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Produção fotográfica e usos sociais: a fotografia orgânica de uma missão de paz da ONU (1957-1967)

Photographic production and social uses: organic photography of a UN peace mission (1957-1967)

Ricardo Arraes
Universidade Federal Fluminense, Brasil

Produção fotográfica e usos sociais: a fotografia orgânica de uma missão de paz da ONU (1957-1967)

Revista Tempo e Argumento, vol. 14, núm. 36, e0303, 2022

Universidade do Estado de Santa Catarina

Recepción: 20 Diciembre 2020

Aprobación: 21 Diciembre 2021

Resumo: Este artigo é um esforço de longo tempo. Tecido nas dobraduras de quase duas décadas de intensa pesquisa nos arquivos da Organização das Nações Unidas (ONU), da Associação Brasileira dos Integrantes do Batalhão Suez (Abibs) e nas dezenas de acervos fotográficos que tive a oportunidade de acessar e/ou que me foram cedidos graciosamente pelos soldados fotógrafos da Missão Suez. Aqui, procuramos discutir alguns aspectos da prática fotográfica empreendida no contexto da primeira Missão de Paz promovida pela ONU na fronteira árabe-israelense, na Península do Sinai (na fronteira Palestina-Israel) entre os anos de 1957 e 1967. De um modo geral, a produção fotográfica dos soldados tornou-se uma excitação especial para aqueles fotógrafos amadores. A preferência pelas fotografias enfatiza o seu caráter multidisciplinar e nos dá uma oportunidade especial para realizar um recall histórico da chamada Missão Suez a partir delas. As fotografias de Suez são entendidas para além de mera lembrança de velhos, mas são percebidas enquanto uma marca cultural daquele passado que nos trazem à tona.

Palavras-chave: conflito Árabe-Israel, missão de paz, ONU, fotografia de guerra.

Abstract: This article is a long time effort. Fabric in the folds of almost two decades of intense research in the archives of the United Nations (UN), the Brazilian Association of Members of the Suez Battalion (Abibs) and in the dozens of photographic collections that I had the opportunity to access and / or that were given to me graciously provided by the photographing soldiers of the Suez Mission. Here, we seek to discuss some aspects of the photographic practice undertaken in the context of the first UN-sponsored Peace Mission on the Arab-Israeli border, on the Sinai Peninsula (on the Palestinian-Israel border) between the years 1957 and 1967. In general, the photographic production of the soldiers became a special excitement for those amateur photographers. The preference for photographs emphasizes their multidisciplinary character and gives us a special opportunity to carry out a historical recall of the so-called Suez Mission from them. Suez's photographs are understood beyond mere memory of old people, but are perceived as a cultural mark of that past that brings us to the surface.

Keywords: Arab-Israel conflict, peace mission, UNO, war photography.

“A memória é feita de fotografias”.

(DUBOIS, 1984)

Já se vão décadas desde que vários ramos das ciências sociais, incluindo a História, se renderam à pujança da fotografia enquanto um meio seguro como fonte e como objeto de uma pesquisa. Enfim, a fotografia é entendida aqui como uma fonte e como uma ferramenta eficaz de trabalho e a documentação fotográfica e descrita como todo e qualquer tipo de imagem fotografia que revele cenas, personagens ou paisagens.

O propósito deste artigo é trazer mais uma possibilidade metodológica de aproximação entre as várias formas de estudar a História e a área das Relações Internacionais, tendo como base a documentação fotográfica. Conhecer e analisar a política, a conjuntura internacional por outro olhar, e a partir de outras evidências. Isso é possível pela grande produção fotográfica realizada pelos soldados da paz, ao longo de suas participações na Missão Suez. Aqui, a intenção é tornar a atuação daquela força de paz naquele mundo mais compreensível para os leitores e, em alguns casos, de explicar a relação entre as nações ali presentes agora sem aporte de teorias e correntes dominantes de pensamento, como costumeiramente se produz nos ensaios sobre as Relações Internacionais.

Este trabalho traz em primeiro plano a discussão do uso da fotografia pela História e, em segundo, uma das mais sangrentas guerras da Era Contemporânea: a guerra árabe-israelense. Esse evento exigiu da Organização das Nações Unidas (ONU) a “invenção” de uma novidade geopolítica no conjunto das relações internacionais até então: as chamadas forças de paz. Em novembro de 1956, a ONU deu uma resposta multilateral ao conflito, agregando países de diferentes regiões do mundo, mas com uma única razão para estarem ali: levarem uma paz relativa para a região.

Vale dizer também que se a história do Batalhão Suez ainda é sobejamente desconhecida do público em geral e da academia, em particular, a quantidade e o potencial de informação oferecido pelas imagens fotográficas que os militares brasileiros tiraram durante a missão, ainda é uma história pouco escrita e conhecida1. Vem desse vazio de conhecimento meu interesse pela história fotográfica da Missão Suez. O portfólio de imagens ao qual tive acesso reúne dezenas de milhares de fotografias, cartões postais e mapas da região.

A ONU e o conflito árabe-israelense

Entre os anos de 1957 e 1967, a Organização das Nações Unidas (ONU) organizou e enviou para a fronteira árabe-israelense a sua primeira missão de paz. Isso ocorreu como forma de acalmar os ânimos entre o Egito e Israel e os parceiros políticos e econômicos deste – a França e a Inglaterra. Era a UNEF (United Nations Emergency Force, na sigla em inglês). Militares de dez países – Brasil, Canadá, Colômbia, Dinamarca, Finlândia, Suécia, Índia, Indonésia, Iugoslávia e Noruega – participaram da UNEF. O Brasil permaneceu durante os dez anos da Missão. O ofício principal era servir como um elemento político e militar neutro entre o povo local – os palestinos – e as forças militares do Egito e de Israel.

Os militares levaram uma relativa paz para a região e escrutinaram profundamente a Faixa de Gaza e uma parte do Oriente Médio. A chamada Missão Suez levou para as antigas terras da Palestina militares muito jovens e ávidos por descoberta e aventura. Havia muitas informações para serem gravadas e guardadas na cabeça. Elementos demais, fantásticos demais para relatar e encontrar quem neles acreditassem. Dessa forma, a fotografia se tornou meio de comprovação e objeto de lembrança de um período e lugar ao qual jamais retornariam. Assim, os soldados transformaram-se momentaneamente em “fotógrafos”. Tudo era motivo para fotografar, documentar e comprovar sua passagem por aquelas distantes terras de histórias e guerras antigas e incompreensíveis para os soldados-fotógrafos da paz.

