Resenhas
El Derecho de Vivir en Paz: quem matou Victor Jara?
El Derecho de Vivir en Paz: quem matou Victor Jara?
Revista Tempo e Argumento, vol. 14, núm. 36, e0501, 2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
Recepción: 21 Marzo 2022
Aprobación: 16 Mayo 2022
Resumo:
Resenha da obra:
REMASTERED: MASSACRE NO ESTÁDIO. Direção de Bent-Jorgen Perlmutt. EUA: Netflix, 2019 (1h04min).
Palavras-chave: resenha.
1. Introdução
Entre imagens de comícios efervescidos de populares e artistas, seus sons e batidas folclóricas; momentos íntimos e particulares com esposa e filhas; shows políticos dos mais diversos – e assim poderíamos considerá-los, “shows políticos” – tem início o documentário Massacre no Estádio, do diretor norte-americano Bent-Jorgen Perlmutt, estreado no streamingNetflix, em 2019, sobre o cantor e compositor chileno Victor Jara.
Perlmutt também é produtor e editor da película, conhecido por outros dois filmes independentes: Havana Motor Club, de 2015, sobre a história de corridas oficiais e undergrounds na capital de Cuba, e Diana Vreeland: The Eye Has to Travel, de 2011, sobre a vida e obra da editora da revista Harpers Bazaar, Diana Vreeland.
Nesta resenha, propomos analisar o Massacre no Estádio expondo as suas particularidades mais relevantes, descrevendo os momentos mais importantes apresentados na trama com olhar e perspectivas de um historiador da América Latina e das canções engajadas latino-americanas – distante do estudioso, e mesmo do historiador do cinema, que apreende e exibe técnicas e formatos de estruturação fílmica.
São vinte e duas personalidades que falam e deixam as suas vozes ecoarem – vozes carregadas de força e, muitas delas, de grande pesar. São advogados, jornalistas, companheiros de militância, compositores e artistas que conseguiram sair ilesos à época do golpe militar chileno de 1973. Destino não reservado a Victor Jara.
Observando a falta de resenhas críticas sobre o mesmo, escolhemos a película como fonte por entendermos a importância de ambos os seus personagens nas conjunturas históricas de um passado que insiste em não passar: Victor Jara, para o campo da música na América Latina, e de sua esposa, Joan Jara, para as discussões de memória e justiça no tempo presente.
O documentário possui o objetivo claro de não biografar a vida do artista. Para os espectadores, Victor Jara é reconhecido. É personagem histórico de renome internacional. No início, bandas, cantores e compositores demonstram a sua admiração pelo chileno. O Massacre no Estádio tem objetivo claro: contar a história de sua morte trágica, desde os dias anteriores a sua prisão, espancamento, tortura e morte, em setembro de 1973, até a procura e luta ferrenhas de sua esposa e família por reparação, memória e justiça até as décadas iniciais do século XXI –, assim como a procura do responsável por tirar a vida do artista.
“Somos quem somos por conta do amor”, diz Victor nas cenas iniciais. Uma Joan Jara ainda jovem discursa apontando que, inicialmente, antes das canções engajadas do militante político, suas músicas eram permeadas pela temática do amor. Victor Jara começa a sua obra falando de pessoas, de suas relações e do amor entre elas. Entretanto, tudo muda rapidamente quando a conjuntura política transforma-se.
“Uma canção de Victor Jara é mais perigosa que mil metralhadoras”. Outra frase marca o início do documentário de uma hora e quatro minutos. Nele, mesclam-se alguns momentos relevantes da vida de Jara: imagens de sua relação com mulher e filhas, a sua atividade artística e militância política. Não é por acaso que Victor Jara foi um dos primeiros alvos da ditadura deflagrada por Augusto Pinochet, após o golpe militar de 11 de setembro de 1973.
“Não há revolução sem canções”, ecoa Salvador Allende, exposto na película em um de seus inúmeros comícios eleitorais. Allende foi o primeiro marxista democrata a ser eleito presidente da República na América Latina, em uma das regiões mais desiguais do continente: o Chile dos anos 1970. Assim pensava Victor Jara, considerado um dos personagens mais relevantes da chamada Nova Canção Latino-Americana, movimento conhecido por englobar inúmeros cantores e compositores do campo popular e folclórico de forte cunho engajado – ou de protesto – tendo particularidades distintas em cada região da América Latina. Na Argentina, nos lembramos de Mercedes Sosa. No Brasil, Chico Buarque e Milton Nascimento. Em Cuba, Silvio Rodriguez e Pablo Milanés. No Chile, rememoramos Violeta Parra e Victor Jara. O chileno apoiou ativamente Salvador Allende e a chamada Unidade Popular, agrupamento de diversas personalidades, partidos e movimentos capazes de levar Allende a presidência do Chile. O artista cantou esse processo eleitoral e a vitória da UP com entusiasmo.
