Resumo: No presente artigo, avançam-se duas hipóteses acerca da posição de David Hume acerca do estatuto epistêmico da consciência. Em primeiro lugar, argumenta-se que Hume não oferece qualquer argumento explícito em favor da tese de que a mente não pode se enganar sobre um estado mental de que está consciente, e questionam-se algumas possíveis interpretações que poderiam oferecer esse argumento. Em segundo lugar, argumenta-se que Hume está comprometido com a tese de que a mente está consciente de todos os seus fenômenos mentais enquanto eles ocorrem, e explicam-se as passagens em que o filósofo parece referir-se a operações mentais não conscientes — o que contrariaria aquela tese —, a partir de uma teoria de graus de consciência segundo a vividez das percepções.
Palavras-chave: História da Filosofia, David Hume, Consciência, Transparência, Mente.
Abstract: This article puts forward two hypotheses about David Hume’s position on the epistemic status of consciousness. Firstly, it is argued that Hume does not offer any explicit argument in favor of the thesis that the mind cannot be mistaken about a mental state of which it is conscious, and some possible interpretations that could offer this argument are questioned. Secondly, it is argued that Hume is committed to the thesis that the mind is conscious of all its mental phenomena as they occur, and the passages in which the philosopher seems to refer to non-conscious mental operations — which would contradict that thesis — are explained on the basis of a theory of degrees of consciousness according to the vividness of perceptions.
Keywords: History of Philosophy, David Hume, Consciousness, Transparency, Mind.
Artículos
David Hume sobre a tese da transparência dos fenômenos da consciência
David Hume on the Thesis of the Transparency of the Phenomena of Consciousness

Recepción: 02 Enero 2024
Aprobación: 01 Abril 2024
No presente artigo, discutem-se alguns aspectos das reflexões de David Hume (1711-1776) sobre o estatuto epistêmico da consciência (consciousness). Pretende-se discutir principalmente sua relação com a chamada ‘tese da transparência da consciência’. Esta tese, que remontaria às reflexões de René Descartes (1596-1650)1, pode ser descrita a partir de dois aspectos fundamentais e distintos do fenômeno mental do estar consciente2. O primeiro é o de que o indivíduo não pode se enganar, em suas crenças, em relação aos seus estados e atividades mentais. Se ele tem presentemente um estado mental X, ele ‘acredita’ e ‘sabe’ que X é o seu estado mental e não pode confundi-lo com outro estado mental Y. Esse é o caráter incorrigível das crenças sobre os fenômenos conscientes. Quer dizer, a mente não pode se enganar sobre um estado mental de que está consciente. Doravante, esse aspecto da tese da transparência será chamado de ‘tese da incorrigibilidade’. É importante sublinhar aqui o sentido do termo ‘incorrigível’ para os propósitos do presente artigo: a consciência, enquanto incorrigível, estaria imune ao ataque cético, ela não seria suscetível à dúvida3. O segundo aspecto da tese da transparência é o de que todo evento mental é acompanhado por consciência. Se um estado mental X está a ocorrer, o indivíduo está necessariamente consciente disso, isto é, ele acredita e sabe que esse é seu estado mental presente. Estabelece-se, em outras palavras, que não há lugar para fenômenos mentais não conscientes a operar na mente. Quer dizer, a mente está consciente de todos os seus fenômenos mentais enquanto eles ocorrem. Doravante, esse aspecto da tese da transparência será chamado de ‘tese da luminosidade’.
Pretendemos discutir o compromisso do filósofo com ambos os aspectos da tese da transparência da consciência no Tratado da Natureza Humana (2001)4 e na Investigação sobre o Entendimento Humano (2004)5, obras que Hume dedica à questão do conhecimento. Para tanto, na primeira seção, dedicamo-nos à questão de saber como Hume se compromete com a tese da incorrigibilidade. De fato, algumas passagens de sua obra parecem indicar que o filósofo admite a impossibilidade de se enganar sobre os estados e atividades mentais de que se tem consciência. Contudo, gostaríamos de discutir a legitimidade desta aceitação acrítica da incorrigibilidade da consciência a partir de reflexões propostas por Thomas Reid (1701-1796), veemente crítico do ceticismo humiano6. As questões que gostaríamos de propor a este respeito podem ser expressas nos seguintes termos: os textos de Hume aqui considerados apresentam algum argumento filosófico em favor da fiabilidade da consciência? O fenômeno da consciência é de fato imune à ameaça cética? Nossa hipótese estabelece que Hume não apresenta explicitamente respostas a estas questões. Na segunda seção, discutimos a questão de saber se Hume está comprometido com a tese da luminosidade da consciência. Mais especificamente, pretendemos discutir se o filósofo entende que a mente humana está consciente de todos os seus fenômenos ou se aceita a possibilidade da ocorrência de estados mentais não conscientes. A nosso ver, a questão é controversa, na medida em que o Tratado e a primeira Investigação apresentam sugestões aparentemente conflitantes a esse respeito. Apesar de as etapas da investigação humiana dependerem fundamentalmente da compreensão de que a mente está consciente de todos os seus estados e atividades mentais, em algumas passagens, Hume parece considerar a possibilidade de estados e atividades operando na mente sem que ela estivesse consciente disso. Nossa hipótese estabelece que talvez seja possível explicar as menções do filósofo a fenômenos não conscientes a partir do que chamamos de ‘teoria dos graus da consciência’.
Antes de nos dedicarmos às duas discussões propostas, apresentamos alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, diferentemente de outros autores dos séculos XVII e XVIII7, Hume não define a noção de ‘consciência’ em seus escritos, tampouco se dedica a esclarecer a sua compreensão a respeito desse fenômeno mental. Com efeito, o filósofo não vai além de algumas poucas menções a essa noção, não oferecendo um tratamento sistemático a esse respeito em sua ciência da natureza humana. Não há uma seção, seja no Tratado, seja na primeira Investigação, em que Hume se dedique a explicar sua compreensão desse fenômeno mental que há pelo menos quatro décadas despertava o interesse dos filósofos de língua inglesa8. Não pretendemos aqui dedicar-nos a uma eventual sistematização da compreensão humiana da noção de ‘consciência’. Julgamos que essa tarefa necessitaria, devido à sua complexidade, de uma pesquisa mais detida sobre o tema9. É verdade que, no desenvolvimento da presente pesquisa, pensamos em uma hipótese para explicar o que seria a consciência. A partir da leitura da seção ‘Da ideia de existência e de existência externa’, pensamos que a consciência poderia ser entendida à maneira do que Hume diz acerca da noção de ‘existência’ na primeira parte do Livro I do Tratado. Assim como uma percepção não poderia ser concebida senão como existente — a existência seria como que uma ‘marca’ da percepção — “a ideia de existência, portanto, é exatamente a mesma que a ideia daquilo que concebemos como existente” (T 1.2.6.3) —, o ser consciente seria também uma marca de toda percepção enquanto dela a mente está consciente. Isto é, a existência e o ser consciente seriam parte da natureza das próprias percepções. A hipótese, no entanto, revelou-se inadequada10. O texto humiano não é claro inclusive sobre a questão de saber se a consciência deve ser entendida como uma faculdade distinta de outras faculdades mentais como a memória e a imaginação, por exemplo.