A fotografia orgânica e a produção de documentos visuais

Desde o seu nascimento, a fotografia transformou-se em meio para a produção de documentos. As imagens fotográficas são vistas aqui como “referências confiáveis” de fatos e eventos, embora admitamos que essa confiabilidade seja apenas relativa. Neste artigo, questionamos como a fotografia se inseriu na Missão Suez e porque e para quê? Interessa-nos aqui entender o alegado “caráter documental” da fotografia capturada pelos militares durante a Missão Suez. Com ela, acreditamos que podemos conhecer parte da diversidade cultural dos povos que habitavam o deserto, mas também daqueles que viviam nas cidades do Oriente. Povos até então conhecidos pelo que era retratado ou descrito apenas nas páginas da ficção, poesia ou nas representações criadas por pessoas não orientais2. De acordo com os entrevistados, a aplicação mais imediata da fotografia que tiravam da região era para documentação. Queriam documentar especialmente o estar ali, mas também o povo local, seus costumes “exóticos” e os elementos naturais oriundos do deserto.

Vale lembrar que, de fato, documentar foi uma das principais aplicações da fotografia na época de sua invenção. Ao mesmo tempo em que realizavam a vigília e guarda da fronteira árabe-israelense (a ADL), eles fizeram uma intensa documentação fotográfica de caráter informativo para um público que inicialmente seria restrito ao âmbito familiar. Entretanto, hoje, essas fotos circulam em um espaço mais amplo e são utilizadas com fontes documentais pelas ciências humanas. Com elas, podemos conhecer um pouco daquela realidade e estudar os seres humanos ali presentes, tanto no seu aspecto econômico, físico quanto no social.

O resultado dessa prática fotográfica permitiu a produção de documentos visuais fundamentais para o conhecimento de várias facetas da participação brasileira na Missão Suez. De certa forma, a prática fotográfica ali produzida humaniza a missão. Ao mostrar não apenas o cotidiano que se passava dentro dos quartéis, mas também das cenas da vida social possível num ambiente de guerra iminente. Trata-se de uma história apoiada pela marca da visualidade.

Definimos a fotografia capturada pelos soldados da paz como sendo do tipo orgânica, ou seja, aquela fotografia obtida de forma espontânea e natural. Enfim, uma fotografia capturada com pouca ou nenhuma percepção estética que estava relativamente completa no momento do clique. Restavam ainda o processo de revelação e os diferentes usos sociais que se fizeram a partir de então.

A consubstanciação do tipo orgânico se operou a partir da intensa e contínua produção fotográfica realizada naquela região. Como aqueles soldados-fotógrafos desconheciam a linguagem, a técnica e os recursos das máquinas, a prática e a cultura visual de Suez foi produzida no “aprendizado” diário, prático e contínuo do manuseio das máquinas bem como da observação dos recursos técnicos e da luz. Ela foi fruto da operação de tentativa e erro, foi forjada na experiência sensorial e de captação, na realização sensível embora sem orientação técnica. A produção fotográfica de Suez gerou um acervo fabuloso de dezenas de milhares de fotografias. Essa documentação em nada se subordina às convenções dessa prática. Para tanto, os “soldados-fotógrafos” (ARRAES, 2013)3 se utilizaram de uma linguagem própria, de uma leitura individual que contrapõe técnicas artísticas e criativas à realidade manifesta do documental.

O presente artigo procura discutir a relação da visualidade com a história e analisar mais apuradamente a linguagem fotográfica retirada da leitura dos registros visuais produzidos pelos soldados-fotógrafos de Suez. Enfim, pretende também conhecer e compreender parte do universo da cultura visual produzido durante a Missão Suez ocorrida entre os anos de 1957 e 1967. A pergunta inicial se debruça sobre a que regimes visuais respondiam esses tipos de fotografias e quais as percepções dos fotógrafos sobre as imagens tiradas naquele período?

Encontramos padrões visuais em praticamente todos os acervos dos militares do Batalhão Suez aos quais tive acesso, desde 2004, quando localizei o primeiro estoque de fotografias. Esta percepção despertou-me o interesse em compreender melhor a produção de fotografias feita pelos militares-fotógrafos durante a Missão. Nos 16 anos da pesquisa, pude conhecer uma parte da fabulosa produção fotográfica da Missão Suez tanto com os militares piauienses, quanto com os gaúchos4.

Denominada de Missão Suez pelo Exército brasileiro, a participação brasileira na primeira missão de paz encetada pela ONU (Organização das Nações Unidas), produziu milhares acervos e álbuns fotográficos. Cada um dos militares que participou da UNEF produziu um acervo próprio com um ou vários álbuns. Os acervos são basicamente compostos pelas imagens fotográficas, cartões postais e slides.

Através das entrevistas, pudemos conhecer mais sobre os usos e as funções sociais das imagens. O espaço de guarda das fotografias e retratos permaneceu circunscrito aos seus núcleos familiares, desde que retornaram da Missão. Acreditamos que as imagens de Suez podem a seu modo, reconstruir parte da trajetória desses fotógrafos na Missão, bem como conhecer os usos sociais que fizeram dessas fotografias. A produção fotográfica daquela Missão, a seu modo, fala sobre a vida naquele contexto bem como fornece valiosos subsídios sobre pormenores dos bastidores que passariam despercebidos pela História.

É claro, reconhecemos as dificuldades metodológicas dos usos feitos das fontes fotográficas pelo historiador. Esse aporte metodológico nunca foi unanimidade na academia, mas lembramos aqui do historiador italiano Alessandro Portelli, quando afirmava que mesmo para as fontes escritas “não temos, pois, a certeza do fato, mas apenas a certeza do texto: o que nossas fontes dizem pode não [ter] sucedido verdadeiramente, mas está contado de modo verdadeiro” (PORTELLI , 1996, p.62). Para os veteranos de Suez, os usos sociais atribuídos à fotografia que captaram serviriam, no limite, apenas para fins de comprovação e para a preservação da memória. Uma evidência disso é que a circulação das fotografias se manteve basicamente circunscrita aos círculos familiares.

As máquinas fotográficas que utilizaram na captura das cenas e dos cenários do Oriente Médio já eram portáteis. De um modo geral, a atividade fotográfica “passava por uma fase de vulgarização, já que essas inovações tecnológicas eram cada vez mais fáceis de manipular” (MASSIA, 2008, p. 24). Com as máquinas portáteis, os fotógrafos de Suez ganhavam maior mobilidade para atuar. Por seu turno, as inovações técnicas como o flash e os filmes em rolo, garantiam maior agilidade e maior rapidez na revelação.

Assim, no momento do trabalho cotidiano ou nas férias, os militares não dispensavam levar a máquina fotográfica carregando-a a tiracolo. Ávidos por documentar o que viam, paulatinamente iam colecionando fragmentos do cotidiano dentro dos quarteis, da paisagem e de seus habitantes. Se o ato de fotografar significa capturar, dessa forma, eles iam se apropriando do mundo, domando o tempo naquele espaço abrasado de ódio e rancor entre dois povos inimigos e irmãos. Os usos sociais se celebram no compartilhamento das experiências trazidas em milhares de imagens de si e dali. A rigor, a fotografia social abrange uma grande quantidade de assuntos específicos; destacamos aqui as muitas imagens da pobreza, das diferentes condições de trabalho de palestinos e israelenses, as festas e comemorações cívicas e os momentos de lazer dentro e fora das Companhias militares.

