Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Descargas
HTML
ePub
PDF
Buscar
Fuente


“Um solo bendito consagrado à Santa Mãe de Deus”: o Santuário de Fátima da Serra Grande e a construção de uma cultura política romeira no tempo presente (São Benedito, Ceará)
“A blessed soil consecrated to the Holy Mother of God”: the Sanctuary of Fátima in the Serra Grande and the construction of a pilgrim political culture in the present time (São Benedito, Ceará)
Revista Tempo e Argumento, vol. 15, núm. 39, e0105, 2023
Universidade do Estado de Santa Catarina

Dossiê Religiões e Religiosidades na História do Tempo Presente


Recepção: 02 Janeiro 2023

Aprovação: 02 Abril 2023

DOI: https://doi.org/10.5965/2175180315392023e0105

Resumo: O escopo deste artigo é o Santuário de Fátima da Serra Grande na cidade de São Benedito no estado do Ceará. Tenho como fito pensar os usos do passado na construção de uma cultura política romeira no tempo presente, a partir da análise histórica de documentos, como informativos e revistas virtuais publicadas pelo santuário. O Santuário de Fátima da Serra Grande tem se tornado um dos mais relevantes centros de romaria do Nordeste brasileiro. Oriundo da iniciativa do clero e de leigos cearenses, o edifício religioso foi construído ao longo dos dois primeiros decênios do século XXI e, desde então, tem se destacado com a recepção de elevados contingentes de romeiros. Os registros narrativos produzidos pelo santuário permitem vislumbrar as ações do clero na invenção do passado recente, vinculando à mística das aparições portuguesas, bem como evidenciam a devoção dos leigos e as narrativas de milagres.

Palavras-chave: religiosidade, romaria, Santuário de Fátima, História do Tempo Presente.

Abstract: The scope of this article is the Sanctuary of Fátima in the Serra Grande in the city of São Benedito in the state of Ceará. My aim is to think about the uses of the past in the construction of a political culture pilgrimage in the present, from the historical analysis of the documents, such as based on newsletters and virtual magazines published by the sanctuary. The Sanctuary of Fátima in the Serra Grande has become one of the most important centers of pilgrimage in the Brazilian Northeast. Coming from the initiative of the clergy and lay people from Ceará, the religious building was built over the first two decades of the 21st century and since then has stood out with the reception of large contingents of pilgrims. The narrative records produced by the sanctuary allow us to glimpse the actions of the clergy in the invention of the recent past, linking it to the mystique of the Portuguese apparitions, as well as highlighting the devotion of the laity and the narratives of miracles.

Keywords: religiosity, pilgrimage, Sanctuary of Fatima, History of the Present Time.

Introdução

Estou aqui, pela primeira vez, no âmbito do Santuário, que já posso dizer um solo bendito consagrado a Santa Mãe de Deus, querida e amada por todos nós. Parabenizo os idealizadores e construtores desta obra maravilhosa, para que seja este, o espaço onde aquele que Maria trouxe ao mundo, Jesus Cristo, se torne o centro de nossas vidas. Porque toda a missão dela é nos dar Jesus. E aqui já vejo quantos milhões, ao longo de anos receberão a Cristo pelas mãos de Maria e pelo Coração materno dela para nos fazer conhecer a sua Palavra, para nos unir mais a Ele e nos tornar verdadeiramente aquilo que fomos chamados pelo Batismo, Cristãos. Aqui, de fato, muitas bênçãos jorrarão para todos os devotos que chegarem aqui a este Santuário. (D. Jacinto – dezembro de 2006)

Este artigo tem como epígrafe as palavras de D. Jacinto, bispo da Diocese de Crateús, na homilia de sua primeira visita ao Santuário de Nossa Senhora de Fátima da Serra Grande, em São Benedito, na romaria de 13 de dezembro de 2006. Ainda em meio a um canteiro de obras, com as primeiras ações em torno da construção do edifício religioso, o prelado ressaltou a relevância do empreendimento de criação de um santuário dedicado à Virgem de Fátima, uma das principais devoções marianas do mundo contemporâneo. Além disso, ele elucidou a dimensão de sacralidade do espaço, que já nascia destinado a ser um centro de romarias (CORSO, 2020), no qual deveriam jorrar as graças aos devotos que ali buscassem alento. Nas palavras que intitulam este artigo, haveria ali “um solo bendito consagrado à Santa Mãe de Deus”.

A criação do Santuário de Fátima da Serra Grande ocorreu em um contexto delineado por um intenso movimento de reordenamento da conduta clerical no Brasil. O emergir do novo milênio evidenciou uma perda considerável da capilaridade do número de católicos no país, como resultante do amplo crescimento de igrejas protestantes, notadamente de viés neopentecostal. Assim, esse movimento católico teve como mote o crescimento das igrejas evangélicas no Nordeste, região historicamente marcada pelas romarias e forte apelo ao chamado catolicismo das camadas populares (SANTOS, 2017b).

Neste sentido, a reação católica desdobrou-se em três direcionamentos. No primeiro, esteve pautada no esforço de fortalecer a presença eclesiástica de espaços religiosos até então negligenciados, como os centros de romarias do Monte de Santana em São Pedro do Potengi (Rio Grande do Norte), São Severino do Ramos em Paudalho e de Santa Quitéria em São João (ambos em Pernambuco). Esses centros religiosos erigidos em espaços privados, passaram a ter o controle das romarias disputados pela Igreja Católica, como uma iniciativa de promover um maior direcionamento litúrgico, assim como de implementar a administração religiosa dos templos.

O segundo direcionamento teve como cerne a oficialização de cultos religiosos populares massivos, como uma tentativa de reaproximar os romeiros da tutela eclesiástica. O caso mais sintomático desse movimento ocorreu em Juazeiro do Norte, por meio de ações como a elevação da Matriz Nossa Senhora das Dores à dignidade de santuário pela Diocese do Crato no ano de 2003 e da elevação do mesmo templo à condição de basílica menor pela Santa Sé em 2008 (SANTOS, 2020; PAZ, 2011; SANTOS, 2021). A chancela eclesiástica do espaço sagrado foi referendada por meio da reconciliação da Igreja Católica com o Padre Cícero Romão Batista, em 2015, e a abertura do processo de beatificação em 2022.

Por fim, o terceiro direcionamento esteve pautado na criação de novas expressões e espaços devocionais, como peregrinações, romarias e santuários. Em alguns casos, essa iniciativa apenas oficializou ações anteriores, como o documento que reconheceu Nossa Senhora Divina Pastora como padroeira da Província Eclesiástica de Aracaju em 2017 (SANTOS, 2015b). Em outros casos, foram criadas peregrinações e romarias, como a do Sagrado Coração de Jesus em Palmares (Pernambuco), as de Nossa Senhora Aparecida no município homônimo e em Aracaju (Sergipe). Essas expressões religiosas, criadas nos primeiros anos do século XXI, revelavam a preocupação eclesiástica em dotar as suas respectivas dioceses de manifestações massivas de fé (SANTOS, 2015a).

Além disso, também é possível vislumbrar entre essas iniciativas o esforço em criar centros de romaria. Por um lado, isso ocorreu por meio da beatificação e canonização de um significativo número de religiosos brasileiros. Esses foram os casos da Santa Paulina do Coração Agonizante de Jesus (2002), Santo Antônio Santana Galvão (2007), São José de Anchieta (2014), Protomártires do Brasil (2017), Santa Dulce dos Pobres (2019), além da beatificação da Menina Benigna Cardoso em Santana do Cariri no ano de 2022. O reconhecimento da santidade de sujeitos históricos realizado pela Santa Sé tem potencializado o surgimento de novos centros de romaria como os dos Protomártires do Brasil, com três santuários na Arquidiocese de Natal (BEZERRA, 2021),

Por outro lado, também é possível identificar iniciativas que buscavam respaldar devoções já existentes por meio da construção de santuários grandiosos. São exemplos dessas ações os santuários de Bom Jesus do Horto, em Juazeiro do Norte no Ceará, da Santa Cruz dos Milagres, em município homônimo do Piauí, de Santa Rita de Cássia em Santa Cruz no Rio Grande do Norte (FARIAS, 2013; SANTOS, 2017a) e de Nossa Senhora de Fátima da Serra Grande em São Benedito no Ceará. Em muitos casos, a edificação de monumentos tornou-se um instrumento disputado pelos poderes públicos municipais e estaduais, com o propósito de criar atrativos para o fomento ao turismo religioso (SANTOS, 2016).

