Entrevista
Recepción: 20 Diciembre 2021
Aprobación: 28 Diciembre 2021
DOI: https://doi.org/10.5965/2175180314362022e0401
Resumo: Entrevista com Eduardo Victorio Morettin, concedida à Mauricio Biscaia Veiga.
Palavras-chave: entrevista, história, cinema.
Eduardo Victorio Morettin tem uma trajetória consolidada na pesquisa sobre as aproximações entre História e Cinema no Brasil, ou seja, sobre a análise de filmes como documentos históricos. Graduado em História (1988), com mestrado (1994) e doutorado (2001) em Artes, todos obtidos na Universidade de São Paulo (USP). Seu pós-doutorado foi realizado na Université Paris I. É professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP desde 2002, ministrando disciplinas ligadas às áreas de História e Audiovisual. Entre seus livros publicados, seja como autor ou como organizador, estão Cinema e história: circularidades, arquivos e experiência estética (2017), Humberto Mauro, Cinema, História (2013) e História e Cinema: dimensões históricas do audiovisual (2011), além de ter participado de conselhos editoriais de diversos periódicos e coordenado grupos de pesquisa. É um dos organizadores do Colóquio Internacional de Cinema e História, realizado desde 2016. Atuou, também, no Conselho Deliberativo de diversas instituições culturais e associações científicas, entre elas, o Museu Paulista e a Cinemateca Brasileira.
A entrevista, aqui apresentada, foi realizada de forma remota, por videoconferência, no dia 28 de outubro de 2021, apresentando questões atuais sobre a pesquisa em História e Cinema, tanto sobre abordagens e temáticas que têm se sobressaído nos debates contemporâneos, como também as limitações e desafios com as quais o pesquisador que se debruça sobre o tema geralmente se depara.
Tempo & Argumento: Primeiramente, poderia fazer uma breve apresentação sobre sua trajetória acadêmica, com foco na sua relação com a pesquisa sobre História e Cinema?
Eduardo Victorio Morettin: Minha relação com História e Cinema é longa. Ela se inicia durante minha graduação em História, nos anos 80, momento em que essa discussão começou a ser feita nas universidades brasileiras. Eu entrei na USP em 1983 e, na época, embora houvesse também outros percursos, este debate estava ligado principalmente à Nova História, tendo sido bastante importante nesse sentido a tradução do texto do Marc Ferro, O filme uma contra-análise da sociedade?, que se encontra em um dos volumes de uma coleção organizada pelo Pierre Nora e pelo Jacques Le Goff. Esse livro foi publicado em francês em 1974, e já em 1976 foi traduzido para o português, logo se tornando uma espécie de guia para quem estava começando a pensar essas questões.
Depois disso, fiz meu mestrado na Escola de Comunicação e Artes (ECA), na USP, buscando fazer essas conexões entre Cinema e História com ênfase na dimensão estética. Realizei esse trabalho sob orientação do Ismail Xavier, que, em 1983, tinha publicado Sertão Mar, livro em que analisa as relações entre Cinema e política a partir de quatro obras: Barravento e Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, O Cangaceiro, do Lima Barreto, e O pagador de promessas, do Anselmo Duarte. Nesse livro, Ismail trabalha questões vinculadas ao contexto e aos projetos ideológicos, examinando-os a partir dos filmes, apontando para a questão daquilo que “bate” na tela, ou seja, a dimensão estética/discursiva do próprio Cinema, naquilo que os filmes carregam como ambiguidade, como tensionamento. Então, meu mestrado e doutorado foram orientados por ele dentro dessa perspectiva, analisando os filmes realizados pelo Humberto Mauro durante o Estado Novo.
Posteriormente, com o meu ingresso como professor na USP, em 2002, no Departamento de Cinema, Rádio e TV, da ECA, eu dei continuidade a essas pesquisas e, em 2013, publiquei pela Editora Alameda o livro Humberto Mauro, Cinema, História, reunindo minhas pesquisas do mestrado e doutorado. Antes deste, publiquei juntamente com Maria Helena Capelato, Marcos Napolitano e Elias Thomé Saliba, a coletânea História e Cinema: dimensões históricas do audiovisual, que foi muito importante para esse campo de pesquisa. A primeira edição foi em 2007 e em 2011 teve uma segunda. Neste livro há um artigo meu, O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro, que já havia sido publicado em 2003 e que se originou a partir de um trabalho que eu fiz na pós-graduação, em uma disciplina dedicada a pensar questões de ordem teórica/metodológica sobre o fazer histórico. No texto eu questiono a proposta metodológica trazida pelo Marc Ferro, avaliando se de fato há uma prática historiográfica diferente, apontando também para os limites e armadilhas implicadas nesse tipo de análise. Dentre os limites, por exemplo, percebi que nos exemplos concretos dados, valorizava-se de forma preponderante o texto escrito, não os filmes.
