polos de atração urbana e, frente à carência de moradia e/ou ao alto custo desta nas áreas mais centrais e próximas ao local de trabalho e ao próprio movimento de deslocamento de plantas industriais para as regiões de entorno dos grandes centros consumidores, passaram a buscar opções de moradia com mais baixo custo nas áreas então menos ocupadas da periferia metropolitana.
No caso da Baixada Fluminense, em termos da oferta de moradia por parte do poder público, a principal agência oficial foi o Banco Nacional de Habitação (BNH). A construção de conjuntos habitacionais por parte do BNH se concentrou naquele que era então o maior e mais importante município da região: Nova Iguaçu. Ali havia sido ofertado para a população um total de 11 conjuntos habitacionais até o ano de 1979. Ocorre que devido à forma como os contratos de financiamento foram estabelecidos, tornou-se virtualmente impossível para os que firmaram tais contratos conseguir a quitação, e consequentemente a propriedade definitiva dos imóveis.
A reação do banco foi a emissão de ordens de despejo para todos os que não haviam conseguido arcar com as prestações constantemente reajustadas com base nos índices inflacionários da época, que alcançavam números cada vez mais elevados. Foi contra as ordens de despejo que se mobilizaram os moradores atingidos e essa luta foi narrada pelo JOB à medida que os contendores se enfrentavam, com nítida desvantagem para os que estavam “contra a lei”. Vejamos a seguir como foi narrada a mobilização. Um número do jornal foi dedicado a ela, começando pela apresentação dos contendores:
O direito de morar e pagar um preço justo pela casa própria está impulsionando os moradores de onze conjuntos habitacionais de Nova Iguaçu a se organizarem e lutarem para impedir os despejos que ameaçam os moradores. Os conjuntos Santa Amélia, Lídia Maurício, Manoel João Gonçalves, Nova Califórnia, Botafogo, Monte Líbano, Grande Rio, Canetas Compactor, Esplanada, Rosa dos Ventos e Vila Iguaçuana, Apoiados pela Associação dos Amigos de Bairros e pela Comissão de Justiça e Paz da diocese de Nova Iguaçu já conseguiram uma vitória: os despejos foram suspensos por ordem do BNH-Banco Nacional de Habitação. (DESPEJOS..., 1979, p. 4)
Vemos que não se trata apenas de uma narrativa factual dos acontecimentos, senão de uma tomada de posição frente à mobilização dos moradores dos conjuntos contra a ameaça da perda de suas casas de forma injusta, violenta e humilhante. O Jornal sintomaticamente indicou o nome de todos os conjuntos onde houve organização dos moradores, bem como os agentes políticos externos que vieram oferecer apoio logístico às comissões de moradores.12
E logo em seguida procura estabelecer uma relação entre as reivindicações surgidas de uma situação imediata de medo de perder a própria casa e a lógica econômica por trás da construção e venda dos imóveis:
Os moradores desses conjuntos – e de outros que ainda não se integraram ao movimento – são vítimas da política habitacional promovida pelo Banco Nacional de Habitação. A correção monetária e os reajustes dos saldos devedores transformam o desejo de casa própria numa armadilha que favorece as agências financeiras e as construtoras, aproveitando-se do dinheiro do FGTS – Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, dinheiro que pertence a todos os trabalhadores, para pôr em funcionamento um esquema que beneficia apenas os de melhor situação econômica. (DESPEJOS..., 1979, p. 4)
Pode-se, portanto, definir o JOB como um agente articulador do movimento, tanto por estar presente fazendo a cobertura jornalística, ou seja, “noticiando”, dando visibilidade, quanto por permitir aos moradores mobilizados um duplo reconhecimento: como lutadores de uma causa justa e como participantes de um movimento que transcendia cada conjunto habitacional em particular e que se ligava também a um contexto maior de mudança das relações de poder nas suas cidades e no país.
