Dossiê Religiões e Religiosidades na História do Tempo Presente
Entre o anticomunismo e o anticapitalismo: o arcebispo de Goiânia perante o terrorismo de Estado no Brasil
Between anticommunism and anticapitalism: the archbishop of Goiânia before terrorism of State in Brazil
Entre o anticomunismo e o anticapitalismo: o arcebispo de Goiânia perante o terrorismo de Estado no Brasil
Revista Tempo e Argumento, vol. 15, núm. 39, e0101, 2023
Universidade do Estado de Santa Catarina
Recepção: 28 Novembro 2022
Aprovação: 01 Julho 2023
Resumo: A realização do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), com mais de duzentos bispos brasileiros presentes, modificou o modo de viver a fé cristã no país, porém o regime ditatorial instaurado em 1964, com os seguidos atos institucionais do poder executivo e com as práticas da repressão política, interferiu nesse processo de renovação do catolicismo romano. Este texto analisa as transformações ocorridas no ambiente da Arquidiocese de Goiânia, região central do Brasil, que estava sob o báculo Dom Fernando Gomes dos Santos (1957-1985). A dimensão da justiça social foi um importante princípio adotado no processo de recepção das decisões conciliares, inserido de modo central nos planos pastorais elaborados na década de sessenta do século XX. Esse princípio levou o clero católico a não concordar com o anticomunismo simplista, propalado pelo Estado autoritário, e, simultaneamente, foi uma plataforma para a crítica do capitalismo.
Palavras-chave: catolicismo, anticomunismo, ditatura, justiça, Guerra Fria.
Abstract: The holding of Second Vatican Ecumenical Council (1962-1965), with more than two hundred Brazilian bishops presents, changed the way of living the Christian faith in this country, however the dictatorial regime established in 1964, with institutional acts (A.I’s) and practices of political repression, interfered in this renewal process of Catholicism. This text analyzes the changes that occurred in the environment of the Archdiocese of Goiânia, central region of Brazil, which was under the staff of Dom Fernando Gomes dos Santos (1957-1985). The dimension of social justice was an important principle adopted in the process of receiving conciliar decisions, centrally inserted in the pastoral plans developed in the sixties of the twentieth century. This principle led the Catholic clergy to disagree with the simplistic anti-communism, propagated by authoritarian State, and, simultaneously, it was a platform for critique of capitalism.
Keywords: catholicism, anti-communism, dictatorship, justice, Cold War.
Em agosto de 1973, Dom Fernando Gomes dos Santos deixou a Arquidiocese de Goiânia para comparecer perante a Comissão Bipartite constituída, secretamente, entre representantes do Estado ditatorial e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)[1]. Conforme o historiador norte-americano Kenneth P. Serbin, o encontro era “uma tentativa de resolver tensões com as autoridades na arquidiocese de Goiânia, a capital de Goiás” (2001, p. 290). Dentre os motivos de tais “tensões” estava o apoio do arcebispo ao movimento estudantil, em 1968, seus pronunciamentos contra a tortura, a defesa das ações de seu coetâneo Dom Pedro Casaldáliga, a carta pastoral intitulada A situação da Igreja em face do atual regime (1973) e, por fim, a publicação, por meio da CNBB Regional Centro-Oeste, do documento Marginalização de um povo (1973), eivado de denúncias das práticas violentas cometidas contra a população sertaneja.
Havia certo receio no ar quando ocorreu o dito encontro. Os líderes católicos temiam que os militares pudessem aprontar algo de surpresa e terminar por levar preso Dom Fernando. O General Muricy[2] realizou o inquérito com bastante rigor, questionando os motivos do arcebispo agir daquela forma dura com o regime. Fez, inclusive, a grave acusação de que apoiava a “infiltração comunista” na Igreja Católica. Dom Fernando negou vigorosamente, ressaltando sua posição anticomunista já de décadas (Serbin, 2001, p. 299). Interpreta Serbin que o arcebispo de Goiânia se sentiu acossado, recuou em suas posições, chegando praticamente a mentir:
O contraste entre a carta pastoral e os comentários de dom Fernando na Bipartite é extraordinário. Publicamente e para sua clientela católica, ele externava críticas ao regime. Particularmente, entre quatro paredes, na Villa Venturoza, declarava ser a favor da continuação do regime militar. Isso aconteceu após quase dez anos de repressão, desrespeito pela Igreja e manipulação do sistema político. Tornadas públicas, as palavras de d. Fernando teriam posto em risco sua liderança na Igreja progressista (Serbin, 2001, p. 300).