Em contraste com a via cubana, que teve como ponto de partida a luta armada e destruição do Estado burguês, a Unidad Popular pretendeu construir o socialismo a partir da institucionalidade vigente. Este caminho que partia da reforma para chegar à revolução foi idealizado como a “via chilena” ao socialismo, em um processo que despertou atenção mundial. (SANTOS, 2018, p. 331)
Destruído o Palácio La Moneda em uma das cenas mais chocantes do século XX, estavam abertas as portas para o autoritarismo. O documentário Massacre no Estádio vai explorando pouco a pouco a época vivida por Victor Jara. Expõe uma polarização política crescente – alguns anos que antecedem a eleição de Salvador Allende, e os dias decisivos após a sua deposição. Setores da classe média e da burguesia chilena sentindo-se cada vez mais ameaçados. Há o temor de uma “nova Cuba” no continente, principalmente quando o Chile socialista estreita laços diplomáticos e ideológicos com a ilha revolucionária de Fidel Castro.
2. Três atos do “Massacre no Estádio”
Se as cenas do ataque ao Palácio, entre explosões de bombardeios e rasantes de aviões militares, eram chocantes, impactante é o discurso de Salvador Allende: “a História é nossa, e a fazem os povos” naquele mesmo dia. “Era um dia ordinário”, recorda Joan Jara, em uma cena tocante no primeiro ato após a introdução. Segundo as vozes do documentário, ninguém esperava que aquela escalada de violência ocorresse de forma tão intensa e com tamanha rapidez, muito menos que Victor Jara fosse uma de suas primeiras vítimas. Porém, razões não faltavam.
Se Victor tornou-se comunista, se ele se envolveu no combate social, não foi por uma questão ideológica, mas por solidariedade aos mais pobres. Os trabalhadores do campo que cultivam uma terra que não lhes pertence; os operários que se matam no trabalho, nas fábricas ou nas minas para enriquecer acionistas que ficam atrás de suas mesas; as comunidades indígenas encarceradas nas reservas e cujos territórios foram tomados por grandes proprietários de terra. Enquanto lhe restar fôlego para falar, para cantar, mãos para escrever, Victor repetirá o que sempre disse: “se as mãos são nossas, é nosso o que elas dão”. (DOUCEY, 2009, p. 37)
Seis mil prisioneiros políticos e pessoas machucadas e abusadas. Uma sobrevivente do Estádio Chile, do massacre e da brutalidade que dão título ao longa-metragem, rememora que um dos “companheiros” sobe até uma parte íngreme e alta do estádio gritando “Viva Allende!”, depois, suicida-se, lançando-se ao chão.
Victor Jara estava entre os que choravam, eram machucados e cuspidos. Muitas das personalidades que falam ao documentário rememoram um momento único: quando o artista chileno é descoberto, entre tantos, por um dos recrutas do Exército. Salvador Allende estava morto. A Unidade Popular havia acabado. Obrigaram Victor Jara a dar um passo à frente. Tinha início uma série de violências que sofreria o chileno até o dia do seu fuzilamento.
Há uma introdução na qual o peso dos depoimentos dá-se com intensidade. É o momento do golpe. Os dias que antecedem e precedem a destruição do Palácio La Moneda. É o momento do trauma. A rememoração do trauma. Há o dedilhar triste do folclore chileno. Sons de tiros, bombas e gritos. “Esse foi o dia em que a minha primeira vida acabou”, fala a trêmula e já idosa Joan Jara, esposa de Victor Jara. Tem início o segundo ato do documentário Massacre no Estádio. O longa-metragem especifica ser aquele contexto histórico, único. Um momento de mudanças estruturantes. Altera-se o governo. Deflagra-se um golpe de Estado. Intensificam-se as violências. Findam-se as expectativas políticas de uma época. O documentário quer nos dizer, nesse ato, que não há mais esperança. Silenciam-se as canções. Não há mais o amor.
Joan Jara começa a viver outra vida. Obrigada a rememorar diariamente a cena do corpo de Victor Jara no necrotério, começa a dar novos passos. Se o Chile mudou após a vitória de Salvador Allende, “as relações mudaram”, agora tudo havia se transformado. Evidente que para o diretor Bent-Jorgen Perlmutt, todos conhecem o período de Pinochet. Não há explicações exaustivas. Sabem o que é uma ditadura civil-militar. Conhecem a história do Chile e da América Latina do século XX. Este segundo ato tem um propósito: encontrar o responsável pelo assassinato do artista chileno Victor Jara. O enredo começa a acelerar.