Tempo & Argumento: Que projetos e temáticas têm norteado suas pesquisas recentemente?
Eduardo Victorio Morettin: A partir de 2006/2007, comecei a me dedicar a pesquisar a presença do Cinema nas exposições internacionais, na primeira metade do século XX. Esse tema surgiu de um projeto coordenado pelo Ismail Xavier junto à Cinemateca Brasileira, que se dedicava a um exame de filmes produzidos no Brasil no período silencioso. Isso foi em um momento em que a Cinemateca vivia uma realidade bem diferente da de agora, de consolidação de suas atividades e de maior projeção nacional e internacional. Junto a esse projeto, havia também um grupo que se reunia uma vez por mês, sob a coordenação do Carlos Roberto de Souza, Luciana Araújo e Arthur Autran, para ver e discutir esses filmes. Durante aqueles anos, vimos todo o acervo, ou pelo menos tudo o que sobreviveu daquele período, e ali eu me deparei com alguns documentários, bem poucos na verdade, que registraram essas exposições no Brasil. Em 1922 e 1923, ocorreu, como se sabe, no Rio de Janeiro, uma Exposição Internacional em comemoração ao centenário da independência, tendo sido exibido o filme No país das amazonas, de Silvino Santos, feito para a exposição. E embora já tivesse sido observada sua relação com a exposição, as conexões ideológicas entre a obra e o evento não estavam ainda bem estabelecidas. Vi então nesse tema uma possibilidade de aprofundá-lo, dando uma contribuição dentro dessa linha de refletir sobre a relação entre os projetos ideológicos e os filmes. Na medida em que foram realizados sob demanda dos organizadores do evento, a intenção foi a de perceber o quanto eles atendiam ou não a essas demandas.
Entre 2011 e 2012, consegui uma bolsa de estágio e pesquisa no exterior, pela FAPESP, e fui a Paris para realizar meu pós-doutorado, sob supervisão da Sylvie Lindeperg, que considero ser a grande historiadora dedicada ao tema Cinema e História atualmente. Permaneci seis meses na França, procurando ampliar a discussão sobre o contexto das exposições brasileiras, relacionando a outros contextos. Lá, pesquisei então a presença do cinema nas três exposições que ocorreram na França: a de 1925 e a de 1937, ambas realizadas em Paris, e a Exposição Colonial ocorrida em Vincennes, em 1931. Depois do meu retorno ao Brasil, continuei a me dedicar fundamentalmente a esse tema, até porque a quantidade de documentos que eu levantei lá foi bastante significativa e expressiva. Então, estou nesse trabalho de reunir e analisar esse material, tendo em vista algumas possibilidades. Uma delas é trabalhar mais especificamente sobre a exposição brasileira de 1922-1923, e outra seria fazer um panorama mais geral, pensando nessa relação de modo mais amplo, a partir de diferentes exposições, analisando também, por exemplo, a presença desses filmes na Exposição de Nova York, em 1939-1940, ou ainda na Exposição do Mundo Português, realizada em Lisboa, em 1940. Tenho textos publicados com essas análises em algumas revistas, mas não desenvolvi ainda a pesquisa como eu gostaria de fazer, tendo ainda que estruturá-la melhor.
Recentemente, publiquei também um texto na revista italiana Cinergie sobre a exposição em comemoração ao centenário da conquista francesa da Argélia. Para esse evento, que ocorreu em 1930, na França e na Argélia, Jean Renoir recebeu uma encomenda para um filme, Le Bled, obra que é terrível do ponto de vista ideológico, pois expressa a visão colonial da França. Por conta disso, é hoje um filme completamente esquecido e nada discutido pelos que se debruçam sobre a obra do diretor. Trata-se de mais um exemplo dessa análise entre as conexões ideológicas e estéticas entre o Cinema e as exposições. Até a Segunda Guerra Mundial, o Cinema ocupa um lugar-chave nessas exposições, fazendo parte de um projeto que procurava atestar a pujança econômica e cultural de um país. E naquele período cumpria muito essa função. Depois da guerra, as exposições perdem sua força. E também o Cinema começa a mudar sua configuração.
