Coimbra e o valor identitário da retórica do Estado Novo
Coímbra y el valor identitario de la retórica del Estado Nuevo
Coimbra and the value of identity of New State rhetoric
Coimbra e o valor identitário da retórica do Estado Novo
Dearq, núm. 21, pp. 64-76, 2017
Universidad de Los Andes
Recepção: 01 Março 2016
Corrected: 17 Outubro 2017
Aprovação: 28 Agosto 2017
Resumo: A Cidade Universitária de Coimbra (1943-1975) foi a mais longa obra de promoção do Estado Novo, construída a partir de uma enorme operação de demolição do tecido urbano existente, impondo uma escala e linguagem monumental sobre um território criado quase de raiz. A pesar da ausência de espaços de representação coletiva, o novo conjunto monumental acabou por ser aceite, anos mais tarde, como símbolo identitário da cidade. Este artigo pretende explorar a ambivalência entre os aspectos políticos e disciplinares da construção da Cidade Universitária de Coimbra, expressão evidente de uma retórica de poder e o seu reinvestimento simbólico para a cidade.
Palavras-chave: Cidade Universitária de Coimbra, Estado Novo, identidade, monumentalidade.
Resumen: La Ciudad Universitaria de Coímbra (1943-1975) fue la más larga obra de promoción del Estado Nuevo construida a partir de una gran coperación de demolición del tejido urbano existente, queimpuso una escala y lenguaje monumental sobre un territorio creado casi desde cero. Pese la ausencia de espacios de representación colectiva, el nuevo conjunto monumental fue aceptado, años más tarde, como símbolo identitario de la ciudad. El artículo busca explorar la ambivalencia entre los aspectos políticos y disciplinarios de la construcción de la Ciudad Universitaria de Coimbra, expresión evidente de una retórica de poder y su reinversión simbólica para la ciudad.
Palabras clave: Ciudad Universitaria de Coimbra, Estado Nuevo, monumentalidad, identidad.
Abstract: The University City of Coimbra (1943-1975) was the largest work that promoted the New State; it was built after a huge demolition of the city´s existing urban fabric. It imposed a monumental scale and language on a territory that was created almost from scratch. Despite the absence of spaces for collective representation, the new monumental complex was, years later, accepted as a symbol of the city´s identity. This article looks to explore the ambiguity between the political and disciplinary characteristics of the construction of the University City of Coimbra, which are a clear expressions of the rhetoric of power and their symbolic reinvestment for the city.
Keywords: University City of Coimbra, New State, monumentality, identity.
Introdução
Em 2013, a Alta de Coimbra, onde se localiza o polo original de uma das mais antigas universidades da Europa, foi declarada património mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).1 Esta distinção veio reforçar a imagem iconográfica deste local, símbolo da identidade da cidade. No entanto, o que hoje se conhece como a Alta de Coimbra é uma realização urbanística relativamente recente, de meados do século XX, e que resultou de um processo longo e doloroso, que abriu uma profunda ruptura na cidade, destruindo parte do aglomerado medieval existente e intensamente habitado. Construída sobre a orientação direta do Ministro das Obras Públicas do Estado Novo, a Cidade Universitária de Coimbra tem também por isso, consigo, a carga simbólica de ser uma das obras de referência do regime onde melhor se afirmou o vocabulário oficial da obra pública, particularmente influenciado pelos princípios da arquitetura do fascismo italiano.
A vida urbana que a construção da nova cidade universitária eliminou nunca foi verdadeiramente reposta neste local. Na verdade, a nova cidade universitária foi pensada para a criação de um local monofuncional, dedicado ao estudo e que excluiu, na sua própria génese, as posibilidades de integração de várias atividades urbanas. Essa convivência entre a universidade e a cidade, acabou por se realizar na cota baixa da cidade universitária, num edifício construído no mesmo processo, mas com requisitos de representação completamente distintos: o complexo das Instalações Académicas de Coimbra, inaugurado em 1961. Desenhado para receber as atividades quotidianas da comunidade académica, resultou num equipamento urbano de carácter cultural e social com uma diferente atitude na sua relação com a cidade.
