Comunicaciones
HÁBITOS ALIMENTARES E USO DOS RECURSOS NATURAIS EM COMUNIDADES PESQUEIRAS DE ILHA COMPRIDA/SP, BRASIL
DIETARY HABITS AND USE OF NATURAL RESOURCES IN FISHING COMMUNITIES FROM ILHA COMPRIDA/SP, BRAZIL
HÁBITOS ALIMENTARIOS Y USO DE LOS RECURSOS NATURALES EN LAS COMUNIDADES PESQUERAS DE ILHA COMPRIDA/SP, BRASIL
HÁBITOS ALIMENTARES E USO DOS RECURSOS NATURAIS EM COMUNIDADES PESQUEIRAS DE ILHA COMPRIDA/SP, BRASIL
Interciencia, vol. 43, núm. 9, pp. 642-647, 2018
Asociación Interciencia
Recepção: 05/04/2017
Corrected: 21/08/2018
Aprovação: 24/08/2018
Financiamento
Fonte: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)
Número do contrato: Projeto FAPESP 2016/01823-9
Descrição completa: Os autores agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), Projeto FAPESP 2016/01823-9
Resumo: O presente trabalho foi desenvolvido em três comunidades caiçaras (Juruvauva, Pedrinhas e Ubatuba) do município de Ilha Comprida/SP, Brasil. Teve como principal objetivo analisar o uso de recursos naturais na dieta destas comunidades. Os alimentos citados como mais consumidos foram arroz, feijão e pescados; entretanto, alguns alimentos industrializados e outras fontes de proteína animal também foram relacionados. A comunidade de Pedrinhas apresentou maior diversidade de itens alimentares consumidos quando comparada as outras comunidades. Preferências e aversões relacionadas à proteína animal, no caso os pescados, foram observados em critérios como sabor, preparo, odor e toxidez. Plantas foram citadas como coletadas e cultivadas devido as suas propriedades medicinais, especialmente pelos moradores de Juruvauva e Ubatuba. Os resultados sugeriram que o acompanhamento da dieta caiçara constitui boa ferramenta para a estimativa da diversidade de recursos naturais em Ilha Comprida.
Palavras-chave: Alimentos , Áreas de Conservação , Comunidades , Dieta Caiçara , Recursos Naturais.
Abstract: The present work was carried out in three Caiçara communities (Juruvauva, Pedrinhas and Ubatuba) in the municipality of Ilha Comprida, Sao Paulo state, Brazil, with the main objective of analyzing the use of natural resources in the diet of these communities. The foods cited as most frequently consumed were rice, beans, and fish; however, some processed foods and other sources of animal protein were also indicated. The community of Pedrinhas had a greater diversity of consumed food items when compared to the other communities. Preferences and aversions related to animal protein, in the case of fish, were observed with criteria such as taste, preparation, odor and toxicity. Plants were cited as being collected and cultivated because of their medicinal properties, especially by the residents of Juruvauva and Ubatuba. The results suggested that the monitoring of the Caiçaras’ diet is a good tool for the estimation of the diversity of natural resources in Ilha Comprida.
Resumen: El presente trabajo se desarrolló en tres comunidades caiçaras (Juruvauva, Pedrinhas y Ubatuba) de la ciudad de Ilha Comprida, estado de Sao Paulo, Brasil, con el objetivo principal de analizar el uso de los recursos naturales en la dieta de estas comunidades. Los alimentos citados como los más consumidos fueron arroz, frijoles y pescado; sin embargo, algunos alimentos procesados y otras fuentes de proteína animal también fueron relacionados. La comunidad de Pedrinhas presentó una mayor diversidad de alimentos consumidos en comparación con las otras comunidades. Las preferencias y aversiones relacionadas con la proteína animal, en el caso de los peces, se observaron en criterios tales como sabor, preparación, olor y toxicidad. Las plantas fueron citadas como recolectadas y cultivadas por sus propiedades medicinales, especialmente por los residentes de Juruvauva y Ubatuba. Los resultados sugieren que el monitoreo de la dieta de los caiçaras es una buena herramienta para estimar la diversidad de recursos naturales en Ilha Comprida.
Introdução
O uso de recursos naturais locais é importante em inúmeras comunidades brasileiras (Schmidt, 1947). Estima-se que povos e comunidades tradicionais ocupem área de ~25% do território brasileiro, sendo, entretanto, pequena parcela destas áreas legalmente reconhecidas (Esterci, 2008).
