Dossiê Religiões e Religiosidades na História do Tempo Presente
“Amigos e companheiros de Vianna”: memória e identidade espírita em disputa na biografia Vianna de Carvalho, o tribuno de Icó
"Friends and companions of Vianna": memory and spiritist identity in dispute in the biography "Vianna de Carvalho, the tribune of Icó"
“Amigos e companheiros de Vianna”: memória e identidade espírita em disputa na biografia Vianna de Carvalho, o tribuno de Icó
Revista Tempo e Argumento, vol. 15, núm. 39, e0103, 2023
Universidade do Estado de Santa Catarina
Recepção: 24 Setembro 2022
Aprovação: 04 Agosto 2023
Resumo: Este artigo problematiza historicamente a biografia de uma grande personalidade do Espiritismo no Brasil, intitulada “Vianna de Carvalho. O tribuno de Icó” (1999), de Luciano Klein Filho, tendo em vista que a sua publicação e o enredo da obra fazem parte de um projeto mais amplo de construção memorial com vistas à legitimação do grupo ao qual se vincula o autor e dirigente da Federação Espírita do Estado do Ceará-FEEC (1990). Explorando a temática das disputas religiosas no meio espírita a partir da história do tempo presente, relaciona-se a obra de Klein Filho como demarcadora de uma historicidade das origens do movimento espírita local nos quadros da disputa pela afirmação de sua identidade frente ao grupo federativo concorrente, organizado na União das Sociedades Espíritas do Estado do Ceará (1993). Na análise desponta a percepção de que Klein Filho, como voz autorizada a dialogar com o passado espírita local, entabulando relações com grandes médiuns e espíritas nacionais, desenvolve complexo jogo de legitimações que são capitalizadas pelo grupo da FEEC, no bojo de sua aliança com a Federação Espírita Brasileira. Conclui-se que, ao longo das três últimas décadas, os empreendimentos memorialísticos biográficos garantiram maior legitimação histórica ao grupo febiano no Ceará, ao mesmo tempo em que impulsionaram uma tomada de ação do grupo opositor no sentido de investimento memorialístico a partir de outros marcos históricos.
Palavras-chave: memória, identidade, espiritismo, Vianna de Carvalho.
Abstract: This article historically problematizes the biography of a great personality of Spiritism in Brazil, entitled “Vianna de Carvalho. O tribuno de Icó” (1999), by Luciano Klein Filho, considering that its publication and the plot of the work are part of a broader project of memorial construction with a view to legitimizing the group to which the author and leader is linked. of the Spiritist Federation of the State of Ceará-FEEC (1990). Exploring the theme of religious disputes in the spiritist environment from the history of the present time, Klein Filho's work is related as a demarcation of a historicity of the origins of the local spiritist movement in the context of the dispute for the affirmation of its identity in front of the competing federative group, organized in the Union of Spiritist Societies of the State of Ceará (1993). In the analysis, the perception emerges that Klein Filho, as an authorized voice to dialogue with the local spiritist past, establishing relationships with great mediums and national spiritists, develops a complex game of legitimations that are capitalized by the FEEC group, in the midst of its alliance with the Brazilian Spiritist Federation. It is concluded that, over the last three decades, the biographical memorial projects have guaranteed greater historical legitimacy to the febian group in Ceará, at the same time that they have stimulated an action taken by the opposing group in the sense of memorialistic investment from other historical landmarks.
Keywords: memory, identity, spiritism, Vianna de Carvalho.
O presente estudo encontra-se compreendido numa temporalidade muito recente. Centrado nas ações dos sujeitos vinculados ao campo religioso espírita, entre a década de 1990 e 2016, o objeto insere-se no campo dos debates históricos consoante às possibilidades de uma história do tempo presente. Por suas características empíricas e por suas implicações subjetivas resultantes dos compartilhamentos, diretos ou indiretos, conscientes ou inconscientes, de experiências e conjunturas da contemporaneidade entre pesquisadores e pesquisados, resulta em construção permeada de liames que não podem ser entendidos como óbices à inteligibilidade do conhecimento das ações dos sujeitos humanos no tempo. Chauveau e Tétart (1999, p. 36-37) reforçam o valor da epistemologia da história do tempo presente no interrogar da história e em propor novos dados, “para aumentar sua capacidade de explicação e de sugestão [...] para observá-la e pô-la em dúvida para melhor conhecer seu funcionamento e assegurar-se de sua validade – de sua capacidade heurística”.
Como rebate às críticas dos historiadores “modernistas” à história do tempo presente, sobre maior acesso às fontes, ou sua profusão, a polêmica entre escrita histórica e escrita ficcional, bem como a subjetividade do trato de objeto perpassado pelas vivências contemporâneas de investigados e investigadores, Chartier (2000, p. 218) reconhece a obrigatoriedade, também, dos historiadores da história do tempo presente de refletirem sobre seus pressupostos, e admite que a HTP “pela própria natureza de suas preocupações, permite reconhecer a historicidade fundamental das condições de produção e de validação do saber histórico, atrelando nosso ofício à exigência de conhecimento verdadeiro que o fundamente”.
Já em sua especificidade, essa análise histórica trata de instituições, doutrinas e práticas religiosas que se equacionam no campo da história das religiões. Partilha-se do entendimento de que as religiões são produto histórico, culturalmente condicionado pelo contexto e capazes de condicionar esse mesmo contexto, tendo suas afirmações, discursos e enunciados entendidos como representações de determinada sociedade e cultura (Agnolin, 2013; Albuquerque, 2007; Julia, 1976; Mata, 2010). Assim, problematiza-se a publicação da obra biográfica espírita “Vianna de Carvalho, o tribuno de Icó”, de Luciano Klein Filho (1999), a construção histórica de sua autoria – atuação religiosa do autor no meio espírita cearense, como escritor e dirigente de entidade uma federativa –, e como empreendimento editorial e intelectual relacionado às disputas do movimento espírita local e às pretensões de afirmação e legitimidade no campo espírita nacional. Pois, como bem reconhecera Bourdieu (2004, p. 120), nas reflexões sobre transformações contemporâneas do religioso, “todo campo religioso é o lugar de uma luta pela definição, isto é, a delimitação das competências.”
Nesse sentido, trata-se, aqui, da referida publicação biográfica como parte de um empreendimento de afirmação de uma identidade institucional no movimento espírita, vinculado à Federação Espírita do Estado do Ceará (FEEC), através da biografia e dos usos da memória de um cearense, personagem de vulto do Espiritismo brasileiro; ocasião em que se entrelaçam suas vivências como personalidade “encarnada/desencarnada”, ou como médium/Espírito-mentor, em que se produz uma narrativa legitimadora de práticas, vínculos e hegemonias religiosas, numa tentativa de constituição de uma memória autorizada[1] e uma determinada historicidade no jogo identitário espírita, em cenário de disputas locais entre organizações federativas. Nota-se, nessa obra biográfica, a emergência pioneira do interesse concreto pela história do movimento espírita cearense, especialmente um papel demarcador das origens históricas para a identidade espírita desse agrupamento religioso específico.
