Resenha
Religião, totalitarismo e idolatria de massa
MARCEL Gabriel. Male, olocausto, teodicea. Curatore: Franco Riva, Paolo Scolari. 2022. Roma. Castelvecchi. 144pp.. 9788832906073 |
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Recepção: 29 Janeiro 2023
Aprovação: 30 Junho 2023
Publicado: 23 Setembro 2023
MARCEL, Gabriel. Male, olocausto, teodicea. Curatore: Franco Riva, Paolo Scolari. Roma: Castelvecchi, 2022, 144p (Collana: Itineranze) EAN: 9788832906073.
A Castelvecchi de Roma lança, em seu catálogo, uma rica produção cujo raio de abrangência, em especial, se propaga no circuito mais amplo das ciências humanas. Trata-se de Male, olocausto, teodicea de Gabriel Marcel, filósofo, dramaturgo, crítico literário e compositor francês. Sob a curadoria de Franco Riva e Paolo Scolari, esse primoroso trabalho edita, em versão italiana, um pequeno conjunto de escritos marcelianos que tocam sensivelmente em três temas cardeais: o mistério do mal, o fenômeno do holocausto e a problemática da teodiceia. Contando com os ensaios introdutórios de Paolo Scolari, Drammi, parole, alterità: incontri con il male e de Franco Riva, Discese agli inferi: olocausto, vittime, teodicee, o livro reúne os seguintes textos: Non si deportani i cani (Não se deportam os cães), Perdono e menzogna (Perdão e mentira), Il massacro di Oradour (O massacre de Oradour), L’incancellabile (O indelével), L’incontro con il male (O encontro com o mal), Io e la mia morte (Eu e a minha morte), Io e tu (Eu e tu), Note sul male (Notas sobre o mal) e, por fim, Fede e idolatria (Fé e idolatria).
Para começar, abordemos o primeiro tópico, a saber, o enigma do mal. Em vários de seus escritos, Marcel conceitua o mal não como um problema específico, como algo a ser identificado diante do “sujeito” a título de um “objeto” puro e simples. O mal não se encontra à maneira clássica da teoria do conhecimento, como se as coisas estivessem fora, absolutamente deslocadas de nossa consciência, de nosso agir, de nossa visão de mundo. Noutros termos, o mal se revela como uma esfera da experiência intimamente humana e, por isso mesmo, ele não se projeta fora, mas dentro, essencialmente dentro de nós.
É sob esse prisma que Marcel descreve o mal como um mistério ou enigma, quer dizer, como um evento ou acontecimento concreto, real, íntimo que nos circunda, penetrando mais profundamente. O mal convive em mim, entranha-se em mim, não só na consciência, mas carnalmente, concretamente. Eu assumo, me comprometo com o mal tornando-o uma expressão da minha própria maneira de me relacionar com o mundo e as coisas. Como observa Scolari, “o mal me olha e me preocupa: encontrar o mal é ser encontrado pelo mal” (Op. cit., p. 15). Eis porque, em Marcel, “a experiência da guerra”, como, por exemplo, veremos adiante, “o faz abandonar uma visão do mal como uma ideia abstrata e metafísica, a fim de impeli-lo para o encontro com um mal cada vez mais real e concreto” (Scolari, Op. Cit. p. 16).
Desse modo, “o homem que faz a experiência do mal ‘sente-se ameaçado por dentro’” (Scolari, Op. Cit. p. 28). Nesse sentido, eu encarno o mal em todos os planos sejam eles ontológico, político, ético, religioso, ideológico etc. Eis porque, situar o mal como “problema”, como um objeto fora de mim, exprime tão somente uma maneira falsa de pôr a questão, uma vez que sou levado à tentação ou a uma saída fácil de me desfazer dele, em vez de assumi-lo mais radicalmente, isto é, intersubjetivamente, como bem avista Riva: “o mal te joga no abismo das atrocidades. O mal também se encontra, como o perdão, no rosto do outro. Mesmo o mal é sempre falado em situações, nunca em geral, em nome de outros ou de todos, uma vez que falta resposta até para o mal” (Op. Cit. p. 42). Daí advém a tarefa fenomenológica de descrever a verdadeira fisionomia desse evento misterioso em face das overdoses midiáticas a que estamos expostos. Fato é que não podemos ignorar o abismo do mal à nossa volta ou em nós mesmos: será preciso descer até ele, para além de certas promessas místicas ou religiosas.
O segundo tema trazido à baila pelo livro e que, de certa forma, é um desdobramento do primeiro é a experiência dramática do holocausto. Do mesmo modo que, em outros textos como O Homem contra o Humano (1951), Marcel volta a esse capítulo difícil da história humana matizado de tantos agenciamentos vis como a ascensão de regimes totalitários no século XX. Ora, como Marcel olha para esse evento? De início, o que ele não perde de vista é que toda a indústria bélica e totalitária constitui, na verdade, um produto do “espírito de abstração” como fator essencial. Tal “espírito”, descreve ele, é essencialmente passional, e, nessa medida, ideológico, populista, em sua expressão última. Trata-se de um “espírito” massivo, à medida que se insurge em meio ao clamor das massas.