Além dessas pesquisas sobre a presença do Cinema nas exposições, outro tema ao qual tenho me dedicado em paralelo são as discussões sobre Cinema, História e política durante os anos da ditadura civil-militar no Brasil. Também tenho um conjunto de produções e publicações ligadas a esse tema.
Tempo & Argumento: Como podemos compreender estas questões ideológicas presentes nas suas análises sobre o Cinema brasileiro? Como elas se manifestavam ou se manifestam nos filmes?
Eduardo Victorio Morettin: No período que corresponde aos anos 1900 a 1930, ideologicamente, o Cinema estava, de modo geral, bastante comprometido com o status quo, como fica bem evidente, por exemplo, no caso das exposições internacionais. Também era o caso dos filmes produzidos pelo Humberto Mauro pelo Instituto Nacional de Cinema Educativo durante os anos 1930, que foi meu objeto de pesquisa que resultou no livro. São filmes bastante empenhados em uma certa leitura conservadora da história, como O descobrimento do Brasil, de 1937, que expressa uma visão de um passado harmonioso e de colaboração entre índios e brancos.
Então, nesse período, eram poucos os filmes produzidos ou exibidos no Brasil que não se vinculavam a essas visões conservadoras ou hegemônicas. Fiz um levantamento dos filmes no país durante esses anos e se vê que a maioria é de caráter muito institucional. Nos anos 1920, até houve produções que, de uma certa forma, desafiaram o padrão hegemônico construído já naquela época pelos Estados Unidos. Pode-se trazer como exemplo O gabinete do Dr. Caligari, do Robert Wiene, que é de 1920, tendo sido exibido no Brasil em 1922. Mas até onde se sabe, pelos documentos levantados, ele não teve grande impacto no cenário cinematográfico brasileiro. Mário de Andrade, por exemplo, faz uma crítica em que menciona o filme, fazendo uma leitura sobre a ideia de modernidade ali presente. Mas, para além disso, no Brasil não causou nenhum impacto nas discussões sobre cinema na época ou sobre os filmes aqui realizados.
Já no cenário europeu, naquele mesmo período, havia um contexto bem diferente. A exposição de Paris de 1925, por exemplo, contou pela primeira vez com a participação da União Soviética, que levou para lá uma delegação de artistas capitaneada pelo Aleksandr Rodchenko, que tinha o intuito de mostrar ao mundo essa nova arte, esse novo homem ligado àquele contexto revolucionário. E nessa exposição foram exibidos A Greve, de Eisenstein, e Cine-Olho, de Vertov. Contudo, apesar do impacto desses filmes, os grandes destaques dessa exposição foram o teatro e as artes visuais. E depois, na exposição de 1937, em um mundo que está prestes a entrar em guerra, o conflito já está deflagrado simbolicamente naquele espaço e isso se reflete também no campo cinematográfico. Só para dar um exemplo, Luis Buñuel teve um papel decisivo na montagem do pavilhão espanhol, visto que ele era o adido cultural do governo republicano espanhol em Paris, um governo que estava naquele momento enfrentando as forças de Franco na Guerra Civil. O pavilhão espanhol traz, então, um grande engajamento com a arte moderna, numa perspectiva de transformação. Um dado muito importante nesse sentido é que Guernica, do Picasso, foi produzido para integrar essa exposição. Foi pensado para aquele evento, tendo sido o primeiro lugar onde foi exibido, justamente porque tinha acabado de ocorrer o bombardeio na cidade de Guernica. Nada de similar é observado no Brasil daquele período.
Tempo & Argumento: Um tema que tem estado bastante presente em diversos ambientes acadêmicos são os debates sobre decolonialidade, ou ainda as narrativas a partir da perspectiva de sujeitos e grupos historicamente oprimidos. Como tem visto essas questões sendo abordadas nas pesquisas recentes sobre História e Cinema? Que outras tendências tem percebido?
Eduardo Victorio Morettin: As questões sobre decolonialidade nas pesquisas sobre Cinema têm hoje um peso bastante expressivo e significativo. É um campo que recupera certos aspectos da história do cinema brasileiro, pois muitas das questões discutidas hoje já se encontravam, de algum modo, presentes no cinema brasileiro dos anos 1960. E até antes disso, nos anos 1950, se pensarmos nos filmes de Nelson Pereira dos Santos, como Rio, 40 graus e Rio Zona Norte. E esse debate veio de forma muito mais intensa com o Cinema Novo. Naquele momento, talvez, não estivesse tão presente a discussão sobre gênero, por exemplo, como feita hoje em dia. Havia, por outro lado, uma forte discussão sobre raça ou sobre a representação e a inclusão do homem negro na sociedade, mesmo que fosse dentro da chave de identificar o negro como homem pobre, como o homem que representa o povo. Mas o Cinema Novo tinha uma perspectiva de ser um cinema revolucionário, principalmente do ponto de vista estético, para então pensar o político a partir dessa ruptura estética. E diferentes caminhos iriam se abrir a partir disso.