Com o subtítulo “Despejos promovem união”, o Jornal deu destaque exatamente ao sentido positivo e emancipador do processo de organização dos moradores dos conjuntos e procurou enfatizar a ideia de que apenas a luta coletiva poderia trazer alguma possibilidade de sucesso quanto às suas demandas. A própria descrição dos motivos da mobilização das famílias dos conjuntos do BNH demonstrou tal intencionalidade na medida em que, partindo do acontecimento em si, a narrativa jornalística assumiu um tom simultaneamente informativo e pedagógico em termos de conscientização política do leitor:
O ponto de partida para a organização dos moradores dos conjuntos habitacionais foram os despejos anunciados para o final do ano passado e começo deste ano. Uma boa quantidade de moradores se via ameaçada de perder as casas onde moravam porque houve atraso no pagamento das prestações, ou porque tinham “comprado as chaves” de antigos moradores que desistiram de continuar lutando contra o BNH.
Na maioria dos conjuntos a mobilização começou depois do despejo de algum morador, obrigando os demais a tomarem providências para evitar o despejo em massa, que chegou a acontecer em alguns casos. O fato é que a maioria dos moradores estava em situação considerada irregular pelo BNH, seja por estarem com prestações atrasadas, seja por terem “comprado a chave” de outro morador.
Essa situação existe, no entanto, por causa do esquema de funcionamento do BNH, envolvendo os mutuários numa espiral interminável de aumento das prestações, que não é acompanhado pelo aumento dos salários. Como bem assinalou dona Maria Helena, do conjunto Nova Califórnia: “ninguém quer ter casa de graça, mas sim pagar um preço justo. (DESPEJOS..., 1979, p. 5)
Sem deixar de valorizar e enaltecer a iniciativa dos moradores, o que se materializou na escolha por dar voz a uma das participantes das comissões organizadas no interior dos conjuntos, o JOB tratou em seguida de chamar a atenção para os limites que esta mobilização fatalmente enfrentaria e a necessidade de ir além da reivindicação do pagamento de acordo com as possibilidades econômicas das famílias:
Pagar um preço justo é impossível no esquema do BNH. Alguns exemplos mostram com clareza. A coisa funciona geralmente assim:
Algum especulador imobiliário, dono de um terreno, organizava um loteamento, construía as casas e vendia para o BNH, que por sua vez as repassava para uma financeira. Só aí já temos duas operações encarecendo o preço das casas. Em outros casos o construtor nem comprava o terreno, simplesmente arrendava. Por isso, em alguns conjuntos, o comprador tem que pagar a casa num lugar e o terreno em outro.
As financeiras passavam então a vender as casas pelo Sistema Financeiro de Habitação. Ele funciona assim: o preço inicial da casa, pagável em quinze anos, é estabelecido em “Unidades Padrão de Capital” (UPC). Isto é, a casa não tem preço fixo. O total é resultado da multiplicação de tantas “UPC” quantas forem convencionadas. (DESPEJOS..., 1979, p. 5)
Não se tratava, assim, de conseguir tão somente um acordo que possibilitasse às famílias a retomada dos pagamentos a fim de um dia conseguirem a propriedade em definitivo da sua casa. O Jornal afirmava que tal acordo era, na prática, uma impossibilidade, dado a lógica que governava a política de financiamento habitacional do governo federal via BNH. Uma política que, na verdade, vinha beneficiar particularmente o setor privado:
Este esquema diabólico foi montado com o dinheiro do trabalhador. Dinheiro do FGTS que fica nas mãos do BNH exatamente sob o pretexto de ser usado para resolver o problema da habitação dos assalariados. O sistema só funciona para que as financeiras ganhem lucros gordos com as operações. (DESPEJOS..., 1979, p. 4)
Não bastasse a virtual impossibilidade do pagamento da casa própria sob as condições estabelecidas pelo BNH, definidas em suas páginas como sendo um verdadeiro “assalto à mão armada”, o JOB passou, em seguida, a descrever o verdadeiro calvário enfrentado pelos moradores dos conjuntos no dia a dia da vida em sua nova morada. Foram denunciados o uso de material de construção de baixa qualidade, a falta de maior cuidado no acabamento das obras e o estado de deterioração dos imóveis, que, apesar de terem menos de dez anos de construídos, apresentavam já rachaduras, infiltrações, curtos-circuitos na parte elétrica, encanamento em mau estado e, às vezes, até mesmo a falta de algum cômodo, em virtude da pressa de se entregar o empreendimento. Sobre este último aspecto do estado físico das casas, um dos participantes da comissão de moradores de um dos conjuntos habitacionais, o Santa Amélia, assim se pronunciou:
No contrato diz que a área de serviço era coberta. Aqui só tem área de serviço coberta quem mandou fazer o trabalho por sua conta, porque nenhuma casa do conjunto foi entregue como diz no contrato.