Será que realmente o arcebispo vacilou? Por medo de desencadear uma repressão mais forte, não somente contra si mesmo, renunciara sua posição de combate? Discutiremos neste artigo a tênue relação entre a agenda do desenvolvimento nacional, incorporada pelo catolicismo na década de sessenta, e as tradicionais posições anticomunistas cultivadas pela Igreja. O contexto maior se deu na polarização geopolítica global, promovida pela denominada Guerra Fria, ou a “paz quente”, como ironizou Hobsbawn (1995, p. 226). Ele fornece um momento importante para disputa semântica dos conceitos (Koselleck, 2006), com estratégias para o estabelecimento de delimitações claras das fronteiras que abarcam, o que teve impactos tanto no campo político quanto no religioso. As fontes documentais que privilegiamos são as caixas com materiais de Dom Fernando, arquivadas no Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central, órgão mantido pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás com farta documentação eclesiástica.
A “ordem anti-humana”
Ainda que aos olhos do historiador norte-americano o arcebispo tenha fraquejado, ao retornar para sua sede arquiepiscopal, Dom Fernando fez seu próprio relato do que havia ocorrido. Isso não seria o esperado, obviamente, afinal esses encontros deveriam ser secretos, permanecendo “nas sombras”. Assim permaneceram por anos, até que os arquivos do General Muricy fossem acessados e analisados (Serbin, 2001, p. 50).
O pequeno texto, de três páginas, intitulado “O encontro no Rio de Janeiro” foi mimeografado e distribuído em algumas igrejas sob a jurisdição do arcebispo[3]. As publicações oficiais da arquidiocese de Goiânia estavam censuradas à época, e nem a carta pastoral que motivou a presença de Dom Fernando na Comissão Bipartite, nem a revista que criara para transmitir informações eclesiásticas, estavam sendo editadas.
No relato difundido, o arcebispo apresenta os participantes, o dia, o local e a hora do encontro, elementos que formam o quadro de um noticiário, conferindo ao texto uma impressão de veracidade ou, até, certa imparcialidade. Após escutar as considerações feitas pelo General Muricy, teria lhe sido dada a palavra e ele apresentou-se como uma pessoa que assumiu o sacerdócio há quarenta anos, sendo trinta de episcopado exercidos em Penedo (AL), Aracaju (SE) e, por fim, Goiânia (GO). Portanto, além de acentuar a autoridade institucional que possuía, demonstrou sua dedicação à Igreja Católica como causa primeira de vida. É por defender justamente os princípios da Igreja que tem sido um grande combatente contra a maçonaria e contra o comunismo. Dom Fernando ainda narra em primeira pessoa do singular, para assumir a inquestionabilidade de um testemunho:
Ressaltei a atuação do episcopado a partir de 1962 e as esperanças despertadas pela Revolução que fora feita contra o Comunismo, a subversão e a corrupção, pelas reformas de base, de acordo com a declaração dos bispos, aos 30 de abril de 1963. Observei que, entretanto, as primeiras experiências revolucionárias deixaram-se influenciar pela Maçonaria, e suas preferências políticas inclinaram-se para um determinado Partido, a UDN. Fiz ver que a minha exposição visava mostrar as boas disposições dos responsáveis pela Igreja. (Santos, 1973, p. 1-2).
Por que 1962 foi apontado como um ano tão importante? Os registros da memória nem sempre são fiéis à cronologia histórica, costumando confundir fatos e datas, personagens e emoções vividas[4]. Todavia, nesse caso, o ano de 1962 marcou realmente um período de fortes tensões. Ele tem sido considerado o auge da Guerra Fria, exemplificado pela crise dos mísseis em Cuba, que colocou o mundo sob o risco iminente de destruição nuclear[5]. A Igreja Católica Romana chegou a interromper as assembleias do Concílio Ecumênico Vaticano II, iniciado naquele ano e do qual o arcebispo de Goiânia participava para promover negociações de paz, ainda que o Papa João XXIII não tivesse simpatia pelos “barbudos” da Ilha (Riccardi, 2000, p. 99-108).
O Brasil estava atravessando uma forte crise política após a renúncia do presidente Jânio Quadros, em agosto de 1961. O vice-presidente fora impedido de assumir, conforme seria a determinação da Constituição Federal de 1946[6], por causa da acusação de ter simpatias com o socialismo. Com apoio norte-americano, foi articulado um golpe branco de natureza parlamentar, com arranjos entre políticos conservadores e o comando militar, que terminou por implantar o regime parlamentarista no país e retirar poderes da presidência. Desde a ocorrência da Revolução Cubana, aliás, a política externa norte-americana atuava com maior poder de intervenção, ao promover de maneira concomitante
uma postura de paranoica vigilância, traço marcante da nova política para a América Latina, baseada no fortalecimento dos militares da região, vistos como bastiões contra quaisquer sonhos revolucionários, e uma política de ajuda econômica, sobretudo como pretexto para a construção de uma imagem mais positiva dos Estados Unidos e para a ampliação de sua capacidade de influir (Fico, 2008, p. 25).