Por razões como as apresentadas acima, abdicamos do propósito de avançar uma hipótese sobre o que seria a consciência para Hume. Julgamos que seja suficiente, para os propósitos da presente discussão, notar que o filósofo entende que existem crenças produzidas pelo fenômeno de estar consciente. Ainda que não seja possível afirmar que a consciência, no texto humiano, é uma faculdade por si, acreditamos que ela é uma fonte de crenças aos olhos de Hume. Em nossa leitura, não realizaremos uma distinção sistemática entre ‘juízo’ e ‘crença’. Julgar que se está em um estado mental X é acreditar que este estado ocorre presentemente na mente. Ademais, entendemos que o juízo / crença podem ser atos tácitos da mente. Em outras palavras, eles nem sempre precisam ser pronunciados por meio de palavras ou signos11. Quando a mente é afetada por uma dor, por exemplo, o indivíduo está consciente de a sentir e, a nosso ver, é necessário apenas que se reconheça que ele é capaz de tacitamente reconhecer que sabe que está em um estado mental X. Assim, julgamos ser possível desenvolver a discussão sobre o estatuto epistemológico da consciência12.
Por fim, gostaríamos de chamar a atenção para a distinção entre dois fenômenos mentais distintos: o fenômeno mais geral da consciência, enquanto conhecimento das atividades mentais enquanto esses ocorrem na mente; o fenômeno mais específico da consciência de si ou autoconsciência, o conhecimento que o eu ou pessoa tem de si próprio/a ao estar consciente de suas percepções13. No presente artigo, estamos interessados pelo primeiro fenômeno, a consciência de estados mentais. Não tratamos, portanto, do fenômeno específico da consciência de si. Isto é, não nos dedicamos ao estudo da relação entre consciência e identidade pessoal no Tratado.
Em filosofias como, por exemplo, a de Descartes, estar consciente é, em primeiro lugar, poder ‘conhecer’ de modo não problemático os próprios fenômenos mentais, as ideias, percepções sensíveis, crenças e paixões. Nesse sentido, as atividades da consciência estariam intrínseca e não problematicamente ligadas à noção de ‘conhecimento’, um saber certo sobre o próprio mundo mental. Em segundo lugar, em filosofia inspiradas pelas reflexões de Descartes sobre o mundo mental, a consciência não apenas produz conhecimento sobre os fenômenos da mente como também é compreendida como uma fonte fiável de saber. Se no itinerário das Meditações, os sentidos, a memória e a razão, por exemplo, estão ameaçados pela dúvida hiperbólica, o mesmo não ocorre com a consciência. Esta seria incorrigível, como tal, superaria aquela dúvida e serviria de ponto de apoio a partir do qual Descartes poderia filosofar.
A nosso ver, Hume é parte dessa tradição de inspiração cartesiana que compreende a consciência como uma fonte incorrigível de conhecimento. Isto é, o filósofo não julga que as crenças devidas ao estar consciente possam ser colocadas em dúvida. Em seus textos, encontram-se mais de uma sugestão de que ele estaria comprometido com essa visão. Por exemplo, na seção ‘Do ceticismo quanto aos sentidos’ da quarta parte do Livro I do Tratado, Hume nota: “porque, como todas as ações e sensações da mente nos são conhecidas pela consciência, ‘elas devem necessariamente, em todos os pormenores, parecer o que são, e ser o que parecem’ [destaque nosso]” (T 1.4.2.7). O filósofo observa na passagem que o parecer corresponde ao que de fato é. Se se parece estar em um estado mental X, não pode ser o caso de se encontrar, na verdade, em um estado mental Y: não há como tomar um estado ou atividade mental X por outro estado ou atividade Y. Na sequência da passagem, afirma-se ainda mais explicitamente que um indivíduo não se pode enganar sobre aquilo de que tem consciência:
Como tudo que entra na mente é na ‘realidade’ uma percepção, é impossível que alguma coisa pareça diferente em sua ‘sensação’ [feeling]. ‘Afirmar isso seria supor que poderíamos estar enganados mesmo sobre aquilo de que estamos mais intimamente conscientes’ [destaque nosso] (T 1.4.2.7).
Pela terceira vez no mesmo parágrafo, Hume reafirma a incorrigibilidade da consciência — cujos objetos não podem se apresentar senão ‘em suas verdadeiras cores’:
Todas as impressões (externas e internas, paixões, afetos, sensações, dores e prazeres) são originalmente equivalentes; sejam quais forem as diferenças que possamos observar entre elas, ‘todas aparecem em suas verdadeiras cores’, como impressões ou percepções [destaque nosso] (T 1.4.2.7).
As considerações de Hume sobre a fiabilidade de outras fontes de conhecimento são menos otimistas do que aquela atribuída à consciência. Por exemplo, os sentidos estão em questão ao longo de todo o desenvolvimento dos argumentos do Livro I do Tratado. De fato, Hume não supõe que eles não fornecem o conhecimento da origem das sensações14. Em ‘Do ceticismo quanto aos sentidos’, Hume é claro sobre a impossibilidade de se provar filosoficamente que os objetos externos existem, de modo que caberia aos filósofos apenas explicar os motivos que levariam a mente a crer em sua existência contínua e distinta (T 1.4.2.1). Por essa razão, é preciso suspender o juízo sobre a origem dessas impressões:
Quanto às ‘impressões’ provenientes dos ‘sentidos’, sua causa última é, em minha opinião, inteiramente inexplicável pela razão humana, e será para sempre impossível decidir com certeza se elas surgem imediatamente do objeto, se são produzidas pelo poder criativo da mente, ou ainda se derivam do autor de nosso ser (T 1.3.5.2).