A criação da FEEC, com status de representante oficial do Espiritismo cearense junto à Federação Espírita Brasileira (FEB)[2], à qual está vinculado o autor da biografia, é resultado de embates políticos do movimento espírita local, em que um grupo oposicionista se organiza nas décadas de 1970 e 1980, para fazer frente ao grupo espírita que os representava junto à FEB, de 1950 a 1990, através da União Espírita Cearense. Como resposta, o grupo derrotado funda, em 1993, uma outra federativa, a União das Sociedades Espíritas do Estado do Ceará (USEECE), que se filiaria à Confederação Espírita Panamericana (CEPA)[3].
É nesse cenário de disputas pela hegemonia espírita local que Klein Filho publica a biografia de Vianna de Carvalho, vista, aqui, como empreendimento demarcador das origens do Espiritismo local. Instaura-se uma busca do passado espírita no Ceará, na perspectiva da FEEC-FEB. Esses usos da memória condizem com o “uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado, um passado que nunca é aquele do indivíduo somente, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional” (Rousso, 2005, p. 94). Ou, conforme Pollak (1992, p. 204-205), a “memória e identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais”. Enfim, “não existe um verdadeiro ato de memória que não esteja ancorado nos desafios identitários presentes” (Candau, 2016, p. 150).
Desse modo, analisa-se, na primeira parte do artigo, a montagem de um frontispício de autoridade religiosa, com prefácio/mensagem dos Espíritos dirigidos à obra, ao autor e à personagem biografada. Na segunda parte, são apresentadas as relações que o biógrafo estabelece entre o espírita cearense Manuel Vianna de Carvalho (1874-1926) e o médium baiano Divaldo Pereira Franco (1927- ), em dois planos de convivência e atuação espírita, ao longo do século XX até a atualidade e, por último, as relações entre a publicação biográfica e os usos memoriais com fins de legitimação identitária de uma tradição histórica no Espiritismo cearense (FEEC) sob hegemonia das representações da Federação Espírita Brasileira-FEB, com desdobramentos que impulsionam uma reação memorialística no campo federativo concorrente, União das Sociedades Espíritas do Estado do Ceará-USEECE (1993)[4].
I – Construção biográfica em simbiose espiritual
Muito embora Manoel Vianna de Carvalho, à época da escrita de O tribuno de Icó, já fosse conhecido através de breves perfis biográficos em periódicos espíritas e em crônicas memorialísticas, como em coletâneas biográficas (Godoy, 1981; Wantuil, 1969)[5], nas quais se estabelece um roteiro cronológico de sua vida, centrado em suas peregrinações pelo território nacional como oficial do exército a difundir e organizar o Espiritismo nas capitais e sertões, centros urbanos e periferias, coube a Klein Filho (1999), entretanto, – numa perspectiva biográfica que entrelaça as tradições da exemplaridade dos antigos (ao modo historiamagistra) com os recursos da hagiografia cristã, no quadro que Dosse (2015) classifica como “A idade heroica” da biografia –, detalhar as várias facetas de Vianna, aprofundando aspectos mencionados superficialmente nos perfis vários, como, por exemplo, informes das relações entre a Espiritualidade (vida espiritual) e vida física-histórica de seu personagem.
Assim, depois das apresentações e Introdução, as nomeações dos capítulos de 1 a 11, são respectivamente: Nascimento, O literato, O militar, O músico, O jornalista, O maçom, O orador, O polemista, Outras facetas, A grande cruzada, O regresso triunfal. Luciano Klein finaliza a obra com os capítulos 12 a 14 tratando respectivamente, de uma entrevista realizada em 1995 com Renato de Carvalho, irmão mais novo de Vianna, e outra com o médium Divaldo Pereira Franco, sobre suas relações e trabalhos com o Espírito Vianna de Carvalho.
Embora mantendo-se fiel ao roteiro cronológico já tradicionalmente conhecido das suas viagens e atividades de divulgação espírita pelo país, como visto em Godoy (1981), Klein Filho faz pesquisa meritória levantando detalhes preciosos da vida profissional de Vianna como oficial do exército, trazendo dados de suas habilidades musicais, dons literários e detalhes burocráticos de sua vida militar, no intuito de aproximar-se de uma totalidade da vida narrada. Mas a obra tem um lugar social de produção a ser explicitado e se insere num campo específico, militante e interessado das batalhas intelectuais e da memória, inerentes às disputas entre os grupos sociais. Nesse caso, reflete a emergência de um grupo espírita local e ao trabalho de construção de sua hegemonia frente ao grupo derrotado.
Considere-se, nessa argumentação, que em 1990 é fundada a Federação Espírita do Estado do Ceará (FEEC), sob a tutela da Federação Espírita Brasileira – FEB. A FEEC foi sediada na Comunhão Espírita Cearense – surgida da fusão do antigo Centro Espírita Cearense com o Centro Espírita Meimei, em 1974 –, sob as lideranças de Benvindo da Costa Melo e Ari Bezerra Leite. O grupo anterior, dirigente da União Espírita Cearense-UEC, organização federativa que representava o Ceará na FEB, fora descredenciado pelo Conselho Federativo Nacional-CFN da FEB[6]. Em 1993, fundaria outra entidade, a União das Sociedades Espíritas do Estado do Ceará-USEECE, por sua vez filiada à Confederação Espírita Panamericana – CEPA.
A USEECE compunha-se de lideranças espíritas remanescentes da UEC, surgida em 1951, como resultado do Pacto Áureo (1949) que unificara o movimento espírita local pela fusão de federativas locais oponentes, Confederação Espírita Cearense e Federação Espírita Cearense. A União Espírita Cearense estivera sob a liderança de José Borges dos Santos (1891-1979), sucedido por um de seus filhos, Orlando Borges dos Santos, fundador da USEECE, que tem sido secundado por seu filho André Luiz Bezerra Borges dos Santos, que ocupou diversos cargos de comando de entidades espíritas vinculadas à sua federativa, como Grupo Espírita Auxiliadores do Pobres-GEAP e a União Espírita Cearense.