A atuação dos Estados Unidos, portanto, não se deu somente por meio da assistência social contra a pobreza no continente, por meio da atuação da Aliança para o Progresso[7]. Carlos Fico fala na “ajuda” financeira dada a candidatos da eleição parlamentar de 1962 simpáticos aos interesses norte-americanos, defensores do liberalismo e propagadores do anticomunismo, com uma quantia de, pelo menos, cinco milhões de dólares (2008, p. 77).
Entremeio aos momentos de incerteza política, os movimentos sociais manifestavam com maior visibilidade suas exigências. Para responder às demandas das organizações populares e trabalhistas, o presidente João Goulart, mesmo sem plenos poderes, lançou sua proposta das Reforma de Base em 1º de maio de 1962. Em síntese, elas propunham uma:
a) Reforma Eleitoral – com a qual se buscaria ampliar a democracia, incluindo o voto dos analfabetos;
b) Reforma Tributária – buscando aperfeiçoar a arrecadação de impostos estatais. Aumentar-se-ia o imposto sobre a renda, diminuindo as que recaem sobre os produtos e serviços;
c) Reforma Bancária – além de estimular a democratização do crédito, submeteria a rede bancária a um sistema oficial de controle;
d) Reforma Cambial – tentando assegurar o valor da moeda nacional e a emancipação econômica;
e) Reforma Administrativa – visando agilizar e modernizar a gestão pública, ao promover técnicos qualificados para os respectivos cargos, bem como racionalizar a aplicação dos recursos;
f) Reforma Universitária – no intuito de democratizar o acesso ao Ensino Superior e a melhoria da formação técnico-científica;
g) Reforma Urbana – com a meta de sanar os graves problemas de moradia nos centros urbanos;
h) Reforma Agrária – que constituía o plano mais ambicioso, pois buscava alterar a alta concentração de terras férteis no país, aplicando-se mudanças na política de desapropriação.
Segundo a conclusão de Aline Silva (2019, p. 12), essas reformas expressavam a concepção de justiça social do governo, inspirada pelos valores cristãos. A CNBB encampou a causa, ao adotar de maneira oficial projetos sociais correlacionados. Isso fez aumentar a presença da Igreja nas políticas estatais, além de obter mais verbas e prestígio. De maneira complementar, levava a instituição religiosa a se diferenciar dos movimentos sociais de inspiração socialista. Eram dois coelhos com uma só cajadada episcopal.
A declaração oficial de apoio à política governamental foi feita no início de 1963, após Jango ter recuperado os poderes do poder executivo através de um plebiscito. Vinha, ainda, na esteira da publicação da nova encíclica do Papa João XXIII, intitulada Pacem in terris. Dom Fernando Gomes dos Santos, que compunha a Comissão Central da CNBB nessa época, fez publicar ambos os documentos juntos na Revista da Arquidiocese de Goiânia[8].
A encíclica pontifícia, publicada na Semana Santa, foi a primeira que incorporou os Direitos Humanos de maneira positiva e explícita, inclusive utilizando por base a Declaração feita pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948. Conforme a análise de Camacho, os fundamentos da doutrina expressa na Pacem in terris são dois: “o respeito à ordem estabelecida por Deus e à dignidade da pessoa humana, como alicerces para a construção da paz” (1995, p. 221). O papa João XXIII buscava, com esses princípios, responder aos desafios colocados pelo clima da Guerra Fria.
A Declaração da CNBB apoiando as Reformas de Base buscou adaptar a mensagem advinda de Roma aos dilemas do contexto nacional. Conforme o estudo de Wellington Silva (2018, p. 201), as ideias papais não criaram algo novo, mas legitimaram uma série de posições que iam sendo assumidas pelas igrejas locais acerca da necessidade do engajamento social dos católicos. Nesse sentido, o episcopado nacional afirmava:
Ninguém pode pensar que a ordem em que vivemos seja aquela anunciada pela nova Encíclica como fundamento inabalável da paz. Nossa ordem é, ainda, viciada pela pesada carga de uma tradição capitalista que dominou o Ocidente nos séculos passados. É uma ordem de coisas na qual o poder econômico, o dinheiro, ainda detém a última instância das decisões econômicas, políticas e sociais. (CNBB, 1963, p. 242).
A tese enunciada aqui aproxima-se da visão marxista, ressaltando-se nesse trecho a teoria da determinação em “última instância” do capital sobre todo o edifício social. Logo se seguia uma exacerbada crítica à alta concentração de renda, na qual “a minoria que tem recursos tem abertas todas as portas de acesso à cultura, a altos padrões de vida, de saúde, de conforto e de luxo”, enquanto a grande maioria da população brasileira está “privada do exercício de muitos direitos fundamentais e naturais” (CNBB, 1963, p. 242).
Os Direitos Humanos foram incorporados para servir de plataforma na disputa pela hegemonia social e para manter a postura crítica. Afinal, esses mesmos direitos eram utilizados nas denúncias dos “erros” dos comunistas aos problemas nacionais. Não se poderia, alertavam os bispos, “tentar a substituição dessa ordem anti-humana por soluções marxistas, não menos desumanizantes, pois atentam contra os direitos fundamentais da pessoa” (CNBB, 1963, p. 244).