Os caiçaras são popularmente denominados os nativos da costa sudeste brasileira que mantêm atividades de subsistência ou comércio relacionadas à exploração de recursos naturais (Diegues, 1999; Adams, 2000; Begossi, 2006). Núcleos populacionais caiçaras se formaram a partir do período colonial brasileiro (Diegues, 1999) e embora estejam contextualizados aos diferentes ciclos econômicos (Adams, 2000), mantêm características de maior ou menor dependência em relação à pesca e agricultura em pequena escala, além de nas últimas décadas, ao turismo (Begossi, 2006).
Comunidades caiçaras muitas vezes ocupam áreas que são prioritárias à conservação e, devido a isso, têm sido alvos de políticas que as excluem de seus ambientes (Lopes et al., 2013). Ao longo do tempo, entretanto, essas comunidades reconhecidamente tem colaborado com a manutenção da biodiversidade local (Esterci, 2008; Giraldi e Hanazaki, 2010).
Informações sobre a forma como os indivíduos procuram, obtêm e escolhem alimento podem contribuir para a compreensão destas interações ecológicas. Além disso, os hábitos alimentares estão relacionados à subsistência dos indivíduos e esta relação pode ter consequências sobre o estado nutricional e sobre a saúde de uma dada população, refletindo sobre a sua qualidade de vida e também sobre a sustentabilidade local (Roosevelt, 1987).
Estudos prévios sobre os hábitos alimentares de populações caiçaras do litoral sul de São Paulo (Hanazaki e Begossi, 2003; Ferreira et al., 2009) associaram o aumento das atividades de turismo e a diminuição da agricultura e da pesca às mudanças dos padrões alimentares das populações. Flutuações na disponibilidade ambiental de peixes, também já foram associadas às carências proteicas (MacCord e Begossi 2006). A composição, origem, diversificação e variações sazonais da dieta foram estudadas em inúmeras populações nativas de pescadores, como podem ser verificados nos estudos na ilha do Marajó (Murrieta et al., 1999), comunidades pesqueiras da Peninsula do Maraú/BA (Pacheco, 2006), populações ribeirinhas do Rio Negro/AM (Silva e Begossi, 2007) e populações caiçaras do sudeste (Hanazaki e Begossi, 2003; Ferreira et al., 2009, Ramires et al., 2012).
Levantamentos etnobotânicos gerais que permitam estimar a riqueza de plantas conhecidas e usadas para diversas finalidades, como as plantas medicinais, ornamentais e alimentares, também foram realizados no sentido de investigar as inter-relações dos caiçaras com os recursos vegetais (Hanazaki et al., 2000; Begossi et al., 2002; Giraldi e Hanazaki, 2010).
O presente trabalho foi desenvolvido em três comunidades caiçaras de Ilha Comprida, município situado dentro dos limites do Estuário de Iguape e Cananéia. A região representa uma associação de diversos ambientes, como ilhas, lagunas, canais e formações vegetais típicas do Domínio Mata Atlântica: ou seja, floresta tropical com mangues, várzeas e restinga (Schaeffer-Novelli et al., 1990). Vale ressaltar que esse sistema estuarino representa um dos mais preservados ecossistemas da costa brasileira, estando legalmente protegido por Área de Proteção Ambiental Estadual e Federal, sendo considerado Patrimônio Natural da Humanidade pela UNESCO (São Paulo, 2018).
Considerando que o conhecimento tradicional pertencente às comunidades caiçaras é de fundamental importância para a realização de estudos envolvendo ecossistemas litorâneos (Diegues, 1999), o presente trabalho teve por objetivo analisar o uso e interação de recursos naturais destas comunidades por meio de suas dietas alimentares.
Material e Métodos
A pesquisa foi realizada durante os meses de março e abril de 2016, três dias de cada mês, num intervalo de 30 dias entre períodos. Para a coleta de dados, foram utilizados questionários semi estruturados aprovados (Nº 571.156) pelo Comitê de Ética da Universidade Santa Cecília. Representantes de famílias de Juruvaúva, Pedrinhas e Ubatuba (Figura 1) foram abordados inicialmente, para obtenção do consentimento para participarem da entrevista. Foi considerado um representante por família com idade superior a 18 anos e tempo de residência acima de dez anos como critérios para amostragem. Além disso, foi aplicado o método ‘bola de neve’, onde cada indivíduo entrevistado recomenda outro indivíduo em qualquer das três comunidades. As questões da entrevista incluíram informações sobre o perfil socioeconômico do entrevistado sendo os dados apresentados em relação ao total de cada localidade.