Vejo que hoje há alguns temas e manifestações, que, de certo modo, têm dominado o debate, como, por exemplo, questões ligadas sobretudo ao debate sobre gênero e raça. Essas questões têm estado cada vez mais presentes, sendo frequentemente trazidas pelos alunos e alunas. E, certamente, são questões importantes. Tenho, por exemplo, uma aluna, Nayla Guerra, que fez um trabalho magnífico, publicado em artigo, sobre diretoras curta-metragistas no período da ditadura civil-militar. Além do extenso levantamento filmográfico, ela se pergunta o porquê desses filmes e diretoras terem sido, de certa forma, apagados da história e dos debates, recuperando o seu impacto à época. E, do ponto de vista da realização, reflete também em que medida essas questões se traduzem numa determinada poética presente nos filmes analisados. Tenho também uma outra orientanda, Mariana Queen Nwabasili, que está olhando para filmes feitos nos anos 70, tanto por homens brancos e negros como por mulheres brancas e negras, a fim de pensar se esses lugares têm alguma implicação naquilo que o filme é ou naquilo que ele diz. Poderia citar também a pesquisa em andamento de Fernanda Pessoa, que está pensando o cinema experimental feito por mulheres na América Latina nos anos 70 e 80. Há também a pesquisa de Catarina Bijotti, já concluída, sobre Amor Maldito, de 1984, que é um filme que traz a questão de gênero, tratando da relação entre duas mulheres, dirigido por Adélia Sampaio, que é tida como a primeira diretora negra a dirigir um filme de longa-metragem no Brasil. Porém, sempre tenho um certo cuidado de trabalhar com meus alunos e alunas salientando a perspectiva de não pensarem o filme como efeito ou como reflexo dessa discussão; de não adotarem uma dimensão de valorização a priori, como, por exemplo, pensar neste filme somente porque se trata do primeiro longa-metragem feito por uma mulher negra, ou porque discute essas questões de gênero, como se apenas isso já resolvesse o problema de pesquisa. Pelo contrário, trata-se de trazer o filme e discuti-lo, problematizá-lo, de examinar questões que estão ali presentes e que, a princípio, não têm resposta. É curioso, por exemplo, que, em Amor Maldito, o único personagem negro de destaque seja homossexual e retratado da forma mais estereotipada possível. E por que isso acontece? E por que uma diretora negra escolheu duas mulheres brancas como protagonistas?
Enfim, existe uma série de questões que os filmes colocam e que precisam ser enfrentadas a partir do seu exame. E acho que hoje não há como escapar dessas questões, as quais têm sido constantemente trazidas pelos estudantes como pautas de pesquisa, em diferentes níveis, como demonstrei. E, pensando na história do cinema brasileiro, há ainda um campo enorme de questões a serem investigadas. Por exemplo, participei recentemente de uma banca em que a pesquisa trazia o filme As aventuras amorosas de um padeiro, de 1975, dirigido pelo Waldir Onofre, uma pornochanchada dirigida por um homem negro, tendo sido examinado a partir dessa questão, não sob a perspectiva de inseri-lo na história da pornochanchada. Trazer essas outras abordagens e olhares sobre os filmes enriquece o nosso campo de estudos, sendo muito bem-vindos.
Entretanto, insisto muito com meus alunos e alunas no sentido de que essas discussões só ganham materialidade na análise dos filmes, pois senão eles seriam meros acessórios de discussão. Certamente é importante pensar as temáticas trazidas pela obra, pensando nessas novas abordagens e perspectivas. Mas também examinar, em que medida, enfim, isso se configura do ponto de vista estético. Essa é uma questão bastante presente. Pois senão, estaríamos, assim, incorrendo de novo na mesma armadilha que tínhamos lá nos anos 70 e 80, em que o novo é denominado a partir dos temas e não dos pressupostos metodológicos, como vemos em alguns textos da coleção do Le Goff e do Nora que citei antes.