Há uma curiosa síntese, portanto, de imanência e transcendência nessa defesa do cristianismo, uma mescla de mundo sobrenatural e natureza humana. A posição tradicional da Doutrina Social da Igreja seguiu por essa via de não defender nem o capitalismo, nem o socialismo, nem qualquer outro sistema criado historicamente. Ela, afinal, seria eterna, como representante do próprio Deus; tem guardado Sua revelação como essência e, claro, está acima de qualquer outra instituição. Mas, nos anos sessenta do século passado, manter tal postura de soberania foi um desafio imperioso e difícil.
As Reformas que haviam sido lançadas pelo governo de Jango pareceram, à maioria do episcopado, um caminho missionário a trilhar, como se vê no parágrafo:
Uns, talvez fascinados pelo progresso material da ordem capitalista, sem sentir as consequências de seus erros ou talvez receosos de perder as vantagens que possuem, tudo fazem para manter o status quo. Outros apressam-se em programar e discutir reformas cujo conteúdo pleno e repercussões a longo prazo interessam-lhes menos do que as conveniências do momento... [...] alguns aproveitando-se do anseio comum de reformas passam a promover a agitação estéril e destrutiva. Finalmente, grupos levados por ideologias extremistas querem instalar no país um sistema de totalitarismo estatal. Qualquer destas atitudes importaria em abandonar o ponto capital: a recuperação do homem oprimido, sua inserção numa sociedade de acordo com a perspectiva evangélica, que defenda seus direitos inalienáveis e o ponha a serviço da comunidade... (CNBB, 1963, p. 250).
Então, o catolicismo buscava ser o vínculo entre o indivíduo e a comunidade, o direito pessoal e a justiça social, buscando edificar a paz na terra. Contudo, seria mesmo possível defender isso fora dos conflitos que cerceavam o mundo? Há uma inusitada semelhança com a Política Externa Independente (PEI), proposta pelo presidente Jânio Quadros e seguida por João Goulart na Conferência de Punta del Este em 1962 (Franchini Neto, 2005). Os pronunciamentos eclesiásticos, entretanto, diferenciavam-se na condenação do anti-humanismo capitalista e socialista, o que manifesta a sacralização de sua própria teologia, fundamentada na crença da imago dei na face humana, no reflexo do divino criador.
Reformar, sem revolucionar
O envolvimento social da Igreja Católica goiana era com a mera assistência, semelhante a outras regiões nacionais. Campanhas para auxiliar os pobres e manter obras assistenciais eram comuns e aconteciam há décadas. No pós-guerra foi surgindo uma nova posição de engajamento social e político para, além de ajudar os desfavorecidos, conter as fontes geradoras da pobreza. Portanto, deve-se perceber essa forma de cuidado pastoral enquanto uma nova área de envolvimento eclesiástico com os problemas socioeconômicos, com o “homem concreto”, se dizia na época.
Obviamente, os bispos costumam ser bem informados quando tomam qualquer decisão. Para isso, contam com assessores e auxiliares, assinam jornais e revistas, acompanham diariamente as notícias do Vaticano. Dom Fernando tinha essa prática incorporada em sua rotina, acompanhando com atenção os fatos político-sociais, notícias relacionadas aos demais bispos, ou relatos acerca de si, principalmente em intervenções diante das polarizações da Guerra Fria. O conflito interpretativo em torno de suas palavras era, até, comum. Uma pasta em seus arquivos (Caixa Nº 3)[9] desperta a atenção para isso, pois contém diversos recortes de jornal colados, todos datados, relativos ao referido conjunto de temas pastorais. Todos são de meados do ano de 1962.
Nota-se em vários desses recortes o forte alinhamento do alto clero com as causas defendidas pelo presidente João Goulart. Em entrevista ao Jornal do Brasil em 12 de junho de 1962, por exemplo, encontramos o cardeal de São Paulo, Dom Carlos Carmelo Mota, a defender abertamente as Reformas de Base, que seriam a principal forma de combater o comunismo. O cardeal afirma, então, que as relações comerciais reestabelecidas com o bloco comunista em nada desmereciam a política governamental, nem serviam para identificá-lo. A questão da terra, em especial, precisava ser colocada em prática com urgência, pois “a Igreja prega a Reforma Agrária do tipo preconizado pelo Presidente da República, ou seja, sem espoliações, visando à organização e não à subversão”. A base comum entre as concepções do catolicismo e as do governo seria essa defesa intransigente de agir “na justiça social, sem direitas nem esquerdas”.