O acompanhamento da dieta foi realizado por meio do recordatório alimentar de 24 horas, onde foram anotados quais itens alimentares consumidos por cada entrevistado em duas de suas principais refeições (almoço e jantar) no dia anterior da entrevista. Para verificar a existência de diferença entre a diversidade de alimentos consumidos no recordatório alimentar, bem como dos itens medicinais citados nas entrevistas, foram construídas curvas de rarefação utilizando o software PAST v. 1.34 (Hammer et al., 2001). Nesse caso, em virtude do número menor de residentes nas comunidades Juruvaúva (total de oito famílias) e Ubatuba (16 famílias), os dados das mesmas foram agrupados, quando comparadas aos itens avaliados na comunidade de Pedrinhas (80 famílias). Além disso, os dados obtidos a partir de perguntas abertas da entrevista semi estruturada foram analisados por meio de uma abordagem qualitativa, ressaltando-se as frequências de alguns alimentos nas comunidades em relação à preferência, adversidade e uso medicional.
Resultados e Discussão
Perfil socioeconômico
Foram entrevistados quatro moradores de Juruvaúva, 51 de Pedrinhas e 10 de Ubatuba, representando respectivamente 50, 63,8 e 62,8% dos habitantes de cada local. A faixa etária dos entrevistados variou de 18 a 89 anos. Do total de entrevistados, 46 são nativos das comunidades, sendo os não nativos, predominantemente, cônjuges de moradores nativos. O nível de escolaridade prevalente foi o ensino fundamental e apenas um dos entrevistados se declarou analfabeto. A principal fonte de renda citada nas três comunidades foi a proveniente da pesca, tendo sido citado como fonte de renda complementar o trabalho em construção civil (Juruvaúva), aposentadoria (Pedrinhas) e comércio (Ubatuba). Entre os entrevistados que atribuíram a pesca como principal atividade apenas 15,7% depende exclusivamente dela, valor inferior ao observado em comunidades caiçaras do litoral do Rio de Janeiro (Begossi et al., 2010). Outras atividades como serviços de faxina, cozinha, limpeza e costuras, segundo os entrevistados, seriam realizados principalmente pelas mulheres de tais comunidades.
A pesca também não foi atividade exclusiva de renda de comunidades do litoral de São Paulo em estudos prévios (Hanazaki et al., 2007; Ferreira et al., 2009). Na Estação Ecológica da Juréia Itatins (Ramires e Barrella, 2003) e no Vale do Ribeira (Barrella et al., 2014), ambas as localidades próximas do presente estudo, os serviços e profissões voltados ao turismo, como restaurantes, bares, pousadas, aluguel de barcos, entre outros, foram bastante citados. De acordo com Begossi et al. (2010), as comunidades caiçaras trazem do passado esta plasticidade, mesclando pesca e agricultura ou ainda, pesca, agricultura a atividades diversas. Entretanto, essa forma de garantir menor risco, muitas vezes, não está acompanhada do melhor preparo do indivíduo para o mercado urbano, sugerindo que a valorização da pesca possa muitas vezes, ser a melhor alternativa (Begossi e Lopes, 2014).
Alimentos consumidos
Considerando-se os dados das duas refeições principais (almoço e jantar), 130 refeições foram analisadas, sendo 102 em Pedrinhas e 28 em Juruvaúva e Ubatuba (Tabela I). Os resultados apontaram que na dieta das três comunidades houve predominância dos itens arroz e feijão, acrescidos do consumo de proteínas, como peixe, carne bovina, carne suína e aves (predominantemente frango). Legumes como tomate, chuchu, abobora, batata e vegetais verdes também foram citados como presentes em algumas refeições. Na relação de frutas, banana e laranja foram as mais citadas Além disso, diversos itens consumidos incluíram alimentos industrializados, como embutidos (salsicha, linguiça, presunto), leites pasteurizados e macarrão.

Refeições com predominância de farinha de mandioca, banana, batata doce e peixe constituíam 85% das refeições da dieta caiçara na década de 50 (Mourão, 1971). Entretanto, alguns desses itens, como farinha de mandioca e banana, foram aos poucos sendo abandonados, não representando ambos, atualmente, nem 5% da dieta. Hanazaki e Begossi (2003) também observaram a mesma mudança de hábitos dos itens alimentares nas comunidades de São Paulo Bagre (Cananéia) e Pedrinhas (Ilha Comprida).