Existe assim uma ambivalência entre a retórica monumental que o Estado Novo imprimiu à nova Cidade Universitária de Coimbra e o poder icónico e identitário que alcançou na cidade. Este artigo vai analisar a importância que desempenhou uma ideia de lugar para a construção da cidade universitária e dos modelos arquitetónicos e políticos que a fundamentaram na sua aceitação como um local de identidade da cidade, a pesar da ausência de espaços de representatividade cívica, que acabaram por encontrar a sua expressão nas Instalações Académicas.
A condição para o plano da Cidade Universitária de Coimbra: a tradição do lugar
A ideia da Cidade Universitária em Coimbra nasce como reação ao anúncio de construção de um novo campus universitário em Lisboa, no início da década de 1930. As instalações onde então funcionava a Universidade de Coimbra eram ainda as mesmas que tinham ficado definidas pela reforma pombalina da Alta no século XVIII e tinham-se tornado claramente inadequadas e insuficientes, esgotando as suas possibilidades de crescimento. A reforma do ensino universitário de 1911, com a abertura do ensino superior a um maior número de alunos e a reorganização dos cursos e da investigação científica, tornou a necessidade de novos espaços ainda mais premente. A intenção anunciada do investimento em Lisboa serviu como motivo para despoletar uma reivindicação mais intensa por parte de Coimbra no sentido da renovação das instalações, alegando a importancia e tradição da instituição instalada na cidade desde o século XVI. No entanto, o plano de renovação e ampliação das instalações existentes viria a revelar-se, desde cedo, condicionado pela falta de espaço.2
Perante os argumentos da necessidade de modernização das instalações universitárias, é criada, em 1934, uma primeira comissão de profesores da Universidade responsável pela elaboração de um programa base de intervenção acompanhada pelos arquitetos Raul Lino e Luís Benavente, que deveriam elaborar um plano geral “em torno do núcleo das actuais instalações universitárias, abrangendo a área necessária à sua conveniente expansão e ao seu perfeito isolamento de edificações privadas”.3 Ficava assim expressamente declarada a intenção de manter a localização existente, ponderando apenas possíveis expansões, sendo o espaço necessário dentro da Alta inevitavelmente conseguido à custa das demolições do conjunto de edifícios privados que até então conviviam com os colégios universitários.
Em 1937, Oliveira Salazar estabelece a sua visão pessoal do programa urbanístico para a Cidade Universitária de Coimbra. No texto escrito como prefácio para o seu livro de discursos, expressa a intenção de redesenhar o conjunto universitário mantendo a sua localização na Alta, no mesmo local onde funcionavam, desde o século XVI, os colégios universitários. Para a concretização dessa visão, apresentava como indispensável uma vasta operação de demolições que assegurasse o necessário “realce” dos edifícios nobres e libertasse o espaço para novas construções, ao mesmo tempo que permitisse garantir o carácter monofuncional do espaço, dedicado exclusivamente ao “estudo”.4
Tal como notam os investigadores Reis Torgal e Nuno Rosmaninho, o texto de Salazar não traz, na realidade, nada de novo em relação ao que já tinha sido estabelecido pela Comissão de Obras de 1934, nomeadamente a opção pela localização e pelo isolamento funcional da Alta, mas é o tom pessoal que coloca na mensagem que reforça a visão política do discurso e lhe confere a categoría de “texto fundador”.5
A apresentação deste texto vem dar uma importancia política a uma decisão tomada de acordó com um valor sentimental dado à Alta de Coimbra por aqueles que a utilizavam, reforçando a sua importância enquanto lugar. Historicamente, a Alta era uma entidade definida pelas antigas muralhas do século IX — entretanto desaparecidas — que delimitavam um território com uma estrutura socioeconómica particular. A instalação definitiva da Universidade na Alta, em 1537, fixou uma nova classe social ligada à instituição e reafirmou este espaço como o lugar de referencia da elite nacional com uma memória histórica e, em particular, uma tradição académica únicas no país. A opção pela manutenção da Universidade na Alta de Coimbra foi fortemente influenciada pela importância dessa memória entre os responsáveis da Universidade. Efetivamente, como nota Nuno Rosmaninho, a opção pela localização de uma nova cidade universitária fora da Alta nem foi verdadeiramente colocada.6
A ideia de realização de um plano para uma nova cidade universitária em Coimbra é retomada em 1941, data de criação da nova Comissão Administrativa do Plano de Obras da Cidade Universitária de Coimbra (CAPOCUC).7 Chefiada pelo arquiteto Cottinelli Telmo, a CAPOCUC passava a depender diretamente do Ministro das Obras Públicas e Comunicação, Duarte Pacheco,8 responsável pela aprovação do plano e de todos os projetos. Na verdade, algumas das ideias que conferem um carácter mais monumental ao plano, como a praça em frente ao Paço das Escolas, a proposta de um grande edifício único dedicado à Faculdade de Medicina, e principalmente o desenho das Escadas Monumentais como meio de prolongar e rematar o eixo central, parecem dever-se pessoalmente a Duarte Pacheco.9