Neste artigo, tenho como escopo o Santuário de Fátima da Serra Grande na cidade de São Benedito no estado do Ceará. Tenho o propósito de pensar os usos do passado na construção de uma cultura política romeira no tempo presente. O santuário criado nos idos de 2006, tornou-se um dos mais proeminentes e dinâmicos centros de romaria do Ceará, com a realização de importantes eventos mensais, a cada dia 13, que chegam a reunir mais de vinte mil devotos. Além disso, ainda nos primeiros anos de atividade, o santuário investiu nas publicações digitais como ferramenta para ampliar o campo de irradiação dos romeiros. Em decorrência de ter sido um santuário criado a partir das peregrinações da imagem mariana portuguesa, o clero secular, responsável pela administração do santuário, mobilizou narrativas que elucidam tanto a história do santuário e das aparições marianas em Portugal, como também, por meio dos milagres atribuídos à patrona do templo.

Esses registros escritos foram publicados pelo santuário entre dezembro de 2012 e abril de 2020. Com a eclosão da pandemia, as publicações escritas cessaram e teve início uma nova fase, com um maior investimento nas transmissões das celebrações em canais virtuais, como o YouTube. Ao partir dessa constatação, mobilizo a análise histórica e tenho como fontes para esta pesquisa os dois principais instrumentos de publicação escrita produzidos pelo santuário no momento anterior à pandemia da Covid-19. O primeiro é o Informativo Santuário de Fátima, publicação mensal, no qual eram apresentadas as principais ações desenvolvidas no santuário, como as romarias, testemunhos de romeiros e a campanha dos devotos. Os documentos mantiveram um padrão de quatro laudas por edição e podem ser entendidos como uma importante fonte para pensar o processo de construção do templo e a sistematização das romarias.

O segundo documento é a Revista Mãe de Fátima, publicada a partir de 2013, com dois ou três números anuais, geralmente em meses festivos das grandes romarias como maio, outubro e dezembro. Tratava-se de um periódico mais adensado, com dezesseis laudas, nas quais apareciam seções como o editorial, história, testemunhos de milagres, obras do santuário, campanha dos devotos e orações marianas. É uma fonte que possibilita entender como o passado foi acionado na construção de um sentido para o espaço sagrado, bem como os direcionamentos para instituir uma cultura política romeira.

Pautado nessas considerações, enfrento o discurso religioso produzido pelo Santuário de Fátima da Serra Grande a partir de duas premissas basilares: a da História do Tempo Presente e a da cultura política. Pensar um santuário erigido no passado próximo implica no desafio historiográfico de escrever a história acerca de experiências que foram protagonizadas por sujeitos que ainda se fazem presentes. Como nos alerta Henry Rousso, a história do tempo presente se singulariza “pela própria presença dos atores, quer eles sejam ou não interrogados e requisitados. É a sua presença física, carnal, que obriga o historiador de um modo completamente diferente daqueles que trabalham com rastros” (ROUSSO, 2016, p. 259).

Neste sentido, a História do Tempo Presente requer o enfrentamento de problemas tecidos em um passado imediato, sendo detentora de marcos fluidos. É uma história que aciona o movimento no passado próximo, tecida nas redes do ciberespaço (SBARDELOTTO, 2017, CUBAS, 2021, BÉDARIDA, 1996). No caso do Santuário de Fátima da Serra Grande, a temporalidade extrapola o universo das fontes, pois as narrativas remetem aos episódios que delimitaram as primeiras práticas devocionais na localidade, primordialmente, a partir do ano de 2006.

No tocante à segunda premissa, compartilho da concepção tecida por Serge Berstein, na qual a cultura política pode ser pensada como “uma leitura comum e normativa do passado histórico com conotação positiva ou negativa (...) e supre ao mesmo tempo uma leitura comum do passado e uma projeção no futuro vivida em conjunto” (BERSTEIN, 1998, p. 351). Nesse sentido, entendo a cultura política tecida no âmbito do Santuário de Fátima da Serra Grande como um constructo que aciona passados remotos, como os das aparições na Cova da Iria, das memórias da Irmã Lúcia e das peregrinações da Virgem de Fátima pelos sertões brasileiros, bem como passados próximos, como o das práticas devocionais em São Benedito e da construção do santuário como elementos fundantes de uma orientação da conduta romeira no tempo presente e de reordenamento do projeto de futuro marcado por um pretenso predomínio católico.

Essa orientação estabelecida pode ser complementada pelo argumento de René Remond, ao defender que a cultura política possibilita pensar o político além da perspectiva político-partidária (RÉMOND, 2003, p. 13). Pautado no desígnio, o enfrentamento das publicações do Santuário de Fátima cria condições de vislumbrar a constituição de novas diretrizes pela Igreja Católica no Nordeste brasileiro na projeção de um futuro no qual a nação permaneça católica e romeira, mas alinhavada por uma forte presença clerical. Nesse sentido, a cultura política romeira trata-se da invenção de um passado miraculoso, com forte conotação para as aparições marianas e para as práticas devocionais propaladas em diferentes espacialidades e que denotam um modelo a ser projetado no futuro, com o intuito de recriar uma nação católica.

O artigo encontra-se dividido em três momentos. No primeiro, discorro acerca dos usos do passado do santuário, com a escrita da história do espaço sacralizado. No segundo momento, continuo com os usos do passado, mas de experiências históricas mais remotas, como as aparições da Cova da Iria e das mensagens divulgadas pela Irmã Lúcia. No terceiro momento, analiso o processo de invenção do santuário, com as narrativas que apresentavam os novos espaços devocionais e sobre os testemunhos dos romeiros publicados no informativo e na revista, como as descrições de milagres que referendavam o santuário como um espaço de bênçãos. Parto, então, para um passado imediato rememorado nas publicações do santuário.

1. Um passado próximo em construção: a história do santuário

Nas páginas dos documentos produzidos pelo Santuário de Fátima da Serra Grande é possível vislumbrar uma forte demanda por história. A cada edição, tanto o informativo quanto a revista apresentavam seções destinadas a contar a história do novo santuário, atribuindo-lhe sentido, dotando o espaço de um passado. Contudo, é necessário asseverar que essa prática historiadora empreendida pelo santuário tecia um passado de um espaço ainda em construção. Ao mesmo tempo que se edificava o templo, enredava-se a história. Com isso, emergem algumas dificuldades de se pensar sobre essa escrita. Ao seguir a provocação de Henry Rousso, a prática dos historiadores do tempo presente evidencia algumas armadilhas, pois “eles correm o risco de lançar um olhar fluido sobre fatos em vias de realização e sobre uma realidade que continua a viver em seu presente. Eles interpretam uma história inacabada e assumem o caráter provisório das suas análises” (ROUSSO, 2016, p. 262).

Nesse sentido, ao pensar acerca do papel desempenhado pelas publicações do Santuário de Fátima da Serra Grande, torna-se salutar discutir a concepção de história mobilizada nos documentos, ou seja, qual era a finalidade atribuída às narrativas históricas no processo de divulgação do centro de romaria ao longo dos dois primeiros decênios do século XXI. A partir dos textos publicados no informativo e na revista do santuário, é possível entender que a história acionada pelos editores dos referidos periódicos apresentava uma conotação instituinte e pragmática.

No primeiro caso, as narrativas consistiam em ações voltadas para a necessidade de dotar de sentido o espaço sagrado. O santuário deveria ser visto como um desdobramento da piedade popular, da vontade de um povo que sempre havia se mostrado devoto de Nossa Senhora de Fátima. Essa devoção foi imbricada à população do estado do Ceará, de forma geral, e à região da Serra Grande do Ibiapaba em particular. A história foi narrada para instituir que a construção do templo era resultante do anseio popular, de uma demanda que não teria sido imposta pelo clero, mas o inverso: o clero convocado para atender aos anseios dos moradores. No editorial intitulado “Casa da Mãe de Deus” do Informativo Número 1 de dezembro de 2012, essa assertiva foi apresentada:

Como tudo começou...