Outra sugestão significativa no Tratado sobre como seria preciso suspender o assentimento às crenças que surgem das operações de outros fenômenos mentais aparece na conclusão do Livro I. Na seguinte passagem, Hume, a nosso ver, reconhece que a memória, diferentemente da consciência, não é uma fonte fiável de conhecimento:
Mais ainda, mesmo em relação a essa sucessão, ‘apenas poderíamos admitir percepções imediatamente presentes a nossa consciência’ [destaque nosso]; as imagens vívidas que a memória nos apresenta nunca poderiam ser aceitas como retratos verdadeiros de percepções passadas (T 1.4.7.3).
Em nossa leitura do Tratado, a fiabilidade da memória está em questão assim como a fiabilidade dos sentidos. Outras passagens do texto, com efeito, sugerem essa dúvida de Hume sobre ela. No Tratado, o ceticismo sobre as operações da memória surge a partir da teoria da distinção dos estados mentais ou percepções a partir do critério da sua força e vividez. Hume enfrenta a dificuldade de que tal critério não parece permitir uma distinção segura entre o que é uma lembrança e uma fantasia. Com efeito, ao longo da obra, o filósofo se mostra particularmente interessado pelo problema de se distinguir entre a memória e a imaginação de uma maneira não problemática — dificuldade discutida nas seções ‘Das ideias da memória e da imaginação’ e ‘Das impressões dos sentidos e da memória’. Mas se o filósofo é capaz de indicar razões para se duvidar da fiabilidade da memória, o mesmo não ocorre no caso da consciência, que, como a passagem acima sugere, é passível de ser ‘admitida’15.
Os indícios de que Hume está comprometido com a tese da incorrigibilidade da consciência não se restringem ao Tratado. A nosso ver, uma das passagens mais significativas a este respeito está presente na primeira Investigação. Com efeito, na seção VII, o filósofo observa:
Um homem subitamente afetado por uma paralisia no braço ou na perna, ou que há pouco tenha perdido esses membros, esforça-se freqüentemente, no início, para movê-los e empregá-los em suas tarefas habituais. Ele está aqui tão consciente do poder de comandar esses membros quanto um homem em perfeita saúde está consciente do poder de atuar sobre qualquer membro que preserve seu estado e condição naturais. Mas ‘a consciência nunca nos engana’ [destaque nosso] (IEH 7.13).
Há, em verdade, uma passagem em que Hume parece admitir a possibilidade de um engano da consciência. O filósofo admite a possibilidade de confundirmos uma impressão com uma ideia, em virtude da menor vivacidade ou impacto sensível que ela pode ter na mesma. Com efeito, Hume admite que podemos confundir o sentimento de aprovação ou reprovação com um princípio racional (uma proposição verdadeira ou falsa), em virtude do seu caráter calmo ou insensível na mente:
O exercício da razão [...] não produz emoção sensível; e, exceto nas indagações filosóficas mais sublimes, ou nas frívolas sutilezas escolásticas, quase nunca transmite prazer ou desconforto. É por isso que toda ação da mente que opera com a mesma calma e tranqüilidade é confundida com a razão por todos aqueles que julgam as coisas por seu primeiro aspecto e aparência. [...] ‘Quando [uma paixão] é calma e não causa nenhuma desordem na alma, é facilmente confundida com as determinações da razão, e supomos que procede da mesma faculdade que a que julga sobre a verdade e a falsidade’. Supomos que sua natureza e seus princípios são os mesmos porque suas sensações não são evidentemente diferentes. (T 2.3.3.8; destaque nosso)
Se a consciência puder ser considerada como sinônima ou, pelo menos, condição de conhecimento, apercebimento ou concepção — como julgamos que as diversas passagens aqui citadas parecem sugerir —, esta afirmação de Hume corrobora a sua consideração de que não devemos confiar totalmente na nossa consciência. Com efeito, podemos, conscientemente, considerar um juízo moral (como, por exemplo, ‘matar é errado’) verdadeiro à maneira de uma proposição cujo valor de verdade pode ser aferido a partir da experiência dos sentidos externos, e não fundado sobre um sentimento de reprovação, em virtude do seu caráter calmo — e não violento. Quer dizer, uma percepção pode parecer uma ideia e ser uma impressão.
Entretanto, ainda podemos pensar que esta afirmação não contraria verdadeiramente a tese da incorrigibilidade da consciência, na medida em que podemos questionar: por que necessariamente admitir que tal percepção seria uma impressão, e não uma ideia, se, conscientemente, nos parece uma ideia? Que garantia Hume ofereceria para que se deva admitir que tal percepção — na qual se baseia a dita proposição moral — seja, forçosamente, uma impressão, e não uma ideia? A resposta a esta pergunta pode ser encontrada numa passagem em que o filósofo retoma sucintamente esta afirmação:
Nossas decisões a respeito da retidão e da depravação morais são evidentemente percepções; e, ‘como todas as percepções são ou impressões ou idéias, a exclusão de umas é argumento convincente em favor das outras. A moralidade, portanto, é mais propriamente sentida que julgada, embora essa sensação ou sentimento seja em geral tão brando e suave que tendemos a confundi-lo com uma idéia’, de acordo com nosso costume corrente de considerar tudo que é muito semelhante como se fosse uma só coisa (T 3.1.2.1; destaque nosso).
Além dos argumentos que Hume apresenta a favor da conclusão de que a fonte das distinções morais são as paixões (impressões de reflexão) e não as ideias (a razão), há que lembrar que de acordo com o método experimental de raciocínio em que pretende fundar a Ciência do Homem16, o filósofo só se vê em condições de admitir dois tipos de conteúdos mentais, a saber, as percepções — subdivididas em impressões e ideias.
Na próxima seção, retornaremos à discussão do contexto em que estas passagens são apresentadas. Por ora, limitamo-nos a observar que a fiabilidade da consciência é explicitamente estabelecida por Hume.