Trabalhando de perto com o ministro, Cottinelli assume a visão progressista da tabula rasa, defendendo o desenho de um plano regulador, com um traçado geometrizado, procurando a abertura de grandes eixos monumentais e a construção de um grande conjunto arquitetónico. Este é, assim, um importante ponto de viragem em todo o processo: é então abandonada a ideia da simples renovação das instalações universitárias e idealizado um plano para uma cidade universitária ex novo. Até esse momento, como se pode ler no relatório da primeira Comissão de Obras, o que estava em análise era a elaboração de um projeto que compreendia “a utilização racional dos edificios existentes e a construção eventual de novos edifícios” (fig. 1).10
O plano de Cottinelli, desenvolvido ao longo de cinco soluções entre 1942 e 1943, parece não ter qualquer preocupação com a topografia do local e, acima de tudo, com o núcleo urbano existente, implicando um nível de demolições quase generalizado. O que se verificou, na realidade, não foi apenas uma operação de “limpeza” para dar “realce” a edifícios nobres, conforme anunciou Salazar no seu texto fundador, mas sim uma acção de eliminação quase completa de um ambiente construído que deixou livre um territóriopara a implantação de um plano desenhado de raiz. Foram destruídos vários edifícios de valor patrimonial entre os quais a Igreja de S. Pedro, os colégios de S. Paulo Eremita, de S. Boaventura e dos Militares, um arco do aqueduto quinhentista e os vestígios da torre de menagem do castelo de Coimbra. Para além destes edifícios singulares, a operação de demolições implicou a massiva expropriação de habitações e lojas e o consequente realojamento dos seus habitantes em novos bairros periféricos da cidade, mas também apagou deliberadamente o cadastro e a malha urbana existente, ruas, largos e praças onde decorria uma vida urbana ativa e intensa, partilhada pelos habitantes e pelos estudantes (fig. 2).11
Assim se afirmou um dos mais evidentes paradoxos entre uma escolha movida por razões culturalistas, de uma certa celebração do carácter histórico e cultural do lugar e um método progresista de tabula rasa, aplicado nos grandes Planos de Urbanização promovidos pelo Ministro Duarte Pacheco para os centros urbanos.12 Por um lado, a opção da manutenção do lugar podia fazer esperarum tipo de intervenção como aquele mais defendido por Raul Lino a favor do valor cultural dos núcleos urbanos antigos. Por outro lado, as intervenções levadas a cabo pela Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), responsável obras públicas de intervenção nos edifícios com valor histórico e patrimonial, seguiam os modelos internacionais de restauro integral e valorização do monumento através de demolições pontuais.13 No final, o que se verificou foi uma operação de demolição generalizada que ignorou as preocupações mais patrimonialistas e se aproximou das propostas urbanas desenvolvidas por Mussolini para a reconversão dos centros históricos em Itália na década de 1930, onde se destrói o centro medieval da cidade a favor de uma composição formalista e profundamente clássica no seu desenho.14 No fundo, assistiu-se em Coimbra a uma utilização da metodologia da tabula rasa esvaziada dos seus pressupostos estéticos e ideológicos de vanguarda o que, segundo afirma Françoise Choay, foi um opção comum entre os estados totalitários.15
Assim, a manutenção da localização tradicional da universidade foi, paradoxalmente, a razão que motivou a opção pela construção ex-novo conseguida através do uso de uma metodologia de características manifestamente progressistas. As opções tomadas em nome da modernização não só rejeitaram o discurso oficial de defesa dos símbolos da nação e as opiniões que se opunham à eliminação dos núcleos urbanos antigos como também superaram as teorias de preservação dos monumentos históricos defendidas pelas orientações da DGEMN. A maior ambiguidade esteve na escolha de um método que nega as particularidades específicas de cada lugar aplicado a um território escolhido, precisamente, pelo valor da memória colectiva associada a esse lugar.16
Num artigo publicado em 1956, José Rafael Botelho e Celestino Castro afirmam que foi precisamente em nome da tradição que se eliminaram os núcleos habitacionais existentes que conferiram “a parte viva e com tradições da Cidade Universitária”, a única no país que incluía uma “feição citadina” capaz de lhe conferir esse nome.17 E, com essa decisão baseada no simples fator de “apego a um sítio”, condicionou-se a construção da nova cidade universitária a uma clara falta de espaço.