Por exemplo, a ideia do pioneirismo em si se justificaria como problema de pesquisa? O site norte-americano Women film pioneers project, dirigido pela Jane Gaines e importantes estudiosas que pensam as relações entre feminismo e produção cinematográfica, trazem uma abordagem sobre pioneirismo que considero, historicamente, problemática. O termo já carrega em si um valor positivo que, a princípio, isenta as trajetórias desses atores e atrizes sociais sobre uma reflexão que marca os tensionamentos marcados por sua inserção dentro de determinado contexto. Então, ao ler muitos desses trabalhos com esta abordagem, vemos uma perspectiva, que, para mim, é bastante perigosa, que é a do catálogo, da lista de nomes e de filmes, como se isso fosse a história, ou como se isso explicasse a história e seus processos.
Arnaldo Contier, meu professor à época da graduação e pós-graduação, dizia lá nos anos 80 e 90 que tinha pena de quem estudava Cinema porque, pensando nos livros publicados até então, a impressão era de uma consulta a catálogos telefônicos, como História do Cinema Mundial, de Georges Sadoul, ou ainda História do Cinema Brasileiro, publicado em 1987 e organizado pelo Fernão Ramos, com filmes e diretores dispostos em ordem cronológica. E isso pode passar a falsa impressão de que a cronologia em si explica o processo histórico. Pensar historicamente o Cinema pressupõe se afastar desta perspectiva, pois, senão caímos em um tipo de exposição que crê nessa dinâmica, nessa lógica da exposição factual, que praticamente se encerra em si.
Esse foi um cuidado que tivemos, por exemplo, no caso da pesquisa de Nayla Guerra: evitar a mera descrição factual dos filmes, a lista de diretoras. Ela, então, selecionou um grupo de filmes, entre eles, Mulheres da boca, de 1982, e Balzaquianas, de 1981, que foram feitos em um contexto de debate do movimento feminista, em um momento de muito engajamento e ativismo político. E são filmes que foram discutidos na época pela imprensa chamada alternativa, examinando-os dentro desse contexto de engajamento e ativismo.
Enfim, essas pautas estão muito presentes na pesquisa histórica de cinema hoje, estando bastante ligadas aos movimentos de afirmação identitária. E obviamente que isso é positivo, pois aponta para silenciamentos, esquecimentos e uma série de outras questões. Porém, é preciso ter um cuidado com o método, com o fazer historiográfico. Pensar a questão estética dos filmes para não ficarmos reféns de uma história à la Sadoul, que continua para mim presente em muitos livros e artigos.
Tempo & Argumento: E como estes debates estão presentes em outros países? Como o Brasil tem dialogado com o contexto internacional nesta área de pesquisa?
Eduardo Victorio Morettin: Essas questões e debates estão também bastante presentes nos Estados Unidos, e talvez por isso têm aqui um reflexo imediato. Toda essa pauta ligada aos movimentos identitários, negros, feministas etc. chegam principalmente pelos Estados Unidos, muito discutidas, também, nos países anglo-saxões. Sobre o contexto atual latino-americano, tenho menos informações. Conheço um pouco dos debates no Uruguai, na Argentina e no México, mas acho que essas discussões se manifestam nesses países de forma menos expressiva do que no Brasil.
E vejo que na França, que é um país sobre o qual tenho mais conhecimento e que acompanho mais de perto os debates, estas não são pautas importantes, e não estão lá tão presentes. Eu fui professor visitante em 2019, no Instituto de Estudos Latino-Americanos, onde dei duas disciplinas, e esses temas não foram trazidos pelos alunos. Certamente que se encontram por lá esses debates, mas não é algo tão marcado e evidente como no Brasil ou nos Estados Unidos. Existem alguns grupos de pesquisa sobre história cultural do cinema que eu acompanho, como o grupo ligado à revista 1895, Revue d'histoire du cinema, ou também o grupo Théâtre de la Mémoire. Uma discussão mais presente diz respeito ao cinema colonial francês, tendo em vista o fato de a França ter sido um país colonizador. Mas dizer que as novas pautas norteiem as pesquisas e os temas das disciplinas dos cursos de pós-graduação por lá me parece um pouco exagerado.
Tempo & Argumento: Sobre as dificuldades que se tinha até poucas décadas atrás com relação à pesquisa em História em Cinema, como vê hoje essas dificuldades? Já teriam sido superadas? Que áreas e temas têm sido pouco explorados?