No deserto e nas cercanias dos batalhões tirar uma foto não exigia muito esforço. Entre as muitas fotografias instantâneas, os soldados eternizaram na película os eventos cívicos oficiais ou a realização das tarefas cotidianas, como a limpeza dos acampamentos e ou da ADL (na sigla em inglês para Avisory Demarcation Line)5; também haviam aquelas fotos posadas, obedecendo aos chamados “cânones tradicionais”: a pose, o olhar fixo no fotógrafo e, em alguns casos, o sorriso encenado. Para Barthes, quem posa “transforma-se instantaneamente em outro corpo”. A fotografia de retrato foi um gênero demasiadamente explorado naquilo que chamo de a “fotografia de Suez” bem como as fotografias posadas e tiradas tendo como plano de fundo as monumentais obras da engenharia antiga da região, como as colunas de Baalbeck ou as famosas Pirâmides, conforme visto na figura 1, logo abaixo.

Tenente Irapuã posa tendo ao fundo a Pirâmide de Quéops em 1963.
Figura1
Tenente Irapuã posa tendo ao fundo a Pirâmide de Quéops em 1963.
acervo pessoal do Tenente Irapuã Soares

A fotografia de retrato também é conhecida como fotografia sincera. A intenção primeira desse tipo de imagem é a captura da beleza e da personalidade da pessoa retratada em close-up ou de corpo inteiro. Desde sempre, o ato de capturar as expressões humanas é um assunto intrigante mesmo para os fotógrafos profissionais. Como o enfoque é o rosto, um retrato exige nitidez e foco, portanto, demanda alguma habilidade técnica do fotógrafo neste tipo de fotografia. Esse aspecto muitas vezes foi vencido pela pressa, pela falta iluminação adequada ou pela inabilidade técnica dos soldados-fotógrafos da paz no momento do clique.

Fotografar paisagens é um dostipos mais populares de fotografia. Numa área aberta e tão vasta como o deserto do Sinai, os boinas azuis puderam retratar vários cenários e capturaram belas paisagens daquela região conflagrada. No entanto, como vimos acima, a falta de conhecimento ou o manuseio errado das máquinas e a pressa ao fotografar, muitas vezes, prejudicou a captura. Como amadores, eles não sabiam, por exemplo, da necessidade de usar uma velocidade longa de obturador no momento de capturar a luz adequada naqueles momentos e lugares.

Além disso, para fotografar uma paisagem e obter uma imagem nítida, o uso de um tripé seria essencial para eliminar a vibração da câmera. Ora, uma foto esteticamente “perfeita” exige alguma habilidade e conhecimento dos recursos da máquina e de algumas noções de estética fotográfica. Elementos ignorados ou desprezados por aqueles fotógrafos amadores. O grande acervo de Suez contabiliza milhares de fotos da paisagem local: dunas, estradas, vales, plantações. Na imensa maioria, as imagens se limitam a fotos horizontais, corretamente mais indicadas para a captura de grandes espaços abertos e montanhas.

As câmeras portáteis, sendo pequenas e leves, também ofereciam possibilidades e facilidades para a captura de imagens aéreas, oferecendo uma visão panorâmica das paisagens. Consideramos aqui que a fotografia aérea é aquela feita a partir de cima e que isso é possível tanto de dentro de um avião, como a partir do topo de montanhas daquela região. Entre os acervos, encontramos várias fotos aéreas tiradas a partir de aeronaves, mas também há outras feitas do alto de caixas d’água, do cume de montanha e até de pirâmides6.

Os chamados soldados-fotógrafos da paz também fizeram muitas fotografias esportivas. Nelas, observamos os militares em ação, disputando competições de várias modalidades entre exércitos dos países presentes naquela Missão de paz. Nas confraternizações apoiadas e incentivadas pela ONU havia jogos de basquete, futebol de salão, futebol de campo e até disputas do prosaico cabo de guerra. O Brasil sempre se saía bem nos jogos de futebol e de basquete, conforme visto na figura 2, a seguir; a Índia, representada pela etnia sikh7, vencia no atletismo com seus soldados altos e longilíneos.

Fotografia esportiva. Jogo de basquete em 1959.
Figura 2
Fotografia esportiva. Jogo de basquete em 1959.
Acervo pessoal do Sargento Conrado.

Como mencionado acima, o desconhecimento das muitas configurações e possibilidades de uso dos recursos das máquinas prejudicava as fotografias de esportes, pois eram praticados ao livre e com muita luminosidade de maneira que, não havia a preocupação, por exemplo, em aumentar o ISO das câmeras ou usar uma velocidade rápida do obturador. Vale lembrar que naquela época, ISO era chamado de ASA e as câmeras eram analógicas e usavam filmes de rolo. Mas, tanto em uma como na outra denominação, é a mesma escala que define a quantidade de luz necessária para fazer-se uma fotografia sem ruídos. Enfim, usada corretamente, a função ASA – hoje ISO – contribuiria sobremaneira para o bom resultado das fotos de esportes nos campeonatos da UNEF8. Nossos fotógrafos amadores buscavam, no máximo, ângulos relativamente adequados para mirar e clicar. Assim, contavam com a sorte para capturar “boas” fotografias. E, em muitos casos conseguiram, como mostra a figura 2, acima.

Naquele momento as câmeras já possuíam alta qualidade e poderiam fazer capturas em cores. Entretanto, a grande maioria das imagens é em preto e branco. As fotografias coloridas que encontramos são majoritariamente aquelas obtidas através da revelação do diapositivo9. Assim, os soldados-fotógrafos gravaram a missão predominantemente em preto e branco.

Muitos assuntos são comuns aos vários acervos aos quais tive acesso. Eles incluem é claro, as ruas e praças, pessoas, mercados e seus vendedores ambulantes e veículos, tudo em preto e branco. Como fotógrafos de rua, eles não fotografaram apenas os pontos turísticos das cidades que visitaram durantes as leaves. Por isso, aparecem várias imagens retratando cenas da vida real que observavam nas cidades. Uma prática tão intensa, que cada pequeno aspecto ao seu redor era observado e registrado. Por isso, também encontramos algumas imagens no estilo “por trás das cenas”, ampliando sobremaneira o escopo da prática e mostrando outros ângulos daquilo que eu chamo de a história visual da Missão Suez. Enfim, eles não hesitavam em capturar qualquer um daqueles momentos únicos e singulares e lugares inusitados aos quais jamais retornariam. Entretanto, sem conhecimento das técnicas fotográficas e dos recursos técnicos possibilitados pelas máquinas, restava contar com a sorte e se deixar levar pelo antigo lema da Kodak de apertar o botão e fotografar à vontade. Embora essa não fosse a motivação original, a história visual da Missão Suez era construída a cada rolo batido e a cada fotografia revelada.