Prossegue nesse mesmo tom o arcebispo coadjutor de Belo Horizonte, Dom Resende Costa, além de tocar o diapasão da impossibilidade de ser um fiel cristão e um comunista. Em sua entrevista, republicada em 17 de maio de 1962, no jornal Folha de Goiás, esclarece que existem agitadores infiltrados em muitos movimentos sociais, mas isso não deve impedir de ver as reivindicações profundamente justas que são feitas por estes. Por isso, apesar da rejeição radical do comunismo, que levaria à renúncia da liberdade e da personalidade individual, deve-se combater a grande desigualdade existente na sociedade brasileira. Dom Resende, na mesma entrevista, afirma que os cristãos não poderiam aceitar “o lucro demasiado, a sonegação de impostos, o esbanjamento no luxo e na vida mundana, a criminosa especulação no mercado de gêneros de primeira necessidade”. Por isso, os bispos defendem as Reformas de Base, ainda que elas não realizem nenhum milagre. Se não ocorrer no Brasil, afirma, “uma mudança de mentalidade, reforma individual que só se opera abraçando a doutrina de Cristo [...], as reformas talvez apenas mudem de lugar a miséria e a injustiça”[10].
Esse trecho da entrevista revela a ambiguidade semântica do termo chave reforma. Ele possibilita aglutinar tendências diferentes, seja na política, seja no âmbito religioso. Na tradição teológica, o termo refere-se aos periódicos movimentos de retorno às fontes originais, à mudança de vida, individual ou coletiva, buscando purificação e renovação dos compromissos de fé (Lindberg, 2010). Há uma proximidade, então, do conceito de conversão e de reavivamento religioso. Já na história política do Brasil, era um termo de longa tradição semântica. Geralmente, nos debates da esquerda aparecia como oposto aos movimentos revolucionários, enquanto na pena da direita era parte das tentativas de conciliação, recorrentes em época de crise. Esse aspecto reformador e conciliatório foi, inclusive, atribuído à índole do povo brasileiro pelo historiador José H. Rodrigues (1964) nos debates coevos.
Conceitos assim, capazes de embarcar distintas experiências, caracterizam os momentos transitórios, pois são capazes de guiar ações coletivas e sintetizar sentimentos correntes. Koselleck os denominou de arquisememas (Schlagwort), porque “reproduzem continuamente em cada uma de suas ocorrências, da mesma forma como conduzem obrigatoriamente à alteração da própria situação em que ocorrem” (2006, p. 62). O termo reforma foi relevante, no caso em tela, para atualizar a missão da instituição eclesiástica no Brasil, na sua tarefa de unificar e guiar “o povo de Deus” – nova definição de igreja nos debates do Concílio Vaticano II[11] – pelo caminho da fé. Esse caminho passava, concluiu a liderança dos bispos, pelo apoio aos projetos sociais do governo federal e a algumas de suas propostas.
A atitude foi manifesta explicitamente na reunião da Comissão Central da CNBB em 13 e 14 de julho de 1962. A reunião emitiu, seguindo a tonalidade pastoral, uma mensagem conjunta acerca da “situação do Brasil” que deveria ser lida nas celebrações dominicais. Imediatamente, no dia 15 do mesmo mês, os arcebispos de Brasília, Dom José Newton de Almeida, e o de Goiânia, Dom Fernando dos Santos, foram pessoalmente entregar ao presidente da república um “memorial”[12] com a síntese das principais preocupações do episcopado.
Os bispos se colocam de início, como é típico dos discursos religiosos (Orlandi, 2003, p. 242), na posição dos dignos intérpretes da vontade divina. São os “continuadores” da mensagem de Jesus, salvador do mundo. Ao mesmo tempo em que legitimam seu direito de falar de assuntos que não são explicitamente religiosos, apontam para a defesa da sua posição enquanto responsáveis “espirituais” pelo povo. Portanto, equilibram-se nesse lugar fictício entre o céu e a miséria terrena, para serem, igualmente, intermediários entre o Presidente da República e as massas. Incorporando tal indeterminação – um lugar de fala que não possui lugar – criticam duramente a fome, a polarização social, a inflação, enfim, a ganância criminosa da elite brasileira:
[...] Longe de nós querermos insuflar as massas. Não podemos é adiar um apelo a quantos se sintam, em consciência, responsáveis pela aflição do povo, de modo especial pela fome que decorre da impossibilidade de adquirir os gêneros de primeira necessidade. Há uma ganância que cega. Há um desejo imoderado de lucro que, perante a moral cristã, continua a merecer o nome de furto. Há uma voracidade que só faz agravar a inflação... (CNBB, 1962, p. 1).
Predomina uma visão moral da economia, que costuma ser validada também nas considerações da política. Na área teológica, o ponto de partida, ou seja, a fé, julga o que existe. Por isso, no método tão influente da Ação Católica – ver, julgar e agir – a fé adentra na emissão dos juízos de valor. É interessante perceber, no pequeno trecho citado, o grau de amplitude desse arco avaliativo, ao englobar desde a consciência humana até o vazio do estômago.