O povo cearense e particularmente os moradores da região da Serra Grande foram profundamente influenciados pela devoção a Nossa Senhora de Fátima. Isto se deve a religiosidade do povo e as peregrinações da imagem da Virgem de Fátima, fortemente incentivadas na região na década de 1950. (INFORMATIVO, 2012, p. 2)

Observa-se que a história foi mobilizada como um intento de revelar as origens da devoção a Nossa Senhora de Fátima na localidade. Apesar de a proposta de construção do santuário ser uma ideia recente, emergida entre o final da década de 1990 e os primeiros anos do século XXI, a devoção é explicitada como um elemento de continuidade das pastorais católicas empreendidas ao longo das décadas de 1940 e 1950, quando ocorreram no Brasil inúmeras ações com a imagem peregrina de Fátima que se deslocou por grande parte das paróquias no país. O santuário deveria ser visto como uma repercussão de práticas remotas. Ao reportar-se aos tempos pretéritos, os dirigentes do santuário expressavam intuitos de cultura política no tempo presente, por meio da tecitura de uma herança religiosa permeada por elementos de continuidades, mas também imbricada de novas demandas (TOURIS, 2021). Essa explicitação acerca da origem do santuário condiz com a leitura mobilizada por Arilson Souza, ao dizer que a:

formação do Santuário de Fátima da Serra Grande deve ter início com a ida de Padre Antônio Martins Irineu cidade de São Benedito, em 1992, para desempenhar ali a função de Pároco, a qual acabara de ser nomeado. Nesta empreitada, ao longo dos anos, Padre Antônio teria reconhecido neste seu novo espaço de atuação eclesial uma grande devoção a Nossa Senhora de Fátima, adotando assim a instituição das missas em todos os dias 13 de cada mês do ano, data referencial às aparições de Maria na cidade de Fátima em Portugal. (SOUZA, 2009, p. 86)

Ao aludir aos aspectos da trajetória do santuário, os documentos explicitavam uma concepção de história pragmática, na qual o olhar para o passado não deveria ser apenas contemplativo, mas direcionado para a apropriação como elemento inspirador das práticas devocionais do presente e de construção do futuro. O passado emergia como um modelo a ser adaptado e reorientado para o ordenamento do futuro. A primeira edição do Informativo apresentou essa assertiva:

Olá, querido devoto!

Você já deve ter percebido que nosso informativo está diferente. Pen- sando nos devotos do Santuário de Fátima da Serra Grande, estamos melhorando nossos canais de comunicação. Queremos que você sempre esteja conosco em nossa caminhada evangelizadora.

Para isso, todos os meses traremos notícias sobre essa casa de Deus e textos que serão alimento espiritual para sua vida.

Como irmãos de fé levaremos a Boa Nova para todos os lugares e unidos deixaremos o Santuário cada dia mais acolhedor para os filhos e filhas.

Boa leitura!

Padres Diocesanos do Santuário de Fátima (INFORMATIVO, 2012, p. 1)

O texto, assinado pelo clero diocesano, responsável pela administração do santuário, possui um caráter de diálogo direto com o leitor. Trata-se de um canal de comunicação que busca tecer uma contínua interlocução entre santuário e os devotos. Uma informação que aparece no documento é acerca das mudanças que o leitor deveria ter percebido no informativo. Isso sinaliza que, apesar de se tratar do primeiro número do periódico, é correto afirmar que o santuário havia publicado outras versões do boletim, como estratégia para constituir uma aproximação com o público. Como não foram localizados os arquivos dos antigos documentos, é possível afirmar que uma das mudanças efetivadas foi a publicação nas versões impressa e digital. Tratava-se de uma iniciativa que buscava amplificar a abrangência do informativo, chegando a romeiros de lugares ermos. Era o propósito de levar “a Boa Nova a todos os lugares”. Mesmo assim, a tiragem impressa era consideravelmente elevada, com seis mil exemplares por edição.

A rememoração da trajetória do santuário também evoca uma concepção de história que interconectava os anseios dos devotos e os desígnios divinos. A primeira edição da Revista Mãe de Fátima referenda essa leitura, ao afirmar que “a fé e a vontade do povo de Deus marcam a história do Santuário de Fátima da Serra Grande” (MÃE DE FÁTIMA, 2013, p. 4). A história do templo teria como marca a persistência da fé da população, um fruto das sementes lançadas em solo cearense nas décadas de 40 e 50 do século XX.

Ao lavrar a história, os textos publicados também passaram a instituir os elementos basilares das narrativas, como os idealizadores protagonistas, executores e marcos temporais. No primeiro número do Informativo foi apresentado o marco inaugural do santuário: “A história do Santuário de Fátima da Serra Grande começou em 1998” (INFORMATIVO, 2012, p. 2).

A história do Santuário de Fátima da Serra Grande começou em 1998, quando um grupo de devotos, representado pelo senhor Francisco Antonio Teles de Albuquerque, fez um pedido ao padre Antonio Martins Irineu. Eles queriam que a missa que acompanhavam todo dia 13, na cidade de Fortaleza, fosse celebrada também na cidade de São Benedito.

O pedido foi aceito e, no dia 04 de julho de 1998, uma linda imagem de Nossa Senhora de Fátima, medindo 1,30m, foi trazida pelas mãos de Dom José Bezerra Coutinho, bispo emérito de Estância. No Santuário de Fátima de Fortaleza, a imagem foi abençoada em uma missa solene pelo Padre Amorim. Mais de 15 mil fiéis acompanharam a chegada da imagem da virgem de Fátima na cidade de São Benedito. (MÃE DE FÁTIMA, 2013, p. 4)

Os dois documentos apresentam leituras similares, que se complementam e delimitam o tempo e referendam os sujeitos históricos que constituíram a fundação do santuário. A narrativa evidencia uma demanda criada pelos devotos leigos, liderados por Antonio Teles de Albuquerque. O santuário teria emergido como uma súplica dos fiéis que almejavam participar das missas devocionais do dia 13. Contudo, os episódios de concretização dos eventos, como a aquisição da imagem, celebração das missas e construção do santuário apresentavam outros protagonismos, centrados no clero. Esse aspecto elucida um projeto diocesano em instituir um centro de romaria. No entender de José Arilson Souza:

Remontando a história com base nas informações que adquirimos em campo, identificamos que a ideia de construção do Santuário de Fátima da Serra Grande tem sua origem logo depois da chegada de Dom Frei Francisco Javier Hernandez à Diocese de Tianguá, no ano de 1991, nomeado pelo Papa João Paulo II para ser o novo e segundo Bispo desta Diocese. (SOUZA, 2009, p. 84)

Com isso, foi o Padre Antonio Irineu Amorim que atendeu ao pedido dos leigos, o bispo emérito D. José Bezerra Coutinho que transportou a imagem e o padre Amorim quem realizou a bênção solene do ícone mariano. Tratava-se de uma narrativa que reafirmava a hierarquia católica, com leigos devotos que anseiam e clamam por benesses e o clero que efetiva e ritualiza as celebrações. Esse protagonismo clerical também teria ocorrido no processo de fundação do templo:

Padre Antonio começou a sentir a necessidade de um espaço maior e de um atendimento mais voltado para os romeiros. Então começou a dar os primeiros passos para a concretização do projeto, buscando um terreno e viabilizando recursos que pudessem garantir o início das obras. (MÃE DE FÁTIMA, 2013, p. 5)

A construção do santuário teria sido resultante do elevado número de devotos que passou a participar das celebrações eucarísticas devotadas a Nossa Senhora de Fátima a cada dia 13. Os históricos publicados tanto no informativo quanto na revista registram que as missas chegavam a reunir mais de quinze mil pessoas. Nesse sentido, antes da edificação de um templo devotado à Virgem de Fátima, o município de São Benedito já começava a despontar como um potencial centro de romaria.

A mobilização das narrativas históricas apresentava uma demanda de fomento. Com isso, ressalta-se também que a evocação da história do santuário não sinalizava para uma contemplação passiva do passado recente, mas sim, para um direcionamento das ações no presente. Olhava-se o passado em busca de inspiração. Disso partia a necessidade de escrever a história à medida que era vivenciada.

Em 2002, começamos a procurar um terreno que pudesse receber um grande Santuário. Não foi fácil. Quando já́ estávamos decididos a realizar o projeto num sítio mais distante, o Sr. José Viana nos procurou e ofereceu um hectare de terra para Nossa Senhora.

Havia ainda uma dificuldade, uma rua que desse acesso ao terreno. O problema foi solucionado com a doação de um terreno, feita pelo Sr. José Mardônio da Costa. Depois compramos mais terreno formando 35.000 metros.

Nessa área está localizado o Santuário visitado por milhares de devotos todos os meses. Graças a esses bons homens, conseguimos construir o Santuário dedicado à Nossa Senhora de Fátima. Graças a sua presença na Campanha dos Romeiros estamos dando continuidade e este sonho evangelizador. (INFORMATIVO, 2013, p. 2)

A escolha e aquisição do terreno para a construção do templo havia sido marcado por grandes dificuldades. A preocupação consistia em encontrar uma propriedade que fosse localizada nas proximidades do centro urbano de São Benedito, com fácil acesso e a custo não oneroso. Esse trâmite inicial perdurou quatro anos, quando finalmente ocorreu a doação do terreno para a construção do santuário e a verba oriunda das doações foi destinada à aquisição dos terrenos destinados à criação dos caminhos para ligar o templo ao núcleo urbano.