Nas fotografias de rua daquelas antigas cidades orientais, podemos observar que as imagens agenciam os sinais de fausto do passado estampados nas suas paredes, em sua arquitetura. Enfim, as imagens contam que, em algum momento, a história do Oriente Médio já foi diferente. Os soldados-fotógrafos da paz também viram e capturaram o ambiente de miséria, violência e degredo dos palestinos de então. Nesse aspecto, as fotografias também indiciam ou atestam a decadência de cidades palestinas como Rafah e Gaza e de certas áreas centrais ou nos arredores do Cairo, como pode ser observado na figura 3. A cena capturada mostra o cotidiano em movimento, um ato contínuo sem tempo para a pose. Assim, na pressa, carros e gente sofrem com o corte operado pelo fotógrafo.

Fotografia de rua tirada na cidade do Cairo em 1958.
Figura 3
Fotografia de rua tirada na cidade do Cairo em 1958.
Acervo pessoal do soldado Oswaldo Oliveira.

A fotografia de rua de Suez mostra elementos da cultura local, os eventos cívicos, a arquitetura suntuosa e/ou retrata pessoas em cenas do seu dia a dia. Essas imagens contam pedaços interessantes e importantes da história da Missão Suez em particular, e da UNEF em geral, mas as imagens também contam fragmentos daquela época tensa entre os países beligerantes. As fotografias trazem consigo os fragmentos congelados de um tempo e de uma história que nunca mais se repetirá. Elas nos trazem indícios, de algum modo, da sensação dos que estiveram naquele lugar e naquele momento.

Eles utilizaram-se de câmeras portáteis que eram novidades e que lhes permitiram atuar mais livremente como flâneurs. De uma maneira geral, a fotografia de rua é definida por ter sua linguagem baseada no flagrante, no inusitado capturando o que está à mostra nas ruas, becos e praças por onde passaram. Uma vida completamente nova, diferente e exótica fluía à sua frente; pulsante, colorida e estranha que precisava ser documentada, registrada. Vagando em bandos, eles iam capturando a vida citadina que se oferecia fresca, abundante e gratuita.

Com a fotografia de rua, capturavam emoções cruas e sinceras. A fotografia de rua aborda algumas situações inesperadas, inusitadas da vida real e momentos significativos vividos naquele tempo da missão. O cheiro dos mercados, as sobras das ruas estreitas, escuras e apinhadas de gente, vendedores, fregueses, praças e automóveis.

De algum modo, podemos afirmar que os boinas azuis também fizeram as vezes de “fotógrafos de guerra”, inclusive correndo os mesmos riscos que esses profissionais enfrentam em suas atividades. Essas imagens fazem parte do gênero chamado fotografia documental. Esses fotojornalistas de ocasião também capturaram muitas imagens do conflito árabe-israelense. Eles estavam estacionados em uma área conflagrada e devastada pela guerra. Assim como fotógrafos de guerra que na cobertura desses tipos de eventos geralmente colocam sua vida em perigo, os soldados da ONU também corriam certo risco de vida. Um indício dessa afirmação é que o protocolo das ações da UNEF informava que eles deveriam seguir sempre pelas estradas locais, enfim, por caminhos já batidos, conhecidos e livres de minas. Deveriam, sobretudo, evitar caminhar aleatoriamente pelas dunas.

As tais fotografias de guerra tiradas pelos militares do Batalhão Suez documentam e registram os atores e algumas consequências da guerra, ocorrida antes da sua chegada na região. Carros e prédios destruídos aparecem em vários álbuns. Também não era incomum que tirassem fotografias instantâneas nos momentos em que soldados especialistas desarmavam e retiravam minas terrestres deixadas pelos israelenses, quando se retiraram da região da Faixa de Gaza em 1956. Posar com minas desativadas também faz parte de vários acervos. Esse gênero se multiplicou quando irrompeu a Guerra dos Seis Dias (1967) que pôs fim à existência da UNEF naquela região.

Muitas outras se enquadram no gênero “fotografia de arquitetura” ao incluírem interiores e exteriores de edifícios. É claro, fotografar edifícios é desafiador para qualquer fotógrafo, seja profissional ou amador, pois uma iluminação inadequada leva à distorção da imagem. Enquanto capturavam as fachadas dos edifícios, usavam apenas luz natural e mesmo assim conseguiram mostrar o aspecto glamoroso das antigas cidades e de velhos edifícios de tempos imemoriais. Essas imagens mostram desde as tendas e casebres empoeirados do deserto até prédios de apartamentos e condomínios, elementos de engenharia que ainda sequer existiam em Teresina naquela época. Há também inúmeras fotografias de igrejas, mesquitas e seus faustosos interiores.

Capturas do deserto e das paisagens locais são visualmente atraentes e interessantes. São imagens-representações puras, ou seja, captadas e reveladas sem qualquer tipo de retoques e manipulações. Daí conceitualmente serem denominadas de orgânicas. Roland Barthes afirmava que “a fotografia por natureza é inteiramente evidência: a evidência é o que não quer ser decomposto” (BARTHES, 2015).

A prática fotográfica dos soldados-fotógrafos de Suez abrange tanto fotos de exteriores como de interiores de edifícios e de outras estruturas físicas. Como esse tipo de fotografia exige conhecimentos e habilidades artísticas e técnicas, o esforço deles muitas vezes foi recompensado quando vemos, por exemplo, algumas imagens com composição técnica e estética relativamente bem adequadas, levando-se em conta que se tratava de fotógrafos amadores e com rudimentares conhecimentos técnicos.

Entretanto, cabe esclarecer, em defesa daqueles fotógrafos honestos na sua prática, que enquanto “fotógrafos de interiores” criaram vistas impressionantes daqueles espaços confinados de igrejas e museus. Os soldados-fotógrafos de Suez captaram o drama e a beleza desses espaços. É claro, esses lugares são espetaculares e caso tivessem orientação técnica adequada sobre como explorar os ângulos e a composição corretos, eles poderiam ter obtidos resultados ainda melhores.

No grande ensaio visual produzido sobre o Oriente realizado pelos boinas azuis, entre as milhares de fotografias tiradas ao ar livre, há três que mostram um fenômeno das condições climáticas da região, geralmente severas e extremas, como uma tempestade de granizo; em outra, o então terceiro sargento, Irapuã Soares, posa tendo o fundo emoldurado por um arco-íris. Esses episódios demonstram como os soldados-fotógrafos foram relativamente felizes em capturar a beleza e o inusitado daqueles momentos.

De acordo com as entrevistas realizadas, para os veteranos de Suez, o uso das imagens fotográficas serviria basicamente como fonte de informação e comprovação sobre a participação deles naquela missão. Assim, o grande acervo de Suez possibilitou a montagem de uma verdadeira “cultura visual” sobre a Missão e nesse meio, a fotografia serviu a um tempo como elemento de memória e como prova dos acontecimentos narrados pelos soldados da paz. Outra evidência que baliza essa afirmação das motivações fotográficas é que aquela região era um grande e memorável espaço com temas inusitados e variados para os soldados-fotógrafos fazerem suas imagens.