Oficialmente as ruas são calçadas. Na verdade, nenhuma das ruas aqui do Santa Amélia tem asfalto. É só poeira. Outro problema grave é que as financeiras não regularizaram a situação junto à Prefeitura. Aqui não se paga imposto predial porque oficialmente isto aqui [não] tem “habite-se” e não há nada construído. Isto é uma falha enorme das financeiras. (DESPEJOS..., 1979, p. 5)
Tal situação não era exatamente nova e o problema da impossibilidade de arcar com as prestações vinha desde o início dos conjuntos do BNH, ainda na primeira metade da década de 1970. No entanto, inicialmente as estratégias de enfrentamento tinham fundamentalmente um caráter de resistência individual.
Sendo assim, os moradores que primeiro se deram conta daquela impossibilidade passaram a adotar dois tipos de estratégia que poderiam ser definidas como de resistência à lógica perversa em que se viram enredados. De um lado, havia os que simplesmente deixavam de quitar as prestações e aguardavam o momento inevitável em que se veriam obrigados a deixar o imóvel. A segunda prática, essa menos arriscada, mas dependente da sorte de encontrar interessados (e, certamente, muitas vezes incautos, o que denota essa estratégia como sendo de um “salve-se quem puder”, por assim dizer, passando adiante o infortúnio), constituía em uma prática que ficou conhecida como de “venda das chaves”, isto é, vendia-se a posse da casa (eventualmente até auferindo lucro). Ocorre que esta era uma transação irregular e o comprador de fato tornava-se de direito um invasor. Ou seja, denotava uma tentativa de certa forma desesperada de não ver se perder as economias investidas em um bem que aparecia como perfeitamente acessível, mas que se tornava uma armadilha na qual as famílias haviam se deixado colher:
[...] a maioria dos que “venderam a chave” o fez de boa fé, impossibilitado de pagar as prestações. Mas não deixou de haver espertinhos que tentaram receber ainda uma prestação do novo ocupante fazendo-o acreditar que estava comprando “tudo certinho” com a financeira.
E para regularizar a situação de quem tinha “comprado a chave” as financeiras estavam fazendo exigências enormes: pagamento de toda dívida anterior, de uma vez, além da comprovação de renda familiar, etc. (DESPEJOS..., 1979, p. 5)
A existência deste último tipo de prática, certamente comum não apenas na Baixada Fluminense, mostra o quanto a questão habitacional encontrava-se (e ainda hoje se encontra) mal equacionada no contexto do movimento de crescimento econômico e do concomitante processo de aceleração da industrialização e da urbanização que lhe é consentânea.
O desejo da casa própria, insuflado pela propaganda de um Brasil em franco progresso, de um “país que vai pra frente” (como dizia a letra de uma marchinha para-oficial da época, mostrada em propagandas na televisão e cantada nas escolas públicas junto ao Hino Nacional nas cerimônias obrigatórias de hasteamento da Bandeira), se constituía uma necessidade básica das famílias ora integradas na vida metropolitana bem como um sinal de ascensão social, de conquista de uma melhor condição de vida para si e para os seus relativamente à realidade anterior. Especialmente no caso do grande contingente populacional de origem rural recentemente migrado para a metrópole e seu entorno.
Pode-se imaginar o efeito sobre os membros dessas famílias da constatação de que o sonho da casa própria se transformava em miragem. Sonho este antes oferecido como alcançável de forma tranquila em propagandas que enalteciam a felicidade familiar vendida por uma instituição que era definida, em uma de suas campanhas publicitárias, como sendo o “Banco Nacional da Humanização” (frase ilustrada pelo rosto de um bebê sorridente) ou em propagandas ilustradas por casinhas bucólicas em que se enfatizava “os benefícios para as famílias de baixa renda” por conta dos “programas dirigidos para quem precisa”, que propiciariam a “melhoria das condições de vida” dos seus mutuários. Estes poderiam ter a sua casa com um fusquinha na garagem como mostrava outra das propagandas institucionais do banco.