As atuais duas entidades federativas espíritas do Ceará diferem, também, no tocante ao modo de gestão, perceptível como algo próximo ao tipo dos ideais weberianos de dominação/legitimação, pois o grupo da USEECE permaneceu preso ao modelo característico de legitimação tradicional-familiar, praticando uma espécie de Espiritismo clânico, assentado na herança institucional advinda do patriarca fundador do GEAP, com seguidas gerações de sua família no controle de centros espíritas e entidades federativas; ao passo que a gestão e legitimação da FEEC dá-se pelo modelo de dominação de racional-legal, de onde despontam intelectuais, jornalistas, profissionais liberais sem estruturação de poder familiar (Weber,1994).
Urgia uma conquista do passado espírita local, um “trabalho de memória”. O destaque fica com Klein Filho, valioso quadro intelectual da nova geração de espíritas da recém-fundada Federação Espírita do Estado do Ceará – FEEC. O biógrafo terá o suporte do grupo, de redes de amizades e discursos autorizados de nomes nacionais do Espiritismo, encarnados e desencarnados, como os responsáveis pelos introitos ao seu “Tribuno de Icó”.
Luciano Klein Filho[7] fez parte, desde a década de 1980, do centro espírita Comunhão Espírita Cearense, herdeiro do tradicional Centro Espírita Cearense (1910), uma das entidades formadoras do grupo oposicionista à citada União Espírita Cearense, e participante dos quadros da FEEC, desde sua fundação; ocupou por diversas vezes nos últimos anos a presidência e vice-presidência da instituição, destacando-se mais pelo trabalho de construção de uma memória do Espiritismo no Ceará. Nesse campo, encetou relações e pesquisas das quais resultariam publicações diversas, especialmente livros biográficos, com destaque para Vianna de Carvalho e Bezerra de Menezes (Klein Filho, 1999, 2000, 2002, 2006, 2021; Klein Filho; Cajazeiras, 1995). Outras iniciativas intelectuais do grupo, também com destacada atuação de Klein Filho e fortemente ligada ao trabalho memorialístico espírita local, encontram-se na criação do Centro de Documentação Espírita do Ceará, e as publicações dos periódicos Ceará Espírita (1991), Fortaleza Espírita (1996-1997), Gazeta Espírita (1999).
Em sua primeira publicação, Klein Filho e Francisco Cajazeiras[8], “Palavras de Vianna de Carvalho”, trazem a público as conferências de Vianna de Carvalho pronunciadas em lojas maçônicas de Fortaleza e publicadas no jornal Unitário, órgão do Partido Republicano Liberal, ao longo do ano de 1911. É trabalho já revelador de um projeto memorial:
Anelando resgatar a memória do movimento espírita alencarino, iniciamos um trabalho de pesquisa que culminou com um grande achado: a descoberta de um verdadeiro tesouro de luzes, esquecido há mais de oitenta anos nas páginas empoeiradas e amarelecidas de um antigo jornal local [...] ao encontrarmos essa preciosidade, compartilhamo-la com amigos, surgindo, então, a ideia da publicação de um livro com as mensagens do nosso Vianinha (Klein Filho, Cajazeiras, 1995, p. 13, grifo próprio).
O pioneirismo desse trabalho no campo da história do Espiritismo no Ceará é evidente. E as repercussões desse e outros empreendimentos do gênero, em termos de construção de capital religioso do novo grupo no comando do Espiritismo no Ceará, sob os auspícios da FEB, renderam a Luciano Klein a condição de fala autorizada (Bourdieu, 2008)[9] porta-voz no meio espírita quando o assunto é a história da doutrina na “Terra do Sol”. Portanto, quando da publicação de “Vianna de Carvalho. O tribuno de Icó” já é possível perceber, nos introitos à obra, a gama de falas autorizadas de espíritas nacionais. Assim, precedendo a Introdução do autor, encontram-se três textos. O primeiro, a Apresentação – com trecho na orelha –, de Lamartine Palhano Junior[10], que destaca:
Temos acompanhado a trajetória dos esforços empregados por Luciano na pesquisa sobre a vida e obra do grande tribuno espírita Manoel Vianna de Carvalho. [...] Luciano vem a tempo registrar, historicamente, a obra espírita de Vianna, valorizando a presença desse baluarte da palavra evangelizadora dos tempos novos em nossa terra. [...] caro leitor, receba este trabalho em seu acervo intelectual, certo de que está de posse de um verdadeiro resgate histórico que vem, novamente, levantar a bandeira da esperança através do exemplo vivo do verdadeiro cristão que foi Vianna de Carvalho (Palhano Jr, 1999 apud Klein Filho, 1999, p. 11-12, grifo próprio).
O segundo texto, o Prefácio, é de Eduardo Carvalho Monteiro[11]. Após considerações iniciais sobre o trabalho do “memorialista”, Monteiro chama a atenção para a surpresa de ver que
o major Vianna de Carvalho, protagonista de carreira militar brilhante, teve esta ofuscada diante da profícua atividade de divulgador espiritista, que poderia ser apagada pela esteira do tempo não fosse a oportuna iniciativa de Luciano Klein Filho em biografá-lo. Alinhado aos grandes pioneiros do espiritismo na Pátria do cruzeiro, só agora, com este exaustivo trabalho do historiador Luciano, podemos ter a real dimensão de sua importância para a implantação da consoladora doutrina dos espíritos em nossa terra... (Monteiro, 1999 apud Klein Filho, 1999, p. 14-15, grifo próprio).
Aspecto importante esse destaque que Eduardo Monteiro dá para a biografia para a história do Espiritismo no Brasil, legitimando o autor como referência na construção dos marcos memoriais da “consoladora doutrina dos espíritos em nossa terra”, não bastasse o fato de a mesma obra determinar os marcos originários do Espiritismo no Ceará, em 1910, com a atuação destacada de Vianna de Carvalho. E, após observar o papel das novas tecnologias digitais e informáticas no trabalho da pesquisa histórica e do arquivamento de documentos para a pesquisa espírita, Eduardo Monteiro relata suas impressões sobre as sutilezas da biografia em foco:
Não estamos nos referindo ao mérito das pesquisas e das minúcias a que desceu seu autor. Elas, naturalmente valorizam o trabalho. O que estamos a nos referir é à simbiose agradável que sentimos como leitor entre biógrafo e biografado, ao entrosamento e à afinidade que surge entre um e outro a cada página que o livro avança... (Monteiro, 1999 apud Klein Filho, 1999, p. 15, grifo próprio).
Finalizando os textos de apresentação, a edição traz a mensagem psicografada “Sob as luzes do espiritismo”, enviada por “amigos e companheiros de Vianna”. A mensagem é assinada por Ignácio Bittencourt, Jeronimo Ribeiro, Leopoldo Cirne, Pedro Richard, Bezerra de Menezes, Francisco Peixoto Lins (Peixotinho), Militão Pacheco, Anália Franco, Cairbar Schutel, Pedro Lameira de Andrade, Batuíra, Juvenal Galeno e Ramiro Gama.