Nesse aspecto, eles encontraram elementos para a produção de todo um material visual para contar histórias sobre aquela região e poder mostrar quando possível, especialmente para quando retornassem ao país, uma vez que seus amigos e parentes certamente não conheciam aquela realidade. Com as imagens, traziam notícias de um antigo mundo novo, até porque a fotografia tem essa capacidade de autenticar “a existência de um tal ser” (BARTHES, 2015).

Fotografia como objeto de memória

O interstício da missão era de pouco mais de um ano e os boinas azuis conviviam com os povos do deserto – os beduínos e fedayins. Um povo marcado por graves problemas políticos, econômicos e sociais. Os beduínos eram descritos como “pobres-coitados” e como um povo sofrido. Quando fotografaram as tendas miseráveis e os beduínos, mesmo sem o querer, os soldados-fotógrafos terminavam produzindo fotografia como “denúncia social” diante das difíceis condições de vida daqueles moradores do deserto. Beduínas, prostitutas, mães de famílias, as mulheres locais foram tema recorrente nas imagens retratadas pelos brasileiros. Enfim, naquele ambiente hostil, homens, mulheres e crianças que traziam no rosto e no corpo as marcas da luta pela sobrevivência econômica, social e – também – política.

Muitas imagens capturadas por eles mostram alguma qualidade estética. As máquinas leves e pequenas permitiam aos militares realizar, inclusive imagens escondidas, aquelas que não eram permitidas pela UNEF ou consentidas pela cultura local, por exemplo, as fotografias de beduínas.

Vale dizer que a expressão “fotografia correta”, é bastante controversa e relativa, pois acreditamos que se a fotografia representa aquilo que o autor quis ou idealizou antes do click, então, nesse aspecto, ela está apropriada. Para isso então basta ao fotógrafo possuir algum rudimento de técnica suficiente para colocar sua vontade, criatividade e estilo na imagem. Enfim, ele conseguir realizar com a máquina o que imaginou de antemão.

A ideia aqui é de que uma “boa fotografia” não se identifica apenas ao conceito de uma “bela fotografia” ou que contivesse necessariamente algum elevado padrão estético. É claro, uma boa fotografia exige alguma regra de composição e deve, tecnicamente, ter uma boa exposição e nitidez. Vale dizer que uma composição adequada deixa a foto mais interessante. Esses elementos certamente garantem que o tema principal fique bem definido e bem focado. Enfim, uma boa foto não necessariamente uma esplêndida e “perfeita” foto. No aspecto da qualidade das fotografias produzidas naquele momento, é um terreno que é parte técnica e parte subjetividade.

Como não havia laboratório para revelação das fotografias nos acampamentos militares, o processo de revelação era feito nas cidades vizinhas de Rafah e Gaza. As máquinas utilizavam o filme fotográfico que era uma película coberta com partículas de prata. Depois que os filmes eram enviados para aquelas cidades para serem revelados, os soldados da paz ainda aguardavam algum tempo para saber o resultado.

Entretanto, é possível afirmar que há alguma qualidade estética e técnica no aspecto do registro fotográfico, quando observamos se ela está focada, corretamente exposta e se não está tremida etc. Os boinas azuis têm a seu favor a condição de que não eram fotógrafos, não conheciam as técnicas e não pensaram necessariamente na qualidade. Enfim, não queriam agradar a opiniões abalizadas, queriam apenas registrar para comprovar. Independentemente disso, vivendo no meio de dois povos irmãos e inimigos, durante uma missão de paz internacional, os boinas azuis nos legaram um acervo imenso, incomensurável e memorável de imagens e sentimentos sobre o Oriente, mas também sobre si. Na figura 4, os militares posam para uma foto durante uma folga em Rafah City, na Palestina.

Soldados brasileiros em visita à cidade de Rafah em 1957.
Figura 4
Soldados brasileiros em visita à cidade de Rafah em 1957.
Acervo pessoal do soldado Cipriano.

No intuito de produzir imagens sobre a Missão e sobre si, eles não aguardavam o momento ideal para conseguir uma foto perfeita, nas condições que se poderiam colocar como ideais. Assim, instantânea e institivamente se punham a clicar e capturar imagens. A despeito dessas deficiências nos vários acervos aos quais tive acesso, pude encontrar muitas imagens que apresentam boa qualidade técnica (foco, exposição etc.), bem como alguma qualidade estética (composição).

As facilidades tecnológicas decerto ajudaram na construção de uma expressiva e emocionante narrativa visual do Batalhão Suez por meio de imagens. O impulso ou a compulsão pela prática fotográfica são evidências de que podemos alcançar nesse aspecto algo que, por certo, não fazia parte de suas intenções ou motivações. Ou seja, com seus acervos podemos explorar certa categoria chamada de “fotografia narrativa” ou fotografia conceitual. Todas as viagens realizadas por eles foram amplamente fotografadas e as séries fotográficas tinham início desde a saída das Unidades da UNEF, revelando-nos a estrada, os personagens que ali apareciam, as montanhas, o deserto até a chegada às cidades. Como voyeurs, exploraram as muitas possibilidades de capturar o burburinho das ruas, praças e mercados. É claro, sendo também personagem dessas narrativas fotográficas. Ali, fotografavam e se deixavam fotografar.

Embora tenha se tornado uma prática cotidiana na missão e muito utilizada entre os soldados, nenhum dos mais de vinte militares piauienses entrevistados, tornou-se profissional depois do retorno. Inclusive, de acordo com as entrevistas realizadas, a prática fotográfica diminuiu sensivelmente.

Possuir uma máquina fotográfica no Piauí no final da década de 1950, e mesmo durante as décadas seguintes, representava algum grau de distinção social. E sua prática era restrita a poucos fotógrafos profissionais residentes na capital e a algumas poucas famílias de elite, nas maiores cidades do estado10. Entretanto, durante a Missão, entre os militares do Batalhão Suez, possuir uma máquina não significava distinção, em face de que, praticamente todos eles possuíam ao menos uma.

Soldados posam em momento de folga dentro da Companhia em 1958.
Figura 5
Soldados posam em momento de folga dentro da Companhia em 1958.
Acervo pessoal do Soldado Manuel.