Mas, como narrou o JOB, para os moradores mais antigos que optaram por ficar no imóvel e nele permanecer o tanto que pudessem e, também, para aqueles que se encontravam em situação ainda mais precária, pois nem mesmo eram os titulares do contrato de financiamento, no fim da década, o sonho começou a desfazer-se de vez. No fim do ano de 1978, começou uma escalada no ritmo dos despejos dos moradores inadimplentes. O que antes era mitigado, e, portanto, menos visível e percebido, começou a se tornar uma ameaça muito mais constante para praticamente todos os moradores dos conjuntos. Ameaça, na precisa acepção da palavra:
[…] As financeiras agiram com violência, expulsando moradores de vários conjuntos. Esses despejos, porém, não resolvem o problema dos débitos atrasados. Ninguém pode sequer pensar em pagar o que as financeiras exigem em leilão para arrematar a casa.
Quando despejam um morador, as financeiras mandam homens, à noite, para tirar tudo o que pode ser aproveitado de dentro da casa: portas, janelas, pias, lavatórios e privadas. Eles também quebram os vidros e danificam o mais que podem as residências. O seguro paga o “prejuízo” da financeira e dessa forma esta garante que nenhum outro “invasor” ocupe o imóvel danificado. Isso acontece particularmente no conjunto Manoel Leão Gonçalves. (DESPEJOS..., 1979, p. 5)
Tal modus operandi teve o efeito de despertar nos moradores, que se sabiam sob o risco de sofrer o mesmo tipo de violência, a consciência de quanto cada família isoladamente estava vulnerável a situação de vir a perder sua moradia inexoravelmente, inclusive podendo sofrer agressões físicas por parte dos homens contratados das financeiras. Tornou-se inevitável buscar formas de organização coletiva para tentar fazer frente ao interesse das financeiras de auferir novos ganhos com os imóveis com o beneplácito da justiça:
Depois dos primeiros despejos, os moradores começaram a se organizar para evitá-los. No conjunto Nova Califórnia, por exemplo, foram despejadas dez famílias antes da organização da comissão de moradores. Depois que a comissão foi organizada, apenas uma moradora, dona Graziete, foi despejada. Já no Santa Amélia, os moradores observaram o que estava acontecendo nos outros bairros e se organizaram antes que a onda de despejos chegasse. (DESPEJOS..., 1979, p. 5)
Podemos inferir de tal descrição que os eventos de despejo obedeceram a uma lógica centro-periferia, começando nos conjuntos de bairros mais centrais porque eram os mais valorizados, logo apresentando maiores possibilidades de venda em menor tempo. Por outro lado, eram conjuntos, via de regra, mais antigos e onde a dívida acumulada pelas prestações atrasadas era maior, tornando mais provável o ato de despejo. Seja como for, independente da ordem seguida pelas ações de despejo, o fato é que estas ensejaram a constituição das comissões de moradores e de formas de luta originais e criativas elaboradas no calor da hora:
A forma que os moradores de alguns conjuntos acharam para se defender dos despejos é bem interessante. Na casa de algum morador que esteja em dia é colocada uma sirene, que é acionada tão logo os oficiais de justiça cheguem à casa de alguém para despejá-lo.
“Ninguém faz nenhuma violência, diz dona Maria Helena. Apenas entramos todos na casa, conversamos com os oficiais de justiça e com os guardas, sentamos nos móveis e impedimos que seja feita a remoção das coisas das pessoas. Uma vez, um guarda da Apex disse que se tivéssemos feito isso logo no começo, ninguém teria sido despejado. (DESPEJOS..., 1979, p. 5)
É interessante chamar a atenção para a constância da participação das mulheres nas comissões de moradores. Mesmo levando em consideração um possível enviesamento da narrativa dos acontecimentos apresentada pelo JOB (haja vista que esta é baseada precipuamente em entrevistas provavelmente realizadas durante o dia, período em que o marido encontrava-se no trabalho, o que aumentaria artificialmente a presença de mulheres entre os entrevistados), este último depoimento acima transcrito mostra que não apenas as mulheres tinham significativa participação (até talvez, justamente por terem maiores condições de, durante o dia, articular as redes de solidariedade e pensar coletivamente nas estratégias possíveis), como também assumiram muitas vezes um papel de liderança no interior das atividades das comissões na defesa dos moradores que se tornavam objeto das ações de despejo.