Junto com a condenação da postura elitista, alerta-se ao governo para que, com exemplos de honestidade e austeridade, aproxime-se das “necessidades do povo”. Mas logo o outro lado, o dos inimigos, também fica evidenciado. O memorial alerta contra o perigo comunista. Não somente capitalistas são “exploradores da miséria”:
É evidente que denunciamos os exploradores da miséria, especialmente os comunistas que só tem a lucrar com o desespero, a desordem e o caos. Ás autoridades incube deter a agitação vermelha bastante hábil para infiltrar-se, através de sindicatos, nas greves de protesto que, imprudentemente, estão sendo estimuladas nesta hora explosiva (CNBB, 1962, p. 1).
O episcopado católico, obviamente, não queria nenhuma revolução. Mas como apagar esse estopim social? Não basta a repressão direta, e nem é cogitado algum tipo de golpe direitista. A via da ordem manifesta-se no apoio às Reformas de Base anunciadas pelo governo. Elas oferecem um modo destacado de enfrentar os principais problemas brasileiros:
Daí saudarmos, com alegria, as reformas de base que passaram a ser anseio de todos os responsáveis – poderes da República, partidos políticos, classes dirigentes. Em breve, superaremos, a propósito das reformas tidas, com razão, como inadiáveis [...] não indicações técnicas que nos escapam, mas diretrizes doutrinária (sic), aplicadas a nosso tempo e a nosso meio (CNBB, 1962, p. 1).
A aliança está evidente. O episcopado brasileiro estava dividido, porém sua liderança coordenara uma identificação política com o modus operandi do presidente que será, cerca de dois anos depois, derrubado do poder por um golpe de Estado. A repressão ao apoio conferido foi dura. No princípio, atingiu em cheio os movimentos leigos da Ação Católica Brasileira, depois grupos religiosos e, por fim, perseguiu até o alto clero[13]. A Igreja Católica no Brasil se adequou, estrategicamente, aos novos fatos da conturbada conjuntura de implantação do regime ditatorial.
Uma terceira via
Quando o movimento civil-militar golpista proclamou sua vitória em abril de 1964, a CNBB fez publicar uma mensagem agradecendo às forças armadas:
Atendendo à geral e angustiosa expectativa do povo brasileiro, que via a marcha acelerada do comunismo para conquistar o poder, as Forças Armadas acudiram em tempo e evitaram a implantação do regime bolchevista em nossa terra. [...] De uma a outra extremidade da Pátria, transborda dos corações o mesmo sentimento de gratidão a Deus pelo êxito incruento de uma revolução armada. Ao rendermos graças a Deus, que atendeu às orações de milhões de brasileiros e nos livrou do perigo comunista, agradecemos aos militares... (CNBB, 1964, p. 215-216).
Essa não é uma postura bem diferente daquela manifesta pelo episcopado um pouco antes? Sim, demonstrando-se que o clero estava tão repartido e angustiado com as tensões quanto a sociedade em geral. Nessa proclamação oficial, inclusive, o anticomunismo deu o tom das ações de graças. Contudo, em certo sentido mantendo a relativa coerência, os bispos reunidos em Olinda para a posse de Dom Helder Câmera como arcebispo fizeram uma mensagem coletiva em tom bastante diferente. Dom Fernando Gomes estava presente naquele momento e assinou o documento, logo publicado na Revista da Arquidiocese de Goiânia.
Na “Declaração dos bispos do Nordeste”, de 13 de abril de 1964, o grupo se coloca na linha de renovação que o papa João XXIII e o Concílio Vaticano II haviam propostos, buscando dar respostas aos problemas emergentes. O episcopado ali reunido se diz bastante preocupado com as primeiras ações tomadas pelo governo. Ainda que a Igreja Católica não defendesse nenhuma forma de governo em particular, estava atenta às perseguições injustas, às violências que foram desencadeadas, atingindo diretamente a dignidade e o direito dos trabalhadores. Os bispos fazem a defesa dos que foram aprisionados sem motivos evidentes, prática que se tornaria corriqueira nos anos seguintes:
Sem prejuízo das indispensáveis e oportunas medidas de segurança nacional, manifestamos como Pastores um duplo anseio: que inocentes eventualmente detidos em um primeiro momento de inevitável confusão, sejam quanto antes restituídos à liberdade; e que mesmo os culpados sejam livres de vexames e tratados com o respeito que merece toda criatura humana (Nordeste, 1964, p. 179).
Ainda no mesmo mês de abril, o arcebispo de Goiânia pronunciou sua tradicional mensagem de Páscoa, que possuía relativa repercussão na imprensa local. Aproveitou o momento para realizar um balanço do que estava acontecendo no Brasil e fornecer algumas orientações gerais. As mudanças sociais são vistas como oportunidades, pois não se poderia manter a contínua exclusão da vida econômica, política e social de tantos trabalhadores e tantas famílias, sem ter sequer o mínimo para a subsistência. Nos momentos de transição, como aqueles vividos em abril de 1964, o que mais importava era guardar “o equilíbrio, o bom senso, a decisão corajosa dos responsáveis pelos destinos da comunidade” (Santos, 1964, p. 185).