Num trabalho sobre o autoconhecimento na filosofia de Descartes, Janet Broughton (2008) nota que, numa investigação filosófica que se proponha a lançar luzes sobre a mente humana, é legítimo perguntar-se sobre como justificar a fiabilidade da consciência:
Algumas pessoas poderiam sustentar que essa resposta [à questão sobre a fiabilidade da consciência] não precisa de defesa ou explicação, embora outras possam pensar que deveríamos ser capazes de dizer a razão de a hipótese do enganador não poder atingir esse tipo de juízo [da consciência]. Não está inteiramente claro qual dessas respostas Descartes gostaria de dar (Broughton, 2008, p. 186).
Ainda que a hipótese hiperbólica do supremo enganador não esteja presente no texto humiano, e assim como Broughton, julgamos que a busca por um argumento que justifique a aceitação da fiabilidade da consciência seja filosoficamente legítima, sobretudo quando se tem em vista o papel do conhecimento sobre os fenômenos mentais na ciência da natureza humana de Hume. Como é dito na seção ‘Do ceticismo quanto aos sentidos’: “as únicas existências de que estamos certos são as percepções, que, por estarem imediatamente presentes a nós pela consciência, exigem nosso mais forte assentimento, sendo o primeiro fundamento de todas as nossas conclusões” (T 1.4.2.47)17.
Entretanto, na história da filosofia, encontram-se críticas a Hume no sentido de acusá-lo de ter aceitado, de modo acrítico e injustificável, a consciência como uma fonte fiável de conhecimento, desde a recepção imediata das obras humianas. Por exemplo, Reid, tanto em Uma investigação sobre a mente humana a partir dos princípios do senso comum (1997)18, quanto nos Ensaios sobre os poderes intelectuais do homem (2002)19, considera notável o fato de que Hume — no seu ver, o mais radical dos céticos do século XVIII — tenha se rendido ante à força da crença na fiabilidade da consciência:
O autor do Tratado da natureza humana parece-me ser antes um cético parcial. Ele não seguiu o seu princípio [cético] tão longe quanto ele poderia levá-lo. Depois de ter combatido, com intrepidez e sucesso sem precedentes, os preconceitos vulgares, quando ele tinha apenas um golpe a desferir, a sua coragem falhou, de modo que ele depôs justamente suas armas, tornando-se cativo do mais comum de todos os preconceitos vulgares, quero dizer, ‘a crença na existência de suas próprias impressões e ideias’ [destaque nosso] (Reid, 1997, p. 71).
O filósofo, de modo arbitrário (pois nunca justifica essa escolha), não questiona a fiabilidade da consciência: “a crença na existência das impressões e ideias [estados mentais] é tampouco sustentada pela razão quanto aquela [crença] na existência de mentes e de corpos” (1997, p. 71). Para Reid, assim como Descartes, Hume não apresenta prova da fiabilidade da consciência, muito embora a exija no caso de outras fontes de conhecimento20.
Contemporaneamente, Oswaldo Porchat (1933-2017) desenvolve uma crítica semelhante à apresentada por Reid: de Descartes a Hume, a consciência teria sido aceita acriticamente como fonte de conhecimento. Em ‘Ceticismo e mundo exterior’ (1987), o filósofo brasileiro nota que há um pressuposto admitido por todos aqueles que seguiram o modelo cético cartesiano de filosofar21, a saber, a compreensão de que seria preciso separar entre o ‘interior’ e o ‘exterior’. Para Porchat, o acesso aos fenômenos mentais é privilegiado por esses autores22, na medida em que pressupõem, de modo acrítico, a possibilidade de conhecimento do interior, âmbito do mental, do dado e imediato, e, assim, o conhecimento dos fenômenos mentais, das atividades e estados da mente, jamais é problematizado: “mas a mente, também, como o que é ‘dado’ e não é problematizado, enquanto o mundo, ao contrário, como o que não é ‘dado’, já que é, ou pode ser, problematizado” (1987, p. 45). E nessa compreensão em que se separa o interior e o exterior, os cartesianos — incluindo Hume —, há uma ‘nítida opção filosófica’ da parte dos cartesianos de privilegiar o âmbito interior em detrimento ao exterior, levando estes filósofos a incorrerem em uma predileção injustificada pelo primeiro em detrimento ao segundo, pelo mental em detrimento ao não mental. Duvida-se do conhecimento do mundo externo sem, contudo, questionar-se o conhecimento dos próprios fenômenos mentais23. Eles procedem de maneira arbitrária ao eleger o âmbito mental como o campo do conhecimento não problematizável. Descartes e os cartesianos não justificam filosoficamente essa escolha, limitando-se a pressupor que o acesso ao mental não é problemático. Escolhe-se arbitrariamente uma ‘forma de filosofia da mente’ que privilegia um tipo de conhecimento24. Portanto, ainda que os cartesianos se pretendam céticos, trata-se de uma mera opção assumir como verdadeiro, antes de qualquer justificação filosófica, a verdade do conhecimento dos fenômenos mentais25.
Adiante, apresentamos três argumentos que poderiam responder à demanda pela justificação da fiabilidade da consciência. Estes partem da teoria da crença discutida na terceira parte do Livro I do Tratado, e complementada no ‘Apêndice’.
1. A primeira tentativa de sistematizar uma justificação para a fiabilidade da consciência parte das considerações de Hume sobre a noção de ‘crença’. Nas seções ‘Das impressões dos sentidos e da memória’ e ‘Da natureza da ideia ou crença’, o filósofo procura explicar o fenômeno mental do acreditar em termos de ‘força’ e ‘vividez’, de tal modo que crer seria sentir uma impressão dos sentidos ou retomá-la pela memória26. Do mesmo modo, a crença é entendida como uma ‘maneira de conceber’27, uma ‘concepção forte e firme’28, uma concepção ‘acrescida de força e vividez’29 ou ‘sentida de maneira diferente’30. Hume sugere também que a crença é uma concepção ‘sólida’, firme’ ou ‘estável’31 na mente humana.
De acordo com nossa primeira hipótese, a partir das considerações humianas apresentadas acima, a crença devida à consciência poderia ser entendida como um sentir particular de certo fenômeno mental enquanto ele ocorre na mente: quando estou em um estado mental particular X, sinto-o de tal maneira que não poderia deixar de acreditar no seu conteúdo. Deste modo, estar consciente de um fenômeno mental seria tão somente estar forte e firmemente convencido de que a mente está em tal estado, de modo que não haveria lugar para o erro nesses casos: teríamos uma crença sólida, firme e estável sobre nossa mente estar naquele estado mental particular X, ou sentiríamos vivamente um fenômeno mental e não nos pudéssemos enganar a esse respeito.