Foi assim, por exemplo, que Hitler se tornou um líder carismático, capaz de sugestionar toda uma legião devota de adeptos, eletrizar paixões capazes de levar, quase inteiramente, uma nação ao delírio. O patriotismo germânico, o ideal de uma raça pura, a eugenia como técnica, são apenas alguns desses artifícios que inflamam o que vai se configurar no sinistro fenômeno do holocausto. O “espírito de abstração” tem esse poder, ou seja, essa potência de acirrar ânimos, de subliminarmente massificar porque ele não faz a terraplanagem adequada, no sentido de descer ao chão da experiência humana a fim de melhor concretamente mensurá-la, estudá-la, compreendê-la. Tal “espírito” parte de um “abstracionismo” inconsequente que é algo bem diferente da “abstração” como raciocínio rigoroso inerente à atividade intelectual.
Quando se persegue, agride, tortura ou mata-se alguém é sempre por esse “espírito” que se é tomado, freneticamente movido. Há um vício de origem que Marcel identifica nesse ardiloso espírito: à associação ao mal. O holocausto se comporta como sócio desse à medida que é, do ponto de vista prático, o próprio espírito de abstração em curso. Há, para empregar em linguagem fenomenológica, uma intencionalidade prática daquele espírito ao se lançar mão de toda técnica aviltante, em seu desígnio último como modus operandi, proativo. É isso que dá livre passagem ao holocausto como aparelhamento totalitário e faz dele o que é: a incitação ao ódio, ao diferente, aliada à animosidade paramilitar de tropas, campos de extermínio etc., compondo, em ato, o estratagema requintadamente cruel, macabro e teratológico da potência metafísica que habita aquele “espírito”.
O bombardeio, a brutalidade inaudita dos campos de extermínio ou o massacre como na pequena Oradour-sur-Glane, nada mais são do que expressões encarnadas daquele “espírito”. O que só revela, pois, que o “espírito de abstração” é a alma de toda forma de personalismo, dogmatismo, irracionalismo como “pensamento de sobrevoo”, pensamento esse, como caricatura Merleau-Ponty, “sem peso e sem gravidade”, que se pretende impermeável à experiência, à história, ao acontecimento. A única saída a esse estado de coisas, a esse não pensamento, só pode ser aberta, vislumbra Marcel, pela “empatia e pelo amor”, os únicos sentimentos capazes de “evaporar, de um certo modo, as fórmulas abstratas que satisfazem o intelecto estatístico” (Op. Cit. p. 75).
O terceiro e último tema digno de atenção não só dos filósofos, mas, sobretudo, dos teólogos, é a teodiceia. Ora, as questões postas anteriormente de certa maneira preparam esse debate que o livro incorpora. Trata-se, aí, de repensar fundamentalmente se a teodiceia clássica (como em sua inspiração wollf-leibniziana) dá conta de compreender o mistério do mal e suas consequências como a experiência do holocausto. Isso posto, vale inicialmente observar que a teodiceia, voltada a justificar ou provar a existência de Deus, toma este último também a título de objeto, quer dizer, como um problema a ser identificado, comprovado, justificado.
Em segundo lugar, como falar de Deus nos tempos modernos, ou seja, num mundo em que a ciência e a técnica se orientam no afã de aprimorar os seus métodos, apurar os seus resultados e de que não há mais como inscrever a história teleologicamente? A experiência histórica mostra que não é possível situar-se de maneira retilínea no tempo, que o acontecimento não se mensura como uma linha reta e que, portanto, o seu movimento é sempre alusivo, oblíquo, indeterminado. Em face disso, a narrativa religiosa que marcou época (vide Comte e o ideal da grande religião do mundo) rente aos ideais cientificistas se revela como uma justificativa vã.
Pois bem, Marcel se dirige numa posição diametralmente oposta. Ele quer refletir sobre uma experiência do sagrado para além da teodiceia como ciência, como doutrina em todas as suas tonalidades judaico-cristãs. Deus não é algo que se demonstra ou se justifica. Nada há o que se provar acerca de Deus, seja científica ou filosoficamente. Não temos acesso a ele como se tratasse de um objeto identificável, localizável inferindo daí os seus atributos. Isso mostra o quanto Marcel comunga com Léon Brunschicvg a tese de que “a teodiceia contém um caráter sacrílego” (Op. Cit. p. 81): é que “Deus não é um ídolo” (Op. Cit. p. 131), a ser adorado, idolatrado, mas, antes, assume a forma de um “mistério” (Op. Cit. p. 135). O máximo que podemos é reconhecê-lo a título de um enigma, hic et nunc manifesto como experiência íntima e real. Uma religião só pode se tornar verdadeira à luz dessa inquietude fundamental já que Deus transcende toda curiosidade epistêmica.
Em suma, ao reunir nesse belíssimo trabalho tais pontos cardeais temáticos, Franco Riva e Paolo Scolari, renomados especialistas da obra de Marcel, brindam o público leitor ao promover um debate ainda vivo entre nós. O livro é pródigo em mostrar que não superamos tais questões, isto é, que elas nos desafiam permanentemente se quisermos compreender, a fundo, o que elas podem trazer à tona, de tempos em tempos.