A edificação do templo foi narrada como resultante do empenho dos romeiros, da doação “dos milhares de devotos” que mensalmente acorriam ao espaço sagrado, ou seja, “dos bons homens” que tinham aderido à campanha dos devotos. Ao remeter à memória das doações anteriores, os periódicos reafirmavam a necessidade da continuidade da campanha dos romeiros, com o intuito de concluir as novas etapas da construção do espaço religioso.

Contudo, a história acionada nos documentos produzidos pelo Santuário de Fátima da Serra Grande nem sempre remetiam ao passado próximo. Ela também buscava registrar a história imediata, tecida no calor dos acontecimentos, em um processo de lavra do fato histórico, por meio de uma profusão entre história e memória. Como nos lembra Beatriz Sarlo (2007, p. 9), “o passado é sempre conflituoso. A ele se referem a memória e a história, porque nem sempre a história consegue acreditar na memória e a memória desconfia de uma reconstituição que não coloque em seu centro os direitos da lembrança”. Um desses momentos de confluência entre história e memória ocorreu em 2015, com a dedicação do Santuário:

O dia 17 de maio de 2015 ficará marcado na história por uma das mais belas cerimônias eclesiais da Igreja Católica, a Dedicação do Santuário de Nossa Senhora de Fátima da Serra Grande. A concelebração eucarística, com a consagração do altar, presidida pelo Núncio Apostólico no Brasil, Dom Giovanni D’Aniello, contará com a presença do nosso bispo, do clero diocesano, de centenas de fiéis, pastorais e comunidades.

A cerimônia de Bênção e Dedicação marcará a história deste Santuário de Fátima, enchendo os nossos corações de emoção por constatar que no lugar daquele abacateiro, onde começou essa devoção, consagramos a Deus a Casa da Virgem Mãe. (MÃE DE FÁTIMA, 2014, p. 4)

Percebe-se como o periódico mariano além de dotar o santuário de uma narrativa de teor histórico, também projetava as ações que seriam desencadeadas no futuro e instituía uma cronologia, dotada dos marcos temporais do espaço. A cada grande evento celebrado, a revista publicava uma edição provendo o leitor de novos capítulos da história do santuário. Em decorrência do contexto da dedicação do Santuário de Fátima, a revista de maio de 2015 publicou a história do templo por meio de uma linha do tempo, intitulada “História do Santuário Nossa Senhora de Fátima: uma história de fé, milagres e superação”: Observe a Linha do Tempo:


imagem 1
Linha do Tempo do Santuário
quadro criado pelo autor a partir das informações da Revista Mãe de Fátima

A linha do tempo apresentada na Revista Mãe de Fátima balizou os episódios considerados centrais na trajetória histórica do santuário, deslocando-se entre os eventos da chegada da primeira imagem até a consagração do templo e dedicação do altar. Trata-se de um deslocamento temporal que percorria menos de dois decênios e centrava-se nos episódios do santuário e seus arrabaldes. A história do passado próximo alimentava a consolidação do santuário. Contudo, os impressos digitais tratavam de outras histórias, tecidas na outra margem do Atlântico e em tempos mais remotos. Eram as histórias das aparições.

2. Usos do passado remoto: as aparições de Fátima em uma cultura política romeira

O Santuário de Fátima da Serra Grande emergiu como um desdobramento da propagação de uma devoção mariana lusitana, originada das afamadas aparições na Cova da Iria. Esses episódios não foram esquecidos nos documentos publicados pelo santuário cearense. Pelo contrário, as narrativas acerca das aparições e as mensagens difundidas pela Irmã Lúcia foram constantemente aludidas, tanto nos informativos, quanto nas revistas. A história do santuário criado em São Benedito reverberava o axioma da mensagem mariana da aparição, que de algum modo foi mobilizado no processo de construção de uma cultura política romeira.

Ao longo do século XX, as mensagens e os chamados segredos de Fátima foram evocados como um importante instrumento de construção de uma cultura católica anticomunista, transmutando o santuário de Fátima em Portugal em um contraponto de Moscou. A Cova da Iria passava a ser a antítese do poderio soviético. O anticomunismo de Fátima foi fomentado principalmente pelas mensagens narradas pela Irmã Lúcia, notadamente, a partir da década de 1940, com os inúmeros pedidos para que a Rússia fosse dedicada ao Imaculado Coração de Maria (SANTOS, 2017, MOURA, 2022).

Na Revista Mãe de Fátima, publicada pelo Santuário da Serra Grande, as mensagens marianas foram acionadas de forma recorrente. Contudo, as narrativas aparecem desprovidas do forte apelo anticomunista. As evocações das memórias da Irmã Lúcia deslocam-se do combate à ameaça do comunismo soviético e ganham um apelo de direcionamento para a devoção ao Cristo. Essa leitura foi explicitada no anúncio da festa de 2015:

Neste mês dedicado à mulher que Deus Pai escolheu para ser a mãe do seu Filho Jesus, dediquemos nosso tempo à reflexão sobre o SIM que Maria deu a Serviço do Reino de Deus. Ela não só́ gerou o Filho, mas acompanhou toda a vida do menino Jesus, nos momentos de alegria, na dor e no sacrifício salvífico do Cristo. (MÃE DE FÁTIMA, 2015, p. 5)

As narrativas apresentadas nos documentos revelam uma orientação atinente à devoção mariana, não circunscrita à figura de Maria, mas sim como um caminho que leva a Cristo. Essa concepção era reforçada pelos desígnios atribuídos à padroeira do santuário, como mãe, mulher escolhida, mulher que caminhou ao lado de Jesus. Além disso, deve ser ressaltado o fato de os textos elucidarem uma dimensão mariana tingida pelo ideal de servidão. Maria foi evocada como a mulher escolhida para servir, que disse “sim” à penosa missão de ser a Mãe do Salvador.

Essa asserção da missão mariana foi recorrentemente acionada para instituir um modelo de conduta católica. A devoção à Nossa Senhora de Fátima mobilizou os esforços clericais em constituir o exemplo. Maria deveria ser o espelho. Um espelho que iria reluzir nos fiéis o comportamento almejado pela Igreja Católica. Essa construção mariana como exemplo foi reafirmada na Revista Mãe de Fátima de maio de 2016:

De fato, compreendemos que, a exemplo da Virgem Maria, cada um de nós somos filhos da misericórdia e, por isso, devemos testemunhar esse amor que perdoa, resgata e conduz. Maria de Nazaré foi a primeira testemunha da misericórdia. A Mãe de Deus “não é só aquela que nos obtém misericórdia, mas também aquela que obteve, primeiramente e mais do que todos, misericórdia”, conforme proclamou essa verdade da misericórdia divina no seu Magnificat: “porque olhou para sua pobre serva [...] a sua misericórdia se estende de geração em geração [...] lembrado da sua misericórdia.” (MÃE DE FÁTIMA, 2016, p. 4)

A rememoração dos episódios da Cova da Iria tornou-se um elemento recorrente na Revista Mãe de Fátima, por meio de textos oriundos da lavra dos reitores ou de bispos e arcebispos que visitavam o santuário. Além disso, as mensagens das aparições apareceram com maior veemência em contextos festivos e nas efemérides. Exemplos disso foram ocasiões como o Ano Santo Extraordinário da Misericórdia em 2016, quando praticamente todos os textos remetiam às experiências marianas que proclamavam o direcionamento à misericórdia divina. O documento supracitado elucida essa dimensão, na qual a Virgem é evocada como a mensageira e a pioneira no recebimento da misericórdia divina.

Além disso, a mensagem também evoca a presença mariana como testemunha. Certamente, essa leitura corroborava a premissa almejada na formação do modelo de romeiro. Em um momento inicial de consolidação de uma devoção e de um templo recém-edificado, os editores do periódico convocavam os devotos a testemunharem as graças recebidas pela intervenção da Senhora de Fátima. Os testemunhos serviriam como forma de evidenciar a sacralidade do novo santuário, ou seja, as narrativas de milagres poderiam referendar que o templo era alvo especial da misericórdia.

Esse caráter que mesclava efeméride, testemunho e evangelização sempre esteve presente na Revista Mãe de Fátima. Ressalta-se que o periódico foi criado nos idos de 2013, em decorrência dos preparativos para o Ano da Fé e da Jornada Mundial da Juventude, que naquele ano seria realizada na cidade do Rio de Janeiro. O megaevento católico que a cada edição reunia milhões de devotos-peregrinos foi operado como uma oportunidade única de fomentar a ampliação da zona de influência do santuário, com a divulgação mais ampla no intuito de ampliar o número de romeiros. O editorial da primeira edição ressaltou as finalidades:

Você acaba de receber a nossa primeira revista, que para nós significa uma importante conquista graças à presença dos devotos de Nossa Senhora de Fátima em nossas ações.