A nosso ver, a princípio, esta interpretação parece promissora, uma vez que permitiria explicar a possibilidade do fenômeno mental do estar consciente a partir de um critério basilar, na filosofia de Hume, para classificar e distinguir estados mentais: um estado mental consciente seria invariavelmente acompanhado por uma crença no respectivo conteúdo, ao passo que um estado mental em cujo conteúdo não acreditamos não deve ser admitido como estando presente à nossa consciência. Não obstante, deve-se reconhecer que pelo menos no Tratado, a força e vividez não é suficiente para garantir a verdade de crenças surgidas de certas operações mentais: por exemplo, para garantir que os sentidos sejam tomados como fontes fiáveis de conhecimento sobre o mundo externo. Para este efeito, além de dedicar uma seção ao tema, ‘Do ceticismo quanto aos sentidos’, Hume é assaz claro sobre como não é possível conhecer a origem das sensações32. Do mesmo modo, tal critério não é suficiente para garantir a fiabilidade da memória. Com efeito, numa passagem já citada no presente artigo, Hume nota que “as imagens vívidas que a memória nos apresenta nunca poderiam ser aceitas como retratos verdadeiros de percepções passadas” (T 1.4.7.3)33. Portanto, passagens como estas sugerem que apelar à força e vividez das crenças provindas da consciência não fundamentam adequadamente um argumento para defender sua fiabilidade. Mas se tal critério não é suficiente para garantir a fiabilidade dos sentidos e da memória, por que o seria em relação à consciência?
2. Nossa segunda tentativa parte da compreensão de que a consciência seria uma forma de conhecimento semelhante à intuição, quer dizer, uma convicção ‘imediata’, que ‘dispensa prova’ e de que a mente ‘não seria capaz de duvidar’34. Em casos de convicção intuitiva, a mente estaria como que ‘determinada’ a aceitar a verdade de uma proposição de modo imediato35. No que diz respeito à consciência, a convicção na existência de certo estado mental enquanto ele ocorre seria imediata, de maneira a determinar a mente a aceitar a verdade dessa crença. Nesse sentido, o indivíduo simplesmente não poderia escolher acreditar ou não na consciência de um estado mental particular.
Pensamos aqui em uma compreensão muito próxima à que Reid — para quem estar consciente é um poder mental que pode ser denominado de ‘faculdade’ — oferece ao explicar sua compreensão de consciência. A seu ver, as crenças devidas à consciência são imediatas, pois não dependem de raciocínio, e a mente está como que determinada a aceitá-las como verdadeiras36, pelo que sua fiabilidade dispensaria prova37. Para aqueles que porventura possam objetar que, ao proceder dessa maneira, aceita-se a fiabilidade da consciência sem uma justificação racional, Reid nota: “a esta objeção, não conheço nenhuma outra resposta que possa ser apresentada senão que descobrimos ser impossível duvidar das coisas de que estamos conscientes. A constituição de nossa natureza obriga esta crença sobre nós irresistivelmente” (2002, p. 515).
À luz dessa possível aproximação entre Hume e Reid sobre a consciência, a partir da noção de ‘intuição’, argumentamos que são as próprias características da convicção que acompanham a consciência que autorizariam o autor do Tratado a confiar completamente no testemunho da consciência, a acreditar na existência das percepções de que se está consciente. No entanto, notamos duas dificuldades nessa interpretação. Em primeiro lugar, tanto quanto sabemos, Hume não aponta muitos exemplos de conhecimentos intuitivos em sua obra, de modo que não se pode dizer claramente se a convicção oriunda da consciência poderia ser compreendida como intuitiva. É possível identificar a convicção de que a mente está em um estado mental particular X com a convicção intuitiva da verdade da proposição de que ‘a existência destrói a não existência e vice-versa’ (T 1.3.1.2)? A primeira forma de intuição poderia ser compreendida como intuitiva no mesmo sentido que a segunda? Em segundo lugar, as características da convicção produzida pelas crenças da consciência — imediaticidade e a indubitabilidade, por exemplo — são as mesmas que caracterizam a convicção de certas operações mentais cuja fiabilidade é colocada em questão por Hume. Essa é a compreensão de Reid, por exemplo. É preciso aceitar todas as fontes de crenças imediatas e de que o indivíduo é incapaz de duvidar como fontes de conhecimento:
Então, as faculdades da consciência, memória, sentidos externos e razão, são todas igualmente dons da natureza. Nenhuma razão pode ser apontada para receber o testemunho de uma delas que não seja de igual força com relação às outras. Os maiores céticos admitiram o testemunho da consciência e admitiram que o que ela testemunha deveria ser mantido como um princípio primeiro. Se, portanto, eles rejeitam o testemunho imediato dos sentidos ou da memória, eles são culpados de inconsistência (Reid, 2002, p. 463).
Reid questiona: por que não aceitar todas as outras fontes de conhecimento a que crenças intuitivas são devidas? Grande parte da humanidade concorda intuitivamente sobre a existência dos fenômenos mentais quando deles se tem consciência e, de maneira semelhante, grande parte dos seres humanos acredita intuitivamente que os objetos que são percebidos pelos sentidos externos são reais. A mente humana determina-nos a aceitar ambas as crenças da mesma maneira. Hume teria sido inconsistente em negar a fiabilidade dos sentidos e aceitar a fiabilidade da consciência se a razão para tomar esta última como uma fonte fiável de conhecimento é seu caráter imediato e indubitável.