Portanto, nessa postura “equilibrada”, seria errado condenar a organização popular, a luta pelas reformas sociais ou classificar o engajamento político sob o epiteto de comunismo. O arcebispo alerta contra a opinião generalizada, e fácil, de “atribuir todos os males sociais ao comunismo, como se já estivéssemos sob o jugo do totalitarismo vermelho, mas é difícil pôr fim às injustiças sociais, ao egoísmo e à ganância” (Santos, 1964, p. 186). Seria essa ganância, invertida como virtude pelo capitalismo[14], que alimentaria a existência dos próprios movimentos comunistas presentes no estado de Goiás[15].
Nesse sentido, foi a distensão social e o extremismo ideológico que acabaram criando os impasses políticos que acarretaram o golpe de Estado. Na homilia, ele prosseguiu com um prognóstico de tons pessimistas:
O que vemos é uma Pátria dividida, uma nação estrangulada. Poderes da República em desarmonia ou em luta aberta e inglória. O capital e o trabalho em antagonismo sistemático e demolidor das energias produtivas. As forças armadas divididas e perplexas ante as paixões dos grupos de irmãos que se ameaçam e se odeiam A própria igreja, ou melhor dito, bispo, sacerdotes e líderes católicos, dolorosamente como que arrastados pelas ondas da agitação, desperdiçam forças e energias preciosas... (Santos, 1964, p. 187).
Transpira certa angústia e receio, sem deixar de dar, conforme a expressão popular, “nome aos bois”: forças armadas, poderes republicanos e a própria Igreja. No nível mais básico da economia, o conflito existente entre as forças do capital e do trabalho não foi esquecido, tese importante da análise marxista. Isso não significa, obviamente, que o arcebispo tenha adotado tal teoria social.
O anticapitalismo e o anticomunismo andaram muitas vezes de mãos dadas na tradição eclesiástica, especialmente no desenvolvimento da Doutrina Social. Os discursos anticomunistas dos líderes católicos possuem longa tradição e foram bem estudados na historiografia, bastando aqui referenciar a obra básica de Rodrigo P. S. Motta (2002). O anticapitalismo também era relativamente antigo, remontando à corrente intransigente com a modernidade que predominava antes do movimento conciliar. Porém, reforçado pelos conflitos ideológicos da década de sessenta, assumiu importância e maior coerência explicativa. Tonou-se um dos princípios de compreensão da pobreza latino-americana, incorporado na década seguinte como base da Teologia da Libertação (Valério, 2012, p. 85). Fora uma postura episcopal ou a outra, mais localizada, ressaltamos que a posição majoritária do alto clero foi a de se colocar, sempre, acima de ambas.
Por isso, a solução fundamental para os dilemas da sociedade brasileira é seguir o evangelho (Santos, 1964, p. 187). Palavra curta e simples, mas que pode incutir significados muito diferentes. É um significante fundamental para a identidade do grupo, possuindo diversos significados na história do pensamento teológico. Necessário se faz sempre compreender esse conceito de maneira contextual.
Tal necessidade de contextualização – ou encarnação, para utilizar um termo da teologia – foi uma das linhas mestras do Concílio Vaticano II (1962-1965). Ao buscar uma espécie de “volta às origens”, próxima às orientações do movimento conciliar, a Igreja latino-americana realizou sua autocrítica a partir da noção de evangelho na conferência episcopal ocorrida na cidade de Medellín (Colômbia), em setembro de 1968[16]. À luz das recentes transformações do subcontinente, o documento conclusivo afirmava serem indissociáveis os valores da vida evangélica, a pobreza e a justiça social. Os bispos manifestaram, ali, o projeto de formar “cada vez mais nítido na América Latina, o rosto de uma Igreja autenticamente pobre, missionária e pascal, desligada de todo poder temporal e corajosamente comprometida com a libertação do homem todo e de todos os homens” (Celam, 1968, p. 28).
Nesse momento foi formulada a “opção pelos pobres”, princípio básico do “cristianismo da libertação”[17] que se difundiu nos anos seguintes pelas amplas regiões continentais (Lowy, 2016). Correlato a esse maior engajamento social e político a partir do referencial religioso, e em certa medida combatendo-o, se espalharam igualmente pela América Latina os regimes ditatoriais. O terrorismo de Estado passou a ser prática corrente, fazendo do medo e da violência sistemática os instrumentos normalizados de governar[18]. Usados, em especial, contra os movimentos sociais organizados, a ação propositalmente delinquente, e geralmente clandestina, acabou por atingir os vários setores eclesiásticos, como já afirmamos.