Segundo nota de rodapé, a mensagem foi motivada pelo envio dos originais do livro ao já citado pesquisador espírita Lamartine Palhano Junior. Daí resultou a recepção de mensagem psicografada, assinada pelos “Amigos e companheiros de Vianna”[12] quando encarnado, saudando a iniciativa da biografia e revelando a atuação dos espíritos na pesquisa histórica.
Por isso, dizem os “Amigos e companheiros de Vianna”:
quando o homem de bem, pregador do cristianismo redivivo, exemplificador e testificador do Cristo é, de alguma forma, lembrado no meio da sociedade humana, nós, os espíritos seus amigos, que testemunhamos seus esforços e também sofremos os mesmos trabalhos, nos reunimos para agilizar na mente do pesquisador todas as nuanças possíveis a serem lembradas, os bons exemplos que induzem à paz e à verdade. Falamos aos ouvidos de muitos que parecem tirar das reminiscências mentais as imagens e conversas úteis que fazem referência aos feitos heroicos do vencedor; outros, ouvindo nossas vozes, abrem velhos baús e, sem saber porquê, catam documentos esclarecedores envelhecidos pelo tempo... Partem de nossos espíritos para a alma do pesquisador o alinhamento preciso, a palavra correta, o acerto doutrinário, numa tarefa que lhe é cansativa, mas que se torna prazerosa pelas presenças amigas que o envolvem a cada passo [...] nesta oportunidade em que foi materializada em palavras a vida e obra do lavrador espírita, do soldado de Cristo, do atleta do espiritismo nas terras brasileiras, expandem de nós a gratidão e o reconhecimento, que pedem as luzes de Deus, e que as mãos do Espírito de Verdade se coloquem sobre este testemunho do escriba moderno, que, cristianizado, conta a história de um homem de bem... (Ignácio Bittencourt et all [Espíritos], 1999 apud Klein Filho, 1999, p. 17-19, grifo próprio).
Não bastasse a profícua “simbiose” entre biógrafo e biografado, atestada por Eduardo Carvalho Monteiro, também os Espíritos amigos atestam sua interferência junto ao(s) pesquisador(es), trazendo mais complexidade ao teor das subjetividades nos estudos das Humanidades e Ciências Sociais, se se admite o fenômeno. Mas, também deixam um recado claro: os espíritos o fazem por afinidades com o biografado, por considerá-lo digno de ser lembrado entre os habitantes terrenos. Haveria, portanto, uma intencionalidade declarada, uma seletividade moral no impulsionamento da memória, na inspiração do pesquisador/biógrafo, demonstrada pelos habitantes da “Espiritualidade”, do plano espiritual.
A propósito da questão, Camurça (2019) identifica na história do espiritismo brasileiro um divisor de águas na construção de sua identidade conservadora sob o comando da FEB, a partir dos anos 1930, com a emergência discursiva e o protagonismo do plano espiritual, revelador de princípios, fatos e realidades (p. 201-202. Grifos do autor), programações do devir histórico brasileiro pela Espiritualidade como exemplaridade de ordem e da hierarquia, através da literatura mediúnica, da qual desponta como marco o livro de Chico Xavier “Brasil, coração do mundo, Pátria do Evangelho” (1938), pelo espírito Humberto de Campos, e as seguidas obras de Chico Xavier, pelo espírito André Luiz, a exemplo de “Nosso Lar” (1944)[13].
Observa-se, então, na narrativa da “Espiritualidade”, a urgência da intervenção: “nós, os espíritos seus amigos, [...] nos reunimos para agilizar na mente do pesquisador todas as nuanças possíveis a serem lembradas.” (Ignácio Bittencourt et all [Espíritos], 1999 apud Klein Filho, 1999, p. 17) Estabelece-se uma solidariedade e cumplicidade entre o “escriba moderno” e a biografia de “pregador do cristianismo redivivo, exemplificador e testificador do Cristo [Vianna de Carvalho]”, na construção memorial do cristianismo. Reforça-se a concepção do Espiritismo brasileiro como novo cristianismo, legitimado pelo domínio febiano. Lewgoy (2004) ressaltara o papel mediador da conduta e construção biográfica de Chico Xavier como exemplar da mediação do Espiritismo com o catolicismo popular brasileiro, e com os elementos de ordem e hierarquia na construção da nacionalidade.
Portanto, a mensagem entrelaçando os planos material e espiritual, no contexto religioso espírita brasileiro, cumpre um papel que vai além do reforço à crença e às adesões, pois configura instrumento do jogo de legitimação e afirmação identitária no seio do próprio movimento espírita, que sempre foi heterogêneo e disputado. O biógrafo “cristianizado”, voz autorizada do grupo, incensado pelo Além, não deixa de estar no mundo das relações terrenas, inserido num lugar social de produção desse mesmo discurso e num campo religioso mais amplo.
Assim, a presença destacada de tal mensagem representa, para o campo interno espírita, uma demonstração de legitimidade do grupo junto à Espiritualidade, posto que originária de um centro de pesquisas espíritas, como referido, e trazendo uma plêiade de luminares da história do espiritismo brasileiro, como verdade, como fato; já para o campo religioso brasileiro, cumprindo sua função de disputa monopolista da dispensa dos bens de salvação e de consagração da ordem social/material pelo sobrenatural, naturalizando a ordem mundana como sagrada, a mensagem dos “Amigos e companheiros de Vianna” carrega consigo um contributo espírita à representação religiosa do mundo (Bourdieu, 2004).
II - O espírito da oratória
O arsenal de recursos e vínculos de autoridades espirituais enfeixadas nos preâmbulos da obra biográfica em estudo, também se faz presente na sua conclusão, com o capítulo “O binômio Vianna/Divaldo”, momento em que é transcrita a entrevista com o médium e orador Divaldo Franco. O autor trata dos trabalhos de Vianna como espírito parceiro de Divaldo, afinidades entre Espírito/médium e curiosidades sobre outras encarnações de Vianna.
O ponto de partida é a seguinte declaração de Divaldo Franco:
No ano de 1947 [...] esclareceu-me que, durante a sua jornada terrestre, enquanto eu me encontrava fora do corpo, tive oportunidade de acompanhá-lo, participando de grupo de amigos desencarnados que participavam de suas realizações espirituais. Agora ele iria manter um estreito convívio psíquico (mediúnico) comigo, auxiliando-me nas palestras espiritas que eu deveria proferir. Desde então, tem-me auxiliado como verdadeiro benfeitor (Franco, 1998 apud Klein Filho, 1999, p. 174-175).