O movimento de organização dos moradores dos conjuntos do BNH não demorou a ganhar uma maior visibilidade e articulação. Não muito depois de seu início, a Comissão Diocesana de Justiça e Paz da Diocese de Nova Iguaçu e o Movimento Amigos de Bairros passaram a fornecer apoio estratégico aos moradores organizados em comissões e à sua causa. Com isso foi possível a unificação das diversas comissões em um movimento coletivo unificado que, dessa forma, adquiriu uma dimensão política que transcendeu os limites dos loteamentos.
Tanto que no dia 7 de abril de 1979 foi realizada uma primeira assembleia de moradores dos conjuntos do BNH, que contou com a participação de mais de duzentas pessoas representando não apenas aqueles, mas também diversas Associações de Amigos de Bairros, do Comitê Brasileiro de Anistia e de três deputados estaduais (DESPEJOS..., 1979, p. 5).
Nessa primeira reunião, ficou decidida a formação de uma comissão de representantes dos moradores dos conjuntos à qual foi atribuída a tarefa da organização de uma assembleia geral de todos os conjuntos e de passar a se responsabilizar pelas atividades de negociação dos interesses dos moradores frente ao BNH e às empresas financeiras. Quanto a este último tema, a primeira vitória concreta do movimento foi a obtenção da suspensão temporária das ações de despejo. Vitória significativa do ponto de vista material e simbólico, pois que, por um lado, salvava da ameaça de despejo imediato cerca de dez mil famílias na iminência de perder suas casas e, por outro lado, mostrava que a opção pela organização coletiva produzia frutos e, dessa forma, o discurso que a defendia ganhava um forte argumento em termos de sua fundamentação.
A importância do aspecto simbólico da luta pela permanência no imóvel, por sua vez, não dizia respeito apenas à busca pelo fortalecimento interno do movimento e seu enraizamento entre os moradores, mas era fundamental também em termos da necessidade de angariar apoio e simpatia externos, seja entre a população do município, seja dos representantes políticos no parlamento, que poderiam ser potencialmente simpáticos à causa dos moradores dos conjuntos do BNH, como, aliás, se pode depreender da presença de alguns deputados estaduais naquela primeira assembleia acima referida.
Em vista de tal fato, a comissão encarregada das negociações com o banco e demais credores lançava mão de uma estratégia discursiva que procurava inverter o sentido do argumento que embasava o discurso daqueles – isto é, de que estavam sendo obrigados a despejar os moradores para retomar os imóveis porque isto era seu direito frente a quem não conseguia arcar com a responsabilidade contratada – apropriando-se da mesma noção de direito enfatizando o seu sentido de referência ao que era “justo” em oposição ao que era “legal”. Dessa forma, se buscava escapar do estigma da acusação de “caloteiros” ou “picaretas”, desonestos em suma, que a eles se tentava atribuir.
O momento histórico não permitia mais o recurso à violência pura e simples, era preciso lançar mão de uma violência de ordem mais simbólica por parte dos que possuíam os maiores recursos em termos de poder. Mas o mesmo momento histórico, ao já permitir minimamente formas de organização coletiva, possibilitava também que a luta fosse travada no campo de batalha da legitimidade do discurso. Como expõe o JOB:
A comissão enfatiza sempre o direito que os moradores têm de conseguir comprar uma casa por um preço acessível, e propuseram ao BNH algumas alternativas. Entre essas medidas está a adoção de planos comunitários que prevejam as alternativas de pagamento de acordo [com] as possibilidades dos moradores. (DESPEJOS..., 1979, p. 5, grifo do autor)
A nova correlação de forças e a percepção de que estava perdendo a disputa no campo discursivo levou o BNH a reagir impondo como condição de prosseguimento das conversações a proibição de participação dos órgãos de imprensa nas reuniões entre as partes. O JOB imediatamente apontou a intencionalidade de tal imposição e o risco advindo dela:
É preciso deixar claro que o comportamento do BNH abre caminho para que essa instituição manobre com as reivindicações dos conjuntos, que ficam sem condições de ter o apoio da imprensa para seus pedidos. (DESPEJOS..., 1979, p. 5)
Com isso também se indica que o papel da imprensa, já não sob uma censura estrita, passava a adquirir maior importância. Consequentemente, a divulgação dos acontecimentos, e, principalmente, a forma sob os quais estes passavam a ser noticiados vinha a se tornar elemento de grande importância no jogo político, questão hoje novamente premente.