Desde o seu assassinato, dias após o 11 de setembro de 1973, de todas as formas possíveis, do regime ditatorial até a democracia concertada chilena1, Joan Jara busca por reparação, memória e justiça. Segue pistas dentro e fora do território chileno (norte-americano, principalmente). Grandes mantenedores e apoiadores da ditadura militar chilena, os Estrados Unidos da América abrigaram diversos sujeitos que fizeram parte do regime. Órgãos de justiça norte-americanos e chilenos aparecem como protagonistas nesse ato do Massacre no Estádio.
E é na cidade norte-americana de Deltona, na Flórida, que encontram o suposto responsável pela tortura e assassinato de Victor Jara: Pedro Pablo Barrientos, ex-recruta do Exército, surge como figura central. “Quem é Victor Jara?”, pergunta o militar. “Tudo o que dizem é mentira. Me querem no Chile como um troféu político”. Pedro Pablo Barrientos fala de seu passado, relações familiares, infância e a sua juventude. Inclusive, diz ter votado em Salvador Allende. Diferente de outras personalidades apresentadas no documentário, Joan Jara e Barrientos tornam-se os antagonistas da película. Dois sujeitos que viveram a mesma época em espaços diferentes de uma conjuntura política de guerra. Para além do júri, dos processos jurídicos contra Barrientos, é no documentário Massacre no Estádio que ele tem certa possibilidade de “defesa”.
Por essa razão, o acusado tem maior tempo de tela. Conta a sua história de vida, rememora o golpe de Estado. Quer esclarecer para todos que quiserem ouvir: foi um simples soldado. Recebia ordens. Porém, não matou Victor Jara, nem esteve no Estádio. O documentário explana que centenas de soldados chilenos foram obrigados a cometer as mais diferentes violências: torturas, espancamentos, prisões arbitrárias e assassinatos.
O terceiro e último ato desenrola-se com o dedilhar da canção folclórica latino-americana. Ex-agentes da CIA e de órgãos norte-americanos são entrevistados. O governo dos Estados Unidos da América é apontado como um dos responsáveis pelas décadas de autoritarismo no Chile da segunda metade do século XX. Joan Jara retorna às cenas da película como uma militante – a continuação dos passos de seu marido. Em todos os cantos do mundo fala sobre justiça de Estado, memória coletiva, reparação de mortos e desaparecidos em períodos autoritários.
3. Símbolo de justiça: o ato final
Joan Jara torna-se um símbolo dos direitos humanos. “Buscamos justiça há 44 anos. [...] Não foi só a minha tragédia, mas uma tragédia coletiva”. Em junho de 2016, tinha início, na Flórida, o júri que condenaria o ex-recruta pela morte do artista. Antigos membros do Exército chileno foram ouvidos. Testemunhos que podiam sustentar a autoria das provas materiais reunidas durante décadas. Depois de 43 anos, Pedro Pablo Barrientos é condenado pela tortura e assassinato do artista chileno Victor Jara. Barrientos passa por um detector de mentiras, realizado especialmente para o documentário. Finda-se o Massacre no Estádio: condenado pelo júri, o detector de mentiras requisitado por Pedro Pablo Barrientos não consegue identificar culpabilidade. Não há veredito. Tudo permanece incerto.
Nossos afetos e emoções são canalizados de forma intensa no Massacre no Estádio, sempre ao som das canções de Victor Jara. Somos transportados para a história da ditadura militar chilena deflagrada com o golpe de Estado de 1973, mas também vivemos o luto (e luta) diários de Joan Jara por reparação, memória e justiça. Nos tempos sombrios em que se encontra uma América Latina na encruzilhada – e um Chile entre protestos, grandes manifestações, polarização política e processos eleitorais intensos desde o ano de sua estreia, 2019 – o documentário é alentador. Uma película necessária.
Em suas últimas cenas, assistimos que horas antes de seu assassinato, Victor Jara escreve uma última canção. O depoente final, prisioneiro político Boris Novia Perez, retoma este momento histórico. Enquanto Victor Jara escrevia, havia muito barulho e latidos de cães. Ele lança a livreta para o colega que a guarda em seu bolso. Nela estava escrito: “Meu canto mal sai quando tenho que cantar sobre o horror. O horror que estou vivendo. O horror de que estou morrendo. Horror”.
Referências
DOUCEY, Bruno. Victor Jara: não à ditadura. São Paulo: Ed. SM, 2009.
SANTOS, Roberto S.; VILLAREAL, Maria; PITILLO, João C.; América Latina na Encruzilhada: Lawfare, golpes e luta de classes. São Paulo: Ed. Autonomia Literária, 2020.
SANTOS, Fabio Luis B. Uma história da onda progressista sul-americana (1998-2016). São Paulo: Ed. Elefante, 2018.
Notas