Ou seja, segundo o biógrafo, na relação espiritual entre Vianna de Carvalho e Divaldo Franco, temos, por um lado, a informação do cearense Manuel Vianna de Carvalho (1874-1926), considerado o maior orador espírita brasileiro da primeira metade do século XX, falando como Espírito Vianna de Carvalho, que atuara sob inspiração daquele Espírito amigo que hoje é o médium baiano Divaldo Pereira Franco. De outro lado, o autor destaca que da segunda metade do século XX até o presente, consagrou-se Divaldo Franco como o maior orador espírita brasileiro, sob inspiração e assistência do Espírito Vianna de Carvalho.
Assim, no que tange ao primeiro momento da afirmação de Klein Filho (1999), no referente à atuação encarnada do militar e maçom Manoel Vianna de Carvalho[14], acha-se consolidada na memória histórica do Espiritismo brasileiro, afirmada por cronistas espíritas febianos, seus contemporâneos de militância, e posteriores (Gama, 1968; Godoy,1981; Wantuil, 1990), e em registros amplos, pelo Brasil, de suas assistências reconhecidas, de suas habilidades oratórias e cultura geral e espirítica nos registros da imprensa, embora não se tenha registros históricos dos guias espirituais atuantes naquele seu trabalho de oratória.
Já para o segundo momento da assertiva, referente à atuação encarnada do baiano Divaldo Pereira Franco, consolidada em décadas, no Brasil e exterior, a dita “simbiose” configura-se em construção intelectual da lavra original do biógrafo Luciano Klein[15], que costura elementos da crença espírita na mediunidade – atuação de guias e mentores – com mecanismos da memória e cultura histórica do movimento espírita brasileiro no sentido da afirmação de uma continuidade/exclusividade da colaboração da “Espiritualidade” na consagração hegemônica do modelo febiano de Espiritismo – dita Casa-Máter do Espiritismo no Brasil.
É oportuno lembrar que a FEB esteve, ao longo do século XX, em permanente embate com outras correntes unificadoras do movimento espírita brasileiro – vide disputas originárias com o Centro da União Espírita de Propaganda do Brasil, com a Liga Espírita do Brasil, com a Confederação Espírita Panamericana, e outros – perpassando os períodos históricos da atuação militante de Viana de Carvalho e de Divaldo Franco. Pois a prática espírita, do mesmo modo que sua difusão – no caso dos escritos biográficos – está inserida no contexto dos processos sociais e históricos de consolidação e expansão dos movimentos religiosos em seus embates políticos por legitimação.
Nesse intuito, Klein Filho (1999) apresenta outros aspectos da entrevista que revelam a citada simbiose entre os “missionários” e os laços institucionais, a exemplo dos vínculos do Viana de Carvalho-militar-maçom, com a Cruzada dos Militares Espíritas, clubes militares, lojas maçônicas, sempre correlacionados a exemplos de vidas anteriores (encarnações) de Vianna. Desse modo, registra que em uma conferência no Clube Militar do Rio de Janeiro, em 10 de dezembro de 1974, nos trinta anos de sua fundação da Cruzada, Divaldo Franco menciona:
[...] 1874, setenta anos depois de Allan Kardec, assinala a chegada à Terra de um herói das cruzadas antigas, de um nauta das terras ensanguentadas de Saladino; de um daqueles que foram defender o túmulo vazio de Jesus, mas que agora volta para proclamar a indestrutibilidade do Cristo... (Franco,1998 apud Klein Filho, 1999, p. 26).[16]
Sobre esses vínculos militares, digno de nota é o fato de que a biografia “O Tribuno de Icó”, foi lançada em solenidade no auditório do Colégio Militar de Fortaleza, onde Vianna de Carvalho iniciara sua formação militar, e onde seu biógrafo é professor de História. Os detalhes do evento foram publicados no jornal Gazeta Espírita, órgão oficial do Centro de Documentação Espírita do Ceará – CEDEC. A solenidade contou com a participação do Coral do jornal O Povo – o mais antigo jornal do Ceará –, com apresentações musicais, oradores ligados ao jornalismo local e com emissões nos rádios e TVs da capital, e artigo de divulgação “O tribuno de Icó”, no jornal Diário do Nordeste, de autoria do jornalista, juiz e espírita Paulo Eduardo Mendes[17]. Contudo, um elemento de grande peso simbólico a destacar, é o lócus do lançamento, uma instituição militar, que evoca laços memoriais com o biografado, como também o reforço de status e autoridade que os vínculos com as Forças Armadas sempre trouxeram historicamente para uma religião minoritária, como o Espiritismo, no âmbito do imaginário brasileiro (Silva, 2019).
Mas, as menções às vidas passadas de Vianna continuam tratando, desta feita com seu vínculo maçônico, quando Divaldo afirma, na citada entrevista, que Vianna lhe teria dito ter estado “presente na Revolução Francesa, como orador inflamado, laborando em favos dos direitos do povo oprimido pelos poderosos da época” (Franco 1998 apud Klein Filho, 1999, p. 175). É consenso historiográfico que a maçonaria francesa fora uma das molas propulsoras daquele movimento (Koselleck 1999; Naudon, 2000; Vidal, 2006).
Assim, vincula-se o biografado às demandas por liberdade e às lutas contra tiranias do Antigo Regime, cujo lema, ainda nas origens fortemente libertário, “liberdade, igualdade e fraternidade”, a maçonaria impulsionava e emoldurava os novos sistemas sócio-políticos liberais representativos da burguesia mundial, aos quais ela se ajustaria nos posicionamentos conservadores na nova ordem. Não admira que, historicamente, maçonaria e militares tenham desenvolvido tanta afinidade eletiva, como ela faria, também, com o Espiritismo (Machado, 1997; Silva, 2016).
Em entrevista, indagado por Klein Filho sobre algum caso, uma curiosidade, do Vianna maçom, o médium Divaldo conta episódio em uma loja maçônica de Franca (SP), momento em que se preparava para fazer a conferência: “Ele apareceu-me e encarregou-se da tarefa, inspirando-me, palavra por palavra, em um tema que denominou como a iniciação dos essênios, que foi posteriormente publicada” (Klein Filho, 1999, p. 176).