Este impresso tem um importante papel devocional e documental, pois lendo cada texto e vendo as imagens, todos poderão conhecer melhor o porquê desse sonho evangelizador. O Santuário Nossa Senhora de Fátima da Serra Grande está localizado na região serrana do Nordeste, na cidade de São Benedito, onde o povo clamou por um espaço sagrado para louvar a mãe de Deus na figura da Virgem de Fátima. Nele, romeiros e devotos procuram o aconchego dos braços da Mãe.

O que também nos impulsionou a produzir essa revista foi o fato de estarmos no Ano da Fé e da Jornada Mundial da Juventude. Foi um caminho que encontramos para levar a todos a Boa Nova, além de reforçar que todos somos missionários e temos o compromisso de propagar a Palavra de Deus. (MÃE DE FÁTIMA, 2013, p. 3)

O primeiro aspecto do editorial que chama a atenção é a definição de seu pretenso papel devocional e documental. Escrevia-se para evangelizar e constituir uma memória do santuário, formatando um passado comum, forjando vínculos com a experiência mística da Cova da Iria e projetando um futuro católico, devoto e compromissado com o testemunho da fé. A Revista tinha a ambição de tornar o santuário amplamente conhecido pela população, notadamente a da região Nordeste. Isso sinaliza para uma projeção na qual a cidade de São Benedito poderia ser inclusa entre as cidades-santuários de grandes romarias da região, como Bom Jesus da Lapa (Bahia), Canindé e Juazeiro do Norte (Ceará).

Pautado neste intuito, o texto apresenta brevemente o Santuário de Fátima da Serra Grande, como um espaço sagrado oriundo da vontade popular e onde os romeiros procuram o aconchego no colo materno. O texto foi concluído com a exortação para que todos fossem missionários e que possuíssem o compromisso de divulgar a religião. Novamente, a figura mariana foi mobilizada como modelo para orientar os devotos, com o engajamento de missionários que testemunhassem as benesses místicas do sagrado.

Contudo, a história das aparições foi acionada de forma sistêmica na Revista Mãe de Fátima a partir de 2016, com a efeméride do centenário das aparições do Anjo de Portugal aos três “Pastorinhos”. A narrativa histórica, cruzada com o registro cronológico, era acionada como um argumento de veracidade, de comprovação dos fenômenos miraculosos dos primeiros decênios do século XX. Entre os anos de 2016 e 2017, o Santuário de Fátima da Serra Grande celebrou a cada romaria os episódios das aparições e os impressos transmutaram-se em importantes veículos de difusão das histórias de cada acontecimento transcorrido em terras portuguesas e testemunhados pelos jovens videntes. Esse foi o caso do exórdio do Ano Jubilar da Misericórdia:

Mãe da Misericórdia

Neste Ano Jubilar, igualmente a inseparabilidade entre Maria e Cristo, não podemos compreender o rosto misericordioso de Jesus sem a maternidade da Igreja. Neste sentido, convidamos você a, unidos a Cristo, contemplar mais uma Festa de nossa padroeira, Nossa Senhora de Fátima, neste dia 13 de maio, sob tema: Maria, Mãe de ternura e misericórdia”. Será tempo oportuno também para iniciarmos o Ano de preparação para a celebração do Centenário das Aparições de Fátima, sendo que ainda se assinala o Centenário das Aparições do Anjo aos três Pastorinhos.

Que Maria, Porta da Misericórdia, nunca se canse de oferecer misericórdia e seja sempre paciente a nos confortar. (IRINEU, 2016, p. 5)

O anúncio dos festejos da padroeira teve como cerne duas efemérides: o centenário das Aparições do Anjo de Portugal e a preparação do centenário das Aparições de Fátima, que seriam celebradas no ano vindouro. Além disso, o tema da festa esteve articulado com o Jubileu Extraordinário da Misericórdia. Nesse aspecto, um elemento inovador chamou a atenção, pois pela primeira vez foi autorizada a abertura de portas santas fora das basílicas maiores e assim, cada diocese pôde escolher catedrais e santuários para abrirem suas respectivas portas santas. O Santuário de Fátima da Serra Grande foi um dos templos agraciados com essa benesse e teve a sua porta santa solenemente aberta na missa do dia 13 de dezembro de 2015. De acordo com o Informativo de Fátima de janeiro de 2016:

O último dia 13 de 2015 no Santuário Nossa Senhora de Fátima foi especial, com a cerimônia de Abertura da Porta Santa. A celebração foi presidida por Dom Javier Hernández, bispo de Diocese de Tianguá-CE, dando início ao Ano Santo da Misericórdia proclamado pelo Papa. (INFORMATIVO, 2016, p. 3)

No ano jubilar, as romarias ao santuário foram estimuladas, por meio de um aumento no número de eventos festivos, como a abertura da porta santa e as comemorações dos dez anos de criação do santuário. Além disso, a devoção mariana foi apresentada como a encarnação da misericórdia, metaforicamente, a Porta da Misericórdia. A Virgem seria a face misericordiosa de Deus, como sinalizam os usos de inúmeras iconografias marianas na revista e no informativo.

Em 2017, ano do centenário das aparições marianas em Fátima, Portugal, o santuário cearense aludiu, em diferentes momentos, a experiência mística dos três Pastorinhos. As mensagens da Virgem de Fátima foram mobilizadas como um instrumento de conversão:

Neste mês, celebramos as Festividades de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, a qual, em 1917, apareceu na Cova da Iria, escolheu três crianças, falou na nossa língua e deixou uma Mensagem para o mundo. Mensagem mística e profética, de misericórdia, de conversão, de paz e de esperança, que continua atual após 100 anos. Maio, mês de Maria, é, portanto, esse convite para olharmos para o céu em homenagem à Mãe de Deus, com a certeza da proteção divina para nossos passos nesta difícil missão de santidade para a qual somos destinados. (IRINEU, 2017, p. 4)

Observa-se que a mensagem mariana se refere a elementos como a paz, esperança e a conversão. Todavia, diferentemente do que foi acometido ao longo de praticamente todo o século XX, as mensagens da aparição não foram alocadas a um espaço ou povo especificamente. Não seria mais a Rússia o alvo da conversão, mas toda a humanidade. No Santuário de Fátima da Serra Grande a cultura política romeira aplaca a questão anticomunista e equaliza a demanda por conversão como um problema universal do mundo contemporâneo. As palavras do reitor do santuário evidenciam essa atualização:

Em sintonia com o Santuário de Fátima, em Portugal, e com a Igreja do mundo inteiro, nós do Santuário de Fátima da Serra Grande, aqui no Brasil, estaremos realizando, neste dia 13 de maio, a abertura do Centenário das Aparições de Fátima (1917 – 2017). A programação se estenderá até outubro deste ano, com o tema “O Meu Imaculado Coração será́ o teu refúgio e o caminho que me conduzirá até Deus”. A celebração deste Jubileu pretende ser um momento forte de evangelização e divulgação da mensagem de Fátima, uma bênção de Deus para a humanidade, caminho para a conversão e para o encontro com Jesus Cristo.

Uma Senhora, mais brilhante que o sol, irrompeu, em 13 de maio de 1917, na vida das três crianças na Cova da Iria. Durante seis meses, a cada dia 13, a Virgem Maria renova este convite, com o qual Lúcia, Francisco e Jacinta Marto serão feitos testemunhas humildes de Deus no contexto de um mundo sofrido. Acolher a Mensagem de Fátima, hoje, é encarnar em nossas vidas esse apelo que Nossa Senhora fez a três crianças camponesas e ter a disponibilidade de sermos colaboradoras da promoção e defesa da paz entre os povos.

Sabemos que, ao doar a Sua paz aos discípulos, Jesus enviou-os ao mundo, em Seu Nome, e lhes deu o Seu Espírito para implantar, com o Seu poder, esta paz no coração de cada homem e de toda humanidade” (ECCSh, 1-2). Assim, a Virgem de Fátima nos reforça esse compromisso em sermos anunciadores da paz e misericórdia do Ressuscitado que passou pela Cruz, vivenciando e proclamando a Sua paz num mundo atual tão incerto e inseguro.