A sinalização de que as propostas dos moradores poderiam ser atendidas não significou, porém, como talvez BNH e financeiras esperassem, a desmobilização das comissões de moradores. Muito pelo contrário, estas intensificaram seu trabalho organizativo, buscando ampliar e fortalecer seus mecanismos e estratégias de defesa.
Prova tal aprofundamento da mobilização o fato de que aqueles moradores produziram, em regime de mutirão, uma pesquisa através do uso de questionários visando o levantamento completo da situação de cada um dos moradores em cada imóvel. Com isso se intentava ao mesmo tempo um conhecimento mais preciso dos graus de vulnerabilidade de cada família. Uma informação útil tanto para embasar as estratégias de defesa frente à possível retomada das ações de despejo, quanto para aumentar a capacidade de argumentação dos representantes tendo como referência a defesa do direito à moradia por parte dos que se tornaram inadimplentes como consequência de contratos legalmente embasados, porém, injustos na sua lógica.
A permanência de tal mobilização dos moradores dos conjuntos do BNH possuía nítidas razões de ser. Em sua edição de agosto de 1979, por exemplo, o JOB noticiava que, por ocasião da visita do coronel Mário Andreazza, então ocupando o Ministério do Interior no governo do general João Batista Figueiredo (1979-1984), o presidente do BNH e um de seus diretores declararam à imprensa que a questão da inadimplência dos moradores seria analisada contrato por contrato, o que, na prática, significaria adiar ad eternum uma solução definitiva para o problema, já que se tratava de mais de dez mil imóveis. Quanto à garantia da suspensão das ações de despejo, os dirigentes do banco não asseguraram que tal fato aconteceria. Foi o próprio Mário Andreazza que declarou com convicção que “Não, não há possibilidades de haver despejos” (ANDREAZZA..., 1979, p. 2). Na avaliação do Jornal:
[…] o BNH não se interessa em resolver o problema. A intenção é cozinhar em fogo lento, já que a solução imediata significa prejuízo financeiro para o banco.
Despejar os moradores é uma medida impopular para o Governo Federal. Adotar uma medida radical, pressionando as sociedades de crédito imobiliário, prejudica o seu relacionamento com o sistema financeiro. Bancar o prejuízo está fora das cogitações. O jeito é ficar em cima do muro. Se pular no quintal do vizinho à esquerda tem cachorro bravo. E no vizinho da direita, o cão de guarda também é uma fera. (ANDREAZZA..., 1979, p. 2)
No caso da luta pontual e “menor” aqui analisada, que se iniciou como defesa desesperada contra o risco da perda de um teto para a própria família, o fazer-se da mobilização dos moradores dos conjuntos do BNH veio a se tornar simultaneamente um fazer-se da consciência política coletiva. Este fenômeno, por sua vez, foi amplificado pela aliança com outros sujeitos políticos coletivos que já atuavam na Baixada Fluminense em torno das diversas lutas e reivindicações que, grosso modo, poderiam ser definidas como sendo pela melhoria das condições de vida da população da região a partir da defesa dos variados direitos particulares cujo usufruto pleno configura o estabelecimento efetivo da ideia de cidadania.
Dessa forma, quando da realização da assembleia com representantes de todos os conjuntos do BNH no dia 11 de novembro de 1979, houve a participação de mais de 3.000 moradores, representando treze conjuntos, mas sem o comparecimento de representantes do BNH, também convidados. Uma significativa demonstração de crescimento da mobilização se levarmos em conta que, à primeira reunião de representantes, compareceram cerca de duzentas pessoas (DESPEJOS: BNH..., 1979, p. 7).
No entanto, apesar dessa significativa mobilização, a situação dos moradores dos conjuntos residenciais da Baixada Fluminense era de grandes dificuldades no final da década de 1970. Somente no Fórum de Nova Iguaçu, em 1979, havia 3.500 processos de despejo contra moradores de prédios construídos pelo BNH. Em abril daquele ano, uma nota elaborada de forma conjunta pela Comissão Geral dos Conjuntos, eleita pelos moradores, e pela direção do Movimento Amigos de Bairro (MAB) de Nova Iguaçu, exigia a suspensão imediata dos despejos e o direito dos moradores de comprar suas casas a um preço acessível (SILVA, 1993, p. 81).