3. Nossa terceira tentativa parte da compreensão de que a consciência não envolveria nenhum juízo da parte do indivíduo, de modo que, sem juízo, não haveria espaço para verdade ou falsidade no âmbito das atividades da consciência. Essa intepretação aproximaria as atividades da consciência daquele ato chamado por Hume de ‘simples concepção’: conceber algo sem acreditar em sua existência38. Hume fala sobre esse fenômeno mental, por exemplo, na já citada seção ‘Da natureza da ideia ou crença’: “a ideia de um objeto é uma parte essencial da crença que nele depositamos, mas não é tudo. ‘Concebemos muitas coisas em que não acreditamos’ [destaque nosso]” (T 1.3.7.1). Além disso, atesta no parágrafo seguinte: “há uma grande diferença entre a simples concepção da existência de um objeto e a crença nesta” (T 1.3.7.2). As ideias, quando consideradas em si mesmas, sem nenhum juízo sobre a remissão aos objetos do mundo externo, não podem ser verdadeiras ou falsas. Por exemplo, imaginar a ideia de um animal, sem julgar sobre a sua existência externa, isto é, sem remetê-la ao exterior, é um processo mental que não envolve juízo e, portanto, não poderia ser falso ou verdadeiro. Se as atividades da consciência fossem interpretadas à maneira dessa simples concepção, não haveria motivos para supor a possibilidade da falsidade no âmbito da consciência. Se não se julga de um estado mental (por exemplo, uma sensação) que ele existe na mente, não haveria possibilidade de erro.
Entretanto, entendemos que existem ao menos duas dificuldades com essa possibilidade de leitura. Em primeiro lugar, o texto humiano, a nosso ver, relaciona o estar consciente com o conhecer. Se estamos certos em nossa leitura, a consciência, aos olhos do filósofo, pode ser epistemologicamente avaliada. As passagens citadas acima de T 1.4.2.7, por exemplo, são, a nosso ver, uma das evidências textuais mais fortes em favor dessa leitura. As também já citadas passagens da primeira Investigação, sobretudo (IEH 7.14), confirmam essa visão. Essa tentativa de aproximar a consciência e a concepção enfrentaria a dificuldade de que esse ato de conceber não é pensado como relacionado ao conhecimento. Não há verdade ou falsidade da atividade de conceber. A consciência, ao contrário, é entendida por Hume em termos de verdade e falsidade. A consciência oferece conhecimento, a simples concepção, não. Em segundo lugar, na atividade da consciência, é possível supor que há um referencial: o conhecimento de um fenômeno mental estabelece Y de X, a consciência de uma atividade mental corresponde, se verdadeira, à atividade real desse fenômeno na mente.
Na tentativa de esclarecer nossa visão, propomos aqui uma aproximação entre a consciência e a razão. Com efeito, Hume considera que “[a] razão é a descoberta da verdade ou da falsidade”, que surge
[Do] acordo e desacordo seja quanto à relação real de idéias, seja quanto à existência e aos fatos reais”, e que “aquilo que não for suscetível desse acordo ou desacordo será incapaz de ser verdadeiro ou falso, e nunca poderá ser objeto de nossa razão (T 3.1.1.9).
Com esta afirmação, Hume explica, sucintamente, que a descoberta do verdadeiro e do falso — e a classificação de uma proposição como verdadeira ou falsa — depende de uma relação entre X e Y, de uma relação de acordo e desacordo. Aplicando esse ‘modelo’ da razão ao caso da consciência, o juízo ou crença devida à consciência — ‘estou presentemente no estado mental x’ — é verdadeiro quando há a ocorrência real de um fenômeno na mente humana que lhe corresponda. O juízo ou crença ‘eu sinto uma dor’ é verdadeiro quando de fato se sente uma dor e é falso quando esse não é o estado mental presente. Assim, é por relacionar as atividades da consciência com a verdade que a consciência, a nosso ver, não pode ser compreendida à maneira da atividade da simples concepção.
À maneira de conclusão da presente seção, observamos, de maneira semelhante às reflexões de Reid e Porchat, de que a admissão da tese da incorrigibilidade da consciência não é racionalmente justificada por Hume. Entendemos que o filósofo não apresenta, ao menos de modo explícito ou sistemático, um argumento que justifique sua aceitação da verdade das crenças devidas à consciência, muito embora tenha se ocupado com a apresentação de argumentos contra a fiabilidade de outras fontes de conhecimento. Hume apresenta argumentos que minam a confiança nos processos dos sentidos e da memória. Contudo, sobre a consciência, o filósofo mantém o silêncio, limitando-se a afirmar acriticamente que a consciência é fiável. Nesse sentido, ao questionar a fiabilidade dos sentidos e da memória e preservar a consciência de seu ataque cético, Hume poderia ser acusado de proceder de maneira arbitrária e injustificada. Esse procedimento seria inconsistente, na medida em que a fiabilidade de algumas fontes de conhecimento é atacada e uma única fonte de conhecimento é salvaguardada desse ataque. Entretanto, não encontramos, no texto do Tratado ou da primeira Investigação, nem na literatura secundária, uma solução para o problema de saber de que maneira Hume está legitimado em assumir as crenças da consciência como verdadeiras. Tampouco nos propomos a defender que essa justificação não exista. No entanto, acreditamos ser preciso sistematizar, a partir dos textos humianos, uma teoria sobre a verdade das crenças particulares sobre os fenômenos mentais, pelo que julgamos necessário que ela seja explicitada a partir do que é dito por Hume em suas obras.
Se os indícios de que Hume está comprometido com a tese da incorrigibilidade são mais explícitos em sua obra, as sugestões de que ele admitiria o aspecto da tese da luminosidade não são tão claros. Em verdade, julgamos existir sugestões conflitantes a esse respeito ao longo de sua obra.