Por isso, a celebração deste centenário é sobretudo, entender que a Mensagem de Fátima não ficou presa a uma época passada, mas projeta o nosso presente, abrindo caminhos de fé́ e esperança para um tempo novo para todos nós! E, como a própria Virgem prometeu a Lúcia: o seu “Coração Imaculado” será́ sempre o nosso refúgio no tempo das tribulações! Sejam todos bem-vindos a este Centenário de Bênçãos. Que a Virgem de Fátima nos conceda uma santa e abençoada romaria! (IRINEU, 2017, p. 4)

A mensagem proferida pelo reitor do Santuário de Fátima da Serra Grande elucida as demandas do tempo presente. O passado foi evocado como um espelho que refletia as necessidades dos nossos dias. A rememoração dos episódios das aparições, sob o prisma histórico e pragmático, encontrava-se ancorada no direcionamento para a abertura de um novo momento. Essa escrita embebida de pragmatismo elucidava uma premissa de mudança de postura no tempo presente. Isso se tornou mais explícito no histórico dos três Pastorinhos de Fátima:

Nascidos em Aljustrel, pequeno lugar da Paróquia de Fátima, no início do século XX, os irmãos Francisco e Jacinta e a sua prima Lúcia crescem em um ambiente familiar modesto, em uma terra pacata e isolada. Não sabiam ler, nem escrever e receberam uma educação cristã muito simples. Contudo, os pais não deixaram de oferecer um exemplo de fé́ comprometido: a participação dominical na eucaristia, a oração em família, a verdade e o respeito por todos, a caridade para com os pobres e os necessitados (...).

É este o segredo encantador que os dinamiza e a nós também. Essa Sarça Sagrada que lhes ardia no peito nos desperta para a missão de cuidar dos nossos irmãos que vivem na escravidão do pecado e da ingratidão. E assim, diante de todos os outros, seremos presença da luz de Deus e, para o Senhor, seremos mediadores em favor de todos os outros. (MÃE DE FÁTIMA, 2017, p. 5)

A narrativa iniciava com a construção da paisagem da terra onde viviam os videntes de Fátima. Um lugar descrito como modesto, pacato e isolado. Certamente, os atributos remetidos ao vilarejo português também poderiam ser conferidos aos arredores do Santuário de Fátima da Serra Grande em São Benedito. A paisagem marcada pela pobreza e isolamento forjava um elo entre presente e passado, Brasil e Portugal, São Benedito e Fátima. O espaço atualizava o passado e tornava os romeiros contemporâneos e conterrâneos das aparições. O espaço, ao ser sacralizado, encontrava-se também temporalizado.

Outro aspecto aludido no texto de teor hagiográfico é no tocante aos valores cristãos da família dos pequenos pastores, que de algum modo, passavam a ser mobilizados como modelo para a formação familiar no tempo presente: participar das missas aos domingos, oração, verdade e caridade. Esses eram os pilares que sustentavam o projeto de futuro acerca dos romeiros de Fátima da Serra Grande. Com isso, é necessário pensar sobre as falas dos romeiros nos periódicos do santuário.

3. Os milagres narrados: os testemunhos dos romeiros

Antes mesmo do início da construção do santuário, nos idos de 2006, São Benedito já apresentava aspectos que se aproximavam do que a geógrafa Maria Cecília França denominou de “pequenos centros de função religiosa” (FRANÇA, 1975). Isso porque desde o final da década de 1990 era intenso o fluxo de romeiros no dia 13 de cada mês com o intuito de participar da missa de Fátima. A construção do santuário, neste caso, apenas referendou uma prática que já se encontrava consideravelmente consolidada.

Todavia, os esforços em edificar um grande templo acarretou a formação de uma nova hierópolis no Nordeste brasileiro, pois o afluxo contínuo de romeiros impactou a cidade de São Benedito, notadamente, no âmbito de serviço, com a hotelaria e a oferta de produtos. A partir da acepção definida por Zeny Rosendhal, as hierópolis seriam “centros de convergência de peregrinos que com suas práticas e crenças materializam uma peculiar organização funcional e social do espaço” (ROSENDAHL, 2009, p. 26). Essas hierópolis podem ser de fluxo contínuo, como são os casos de Juazeiro do Norte, Aparecida e Trindade, ou de fluxo periódico, em que “a prática religiosa implica a ida em certas ocasiões, geralmente uma ou duas vezes por ano, coincidindo com os dias de festividades” (ROSENDAHL, 2009, p. 26-27).

No Santuário de Fátima da Serra Grande, o fluxo de devotos tornou-se intenso ao longo de todo, com um aumento significativo nas celebrações dos finais de semana e do dia 13 de cada mês, quando mais de quinze mil romeiros visitam o santuário. A Revista Mãe de Fátima de outubro de 2013 reafirmou a relevância dessa celebração eucarística na história do templo:

Desde o princípio percebemos que o dia 13 tem uma aura especial. O fervor e a fidelidade dos romeiros saltam aos olhos. Muitas são as graças alcançadas e testemunhadas durante as missas. Podemos dizer que é um “dia de graças”. Os testemunhos relatados confirmam essa verdade. (MÃE DE FÁTIMA, 2013, p. 6)

A mensagem do impresso católico elucida o poder místico atribuído à Missa do dia 13, como um momento marcado pelo fervor devocional e pelas graças recebidas. Essa mística tornou a data como epicentro do calendário de celebrações do santuário. No tocante ao número de visitantes, somente as grandes romarias realizadas nos meses de maio[1] e outubro[2] eram mais expressivas, pois chegavam a reunir mais de quarenta mil romeiros.

Um elemento relevante da narrativa publicada no impresso é no tocante à sistemática da celebração, na qual existiam “muitas graças alcançadas e testemunhadas durante as missas”. Essa informação é elucidativa por expressar como foi construída uma leitura em que a missa emergia tingida por elementos similares ao da Teologia da Prosperidade, que na Igreja Católica foi ressignificada como “Missa de Cura e Libertação”. Essas celebrações caracterizam-se por forte apelo aos cantos (incluindo as orações litúrgicas que a passam a ser adaptadas aos cantos), com homilias providas de apelo sentimental, além de ações que não constam na liturgia, como a exposição e procissão do Santíssimo Sacramento no Ostensório durante a Missa.

A Missa de Fátima do dia 13 transmutava-se em uma celebração marcada pela centralidade do milagre imediato e apelo à estética carismática. Isso acaba por trazer novos desafios ao processo investigativo, pois a questão prática do historiador que enfrenta a História do Tempo Presente é “ se afastar daquilo de que parecem estar próximos” (ROUSSO, 2016, p. 240). Afinal, quais sentidos foram atribuídos a esses milagres testemunhados nas missas? Para responder a essa questão, é necessário operacionalizar os registros acerca dos testemunhos dos devotos publicados no Informativo e na Revista Mãe de Fátima.

Os primeiros testemunhos publicados no Informativo do Santuário de Fátima eram de devotos que viviam nos arredores do templo, no município de São Benedito. As narrativas expressavam a presença do milagre. Esse foi o caso do Francisco Isaías: “Com grande alegria volto hoje ao Santuário para agradecer a Deus e a Nossa Senhora de Fátima pela vida de minha sobrinha Yasmin, curada de uma meningite bacteriana. Os médicos consideram um milagre” (INFORMATIVO, 2012, p. 3).

Os milagres atribuídos à Nossa Senhora de Fátima da Serra Grande não eram testemunhados exclusivamente pela entrega de ex-votos, como eram recorrentes em outros santuários nordestinos como Bom Jesus da Lapa, Juazeiro do Norte e Canindé. Além da cultura material como memória perene a permanecer na sala das promessas, os milagres eram testemunhados nas celebrações e publicados, como José Viana Costa:

Foi diagnosticado um tumor maligno no meu cérebro. Depois de todos os procedimentos para a cirurgia, já́ na mesa de cirurgia, o médico me voltou para uma nova tomografia. Milagrosamente aconteceu o que eu havia pedido a Nossa Senhora. Fui curado, não havia mais tumor algum. E aqui estou para agradecer e testemunhar o poder da fé́ e a força da oração. (INFORMATIVO, 2012, p. 3)

O retorno do devoto ao santuário não era uma prática apenas para agradecer e depositar os ex-votos. Era também para testemunhar. Essas experiências construídas no Santuário de Fátima da Serra Grande acerca da necessidade de testemunhar os milagres acabaram por emoldurar novas práticas no templo católico, ao transmutar as celebrações em palcos nos quais o Espírito Santo era evocado para fazer milagres imediatos, assim como os devotos anunciavam a messe. Como corrobora José Arilson Souza:

parece crescente o número de religiosos frequentadores do Santuário em apreço. São pessoas que desenvolvem as suas experiências religiosas acreditando piamente na sacralidade desse espaço de devoção, na busca pela melhoria de suas vidas que os fiéis visitam e participam das celebrações ocorridas no Santuário de Fátima da Serra Grande, realizando, quando acham necessário, verdadeiras penitências e promessas. (SOUZA, 2009, p. 91)

Esse cenário instituído por testemunhos e penitências elucidava a sacralidade do espaço. O santuário tornara-se um lugar propício para fenômenos inexplicáveis e, paradoxalmente, aguardados pelos devotos. Os pedidos eram diversos, com predomínio para os problemas de saúde física e mental (notadamente câncer e depressão), passando por problemas familiares e econômicos. O Informativo de janeiro de 2013 apresentou alguns desses casos:

Meu casamento estava por um fio. Em uma visita aqui ao Santuário de Fátima pedi a Nossa Senhora pela restauração do meu casamento e hoje voltei para agradecer por esta grande graça (Elizete Ribeiro da Silva Jorge, Croatá/CE).