Nesses casos, a simbiose entre os personagens demonstra, também, o trabalho de memória sobre o Vianna encarnado – realce da memória histórica de sua missão – através do médium e orador Divaldo Franco, entrelaçando o passado e o presente em duas instituições tradicionalmente conservadoras e estruturadas na ordem e hierarquia (Silva; Isaia, 2019). Mas, visto esse movimento discursivo por outro ângulo, o da confidencialidade das informações, íntimas, preciosas, de Divaldo sobre o passado espiritual de seu mentor, observa-se que o biógrafo possibilita para sua obra o privilégio da confidencialidade, bem como maior capitalização de autoridade para orador e representante (institucional) espírita.
Assim, a narrativa das experiências de oradores, nos dois planos de existências, em simbiose, reforça o aspecto da oficialidade institucional e de legitimação do modelo espírita febiano, como representação de fala autorizada, conforme entendimento de Bourdieu (2008). Pelo mesmo mecanismo, tal situação legitima os vínculos institucionais do biógrafo – seu lugar de produção como um dos fundadores e presidentes da FEEC – como fala autorizada local.
Não se pode, por fim, deixar de perceber na obra o Tribuno de Icó, o caráter de construção memorial de um marco histórico para o Espiritismo no Ceará, a partir da atuação de Vianna de Carvalho, em 1910, ao fundar o Centro Espírita Cearense, já sob os auspícios da FEB, movimento do qual a FEEC é, e deseja continuar sendo, a herdeira legítima.
III – Biografia, cronologia e marcos identitários na legitimação do movimento espírita local
Conforme se observou, anteriormente, a referida biografia de Vianna de Carvalho, insere-se no conjunto de diversos procedimentos intelectuais com decisivo apoio institucional da direção da FEEC, que se mesclam às iniciativas e projetos autorais de Luciano Klein Filho, no sentido de consolidação de uma memória espírita local resultante da percepção do autor e de seu grupo, de que no Ceará eram desconhecidos os percursos históricos do Espiritismo local. Uma percepção correta, aliás, pois não havia produção organizada sobre esse percurso, nem dos adeptos nem da academia.
As pesquisas de Klein Filho, em parceria com alguns companheiros, tiveram caráter inaugural em termos de produção histórica e memorialística do Espiritismo local, tendo aparecido antes da citada biografia de Vianna de Carvalho, alguns pequenos textos inaugurais, como o seu “O Espiritismo na Terra da Luz”, na revista Fortaleza Espírita.[18]
Os primeiros livros de Klein Filho (Cajazeiras; Klein Filho, 1995; Klein Filho, 1999) atestam o grande desconhecimento do público e o desinteresse acadêmico sobre o tema no Ceará. Contudo, os citados empreendimentos memorialísticos dos espíritas da FEEC, contando com a visibilidade nacional das publicações de Klein Filho[19], não apenas passam a estabelecer um corpus documental e uma perspectiva própria de abordagem do passado espírita local, como também se pavimenta, em benefício da afirmação política-institucional desse grupo local febiano, a legitimação de uma tradição histórica do Espiritismo cearense a partir do Centro Espírita Cearense (1910), com o pioneirismo de Vianna de Carvalho, do qual a FEEC despontaria como herdeira natural.
Nesse contexto, a obra Klein Filho (2000), a despeito das rusgas iniciais, incorpora parte das memórias de personagens-chave do grupo espírita derrotado em 1990, resguardando uma postura respeitosa e amistosa com os rivais, não abrindo mão de firmar uma tradição histórica no Espiritismo local, estabelecendo marcos referenciais para o passado espírita cearense. Aqueles, reunidos na USEECE, por sua vez, não haviam até aquele momento desenvolvido empreendimento memorialístico, havendo sido hegemônicos no Espiritismo local ao longo de décadas. Assim, no prosseguimento dessa afirmação identitária, a memória do Espiritismo local torna-se matéria-prima disputada pelos dois segmentos federativos nos últimos trinta anos, observando-se, sobretudo por parte do grupo da FEEC, uma proliferação de empreendimentos memorialísticos, imprimindo um selo histórico, no qual se destaca a atuação intelectual de Luciano Klein Filho.
Esse embate no campo da memória espírita local fará surgir, um pouco mais tardiamente, em 2013, uma reação do grupo da USEECE a partir da divulgação de um blog na internet, constituindo um outro espaço de memória do Espiritismo no Ceará a partir de outros marcos temporais e institucionais, vinculados aos primórdios de seu grupo e ancorado na atuação do patriarca José Borges dos Santos (1891-1979). De origem portuguesa, José Borges veio para o Brasil e se estabeleceu ainda adolescente no Amazonas, como comerciante. No início dos anos 1920, mudou-se para o Ceará. Tornou-se espírita e passou a atuar fortemente no movimento organizativo local e na fundação, em 1928, do Grupo Espírita Auxiliadores do Pobres (GEAP). Liderou a fundação de diversas agremiações espíritas em Fortaleza e foi membro da maçonaria. Em 1939 participou como fundador da Confederação Espírita Cearense – filiada à Liga Espírita do Brasil – em oposição à Federação Espírita Cearense, filiada à FEB, que guardava ligação com o pretérito Centro Espírita Cearense, fundado por Vianna de Carvalho.
José Borges dos Santos comandou a Confederação Espírita até 1950, ocasião em que, por conta das Caravanas da Fraternidade, promotoras do “Pacto Áureo” de unificação do movimento espírita brasileiro, dá-se a unificação do movimento espírita local com a criação da União Espírita Cearense – UEC, também sob o comando de José Borges do Santos seu grupo.
Desse modo, as “cronologias” divulgadas no blog da USEECE, sob a autoria de André Luiz Bezerra Borges dos Santos, ressaltam o GEAP como a célula-máter do espiritismo local, em oposição à FEEC que postula a fundação do Centro Espírita Cearense (1910) e o pioneirismo de Vianna de Carvalho como o idealizador e fundador. A despeito das diferenças cronológicas patentes, essa não é a questão fundamental nessa disputa. O grupo da USEECE não se nega a reconhecer o papel de Vianna de Carvalho, assim como Klein Filho (2000) não sonega informações sobre nomes de peso do movimento espírita local como José Borges dos Santos e vários de seus aliados naquelas disputas pretéritas, que constam em sua coletânea de biografias, “Memorias do Espiritismo no Ceara”.
Joga-se com um trabalho memorial destinado à construção e consolidação de identidades, fundamentais no campo das arregimentações e das alianças com grupos nacionais ou internacionais do movimento espírita, a exemplo das articulações FEEC/FEB/CEI – Conselho Espírita Internacional, e USSECE/CEPA – Confederação Espírita Panamericana. Essas iniciativas levam à afirmação de determinados marcadores de memória – nos dois grupos em estudo –, e são reveladoras das disputas simbólicas no campo espírita cearense, que apresenta a capital como espaço de maior domínio da FEEC e o interior do estado com maior capilaridade da USEECE.