As máquinas fotográficas eram companheiras inseparáveis; fosse nas viagens, durante os momentos de folga e, muitas vezes, eram levadas a tiracolo para a realização das patrulhas na fronteira árabe-israelense. Como vemos na figura 5, acima, qualquer momento se transformava em motivo para uma pose, como esta cena prosaica no intervalo do trabalho diário do batalhão. Matéria-prima para agenciar e guardar na memória

Para os veteranos, afastados há mais de 50 anos daquela missão, as imagens que trouxeram na bagagem têm um caráter de objetividade e realismo. Eles queriam apenas um suporte material para a comprovação de que realmente estiveram lá. Acreditavam que apenas com palavras não conseguiriam se fazer acreditados. Era, então, necessária uma comprovação material e visual. É com esse caráter de comprovação que os veteranos agenciavam “a homologação do eu” naquela missão. Daí, muitos trazerem também grande quantidade de lembranças e souvenirs da Terra Santa, dentre os quais destacam-se tapetes, moedas, vitrolas e rádios portáteis, imagens estatuárias, tecidos, projetores de slides e as famosas máquinas fotográficas. Houve mesmo quem trouxesse água do Mar Morto dentro de garrafas de refrigerante.

Após três meses na Missão de guarnecer a fronteira árabe-israelense (a ADL), a ONU, através de sua Unidade Administrativa de Leave11, oferecia uma semana de folga para os militares fora dos quartéis. Todos os exércitos a serviço da UNEF poderiam viajar para fora da Faixa de Gaza. Eram as leaves – palavra inglesa que os soldados brasileiros aportuguesavam a pronúncia e as chamavam de “livres”. Em função disso, surgiram as expressões “turismo religioso” e “turismo profano”. O primeiro referia-se entre os militares, a visita às cidades sagradas como Jerusalém; o segundo referia-se à visita à cidade do Cairo, Trípoli ou até Alexandria, onde poderiam visitar cassinos e bordéis.

Fotografia pictorialista. Jardim do Getsemani em 1966.
Figura 6
Fotografia pictorialista. Jardim do Getsemani em 1966.
Acervo pessoal do Sargento Coimbra.

Há muitas imagens de Jerusalém, conforme visto na figura 6 acima. Em sua maioria, mostram igrejas, mesquitas e imagens sagradas para as duas religiões. No interior das igrejas, o foco eram as imagens de santos, inscrições bíblicas, estátuas e pinturas nas paredes. Mas também há fotografias em que os soldados aparecem rezando. Esse conjunto de fotografias tem um forte caráter simbólico que exprime religiosidade e a exaltação da fé cristã que levaram na bagagem.

Por que fotografar?

A fotografia é um recorte do real (MONTEIRO, 2006). Primeiramente, um corte no fluxo do tempo real. Assim, fotografar é congelar um instante no tempo; o fotógrafo paralisa a sucessão dos acontecimentos. Em segundo lugar, ele é um fragmento escolhido pelo fotógrafo pela seleção do tema, dos sujeitos, do entorno, do enquadramento, do sentido, da luminosidade, da forma, etc.

O fato dos soldados-fotógrafos de Suez mostrarem as fotografias tiradas durante a missão para amigos e parentes refere-se ao que Kossoy (KOSSOY, 2002) chama de uma “segunda” realidade da fotografia. Ou seja, a circulação e os usos da imagem capturada. É claro que sobre isso, eles não possuem nenhum controle. O veterano Macedo não imaginaria que suas fotografias fossem mostradas para os alunos de sua esposa em uma escola pública de Teresina. O sargento Coimbra exibia constantemente seus slides para seus vizinhos. Havia sempre grande plateia ávida para assistir as exibições, acompanhadas de explicações sobre os lugares e sobre os personagens retratados e exibidos em um lençol branco preso a uma parede. Enfim, no momento de captura da imagem, nenhum daqueles fotógrafos poderia imaginar a circulação e o uso das imagens, nem os contextos e lugares onde eles ocorreriam. Se há algum controle do fotógrafo no momento em que a fotografia foi produzida, o mesmo não se pode dizer de seus usos e significados depois que ela passa a constar em um dado acervo iconográfico. Da mesma forma, aqueles fotógrafos não imaginariam, por exemplo, que suas imagens seriam utilizadas nos livros de história ou que ganhariam as páginas dos jornais, mais de cinquenta anos após o retorno daquela missão.

Quando temos nas mãos as fotografias estampadas nos cartões-postais que tiraram nos estúdios fotográficos do Líbano e do Cairo, podemos afirmar que os usos da fotografia têm aí outra função, pois elas agenciam uma forma de construção da imagem daqueles sujeitos. Tanto os diapositivos como as fotografias encontradas já se encaminhavam inexoravelmente para ao amarelecimento. Quantas delas empalideceram ou apagaram-se face ao esquecimento no interior das gavetas, dos armários ou escondidas em caixas de sapato.

No entendimento dos veteranos, a fotografia era agenciada para circular e “servir como um documento,” de comprovação do estar lá. Procuramos inserir as fotografias de Suez num contexto do que Menezes chamou de campo do visual: história visual, cultura visual (MENESES, 2003). A fotografia servia como a materialização e para a comprovação da viagem através das imagens. A inclusão de imagens nos poucos jornais da cidade e a quase inexistência de viagens para o exterior propiciava que o conhecimento de outros países se desse através de revistas ilustradas e dos cartões postais adquiridos nessas viagens. Isso era basicamente o único contato dos cidadãos comuns com imagens fotográficas naquele período.

Quem acreditaria neles quando falassem que estiveram em Jerusalém, na Igreja do Santo Sepulcro? Que estiveram na Cidade do Cairo e visitaram as Pirâmides, ou conheceram nas Colunas de Baalbek ou visitaram Roma, Paris e outras cidades? Vista dessa forma, a imagem ganhava uma espécie de “poder de substituir o acontecimento”, o estar lá. A fotografia autentificava, comunicava e comprovava a narrativa daquela “aventura” nas areias distantes do Sinai e nas visitas às Pirâmides e a Jerusalém.

No limite, essa “segunda realidade” das imagens de Suez possibilitou a iniciativa de uma nova maneira de sociabilidade antes desconhecida por aqueles militares. A imensa maioria procedia de camadas sociais de baixo poder aquisitivo e não teriam condições econômicas de produzir imagens e fazer a circulação e a distribuição delas através de carte de visite, por exemplo. Na Missão isso foi possível e muito utilizado por eles. Encontramos muitas fotografias contendo informações escritas adicionais sobre datas, locais, destinatários e dedicatórias. Ali, pudemos alcançar subsídios visuais preenchendo a curiosidade que a inexistência das legendas nos coloca. Essas informações, muitas vezes, são puros rabiscos, mas ajudaram no momento de fazermos algum tipo de indexação das imagens tiradas por eles.

O Piauí e sua pequena capital ainda não haviam experimentado os ditames da estética e do cosmopolitismo modernos fosse na estrutura urbana da cidade, fosse no experimento de alguns costumes e práticas sociais já consolidados em outras partes do país. Enfim, cabe informar que antes da Missão Suez, a atividade fotográfica não fazia parte do cotidiano de nenhum dos militares piauienses. Enfim, não era uma prática social corrente entre as camadas mais populares, de onde saiu a maioria dos participantes. Para muitos, a fotografia se restringia aos poucos estúdios e com a finalidade de obter o retrato documental. Somente as camadas de elite poderiam usufruir da prática fotográfica. Mesmo assim, esse usufruto era encarregado pelos fotógrafos profissionais existentes na capital. Além dos casamentos, batizados e cerimônia de primeira comunhão, os fotógrafos também eram chamados para fazerem a última foto de alguém. Não é incomum encontrarmos nos velhos álbuns de fotografia, várias imagens de pessoas mortas, crianças ou adultas.