Eduardo Victorio Morettin: Posso dizer que hoje o campo de pesquisas em História e Cinema já está bem consolidado. Eu coordeno atualmente na USP um grupo de pesquisa em história e audiovisual com Marcos Napolitano, e nele fizemos um levantamento de teses e dissertações produzidas no Brasil que examinam essas conexões entre Cinema e História. Não se trata de trabalhos acadêmicos sobre História do Cinema, abordagem importante, mas diversa. A produção começa a se adensar, de fato, nos anos 90, que foi também o momento em que nós estávamos entregando nossas dissertações de mestrado e teses de doutorado. E, nesse levantamento, pudemos perceber diversas questões e perspectivas sendo abordadas nas pesquisas. Então, constatamos que hoje esse é um campo muito amplo.
Nosso grupo organiza também o Colóquio Internacional de Cinema e História, que acabou sendo interrompido em 2020, por causa da pandemia e de todo o contexto de falta de investimento público no Brasil. E esse colóquio é uma espécie de espaço de trocas ecumênico. Obviamente há uma seleção do que é apresentado, pois, como todo colóquio, não tem como ser totalmente inclusivo, até por uma questão de organização. Mas, de certa forma, pudemos ver nas últimas edições trabalhos com as mais diversas perspectivas e metodologias, com pesquisadores de diferentes regiões do Brasil, coordenando grupos de pesquisas na área, como é o caso dos colegas Alcilene Cavalcante, Flávio Trovão, Alexandre Busko Valim, este último responsável por sólido trabalho sobre as relações entre cinema e diplomacia cultural nos anos 1930 a 1950. Vivemos um momento em que esse campo se espraiou, espalhou-se para diferentes contextos, trazendo as mais variadas pautas e abordagens. Uma situação, enfim, bastante diferente da que tínhamos quando eu iniciei minhas pesquisas na área.
No entanto, uma questão ainda hoje problemática com relação à pesquisa no Brasil é, em minha opinião, a ausência de traduções de textos de autores estrangeiros. Sylvie Lindeperg, por exemplo, escreveu um livro muito importante chamado Nuit et Brouillard - Un film dans l’histoire, sobre o documentário Noite e neblina, de 1955, do Alain Resnais. Esse livro, publicado em 2007, é um trabalho primoroso no sentido de pensar a origem e a formulação do projeto, examinando de forma minuciosa o filme sob o ponto de vista estético em suas diferentes contribuições, como a montagem, a música e a locução. E a autora resgata e analisa a maneira como esses diferentes vetores se articulam no filme, bem como a recepção que ele teve no Festival de Cannes na época e a sua circulação no leste europeu dentro daquele contexto da Guerra Fria. Em resumo, é um trabalho de excelente qualidade e que já foi traduzido para o alemão, para o inglês, para o espanhol, mas não ainda para o português, o que representa uma lacuna e o que me leva a não entender muito bem quais são os critérios das editoras para traduzir alguns autores e outros não. Ter mais traduções certamente enriqueceria muito os debates no Brasil. A Abraccine tem cumprido um pouco hoje essa função ao traduzir alguns textos recentes de caráter metodológico. Mas, ainda assim, muitas obras e autores importantes em outros países acabam ficando com acesso mais restrito aqui devido a essa limitação causada pela não tradução. Sylvie Lindeperg é apenas um exemplo. E como consequência somente os autores traduzidos são debatidos com mais intensidade nos cursos e nas universidades, o que é natural.
Às vezes, até temos alguns suspiros nesse sentido, o de se disponibilizar em português importantes obras estrangeiras, que trazem outras perspectivas sobre o pensar historicamente o cinema. Um exemplo nesse sentido é o trabalho que Ismail Xavier desenvolveu junto à Cosac Naify. Ele coordenou a tradução da coletânea O cinema e a invenção da vida moderna, organizada pela Vanessa Schwartz e Leo Charney, que é um livro que não trata de filmes, mas da cultura visual antes da chegada do cinema, bastante interessante do ponto de vista metodológico, pois, articula a visualidade à história cultural. E foi um sucesso editorial. Então, se nós temos uma lacuna, ela está nessa falta de atualização dos debates historiográficos. Há autores e trabalhos que até chegam aqui por meio de teses e dissertações, especialmente de acadêmicos que realizam parte de suas pesquisas no exterior, e que contribuem para atualizar o debate e divulgar essas ideias. Porém, se esses livros fossem traduzidos, certamente atingiriam um público mais amplo.