Assim, diante dos empreendimentos de cunho memorialísticos do grupo da FEEC, desde seus primeiros anos, capitaneados por Klein Filho e companheiros, percebe-se que o grupo da USEECE espera mais de uma década do lançamento da biografia “Viana de Carvalho: o tribuno de Icó”, para iniciar uma reação no terreno da memória. Quais seriam, então, suas motivações? Quais seriam seus marcos fundadores, ou mitos de origem do movimento espírita cearense?
Primeiramente, é notável que a reação do grupo USEECE ao desenvolver um empreendimento público de memória esteja ligada, de algum modo, à questão sucessória. O sucessor de José Borges dos Santos, seu filho Orlando Borges, esteve à frente da União Espírita Cearense desde o final da década de 1970. Depois da derrota para o grupo da FEEC, Orlando Borges criou e passou ao comandar a USEECE. Nos últimos anos, tem se destacado seu filho André Luiz Bezerra Borges dos Santos. No caso, experimenta-se algo como uma perda de sustentabilidade da “memória coletiva”, enquanto memória de grupo, segundo Halbwchs (1990), por achar-se, nas últimas décadas, em processo de diluição dos laços tradicionais (no caso familiares) que vinculavam seus membros às instituições que lhes garantiam a legitimidade em outros tempos. De tal modo, que “Quando a memória de uma sequência de acontecimentos não tem mais por suporte um grupo [...] então o único meio de salvar tais lembranças, é fixá-las por escrito em uma narrativa seguida” (Halbwachs, 1990, p. 80-81).
Consequentemente, na última década, despontou um trabalho de memória da parte da USEECE, destinado a recuperar seus feitos passados e estabelecer seus marcos históricos – uma cronologia –, para as demandas identitárias do presente. O empreendimento memorialístico da USEECE começa com o título “Grupo Espírita Auxiliadores dos Pobres, GEAP. Octogésimo oitavo aniversário de fundação (1928-2016)”[20]. Nota-se, logo, outro marco fundante para o espiritismo local, a fundação do GEAP. Em seguida a justificativa do projeto, do “ato de memória”:
Em janeiro de 2013 teve início o Projeto CRONOLOGIA ILUSTRADA DO GEAP com o objetivo de resgatar as memórias do Movimento Espírita Cearense disponibilizando para pesquisa os acervos de informações e imagens dos arquivos do Grupo Espírita Auxiliadores dos Pobres.
Em formato cronológico e ilustrado são apresentados desde as primeiras notícias do fenômeno espírita no Ceará, os pioneiros, até chegar ao dia 28 de julho de 1928 quando da fundação do GEAP.
Segue-se então a luminosa trajetória desta instituição que abrigou durante décadas relevantes sociedades como a Confederação Espírita Cearense - CEC, União Espírita Cearense - UEC e atualmente a União das Sociedades Espíritas do Estado do Ceará - USEECE que juntas construíram, transformaram e delinearam o movimento espírita cearense como concebemos atualmente. (União da Sociedades Espíritas do Estado do Ceará, 2016).
Nessa narrativa, a trajetória do espiritismo local conflui para a data máxima, “luminosa”, do surgimento do GEAP, em 1928. Dele desdobram-se, sob seu abrigo, a CEC, a UEC e a USSECE. Para André Luiz B. Borges dos Santos, essas entidades “juntas construíram, transformaram e delinearam o movimento espírita cearense como concebemos atualmente” União da Sociedades Espíritas do Estado do Ceará, 2016).
Sintomaticamente, em sua “Cronologia Ilustrada do GEAP”, André Luiz chama as fases anteriores à fundação do GEAP de “Século XIX – Primórdios”, “1901-1910 – Primeira década do Espiritismo cearense” e “1911-1920, os anos que antecederam a fundação do GEAP”. Para essa fase, consta uma foto de Vianna de Carvalho, na qual o personagem aparece ao lado de outros nomes espíritas da época. Assim, tudo conflui para o momento de fundação da “luminosa” instituição, o GEAP, que é inaugural para sua memória familiar, que se apresenta como memória do Espiritismo local.
O maior destaque capitalizado pelo grupo da FEEC nos trabalhos de memória dos últimos trinta anos, em que dispôs de maior vantagem material, de difusão doutrinária, de ação publicitária e legitimidade política em nível nacional, por conta de sua vinculação à FEB, e com maior legitimidade social por seus empreendimentos editoriais, especialmente nas publicações de Klein Filho contribuiu, junto aos fatores geracionais e familiares, para impelir a USEECE a um trabalho de memória para acertar suas contas com o passado em prol de sua identidade espírita.
Considerações finais
A percepção da historicidade das ações humanas no tempo presente, ou na contemporaneidade do historiador, demanda um olhar problematizador que impõe como condição o reconhecimento de que o objeto em estudo se acha “incompleto”, em processo, muito embora não sejamos ingênuos por achar que o distanciamento no tempo garantiria ao historiador condição de determinação das balizas finais de um evento histórico ou de um processo de transformações sócio-histórico. Essa reflexão convém ao objeto de análise deste artigo, qual seja, a biografia “Vianna de Carvalho o tribuno de Icó”, de Luciano Klein Filho.
Quando a obra vem a público no ano de 1999, traz consigo não apenas a conclusão da escrita biográfica de uma personalidade renomada da história do Espiritismo no campo organizacional e, sobretudo, no terreno da oratória não mediúnica, como Vianna de Carvalho, mas, também, todo um complexo de intencionalidades que extrapolam, consciente ou inconscientemente, os desejos do biógrafo e do meio religioso em que se insere. Foram demonstrados, neste trabalho, os vínculos do biógrafo com a implantação da FEEC e seus projetos no campo da pesquisa histórica do Espiritismo no Ceará, desde os primeiros anos da instituição, razão pela qual não se pode desvincular esse produto intelectual de seu espaço social de produção.
Desse modo, Klein Filho não apenas produz uma biografia inédita em termos de Espiritismo brasileiro, sobre um personagem que é considerado uma unanimidade da oratória, como também demarca sua condição de cearense e de fundador do Espiritismo na “Terra da luz”. Esses dois elementos biográficos somados ao vínculo institucional do autor, perfazem o caminho de um trabalho memorialístico inédito, também, na cultura espírita cearense, demarcando uma historicidade e legitimidade que começa em 1910, coma a fundação do Centro Espirita Cearense – a partir das movimentações de Vianna de Carvalho nos meios intelectuais, na imprensa e na maçonaria local –, e que se estenderia até à existência da FEEC na última década do século XX, sem se esquecer de mencionar os vínculos com a FEB nas duas pontas do processo, haja vista que a referida atuação de Vianna em 1910, no Ceará, se dá como representante da FEB.