É claro, para os soldados da paz havia um contexto que ajudou sobremaneira nesse aspecto. A tecnologia já permitia a redução no tamanho das câmeras pequenas, leves e portáteis e os filmes de rolo, além dos preços vantajosos para eles, o que permitiu a expansão da prática fotográfica entre os militares dos diversos países ali estacionados. O salário dos boinas azuis era pago em dólares e as máquinas eram precificadas em libra egípcia. Como a moeda local era muito desvalorizada em relação à moeda americana, isso puxava os preços das mercadorias para baixo. Por isso mesmo eles adquiriam uma e às vezes duas câmeras e os projetores de slides.

A partir da sua funcionalidade como registo do real, a mais antiga função social da imagem fotográfica é a eternização de momentos e a fotografia de Suez agrega tanto imagens do cotidiano e afazeres, como de reuniões sociais e momentos solenes da Missão. Vemos que para os militares, existe a fulgente intenção de que os registros fotográficos que fizeram durante a missão funcionassem especialmente como um reforço da memória. Enfim, as fotografias que tiravam lá, serviriam como um arquivo físico daquilo que poderiam esquecer e como comprovação do que falariam aos parentes e amigos ao retornarem ao país. Para definir isso mais precisamente, os franceses Pierre Bourdieu (1965) e Barthes (1980) chamavam estes aspectos, respectivamente de “verdade da lembrança” e de “ratificação do passado”. Desse modo, a fotografia serviria para reforçar tanto a fala dos veteranos como também ativar a memória individual de cada um. Para lembrar visualmente a Missão, eles fariam o regresso aos álbuns. Ali estavam guardados os momentos vividos na missão. Nesse aspecto, a fotografia seria e/ou serviria como o motor que permitia o retorno ao passado.

Mesmo com a evolução dos processos químicos e físicos e a crescente popularização da fotografia, no Piauí das décadas de 1950 e 1960, a prática fotográfica ainda era econômica e socialmente, bastante restrita e restritiva. Poucas pessoas possuíam máquinas fotográficas, além dos custos de revelação que eram pouco animadores. A quase totalidade dos retratos em família e mesmo das imagens da cidade eram produzidos com a presença de um profissional. É claro, no interior das camadas da elite havia álbuns de família e, geralmente, o chefe de família era o seu retratista e quem produzia as suas próprias fotografias. Entretanto, na pequena Teresina dos anos 1960, a “a galeria de retratos” ainda não se tinha democratizado. O equipamento fotográfico como as câmeras, o flash, o projetor de slides não estavam presente em nenhuma das infâncias dos entrevistados piauienses.

A Missão Suez é um passado que já se foi, mas que continua imortalizado graças aos milhares de registos visuais. Eles são a relação entre a fotografia, a lembrança e as memórias de cada indivíduo. Independentemente do seu estatuto socioeconômico, contingente, todos os entrevistados possuem registos fotográficos arquivados daquela que foi a maior aventura de suas vidas. Nos modos como as fotografias servem de objetos de registo, memória e recordação, os soldados da paz não perdiam a oportunidade para documentar com imagens, as ocasiões e momentos especiais como festas oficiais, desfiles, férias. Alguns entrevistados afirmam que naqueles momentos de encontros eles tiravam muitas fotografias e graças a estes registos esses momentos são hoje recordados.

Fotografia do cotidiano. Formação militar matinal em 1966.
Figura 7
Fotografia do cotidiano. Formação militar matinal em 1966.
Acervo pessoal do Sargento Coimbra.

Aqueles fotógrafos tiravam fotos nos momentos mais importantes, mas também nos momentos prosaicos retratando o cotidiano da Missão. Conforme visto na figura 7 acima, a formatura matinal da companhia militar era uma ocasião a um tempo recheada de banalidades, mas eivada de significados que mereciam ser guardados no filme fotográfico. De alguma maneira, essa prática humanizava a Missão. Nos encontros sociais e formaturas eles sempre utilizavam a máquina fotográfica. Durante os seus percursos nas patrulhas, nas vigílias ou nos momentos de solidão dentro dos acampamentos ou na ADL.

Algumas conclusões

A fotografia possui elementos que, no limite, contam histórias. Mesmo que esse não fosse o interesse ou a intenção precípua ao tirar fotografias, este trabalho entende que o conjunto de imagens trazidas na bagagem dos soldados do Batalhão Suez nos transmite uma linguagem fotográfica sobre a participação do Brasil naquele evento internacional. Valendo-se do contexto e da narração, os soldados da paz construíram e desenvolveram o seu discurso para captar a atenção do público e permitir-lhe relacionar-se de alguma maneira com a história. As fotografias são as chaves para conseguir uma comunicação visual eficaz: sem focar em um tema específico, sem seguir estilo determinado, nem dominar técnicas ou utilizar adequadamente os recursos específicos. A História Visual de Suez está escrita com luz e sentimentos. Por seu turno, a metáfora visual e as legendas aparecem desbotadas pelo decurso de tempo que amargaram esquecidas nos velhos e ensebados álbuns ou nas caixas de sapato, escondidas nos velhos armários. Elas estão ali gritando silenciosamente nos versos das fotos.

As milhares de fotografias são uma valiosa contribuição para a edificação de uma história da fotografia do Batalhão Suez e, ao mesmo tempo, permitem “expandir as possibilidades de escrever uma história visual do Batalhão Suez” que ainda está à espera dos historiadores. A própria história do batalhão Suez ainda é um campo pouco conhecido e pouco investigado seja pela historiografia, seja pelos estudos de Relações Internacionais.

Neste trabalho também constatamos que a imagem favoreceu novas formas de sociabilidade, de laços familiares e sociais de pessoas que antes da Missão tinham pouca relação com a cultura visual. Se existe uma relação entre a imagem fotográfica, as recordações e lembranças das pessoas, pode-se afirmar que a memória é um referencial da condição humana e esses homens se preocuparam em deixar marcas da sua existência que um dia lhe deram sentido. Assim, ao promover uma ligação entre um passado que foi registado e que se reflete na imagem fotográfica, produziram um efeito de referência daqueles momentos. A fotografia é um suporte perfeito, pois de um lado, carrega consigo o real retratado por ela e, por outro, fornece a credibilidade e reafirmação de que aquele momento existiu e de que, de fato, estiveram lá.