Comparando-se a diversidade de total de itens consumidos entre as comunidades (Figura 2), pode ser verificado que moradores de Pedrinhas apresentaram maior diversidade de dieta do que as outras duas comunidades.

A comunidade de Pedrinhas possui melhor facilidade de acesso ao centro da cidade de Ilha Comprida, denominado Boqueirão da Ilha, local que contém comércio de alimentos industrializados e exóticos a região. A maior parte do percurso (34km, média de 40min) é realizada inclusive, em parte, por via pavimentada. Em Pedrinhas, o comércio turístico de bares, quiosques, venda de bebidas e porções de pescados (peixes e crustáceos), especialmente no período de férias e temporadas, também pode estar estimulando o suprimento de itens industrializados complementares à alimentação. As comunidades de Juruvaúva e Ubatuba situam-se em lados opostos a 6 e 4km respectivamente de Pedrinhas, apresentando ambas condições semelhantes de acesso ao centro e por vezes, também utilizam o comercio local de Pedrinhas. Em comunidades caiçaras de Cananéia, a facilidade de acesso ao mercado local e a via principal ao centro urbano da cidade resultou em maior aquisição de itens industrializados (Ferreira et al., 2009).
As refeições sem proteína animal corresponderam a 9% do total (Tabela II). Entre as fontes de proteína consumidas, peixes e crustáceos (predominantemente camarão), foram as mais citadas, representando 22% das refeições dessas comunidades. Entretanto, outras fontes de proteína animal tiveram igual relevância, como pode ser observado pelas frequências de carne bovina (18%), suína (12%) e o item outros (embutidos, ovos, leite, queijos, 18%). O maior consumo de pescados em relação a outras fontes proteicas foi observado em 52% das refeições das comunidades caiçaras da praia de Puruba/SP (Hanazaki et al. 2000), 68%, de comunidades da Ilha de Búzios/ RJ (Begossi e Richerson, 1993) e 21 e 42%, respectivamente, das populações das praias de Jabaquara e Serraria em Ilhabela/SP (Ramires et al., 2012). Em estudo anterior com as comunidades de Pedrinhas e São Paulo Bagre; o consumo de peixe representou 28 e 36%, respectivamente do total de refeições analisadas (Hanazaki e Begossi, 2003). Ainda de acordo com os mesmos autores, em Pedrinhas, ao longo do ano, houve uma alternância do pescado e de outras fontes de proteína animal, sendo que nos meses de março e abril houve maior consumo de carne de frango (Hanazaki, 2001). A alta frequência de consumo de frango pelas comunidades (24%) e o fenômeno ‘food delocalization’, isto é, a substituição de itens produzidos regionalmente por itens industrializados também foram destacadas (Hanazaki e Begossi 2003). Esse mesmo fenômeno pode ser observado no presente trabalho quando analisado o consumo de carne bovina nas comunidades Juruvaúva e Ubatuba, totalizando atualmente 29% de refeições analisadas. Entretanto, há de ser destacado que a presente pesquisa abrangeu somente os meses de março e abril e a frequência de consumo do pescado pode ser influenciada pela sua sazonalidade, requerendo-se estudos futuros para sua confirmação.

Fatores como disponibilidade de recursos naturais, acesso dos moradores aos centros urbanos e preço de venda de determinados pescados são frequentemente citados como relevantes no consumo de proteína animal (Begossi et al., 2010). No presente trabalho, nove espécies foram citadas como presentes nas refeições, representando tainha, camarão e pescada ~5% cada (Tabela II). Entretanto, Hanazaki e Begossi (2003) indicaram valores superiores e divergentes em espécies consumidas ao longo de todo o ano na comunidade de Pedrinhas, representados por 23% de parati, 17% de tainha e 11% de pescada. A menor frequência de pescado observada no presente estudo pode ser consequência do processo de urbanização pelo qual as comunidades estão vivenciando (Ferreira et al., 2009), assim como a menor ocorrência das próprias espécies.
Alimentos preferidos
Os resultados da entrevista semi estruturada em relação aos itens alimentares preferidos foram arroz, citado em 81,5% das respostas, feijão (66,1%) e peixes (58,4%), dados concordantes com os levantamentos de Ferreira et al. (2009) na região. Com relação aos pescados preferidos em todas as três comunidades, a tainha foi citada por 49,2% dos entrevistados, o robalo por 40% e a pescada por 21,5%. A preferência, diferentemente do consumo, não está associada com a sazonalidade e disponibilidade dos recursos. Por isso é comum nos trabalhos sobre dieta de populações locais que as frequências de consumo e preferência apresentem respostas divergentes. As preferências dos entrevistados foram geralmente relacionadas às propriedades dos peixes em relação a sabor, cor, preparo, quantidade de espinhas e textura. Justificativas como abundância e custo também foram apresentadas. A tainha, os robalos e as pescadas representam espécies de grande importância comercial na região, entretanto, apresentam ocorrências diversificadas (Miranda e Carneiro, 2007; Mendonça e Miranda, 2008).