Entretanto, o estabelecimento da FEEC (1990) – federativa vinculada e legitimada pela FEB –, dá-se após uma disputa com o grupo estabelecido na desautorizada União Espírita Cearense, e seu grupo articulado historicamente em torno da liderança José Borges dos Santos. A partir de então, dá-se a formação de uma entidade concorrente, a USEECE que disputará espaço e legitimidade local, vinculando-se nacional e internacionalmente à CEPA.
Desse embate ou relação de concorrência no campo da disputa de monopólio na dispensa de bens espirituais entre as duas entidades organizativas, desponta a percepção empírica de uma resposta da USEECE no campo memorialístico – através de cronologias em blogs da internet – tendo em vista o estabelecimento de outros marcos para o Espiritismo local, desta feita exaltando como central a fundação do GEAP (1928), que teve a atuação exponencial do patriarca José Borges dos Santos.
Conclui-se, provisoriamente, que tanto o trabalho de memória realizado por Klein Filho sobre Vianna de Carvalho como um marco fundador, quanto a iniciativa das Cronologias da parte da USEECE, configuram investimentos memorialísticos que expressam de forma clara esforços identitários no movimento espírita local, pois “A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro” (Le Goff, 1992, p. 477).
Referências
AGNOLIN, Adone. História das religiões: perspectiva histórico-comparativa. São Paulo: Paulinas, 2013.
ALBUQUERQUE, Eduardo Basto de. A história das religiões. In: USARSKI, Frank. (org.). O espectro disciplinar da ciência da religião. São Paulo: Paulinas, 2007. p.19-52.
ARRIBAS, Célia da Graça. Espíritas de todo o Brasil, uni-vos! meandros da unificação espírita na primeira metade do século XX. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 37, n. 3), p. 150-172, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rs/a/gv6ZgtCmqMFdtGcSynQTynx/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 1 set. 2021.
BOURDIEU, Pierre; CHARTIER Roger. A leitura: uma prática cultural. In: BOURDIEU, Pierre; CHARTIER Roger; BRESSON, François (orgs.). Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. p. 242-143.
BOURDIEU, Pierre. A dissolução do religioso. In: BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004. p.119 -125.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas. 2. ed. São Paulo: Editora da USP, 2008.
CAMURÇA, Marcelo. Controvérsias atuais no espiritismo brasileiro: conservadorismo e determinismo ou hermenêutica e mediações na relação como “plano espiritual”. In: GOMES Adriana; CUNHA, André Victor; PIMENTEL, Marcelo Gulão. Espiritismo em perspectiva. Salvador: Sagga Editora, 2019. p. 200-222.
CANDAU, Joel, Memória e identidade. São Paulo: Editora Contexto, 2016.
CHARTIER, Roger. A visão do historiador modernista. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (orgs.). Usos e abusos da história oral. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. p. 215-218.
DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. 2. ed., São Paulo: Edusp, 2015.
GAMA, Ramiro. Seareiros da primeira hora. Guanabara: Editora Eco, 1968.
GODOY, Paulo Alves. Os grandes vultos do espiritismo. São Paulo: Editora FEESP, 1981.
HALBWCHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice: Editora Revista dos Tribunais, 1990.
JULIA, Dominique. História religiosa. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (orgs.). História: novas abordagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1976. p.106-131.
KLEIN FILHO, Luciano; CAJAZEIRAS, Francisco (orgs.). Palavras de Vianna de Carvalho. Fortaleza: Edições FEEC, 1995.
KLEIN FILHO, Luciano. Vianna de Carvalho. O tribuno de Icó. Niterói: Lachâtre, 1999.
KLEIN FILHO, Luciano. Memórias do espiritismo no Ceará: as vidas de grandes vultos a sua contribuição para a grandeza da Seara espírita. Fortaleza: DPL-Editora e Distribuidora de Livros; Centro de documentação Espírita do Ceará, 2000.
KLEIN FILHO, Luciano. Bezerra de Menezes: fatos e documentos. Rio de Janeiro: Lachâtre; CAPEMI, 2000.
KLEIN FILHO, Luciano. A mensagem eterna de Vianna de Carvalho. São Paulo: DPL, 2002.
KLEIN FILHO, Luciano. Viana de Carvalho. 80 anos de desencarnação. Reformador. Revista de Espiritismo Cristão, Ano 124, v. 2, n.131, p.27-29, out. 2006.
KLEIN FILHO, Luciano. Bezerra de Menezes: o homem, seu tempo e sua missão. Fortaleza: FEEC, 2021.
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise. Tradução Luciana Villas-Boas Castelo-Branco. Rio de Janeiro: EDUERJ; Contraponto, 1999.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1992.
LEWGOY, Bernardo. O grande mediador: Chico Xavier e a cultura brasileira. Bauru, SP: EDUSC, 2004.
MACHADO, Ubiratan. Os intelectuais e o espiritismo. Niterói: Publicações Lachatre, 1997.
MATA, Sérgio da. História & Religião. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.
NAUDON, Paul. A franco-maçonaria. A história. A doutrina. Os ritos. As obediências. Sintra [Portugal]: Publicações Europa-América, 2000.
POLLACK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n.10, p. 200-215, 1992.
ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. p. 93-101.
SILVA, Marcos Jose Diniz; ISAIA, Artur César. Memória e construção da identidade espírita. As relações entre Divaldo Franco e Vianna de Carvalho. In: GOMES Adriana; CUNHA, André Victor; PIMENTEL, Marcelo Gulão. Espiritismo em perspectiva. Salvador: Sagga Editora, 2019. p.183-199.
SILVA, Marcos Jose Diniz. Maçons, espíritas e teosofistas: afinidades eletivas e espiritualismo no Ceará do século XX. Fortaleza: EdUECE, 2016.
TÉTART, Philippe; CHAUVEAU, Agnès. Questões para a história do presente. In: TÉTART, Philippe; CHAUVEAU, Agnès (orgs.). Questões para a história do presente. Bauru: EDUSC, 1999. p. 7-37.
UNIÃO DA SOCIEDADES ESPÍRITAS DO ESTADO DO CEARÁ. [S.l.], 2016. Disponível em: https://useece.blogspot.com/2016/01/cronologia-ilustrada-do-geap-grupo.html. Acesso em: 9 jun. 2018.
VIDAL, César. Os maçons: a sociedade secreta mais influente da história. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2006.
WANTUIL, Zeus. Grandes espíritas do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FEB, 1969.
WEBER, Max. Economia e sociedade: vol.1. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1994.
Notas