Fiz uma promessa com Nossa Senhora de Fátima para conseguir minha saúde. Como gratidão vim aqui pagar minha promessa, trazendo esta criança que eu adotei para colocar o nome de Fátima (Dona Antônia, Granja/CE).

Meu sogro estava em estado terminal com câncer de próstata, vim ao Santuário e pedi ao Senhor por intercessão de Nossa Senhora de Fátima e ele foi curado. Não precisou de quimioterapia. E hoje vim aqui agradecer (Lucineide Silva dos Santos, Fortaleza/CE).

(INFORMATIVO, 2013, p. 3)

Entre os testemunhos ressalta-se a presença de três temporalidades distintas. A primeira é atinente ao diagnóstico do problema de saúde ou convivência. Quase sempre essa situação é apresentada como extrema, no limiar entre a vida e a morte, ou da perda irreversível. Isso pode ser observado por meio de termos como “por um fio” e “estado terminal”. Certamente, essas designações explicitam o anseio de evidenciar que o pedido atendido realmente condiz com a definição de milagre, como uma benesse que não possui explicação científica. A segunda temporalidade revela a ida ao santuário para clamar a intervenção divina, o milagre almejado. Isso sinaliza como a intervenção sagrada não é alvo de dúvida: os pedidos foram realizados no Santuário de Fátima da Serra Grande, algo corroborado por assertivas como “em uma visita aqui ao Santuário” e “vim ao Santuário”.

Os tempos verbais e os pronomes também sinalizam para o lugar do testemunho. São falas produzidas no templo, na ocasião da terceira temporalidade aferida nos testemunhos: o do anúncio do milagre. Trata-se do tempo do retorno, não com o peso da angústia de ter a vida à mercê, mas com a gratidão pela restauração. O retorno como um ato que busca recompensar a benesse sagrada com o testemunho que louva e ao mesmo tempo proclama para que novos devotos busquem a experiência do milagre. São aspectos que aparecem por meio de sentenças como “e hoje voltei para agradecer”, “como gratidão vim aqui pagar a minha promessa” e “e hoje vim agradecer”.

O documento também é revelador para outra questão: a ampliação da zona de influência do santuário. Se na primeira edição do Informativo os testemunhos eram exclusivos de devotos que viviam no município de São Benedito, nos arredores do templo, com o tempo a zona de influência foi consideravelmente dilatada, passando a aglutinar romeiros de outras regiões. Isso pode ser observado nos dados do Gráfico I:


Gráfico 1

Gráfico elaborado pelo autor a partir dos dados dos Informativos e da Revista

Os dados do Gráfico I elucidam um cenário de amplo predomínio dos testemunhos de romeiros oriundos do estado do Ceará, notadamente, da Diocese de Tianguá. Esse predomínio revela a capilaridade do projeto diocesano de criação de um santuário diocesano, que visava criar em seu território um centro de romaria similar aos existentes no solo cearense, como os de Juazeiro do Norte e de Canindé. Nesse sentido, as romarias que reúnem mais de quarenta mil pessoas explicitam o êxito do projeto.

Outro dado que pode ser pensado a partir do gráfico é que mais da metade dos testemunhos de cearenses publicados referem-se à moradores do município de São Benedito. Esse dado sinaliza para um aspecto que diferencia o Santuário de Fátima da Serra Grande de outros centros de romaria: parte considerável dos milagres narrados tiveram como favorecidas pessoas da “casa”, que viviam nos arrabaldes do santuário. De alguma forma, em São Benedito, a santa de casa faz milagre.

É importante ressaltar que os registros publicados explicitam apenas os testemunhos de agradecimentos dos pedidos atendidos. Tanto o informativo, quanto a revista possuíam a seção “Testemunhos de Fé”. Raras foram as referências aos pedidos. Elas apareceram apenas em duas edições da Revista Mãe de Fátima, na coluna “Espaço do Romeiro”. Isso evidencia que nem sempre os testemunhos referendam proporcionalmente a presença dos romeiros. Um exemplo disso são os registros acerca da presença de mais de dois mil romeiros de Parnaíba (Piauí) na Romaria da Fé em 2012.

Ao considerarmos esse limite da coluna “Testemunhos de Fé”, é possível mensurar alguns dados numericamente reduzidos, mas que sinalizam para uma ampliação do campo de irradiação devocional do santuário. Refiro-me à presença de testemunhos de romeiros de estados de outras regiões, como Goiás, São Paulo e Rio de Janeiro. Mesmo sendo pouco expressivos, a constância da presença de testemunhos de romeiros de estados como o Rio de Janeiro evidencia que o Santuário de Fátima da Serra Grande tem potencial de maior inserção no contexto religioso nacional.

Certamente, as atuais dimensões da abrangência dos romeiros explicitam a caracterização de um santuário regional (FOLGELMAN, TOURIS, 2013). Todavia, a partir dos dados publicados, é possível pensar que essa capilaridade se encontra em expansão. É o dilema de se pensar a História do Tempo Presente, pois como nos recorda Henry Rousso “a cena contemporânea é um lugar em que seus escritos podem ter efeitos quase imediatos, uma vez que eles se inserem em um processo em curso, do mesmo modo que um jornalista, e essa é uma singularidade muito marcante” (ROUSSO, 2016, p. 242).

Considerações finais

Neste artigo investiguei o Santuário de Fátima da Serra Grande, fundado nos idos de 2006 e que teve sua zona de influência consideravelmente ampliada a partir da publicação de dois periódicos: o Informativo e a Revista Mãe de Fátima. Por meio desses documentos, produzidos sob a tutela do reitor do santuário e do clero diocesano, tornou-se possível pensar alguns problemas atinentes ao reordenamento da atuação da Igreja Católica no Brasil ao longo dos dois primeiros decênios do século XX, bem como, nos desafios ao processo de escrita da história do tempo presente das práticas religiosas, com a cabal necessidade de estranhar o nosso próprio tempo, da busca de tornar-se um extemporâneo no presente.

O processo de criação do santuário encontra-se inserido em um contexto no qual o clero brasileiro reestruturou as suas ações com o intuito de reverter o quadro do trânsito religioso, marcado pela constante redução do número de católicos e o crescimento exponencial do número de evangélicos. A reação católica a esse cenário desfavorável ocorreu por meio de três frentes de atuação: com o esforço em fortalecer a presença clerical em espaços e rituais religiosos anteriormente negligenciados; com a oficialização de cultos populares, ou seja, o reconhecimento de santos não canonizados alvo de devoções massivas e com a criação de novas expressões devocionais, com o processo de beatificação e canonização de novos santos brasileiros e com a construção de novos santuários e a fundação de romarias e peregrinações em regiões até então não providas de centros de romaria.

No Santuário de Fátima da Serra Grande, os dois periódicos foram mobilizados como ferramentas de invenção de um passado comum que dotasse de sentido o espaço sagrado. Ao longo do segundo decênio do século XX ocorreu um amplo investimento no intuito de tecer a história do santuário, consolidando marcos temporais e sujeitos que protagonizaram as ações de difusão das práticas devocionais da Virgem de Fátima no território cearense. Esse investimento em narrativas históricas elucidava um passado longevo da presença dessa devoção na Serra Grande e expressava o protagonismo de leigos coordenados pelas ações clericais.

Essa busca por história também ocorreu no âmbito da retomada das narrativas sobre as experiências das aparições em solo português. A história das aparições e as mensagens marianas replicadas pelos três Pastorinhos foram retomadas nos periódicos do santuário e com sentidos redefinidos, por meio de uma pastoral que se deslocou do combate ao comunismo e centrou-se no discurso da conversão dos fiéis católicos dos sertões brasileiros, notadamente, no âmbito diocesano.