Do ponto de vista da pesquisa, uma área muito pouco explorada, até por causa das grandes limitações impostas pelo tema, é sobre o primeiro cinema no Brasil, que se refere aos filmes feitos desde o final do século XIX até a década de 1910. Uma lacuna decorrente, em primeiro lugar, do fato de estes filmes já não existirem mais. O mais antigo que sobreviveu é de 1909. Em segundo lugar, ligada à situação de nossos arquivos, que por vezes impede o acesso a outros tipos de fontes. Nesse sentido, algo positivo que temos atualmente é a digitalização de fontes, como é o caso da Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional, que é recente, de meados dos anos 2000. É possível hoje fazer em casa as pesquisas em jornais, e com um nível de detalhe muito maior do que permitem os arquivos físicos. Lembro quando eu pesquisava microfilmes na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro em 2006: nem sempre os materiais eram legíveis, sem contar a necessidade de deslocamento. E, hoje, pelo site da Hemeroteca, podemos encontrar inúmeros resultados. Entretanto, voltando ao primeiro cinema, um problema a se pensar a partir dessas fontes diz respeito aos modos como esse período é recuperado, e como as informações são conectadas. Assim, fiando-se apenas nessas fontes, sem os filmes, acabamos caindo naquele risco de realizar uma história factual, ou seja, de apenas se reconstituir uma cronologia dada pelas publicações na imprensa, que são, como bem sabemos, contaminadas por inúmeros debates. E há muitas pesquisas, ainda hoje, que se constroem dessa forma, sem problematizar historicamente a pesquisa.
Tempo & Argumento: E sobre a acessibilidade aos filmes e a acervos, quais as principais dificuldades e obstáculos encontrados?
Eduardo Victorio Morettin: Um grande problema para a pesquisa histórica sobre cinema, pelo menos no Brasil, ainda são os arquivos cinematográficos; o acesso aos filmes. A Cinemateca Brasileira, como sabemos, enfrentou uma situação terrível1, e agora, no final de 2021, temos alguma esperança de que a instituição volte ao seu caminho. Durante os governos Lula e Dilma, a Cinemateca participou, juntamente com a Secretaria do Audiovisual, do projeto Programadora Brasil, ligado aos Pontos de Cultura. Seu objetivo, à época, era o de disponibilizar em DVD os mais diversos acervos e materiais ligados à história do cinema brasileiro, geralmente pautados por essas questões da diversidade, das discussões sobre raça e gênero etc. Assim foram trazidos filmes como Alma no Olho, de 1974, do Zózimo Bulbul, ou ainda A entrevista, de 1966, da Helena Solberg. A disponibilização do acesso a estes e outros filmes fez com que eles voltassem ao debate público. Torná-los acessíveis é fundamental para que passem a integrar o debate.
Um problema, no entanto, é que muita coisa não está disponível online. Há inúmeros acervos que nunca foram digitalizados. E essa documentação é gigantesca. Há também a renovação das tecnologias, pois muitas delas simplesmente caducam. Assim, muito material é perdido se a migração para outras mídias não é feita a tempo. E isso acontece muito rápido. Até a geração mais jovem que a minha já pôde perceber isso com a ascensão e o fim do DVD. Os novos computadores já nem trazem mais entrada para um disco ou CD. E isso acaba sendo também um problema, porque nem tudo está na rede. Além disso, como se pode garantir a qualidade do material disponibilizado na internet? Como podemos atestar sua procedência? O público em geral, muitas vezes, não tem ideia sobre a dimensão do trabalho de se organizar um arquivo: reunir, catalogar, restaurar, digitalizar, disponibilizar. Para se fazer tudo isso é fundamental ter investimento público. Fazendo uma comparação entre os arquivos no Brasil e nos Estados Unidos, por exemplo, vemos a distância que nos separa do catálogo de filmes da Biblioteca do Congresso, em que muitos materiais estão disponíveis rapidamente. É fenomenal. No Brasil, há o Banco de Conteúdos Culturais, iniciativa da Cinemateca, em que há muito conteúdo de acesso livre.
Estou participando de um projeto internacional que se chama AMIS – Archives, Mémoires, images et sociétés, coordenado aqui por Itania Gomes. Recentemente, tivemos uma reunião online entre as equipes brasileira e francesa para preparar o encontro que ocorrerá em 2022. Na equipe francesa participam alguns pesquisadores do INA - Institut National de l’Audiovisuelle, instituição que abriga praticamente todo o acervo televisivo francês, sendo o acesso a esse material bastante fácil. Só para dar um exemplo, estávamos discutindo neste projeto a presença de determinadas imagens em diferentes contextos, ou seja, como algumas imagens são reapropriadas ao longo do tempo. E uma colega francesa, Catherine Gonnard, do INA, apresentou um trabalho em que mostrava um cinejornal dos anos 50, sobre Saint-Germain-des-Prés, bairro emblemático da boemia e da intelectualidade francesa. Neste filme apareciam figuras como Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e a cantora Juliette Gréco. Ela mostrou como essas imagens foram reapropriadas em diferentes momentos históricos. E para encontrar esse material na base de dados do INA, basta digitar o termo procurado, Juliette Gréco, por exemplo, e já localizamos rapidamente tudo o que tem sobre ela.