Segundo a análise de Michel de Certeau, em artigo publicado logo após a edição do AI-5, os militares fundaram os regimes ditatoriais através de um “pensamento extraordinariamente pobre” (1987, p. 143). Acreditavam estar em uma guerra interna, lutando em nome da segurança nacional contra os que supostamente a ameaçavam. Eram os “patriotas” contra os “subversivos” a serem extirpados. A violência impossibilitava as mediações necessárias à vida social, levando-os a “aplicação de técnicas, sem um verdadeiro projeto”, a “uma tática sem estratégia”, a “uma ordem sem política”. A segunda contradição seria tentar impor um projeto integral e ordenado de sociedade no qual, de maneira malthusiana, mais da metade da população estava excluída e reduzida à miséria (1987, p. 145). Assim, a direção do governo ditatorial era “uma organização destinada a tornar-se vítima de seus pressupostos impensados e de sua própria lógica” (1987, p. 144). Ou a falta dela, pode-se reforçar.
Destarte, temos no tabuleiro histórico dos fins da década de sessenta um pensamento pobre, uma opção pelos pobres e os próprios pobres. Seria mais correto, até falar em povo[19], termo comum nos processos de construção hegemônica, tanto à direita quanto à esquerda. Em forma de esquema, teríamos três núcleos semânticos, com relativa autonomia, em relação pragmática mútua:
No interstício entre as esferas ocorria a disputa pela legitimidade. O povo seria um lugar vazio, na terminologia de Laclau (2010), destinado às projeções semânticas e tentativas de gestão pelas instituições. Pode-se propor que estavam em disputa um populismo direitista e outro esquerdista, que entraram em conflito frontal nesse período, lutas até armadas. Os pobres, obviamente, eram o sujeito oculto de ambos os lados, não sendo enquadrados por nenhuma das instituições.
O catolicismo não propunha exatamente uma “terceira via”, como diria Giddens (2005), buscando reunir as virtudes do liberalismo e a ética do socialismo. Aliás, tal possibilidade no contexto da Guerra Fria seria demasiado débil, ainda que consideremos a enorme capilaridade da instituição eclesiástica, conforme dissera Chaouch (2007, p. 439). As categorias político-sociais adentraram como valores centrais da doutrina e prática católicas, corroborando a afirmação do grupo religioso no cumprimento do que entendia ser sua missão. Isso levou-a a incrementar sua capacidade de atuar na transformação da sociedade, buscar conformá-la a seus ideais.
A nosso ver, o conceito de justiça social teve papel destacado nesse processo de tradução, de atribuição de novos sentidos às experiências dos grupos sociais, ainda que dificultada pela polarização da Guerra Fria. Por isso mesmo foram disputados intensivamente pelo Estado autoritário e pelo catolicismo, em nome do povo/pobre. Essas noções serviram de guia para o modelo pastoral de encarnação do Evangelho, sem que a Igreja Católica, em nenhum momento, renuncie à posição de autoridade transcendental perante a sociedade humana.
Considerações finais
Dom Fernando Gomes dos Santos poderia ser, tranquilamente, anticomunista, dando-se um voto de confiança ao testemunho do arcebispo na Comissão Bipartite. Sem adotar os princípios e as estratégias dos movimentos comunistas, ele criticou vigorosamente tanto o capitalismo liberal quanto as ações da ditatura civil-militar implantada em abril de 1964. O “pensamento pobre” não cabia aqui, e suas dicotomias simplistas em nada contribuíram para a melhor compreensão das ações da Igreja Católica no período da Guerra Fria[20].
Isso não significa que o clero tivesse uma posição unificada. É importante perceber como cada diocese, representada neste artigo por seu gestor máximo, filtrava e reagia aos valores que circundavam a sociedade nacional. O terrorismo de Estado atingiu desde os movimentos populares até altas lideranças políticas e eclesiásticas. Idas e vindas, receios e enfrentamentos, denúncias corajosas e silêncios acabrunhados foram comuns nesse período, mesmo de pessoas resguardadas por uma instituição de prestígio social e poder, a exemplo da Igreja.
Tentamos, neste artigo, refletir sobre processos históricos complexos fora da lógica de mocinho e bandido, comum ainda na historiografia acerca dos períodos ditatoriais (Fico, 2020). O arcebispo de Goiânia, obviamente, teve contradições ao tentar, por tantas décadas, propagar suas crenças e manter a comunhão das pessoas cotidianamente com o Deus que ele seguia. Espera-se ter demonstrado que Dom Fernando não era “a favor da continuação do regime militar”, como afirmou Serbin em seu estudo (2001, p. 300), mas talvez os mecanismos da repressão ditatorial tenham contribuído para que tivesse mais clareza na forma de anunciar um Cristo para o povo, ou viver como o guia dele, missão a que se dedicou até a morte.
Referências
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Notas