Com efeito, o teste da experiência permitido pelo princípio da cópia no Tratado39 e o seu compromisso com este — que oferece o fundamento das diversas buscas do filósofo por uma impressão que explique a origem de certas ideias — assenta sobre a hipótese de que a mente é capaz de consciência de todas as impressões que a afetam. Apontamos ao menos quatro evidências textuais para essa leitura. Em primeiro lugar, a busca pela impressão de eu no Livro I, a nosso ver, ilustra perfeitamente este compromisso. Concordamos com intérpretes como Saul Traiger (1985) para quem Hume, ao discordar de outros filósofos que admitem a existência de um eu simples e idêntico, apela ao testemunho de sua consciência. O conflito de Hume com outros filósofos se deve a uma ‘discordância dos dados da consciência’, pois o filósofo nega que já tenha estado consciente de uma impressão de eu40. A segunda evidência textual está no ‘Apêndice’: ao discutir a natureza do sentimento ou sensação de crença no raciocínio causal, o filósofo nega explicitamente a possibilidade de uma impressão estar presente nas operações do raciocínio, visto que, se esse fenômeno dependesse dessa impressão, a mente dela estaria consciente41 (T Ap 4). A terceira evidência textual está presente na terceira parte do Livro I, quando Hume nega que algum poder ou qualidade desconhecidos, isto é, de que não se tem consciência, possam ser relevantes na produção da crença (T 1.3.8.8). O fundamento dessa afirmação e a fonte de sua certeza é a compreensão de que a mente está consciente de tudo o que se passa em seu interior42 (T 1.3.8.10). Por fim, na primeira Investigação, Hume discute o fenômeno da vontade a partir do pressuposto de que a mente está consciente de todas as suas percepções43 (IEH 7.9). Se está para além da consciência, é certo que não pode ser conhecido: “pode haver ‘prova mais segura’ [destaque nosso] de que o poder pelo qual toda essa operação se realiza, longe de ser direta e completamente conhecido por um sentimento interno ou ato de consciência, é misterioso e ininteligível no mais alto grau?” (IEH 7.14). No parágrafo seguinte, o filósofo prossegue:
Disso tudo podemos, portanto, concluir — ‘sem nenhuma precipitação, espero, embora com bastante segurança’ [destaque nosso] — que nossa idéia de poder não é copiada de nenhum sentimento ou consciência de poder que porventura experimentemos em nosso interior ao darmos início ao movimento animal ou empregarmos nossos membros nos usos e afazeres que lhes são próprios (IEH 7.15).
Na literatura secundária, encontramos autores como, por exemplo, Udo Thiel (1994), para quem Hume está comprometido com a tese da luminosidade da consciência: “[...] Hume novamente segue a tradição. Descartes, por exemplo, define o pensamento em termos de consciência. Pare ele, todo ato mental é acompanhado pela consciência” (1994, p. 90). No entanto, esta leitura não nos parece inquestionável. A nosso ver, do ponto de vista interpretativo, a questão da admissão humiana da tese da luminosidade se torna complexa quando se tem em vista que o filósofo, em várias ocasiões em suas obras, reserva espaço para a possibilidade de operações de ‘poderes secretos’ capazes de influenciar a mente.
Apresentamos algumas sugestões no texto humiano sobre a existência de poderes de que a mente poderia não ter consciência. Por exemplo, na seção VIII da terceira parte do Livro I, ‘Das causas da crença’, Hume emprega algumas expressões — que destacamos — que sugerem a admissão de ocorrências não conscientes na mente:
Vale a pena observar aqui que a experiência passada, da qual dependem todos os nossos juízos a respeito de causas e efeitos, ‘pode atuar em nossa mente de ‘maneira tão insensível que passa despercebida, podendo mesmo em certa medida, ser-nos desconhecida’ [destaque nosso]. [...] Mas, como essa transição procede da experiência, e não da alguma conexão anterior entre as idéias, temos necessariamente de reconhecer que a experiência pode produzir uma crença e um juízo de causas e efeitos por uma ‘operação secreta, e sem que pensemos nela uma vez sequer’ [destaque nosso] (T 1.3.8.13).
O caso dos princípios associativos naturais na mente merece uma consideração mais detida. Nalgumas passagens, Hume parece sugerir que o fenômeno mental de associação é explicado pela consciência de ‘forças’ existentes na mente. Com efeito, Hume as entende não como conexões inseparáveis, mas como “força[s] suave[s], que comumente prevalece[m]” (T 1.1.4.1). A mente está consciente de ser conduzida suavemente a associar ideias por semelhança, contiguidade e causalidade, e essa força — apesar de objeto da consciência — não pode ser, ela própria, entendia como uma percepção. Contudo, na ‘Sinopse’ do Tratado, Hume se refere aos princípios associativos como algo ‘secreto’:
Nossa imaginação tem grande autoridade sobre nossas idéias; e sempre que as idéias são diferentes, pode separá-las, juntá-las e combiná-las em todas as variedades imagináveis. Porém, apesar do domínio da imaginação, existe um ‘laço ou união secreta’ [destaque nosso] entre certas idéias particulares, que faz com que a mente as reúna mais frequentemente, e que uma delas, ao aparecer, introduza outra (S 35).
Algo muito semelhante é dito na primeira Investigação, quando os princípios associativos são entendidos como um movimento ‘insensível’:
Já observamos que a natureza estabeleceu conexões entre idéias particulares e que, tão logo uma idéia surja em nosso pensamento, ela introduz sua idéia correlativa e para ela dirige nossa atenção, por meio de ‘um delicado e insensível movimento’ [destaque nosso] (IEH 5.14).
As operações desses princípios, compreendidas à luz das passagens citadas, poderiam estar para além do registro da consciência de modo que Hume não estaria comprometido com a tese da luminosidade em sua compreensão dos fenômenos mentais.
Na primeira Investigação, Hume é ainda mais claro sobre como é possível que poderes sejam exercidos na mente sem que a consciência os acompanhe. Nas seguintes passagens, o filósofo afirma, no contexto da discussão sobre a origem da ideia de ‘poder’, que uma vez que a mente não tem consciência de tal poder, a origem de sua ideia não pode ser investigada:
Aprendemos em anatomia que o objeto imediato do poder no movimento voluntário não é o próprio membro que é movido, mas certos músculos, nervos, e espíritos animais, ou talvez algo ainda mais minúsculo e mais desconhecido, através dos quais o movimento sucessivamente se propaga antes de atingir propriamente o membro cujo movimento é o objeto imediato da volição. Pode haver prova mais segura de que o poder pelo qual toda essa operação se realiza, ‘longe de ser direta e completamente conhecido por um sentimento interno ou ato de consciência, é misterioso e ininteligível no mais alto grau’? [destaque nosso] (IEH 7.14)
Mas, se o poder original fosse sentido, ele teria de ser conhecido, e se fosse conhecido, seu efeito também teria de sê-lo, dado que todo poder é relativo a seu efeito. E vice-versa: se o efeito não for conhecido, o poder não pode ser conhecido, nem sentido. Como, na verdade, podemos estar conscientes do poder de mover nossos membros se não temos tal poder, mas apenas o de mover certos espíritos animais que, embora produzam ao fim e ao cabo o movimento de nossos membros, operam não obstante de uma maneira que está totalmente fora do alcance de nossa compreensão? (IEH 7.14)
Doravante, ocupamo-nos em apresentar uma hipótese interpretativa sobre como seria possível entender as menções de Hume a estados mentais aparentemente fora do registro da consciência: a compreensão de um menor ou maior grau de consciência de certos fenômenos mentais. Neste sentido, julgamos que a sistematização de uma teoria de graus inferiores e superiores de consciência seja capaz de explicar muitas das sugestões de Hume que parecem indicar a possibilidade de ocorrências não conscientes na mente. Quanto mais vívida é uma percepção, mais ela estaria presente à consciência. Se uma percepção não apresenta vividez suficiente, ela ocorre de modo insensível na mente.