Já no Brasil, com a estrutura que temos, é impossível fazer isso. E seria impossível mesmo se a Cinemateca estivesse aberta, pois não temos uma base nacional de dados, uma estrutura que nos permita tracejar esses caminhos. Além disso, há também vários arquivos que não se encontram abertos ao público, pelos mais diferentes motivos. Assim, essa dificuldade no acesso aos arquivos é, com certeza, uma das principais dificuldades para a pesquisa histórica. Já era difícil, neste sentido, alguns anos atrás, e hoje é ainda mais, por conta da política cultural absolutamente criminosa do atual governo federal, que, por pura negligência, levou ao incêndio na sede da Cinemateca na Vila Leopoldina, em julho de 2021, perdendo uma documentação preciosa. Estima-se que ali tenham sido perdidas cerca de quatro toneladas de arquivos ligados à história da nossa política cinematográfica. Queimaram, por exemplo, os documentos administrativos ligados à Embrafilme e ao Instituto Nacional de Cinema. Isso foi um crime.
Tempo & Argumento: Como podemos avaliar a situação atual da Cinemateca Brasileira e o que pode ser feito com relação a isso? Como podemos ser resistência frente a esse projeto de destruição?
Eduardo Victorio Morettin: Obviamente que o atual governo é um ponto fora da reta, mas essa situação de desinvestimento na Cinemateca já vem desde algum tempo. Nós tivemos um pico de investimento nos anos 2000, e depois de 2013 começa uma queda bastante acentuada, principalmente a partir de 2015 e 2016. Mas, enfim, esse é o quadro que nós temos no momento. E temos que enfrentá-lo. Essa é a nossa única opção. E, apesar de toda essa situação, devemos continuar nossas pesquisas. Contudo, há também uma dimensão política que extrapola o ambiente universitário. O ideal, neste momento, seria interrompermos o processo de destruição em curso promovido pelo governo. Mas isso é impossível enquanto o atual presidente estiver à frente dos assuntos econômicos e políticos. Enquanto ele estiver lá, nada vai mudar. Então, temos pela frente pelo menos mais um ano de embates e diversas pressões.
Trata-se de um projeto em curso de destruição absoluta, em todas as áreas, e que só não foi totalmente levado a cabo ainda porque há grande resistência da sociedade civil nos mais diversos campos. O exemplo da Cinemateca é significativo nesse sentido. Vimos que, com o seu fechamento, em agosto de 2020, houve em São Paulo uma impressionante mobilização da sociedade civil, bastante expressiva quanto à adesão. Infelizmente, isso não resultou em nenhuma ação de curto prazo. Mas eu creio que é graças a essas pequenas ações da sociedade e à movimentação da comunidade acadêmica, que se tem evitado danos ainda maiores, impedindo que essa destruição caminhe dentro do ritmo planejado. E nem sei se é tão planejado assim, porque também tem ali uma incompetência que é geral. Ampla, geral e irrestrita. Veja aí também a situação em que está a CAPES, a situação que hoje vivem as universidades e os programas de pós-graduação, com a interrupção das atividades de avaliação, em virtude de uma ação judicial ainda não revertida. Isso já diz muito sobre como o problema se coloca hoje. A comunidade científica e a sociedade têm pressionado para que os processos sejam retomados. Mas não é algo simples. Então, a mobilização social é fundamental nesse momento.
Por outro lado, temos visto que, mesmo com todas essas dificuldades, elas não impedem que tenhamos excelentes pesquisas sendo produzidas, como pude conferir nas apresentações do encontro online da SOCINE (Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual), que participei recentemente. Obviamente que os problemas que apresentei, agravados ainda mais por toda a limitação imposta pela pandemia do coronavírus (no Brasil temos um pandemônio), têm impacto nas pesquisas. Mas, como eu disse, mesmo sob essas condições têm-se feito muitas pesquisas de qualidade em nossas universidades. É a forma de resistirmos.
Notas