O robalo embora citado como preferido, não foi indicado como consumido em nenhuma das refeições analisadas no Recordatório Alimentar. Duas espécies de robalos são mais frequentes na região, Centro-pomus parallelus que ocorre durante todo ano e Centro-pomus undecimalis que é mais presente em estações quentes e chuvosas, como no verão (Mendonça e Katsuragawa, 2001; Nogueira, 2009; Nora, 2013). Por ser um peixe de carne branca, com quantidade reduzida de espinhos e ter bom valor de venda, os pescadores preferem vendê-lo a consumi-lo (Ramires et al., 2012), o que pode justificar o não consumo durante o período de amostragem deste trabalho.
A pesca da tainha (Mugil platanus) no litoral sul de São Paulo acompanha a dinâmica de migração reprodutiva da espécie, ou seja, os períodos de maior produção na região estão associados à chegada delas do Sul do Brasil entre os meses de fevereiro a junho e setembro a novembro (Mendonça e Miranda, 2008).
Embora as pescadas tenham sido citadas de maneira geral pelos pescadores entrevistados, diversas espécies podem estas associadas a este nome local. Mendonça e Miranda (2008) apontaram na produção pesqueira do Sul do Estado de São Paulo a captura da pescada-amarela (Cynoscion acoupa), pescada-banana (Nebris micros), pescada-branca (Cynoscion leiarchus), pescada-cambucu (Cynoscion virescens), pescada-dentão (Cynoscion microlepdotus), pescada-foguete (Macrodon ancylodon) e pescadinha (Isopisthus parvipinnis), como as principais do referido grupo. e pescadas também foram listadas como algumas das espécies preferidas em comunidades caiçaras do litoral do Rio de Janeiro (Seixas e Begossi, 2001; Hanazaki and Begossi, 2006).
Alimentos aversivos
Os alimentos aversivos ou pouco apreciados mais citados nas três comunidades foram carnes bovinas e suínas (27,8%), legumes (21,3%) e pescados (21,3%). Os miúdos bovinos e suínos, como fígado, bucho e coração seriam justificados pelo sabor, entretanto, vários dos entrevistados relacionaram a aversão às carnes pelo seu conteúdo de gordura, sendo por esse motivo consideradas pouco saudáveis pelo entrevistado. A aversão por legumes foram todas relacionada à gosto, ou seja, não seriam adequados ao paladar do entrevistado. Exemplo citados incluem o quiabo, jiló, berinjela e chuchu. No caso dos pescados, os mais citados foram bagre, cação e baiacu. As justificativas citadas foram relacionadas a sabor, odor, presença de espinhos, hábito alimentar do peixe, presença de veneno (toxinas) e textura. Como enfatizado por Hanazaki and Begossi (2006), preferências e aversões são decorrentes de fatores ecológicos e culturais, ou seja, podem ser explicadas pela disponibilidade do recurso, posição da espécie na cadeia alimentar ou mesmo pela importância da espécie na economia da comunidade. Curiosamente, peixes ‘de couro’, como os cações, embora citados como aversivos pelo aspecto, são muito consumidos pelas comunidades, devido a ausência de espinhos, fácil preparo e bom sabor, fato também observado em estudos prévios (Seixas e Begossi, 2001; Ramires et al., 2012). O baiacu, segundo os entrevistados, é um peixe de sabor ‘ruim’, com ‘muitos espinhos’ e ‘venenoso’, requerendo um preparo especial na sua limpeza e preparação. Estudos sobre a importância farmacológica das toxinas e o alto número de casos de envenenamento causados pela ingestão da carne de baiacus confirmam a razão desse pescado como alvo de aversões pelas comunidades caiçaras (Rotundo, 2007).