A situação somente começou a ser resolvida em 7 de abril de 1980, quando o BNH autorizou as financeiras a renegociarem os imóveis, beneficiando os 23 conjuntos residenciais então existentes na Baixada Fluminense (SILVA, 1993, p. 83-84)
O momento histórico compreendido entre a segunda metade da década de 1970 e os anos iniciais da década seguinte se apresentou como marcado pela transição estritamente controlada de um regime político ditatorial a um redivivo estado de normalidade democrática com limites bastante estritos. Ao derradeiro governo militar pós-64, já não era mais possível ignorar a força das manifestações populares e se buscava estabelecer mecanismos de convencimento da população brasileira acerca das ações e diretrizes adotadas a fim de permitir a passagem ordeira e tranquila do poder para mãos civis. Tratava-se de evitar, em última instância, que as diversas novas formas do fazer-se político, emersas nesse referido período histórico, adquirissem maior força e projeção.
Tal fazer político novo, por sua vez, materializava-se na atuação das organizações que buscavam orientar-se pela adoção de princípios democráticos baseados na participação direta e na quebra das hierarquias tradicionais vigentes como regra nas instâncias políticas de cunho organizativo institucionalizadas há décadas, vindo a se constituir como ator político fundamental e com aspirações a mudar as regras do jogo da “abertura lenta, gradual e pacífica”, tão cuidadosamente articulada entre as forças políticas militares e civis estabelecidas.
A intenção seria manter as novas lutas e organizações populares sob controle através da criação de canais de atuação política previamente definidos pelas autoridades constituídas. E com isso fundamentalmente evitar que tais lutas e as organizações delas e por elas constituídas ultrapassassem o limite da natureza pontual e imediata de suas reivindicações, passando a reconhecer sua luta como parte de um movimento maior de mudança dos processos e práticas através dos quais se materializava o exercício da política no município, no estado e no próprio país como um todo. Acima de tudo, evitar que tais lutas e organizações se reconhecessem como parte de algo maior e viessem a se constituir em uma força política organizada capaz de gerar uma nova institucionalidade em termos daquele fazer-se das relações políticas no Brasil.
Mas já era tarde para isso.
No caso específico aqui analisado, um dos elementos novos que ajudaram a potencializar o alcance da mobilização política dos subalternos foi a existência de um tipo de sujeito político também redivivo nos anos 1970, o órgão de imprensa dito alternativo, haja vista não pretender se apresentar como publicação comercial, mas ele mesmo como um sujeito político divulgador e mobilizador das lutas de caráter reivindicativo, seja politicamente organizadas ou as de caráter espontâneo.
O JOB cumpriu este papel participando ativamente tanto como espaço de divulgação quanto como sujeito político que muitas vezes pautava o fazer-se da luta por moradia ao mesmo tempo em que atuava como parte da força de pressão política sobre os poderes constituídos. Sendo assim, teve também importante papel no fortalecimento do Movimento Amigos de Bairros (MAB) e das lutas dos moradores na região da Baixada Fluminense.
Claro está que não é possível comparar a capacidade de penetração social de um pequeno órgão de imprensa, impresso e distribuído a partir de estruturas militantes, com o peso da grande imprensa escrita, distribuída em inúmeras bancas nos municípios da Baixada Fluminense. A capacidade de produzir hegemonia desta e, também, do rádio e da televisão se estende até os dias atuais. No período abordado neste texto, sob as condições restritivas impostas pelos governos militares, a imprensa noticiava os problemas da Baixada Fluminense através de um prisma que ressaltava uma região violenta, à margem da ação do Estado, sob controle de políticos personalistas e de milícias que impunham a ordem através da coerção pura e simples.
O JOB se propôs à construção de uma nova abordagem dos problemas da região, cuja solução dependeria da mobilização política de sujeitos sociais que ficavam à margem das decisões políticas, em mãos de grupos tradicionais.
O JOB deu voz aos movimentos sociais da periferia metropolitana do Rio de Janeiro e, nesse sentido, se constitui em uma fonte relevante para a análise da ação política dos segmentos envolvidos na reorganização da sociedade civil, naquele período histórico.