Para se compreender a admissão da existência de uma ocorrência ‘despercebida’ e ‘desconhecida’ na mente pelo filósofo em passagens como a da seção ‘Das causas da crença’ (T 1.3.8.13) citada acima, parece-nos necessário supor que Hume admite que a mente pode estar mais ou menos consciente de suas percepções de acordo com a vividez com que atingem a mente. De outro modo, o filósofo precisaria contrariar sua tese de que a mente está consciente de todas as suas percepções. Assim, admitindo a possibilidade de que Hume esteja implicitamente se referindo a graus de consciência, quer dizer, que a mente estaria mais ou menos consciente de alguns de seus fenômenos, uma ocorrência mental ‘despercebida’ ou ‘desconhecida’ não seria, nesse sentido, um fenômeno à margem do registro da consciência, mas apenas que ocorreria desapercebidamente, em virtude da sua menor vividez. Gostaríamos de notar algumas passagens do texto de Hume que parecem apontar na direção dessa teoria de graus de consciência.
O trecho mais importante, a nosso ver, aparece na seção ‘Da ideia de conexão necessária’, da terceira parte do Livro I do Tratado, quando o filósofo reconhece a existência explicitamente desses graus inferiores e superiores de consciência para explicar que a mente poderia, ‘em certa medida’, desconhecer um fenômeno mental:
Portanto, se alegamos possuir uma idéia legítima dessa eficácia, devemos apresentar algum exemplo em que a eficácia ‘se mostre à mente de forma clara’ [destaque nosso], e em que suas operações ‘sejam evidentes à nossa ‘consciência’ [destaque nosso] ou sensação (T 1.3.14.6).
De acordo com o que é sugerido na passagem, é possível que uma impressão afete a mente de modo que não revele claramente à consciência, de modo que elas não são estão evidentemente disponíveis à observação. Na primeira Investigação, Hume parece manter essa compreensão ao notar que:
O movimento de nosso corpo segue-se ao comando de nossa vontade; ‘disso estamos conscientes a cada instante’. Mas os meios pelos quais isso se realiza, a energia pela qual tudo isso está tão longe de nossa consciência imediata que deve para sempre escapar às nossas mais diligentes investigações (IEH 7.1.9-10; destaque nosso).
Existem fenômenos mentais que podem não se apresentar claramente à mente, pela consciência, de modo que suas ocorrências não seriam evidentes. Se essas ocorrências não são claras, é possível que a mente lhes seja insensível, como se não fossem conhecidas. O mais diligente filósofo da mente, como Hume, pode não ser capaz de observar um fenômeno que, apesar de consciente, encontra-se, por sua falta de clareza, não se mostra de modo evidente.
Sugestões dessa compreensão de graus de consciência estão presentes também no Livro II do Tratado. Por exemplo, na seguinte passagem, Hume observa que o costume reduz a vividez de uma impressão de modo a fazer com ela ocorra ‘insensivelmente’:
Creio que se pode estabelecer seguramente, como uma máxima geral, que todo objeto que se apresenta aos sentidos e toda imagem que se forma na fantasia são acompanhados de alguma emoção ou movimento proporcional dos espíritos animais; e por mais que ‘o costume nos torne insensíveis a essa sensação’, e nos faça confundi-la com o objeto ou com a idéia [...] (T 2.2.8.4).
Em nossa leitura dessa passagem, Hume não nega a existência de uma impressão de sensação que afeta a mente, apenas que a sua vividez é a tal ponto reduzida pelo costume que é como se não fosse sentida.
Se estamos certos em nossa leitura, a compreensão de graus de consciência permitiria explicar a polêmica passagem do Livro II sobre a impressão de eu. No trecho a seguir, Hume nota:
É evidente que a idéia, ou antes, a impressão de nós mesmos, está sempre presente em nosso íntimo, e que nossa consciência nos proporciona uma ‘concepção tão viva’ [destaque nosso] de nossa própria pessoa que é impossível imaginar algo que a supere quanto a esse aspecto (T 2.1.11.4).
O início da passagem é claro: a impressão de eu está sempre presente, isto é, a mente sempre sente o seu eu. Contudo, essa experiência de o sentir, Hume parece observar, não está constantemente presente à consciência, pois nem sempre é capaz de afetar de modo tão vívido à mente. É justamente pela pouca vividez dessa impressão que Hume, em algumas passagens, sugere que ela não pode ser ‘percebida’:
Podemos conceber que um ser pensante tenha muitas ou poucas percepções. Suponhamos que a mente seja reduzida a um estado inferior ao de uma ostra. Suponhamos que tenha apenas uma percepção, como a de sede ou fome. Consideremo-la nessa situação. Sois capazes de perceber alguma coisa além dessa mera percepção? Possuís alguma noção de ‘eu’ ou ‘substância’? Se não a possuís, a adição de outras percepções nunca poderá vos dar essa noção (Apêndice §24).
A nosso ver, é apenas na medida em que essa impressão não é suficientemente vívida que Hume sugere que ela não pode ser percebida, isto é, não está clara na consciência.
Portanto, nossa sugestão é que Hume compreende graus inferiores e superiores de consciência para explicar a ocorrência de certos fenômenos mentais que, à primeira vista, poderiam ser entendidos como ocorrências das quais a mente não está consciente. Não há algo como um fenômeno mental inconsciente. O filósofo admite o aspecto da luminosidade da tese da transparência da consciência.
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Intérpretes como Jeffrey McDonough (2002) acham surpreendente que Hume não desenvolva seus argumentos mais sistematicamente contra a fiabilidade da memória no Tratado: “embora nada obrigue Hume a perseguir seu linha cético-naturalista sempre que possível, sugiro que, no entanto, é surpreendente que ele não o faça no caso relativamente simples e óbvio da memória. [...] Por que, depois de abordar o ceticismo em relação a memória, Hume falha em persegui-lo de sua maneira costumaz?” (2002, p. 75).