Alimentos medicinais
A resposta dos entrevistados sobre quais alimentos seriam usados para fins medicinais indicou os pescados em 22% dos resultados, frutas (13,8%) e verduras/legumes (10,7%). Entretanto, a maioria (52,8%) não usa ou não conhece nenhum tipo de alimento medicinal. Peixes como cação, pescada, robalo, bagre e tainha, de acordo com os moradores, teriam seu uso estimulado devido a maior vitalidade e ânimo que seu consumo propiciaria. Ramires et al. (2012) também apontou o uso de peixes com um propósito correlato, ou seja, para algumas espécies não seria atribuída uma função medicinal específica, mas seu uso seria incentivado por ser considerada fonte de proteína mais suave, onde em situações relacionadas a algum estado fisiológico diferenciado, como pós parto e pós cirúrgico, não prejudicaria o reestabelecimento ao estado normal. Isso estaria associado a percepção de que o peixe é um alimento mais saudável, por isso muito recomendável. Peixes medicinais, assim como outros animais medicinais foram citados em estudos sobre pescadores artesanais da Amazônia e da costa sudeste da Mata Atlântica (Begossi et al., 2004; Seixas e Begossi, 2001; Ramires et al., 2012).
Por outro lado, a resposta para plantas extraídas, coletadas ou cultivadas devido as suas propriedades medicinais foram altas e frequentes. Nas três comunidades houve um total de 49 itens identificados. Diversas plantas e suas justificativas foram relatadas, como o boldo, citado por 29,2% dos entrevistados, para tratar moléstias do fígado; hortelã (18,4%), para tratar de dores de garganta, para gripe ou como vermífugo; cataia (13,8%), para inflamações de garganta e dores de estômago e erva de Santa Maria (13,8%), para tratar de problemas renais, dores de estômago e machucados. As mesmas plantas medicinais foram muito citadas, usadas e conhecidas pelos caiçaras da Mata Atlântica, nas Baías de Sepetiba e Ilha Grande (Figueiredo et al., 1997; Begossi et al., 2010) e do litoral norte e sul de São Paulo (Begossi et al., 2002; Hanazaki et al., 2007). Em Ilha Comprida, a utilização desses recursos múltiplos (animais e plantas) requer atenção, uma vez que o município está inserido em área de proteção ambiental. Todavia, no caso das plantas medicinais, a maioria dos entrevistados informou que estas seriam cultivadas nos próprios quintais ou em quintais pertencentes a vizinhos.
Comparando-se a diversidade de total de itens alimentares utilizados para fins medicinais entre as comunidades (Figura 3), pode ser verificado que moradores de Juruvaúva/Ubatuba apresentaram maior diversidade do que a comunidade de Pedrinhas. Conforme informado anteriormente, a comunidade de Pedrinhas possui melhor facilidade de acesso ao centro da cidade de Ilha Comprida, local que contém farmácias e drogarias comerciais. Além disso, Pedrinhas possui um posto de saúde desde outubro de 2014 e, de acordo com alguns entrevistados, a medicina tradicional tem se sobreposto à medicina à base de ervas e plantas caseiras.

Considerações Finais
As dietas das comunidades caiçaras da Ilha Comprida seguem os padrões alimentares já descritos na literatura. O arroz, feijão e o pescado são os seus principais constituintes. No entanto, tem tido a inserção de alimentos industrializados e outras fontes de proteína animal, sendo os principais fatores que influenciam no consumo, provavelmente, o acesso ao centro comercial e existência de comércio local. A comunidade de Pedrinhas tem maior evidência dessas justificativas e apresentou uma dieta de maiores itens consumidos, quando comparada as comunidades de Juruvaúva;/Ubatuba.
O consumo de proteína animal tem no pescado ainda sua maior fonte e preferência. Entretanto, sua frequência é ligeiramente superior à da carne de bovina e de outras fontes proteicas. As espécies identificadas como mais frequentes na alimentação, não correspondem integralmente às mais consumidas, refletindo também a importância da pesca nos padrões de consumo alimentar dessas comunidades e possível interação com o período de maior ocorrência das mesmas.
Com relação às plantas extraídas de ambientes naturais, estas foram representadas especialmente pelas plantas medicinais, com maior diversidade nas comunidades Juruvaúva/Ubatuba. Ressalta-se ainda o contato direto dos habitantes com o cultivo e propagação destas plantas em seus quintais conferindo a tais recursos aspectos positivos para manutenção de sua diversidade.
Os resultados sugeriram que o acompanhamento da dieta caiçara constitui boa ferramenta para a estimativa da diversidade de recursos naturais em Ilha Comprida.
Agradecimentos
Os autores agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), Projeto FAPESP 2016/01823-9. Especiais agradecimentos a Alpina Begossi e aos caiçaras das comunidades Juruvaúva, Pedrinhas e Ubatuba.
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