Graças às transformações impostas pelos avanços tecnológicos, a imagem fotográfica passa a assumiu um importante papel na comunicação interpessoal. Para os soldados-fotógrafos de Suez, a imagem fotográfica serviria a um tempo como suporte comprobatório e como uma forma de prolongamento da memória. Mais do que um objeto para recordação, a fotografia tinha para eles um “caráter de prova cabal, uma estratégia de comunicação” e apoio às narrativas do pós-missão, ou seja, quando retornassem ao Brasil. É claro, a fotografia também agenciava a fruição estética, mas essa outra função de circulação da fotografia não faz parte da motivação da captura, segundo informaram.

Temas mais recorrentes nos álbuns dos veteranos são o cotidiano nas diversas unidades operacionais do Batalhão, as formaturas, as patrulhas e as atividades esportivas e de congraçamento social entre os diversos batalhões dos países que compunham a UNEF realizava com alguma frequência.

Como eram fotógrafos amadores, não é possível analisar as fotografias com um olhar técnico e apurado exigindo deles uma captura eivada de perfeita simetria, a proporção correta e nitidez. Mas é possível aventarmos inclusive uma “história social” da fotografia orgânica do Batalhão Suez ao nos debruçarmos sobre as práticas fotográficas, as possibilidades de usos sociais das fotografias tiradas lá e as finalidades tanto de sua produção quanto de sua circulação.

Mas os soldados-fotógrafos também lançavam seus olhares sobre o rural, isto é, eles fotografavam o entorno das companhias militares. Aí os personagens centrais eram os habitantes locais, as plantações e a extensa massa de areia que se deslocava com o vento, sob o azul do céu e o brilho do sol intenso sobre a vastidão árida do Sinai. Embora durante o interstício da missão tenha havido uma “prática fotográfica devotada e extremada”, não tive informação de que qualquer um deles tenha se inserido na atividade ao retornarem ao Brasil. Do mesmo modo, antes de participarem daquela operação de paz da ONU, os álbuns fotográficos eram praticamente inexistentes para a imensa maioria dos participantes. Do mesmo modo, não há registros sobre a atividade fotográfica deles.

A fotografia orgânica de Suez se estabelece como um porto seguro para a memória afetiva e coletiva da primeira missão de paz da ONU: um testemunho seguro, mas fugaz fadado a desparecer, esvanecer com o tempo e as lascas do verniz e da revelação nos pequenos estúdios do Líbano e de Rafah City.

Esses objetos materiais que nos chegam daquele distante espaço do Oriente Médio nos facilitam percorrer o teatro da memória produzida pelas lentes e câmeras azeitadas na prática voraz e no interstício de uma missão de paz. As imagens ali produzidas forjaram uma cultura visual escrita com luz e sentimentos e, ao passarmos os olhos por esse magnífico acervo, vemos que as fotografias funcionam como paradigmas visuais e nos legam fragmentos perdidos da ordem daquele mundo a um tempo exótico e desconhecido que se despedaçava num conflito sangrento entre irmãos. Elas também nos revelam o pequeno e insólito espaço do exercício de poder da ONU durante os dez anos de duração da UNEF.

Referências

ARRAES, Ricardo. Batalhão Suez: história, memória e representações dos soldados brasileiros (1957-1967). Rio de Janeiro: Editora Multifoco-EdUFPI, 2013.

BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre fotografia. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 2015.

KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. 3. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, história visual: balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n.45, p. 11-36, 2003.

MONTEIRO, Charles. História, fotografia e cidade: reflexões teórico metodológicas sobre o campo de pesquisa. MÉTIS: história & cultura, [s.l.], v. 5, n. 9, p. 11-23, jan./jun. 2006.

MASSIA, Rodrigo de S. Fotógrafos, espaços de produção e usos sociais da fotografia em Porto Alegre nos anos 1940 e 1950. Dissertação. Mestrado em História) − PUCRS, Porto Alegre, 2008.

PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos: narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais. Tempo, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 59-72, 1996.

Notas

1 O primeiro estudo acadêmico em nível de doutorado sobre o Batalhão Suez e a UNEF no Brasil é de autoria do historiador Ricardo Arraes, Batalhão Suez: História, memória e representações dos soldados brasileiros (1957-1967). Rio de Janeiro: Ed. Mutlifoco, 2013. Outra obra recente também de autoria de Ricardo Arraes é Os soldados-fotógrafos da paz. Curitiba: Brazil Publishing, 2020.
2 Trabalho seminal que discute sobre essa questão está em Said, Edward. Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
3 Expressão utilizada por Arraes, Os soldados-fotógrafos da paz, para se referir aos militares brasileiros da UNEF que produziram milhares de imagens sobre a Missão Suez entre 1957 e 1967.
4 Entre os acervos de militares piauienses e gaúchos, mas também de outros veteranos de outros estados do Brasil, são mais de dez mil fotografias, slides e centenas de cartões postais.
5 Linha de Demarcação de Armistício (LDA) era uma vala que separava o território da Faixa de Gaza de israel. Era uma vala de 60cm largura por 60cm de profundidade que deveria estar sempre aberta (limpa), pois, as tempestades de areia sempre as entupiam. Era um trabalho cotidiano, pois servia como fronteira estabelecida e reconhecida pela ONU entre aqueles litigantes.
6 Todas as imagens que aparecem neste texto foram tiradas na horizontal. Tecnicamente é que exige menos habilidade e esforço na hora do shot.
7 Não sem razão, na língua oficial da região do Punjab na Índia o termo sikh significa ser um discípulo forte e tenaz. No campo religioso, a doutrina sikh consiste na crença em um Deus único e é mais flexível do que a religião islâmica. A religião sikh também é contrária ao hinduísmo que segmenta a sociedade em castas.
8 Com as câmeras analógicas, os filmes fotográficos já traziam a quantidade de ASAs. Cabia ao fotógrafo a escolha correta na hora da compra do filme mais indicado para o tipo de fotografia que ele queria fazer. Nas câmeras analógicas, ASA era a escala que definia a quantidade de luz que a película admitia (suportava) para a obtenção de uma foto adequada. A função da ASA ou ISO é medir a sensibilidade do sensor de imagem.
9 O diapositivo era o slide e é o mesmo que transparência. Trata-se de uma imagem em cores, criada sobre uma base transparente. Uma vez montado numa moldura, pode-se projetar numa tela. Esse artefato só foi conhecido pelos militares quando chegaram lá, onde adquiriam os projetores de slides que trouxeram na bagagem.
10 Os dois fotógrafos residentes na cidade de Teresina eram Totó Barbosa e Guilherme Muller. O primeiro realizava a fotografia social e o segundo, especialmente, a institucional.
11 Unidade Admintstrativa do Leave da UNEF era o órgão interno da Missão encarregada de preparar e instruir as folgas e as excursões para todos os exércitos que participavam da UNEF. Para tanto, ela publicava um manual com todas as instruções aos militares para um bom andamento das folgas fora dos quartéis.
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