A pastoral do santuário, por meio dos periódicos, também evocou as vozes dos devotos e romeiros, por meio dos relatos de testemunhos de milagres. Essas narrativas reafirmavam o poder miraculoso da devoção mariana. As narrativas dos romeiros explicitavam o santuário como um lugar sagrado privilegiado, no qual os pedidos clamados eram atendidos quase que instantaneamente. De algum modo, os relatos corroboravam a liturgia adotada pelo clero do templo, marcada por uma forte inspiração da Renovação Católica Carismática com celebrações como a Missa da Misericórdia e a Missa de Cura Libertação.

Nas falas dos devotos, as missas emergem como espaços nos quais as curas são clamadas e atendidas. Igualmente, as missas também se transmutam em momentos de exposição dos milagres. Testemunhar o poder miraculoso da Virgem de Fátima passa a ser adotado como uma missão leiga de conversão. Todo esse repertório de narrativas elucida um processo de construção de um “solo bendito consagrado à Santa Mãe de Deus”. Escritas ou verbalizadas, as palavras dotam de sentido o chão sagrado.

Referências

BÉDARIDA, François. Tempo presente e presença da história. In: FERREIRA, Marieta de Morais; AMADO, Janaína (Orgs). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996, p. 219-229.

BERSTEIN, Serge. A cultura política. In: J. P. Riox: J. F. Sirinelli. Por uma História Cultural. Lisboa, Estampa, 1998, p. 349-363.

BEZERRA, Miquéias de Medeiros. “Revolvendo as cinzas do passado”: a construção do espaço sacroprofânico nos santuários aos Protomártires do Brasil, pela Arquidiocese de Natal (1988-2017). 150f. Dissertação (Mestrado em História). UFRN, 2021.

CORSO, João Paulo. As romarias da terra: a trajetória de uma prática. In: CORSO, João Paulo. Religião, religiosidade, instituições religiosas, ritos e práticas. Ponta Grossa/PR: Texto e Contexto, 2020, p. 26-51.

CUBAS, Caroline Jaques. Religião, tempo e memória: interfaces para a História do Tempo Presente. Tempo e Argumento. N. 107, 2021, p. 1-22.

FARIAS, Mayara Ferreira de. Turismo religioso na cidade da Santa: a percepção da comunidade sobre a construção do complexo turístico e religioso no Alto de Santa Rita, Santa Cruz/RN. Natal, 113 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia). UFRN, 2013.

FOGELMAN, Patricia; CEVA, Mariela; TOURIS, Claudia (Orgs). El culto mariano en Luján y San Nicolás: religiosidad e historia regional. Buenos Aires: Biblos, 2013.

FRANÇA, Maria Cecília. Pequenos centros paulistas de função religiosa. São Paulo: EDUSP, 1975.

INFORMATIVO. Santuário de Nossa Senhora de Fátima. Informativo Santuário de Fátima da Serra Grande. Ano 01, n. 1, 2012, p. 2.

INFORMATIVO. Ano da Fé, uma peregrinação aos desertos sem fé do mundo. Informativo Santuário de Fátima da Serra Grande. Ano 01, n. 1, 2012, p. 1

INFORMATIVO. Casa da Mãe de Deus. Informativo Santuário de Fátima da Serra Grande. Ano 01, n. 1, 2012, p. 2.

INFORMATIVO. Testemunhos. Informativo Santuário de Fátima da Serra Grande. Ano 01, n. 1, 2012, p. 3.

INFORMATIVO. Testemunhos. Informativo Santuário de Fátima da Serra Grande. Ano 02, n. 1, 2013, p. 3.

INFORMATIVO. Notícias do Santuário. Santuário em festa: 10 anos da construção da Casa da Mãe de Fátima. Informativo Santuário de Fátima da Serra Grande. Ano 05, n. 1, 2016, p. 3.

IRINEU, Antonio. Mãe da Misericórdia. Mãe de Fátima. Maio, 2016, p. 5-6.

IRINEU, Antonio. Mensagem de Fátima: sinal de Esperança e misericórdia para o nosso tempo. Mãe de Fátima. Maio, 2017, p. 4.

JACINTO, Dom. Devoção a Virgem de Fátima no Ceará. 2006. Disponível em: https://santuariodefatima.org.br/historia-do-santuario/ Consultado em: 20 de novembro de 2022.

MÃE DE FÁTIMA. Editorial. Revista Mãe de Fátima.N. 1, 2013, p. 3-5.

MÃE DE FÁTIMA. Tradição e devoção. A mística do dia 13. Revista Mãe de Fátima. N. 1, 2013, p. 6.

MÃE DE FÁTIMA. Celebração da Dedicação do Santuário. Revista Mãe de Fátima. N. 3., 2014, p. 4.

MÃE DE FÁTIMA. História. História de fé. Revista Mãe de Fátima. N. 1, 2013, p. 3.

MÃE DE FÁTIMA. Festa de Nossa Senhora de Fátima: “Eis aqui a tua Serva, Senhor”. Revista Mãe de Fátima. N. 4, 2015, p. 5.

MÃE DE FÁTIMA. Maio, mês da Virgem Maria, Mãe da misericórdia encarnada. Revista Mãe de Fátima. N. 6, 2016, p. 4.

MÃE DE FÁTIMA. Neste ano jubilar, no centenário das aparições de Nossa Senhora em Fátima, Alcance indulgência plenária segundo papal. Revista Mãe de Fátima. N. 7, 2017, p. 5.

MOURA, Carlos André Silva de. Aparições e Devoções Marianas: a formação de uma cultura visionária em Portugal e seus usos no projeto de Restauração Católica (1917-1950). Tempo e Argumento. v. 14, 2022, p. 01-28.

PAZ, Renata Marinho. Para onde sopra o vento: a igreja católica e as romarias de Juazeiro do Norte. 1 ed. Fortaleza: IMEPH, 2011.

RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro, FGV, 2003.

ROSENDAHL, Zeny. Hierópolis: o sagrado e o urbano. 2.ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009.

ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo. Trad. Fernando Coelho e Fabrício Coelho. Rio de Janeiro: FGV, 2016.

SANTOS, Magno Francisco de Jesus. A peregrinação à Divina Pastora. Aracaju: EDISE, 2015b.

SANTOS, Magno Francisco de Jesus. “Bendita e Louvada seja”: política cultural e registro das romarias como patrimônio imaterial em Sergipe. Revista Brasileira de História das Religiões. Ano VIII, nº 24, 2016.

SANTOS, Magno Francisco de Jesus. No sertão e capital, salve Aparecida: peregrinações em Sergipe no tempo presente. Estudos Históricos. Vol. 28, n. 55, 2015a, p. 169-187.

SANTOS, Magno Francisco de Jesus. Polissemias do Patrimônio: políticas públicas estaduais do registro das festas católicas (Bahia, Sergipe e Rio Grande do Norte). Revista Memória em rede. V. 9, n. 16, 2017a, p. 43-66.

SANTOS, Magno Francisco de Jesus. Romarias in lives: ciberdevoções e santuários em tempos de pandemia. Horizonte. V. 18, n. 57, 2020, p. 1305-1333.

SANTOS, Magno Francisco de Jesus. “O mais célebre santuário do mundo”: romarias e espaço sagrado no Santo Juazeiro (1920-1936). Revista Brasileira de História das Religiões. Vol. 14, n. 40, 2021, p. 273-298.

SANTOS, Magno Francisco de Jesus. “Só aqui no Icó nós temos, uma festa bonita assim”: sacralização do espaço e da memória na festa do Senhor do Bonfim de Icó/CE. Revista Brasileira de História das Religiões. V. 10, n. 30, 2017b, p. 259-284.

SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.

SBARDELOTTO, Moisés. E o verbo se fez rede: religiosidades em reconstrução no ambiente digital. São Paulo: Paulinas, 2017.

SOUZA, José Arilson Xavier de. A Resignificação religiosa do turismo regional: um estudo geográfico-cultural do Santuário de Fátima da Serra Grande. 166f. Dissertação (Mestrado em Geografia). UFC, 2009.

TOURIS, Cláudia. Los curas villeros em la Argentina actual: entre la herencia católica tercermundista y el Papa Francisco. Tempo e Argumento. 2021, p. 1-20.

Notas

1 Romaria de 13 de maio, que rememora a primeira aparição de Nossa Senhora de Fátima aos pequenos pastores. Na véspera, dia 12, ocorre a grande procissão luminosa.
2 Chamada de Romaria da Fé, ocorre entre os dias 12 (dia de Nossa Senhora Aparecida) e 13 de outubro (dia dedicado à Nossa Senhora de Fátima, em sua última aparição, com o milagre do Sol). Essa romaria foi criada em 2013, no Ano da Fé.


Buscar:
Ir a la Página
IR
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por