Os modelos da cidade universitária de Coimbra
O problema colocado em Coimbra, sobre a insuficiencia e a inadequação das instalações universitárias existentes, e a falta de espaço para futuras expansões nos recintos universitários, com tradições seculares, não era de todo original e acompanhava o debate internacional de meados do século XX sobre a modernização das universidades.
A opção tomada sobre a manutenção da localização existente e a consequente construção de um conjunto concentrado e com poucas capacidades de expansão foi, nesse contexto, totalmente consciente e estabelecida a partir de modelos de comparação concretos. Assim o revela a exposição de Manuel de Sá e Mello, Engenheiro Director da CAPOCUC, quando resume as hipóteses de intervenção a “duas alternativas possíveis”: ciudades universitárias que ocupam grandes superfícies, como era o caso de Madrid e dos países americanos, ou cidades universitárias “com áreas reduzidas e os serviços concentrados”, solução adotada nas universidades europeias como Roma, Oslo, Berna, Atenas devido “à tradição e conveniencia de aproveitamento dos edifícios existentes”.18
Estabelecida a opção relativa ao lugar e ao consequente tipo de cidade universitária pretendida, a evolução do plano desenvolvido por Cottinelli foi clarificando a volumetria dos novos edificios e principalmente o desenho da praça que rematava o eixo criado com a abertura da nova alameda. Os edifícios alinhados ao longo dessa via vão procurando, cada vez mais, referenciar-se a partir da escala e proporção dos maiores colégios universitários, maximizando a escala do conjunto e a ocupação do terreno. Por sua vez, o desenho do remate desse novo eixo foi evoluindo para uma solução de praça retangular que seria prolongada por um conjunto de escadas até à cota baixa da cidade, forçando uma ligação topográfica demasiado desfavorável. A enorme diferença de cotas, a sua dimensão e posição relativa no conjunto conferiu a esta peça o nome elucidativo de Escadas Monumentais (fig. 3).
Alguns desses elementos do plano, como o alinhamento dos novos edifícios simétricamente colocados ao longo da alameda e o pórtico de remate da praça a eixo, que não se chegou a construir, revelam diretas referências ao desenho da Cidade Universitária de Roma de Marcello Piacentini que a CAPOCUC visitou numa série de viagens de estudo a algumas das mais importantes universidades europeias.19
No regresso dessas viagens, Maximino Correia, reitor da Universidade de Coimbra e presidente inerente da CAPOCUC, elabora um extenso relatório sobre os modelos encontrados. Do exemplo de Roma elogia “o grande pórtico de altas pilastras ladeado por edifícios de linhas modernas e sóbrias”, “a avenida larga, não muito extensa, que conduz ao edifício principal” e que remata num largo e a “monumentalidade dos seus edifícios”, elementos que seriam incorporados nas propostas de Cottinelli. Na conclusão desse relatório, Maximino Correia aponta o modelo escolhido:
O plano da Cidade Universitária de Coimbra,
concebido em moldes idênticos aos de Roma, é
sem dúvida o que convém e melhor se adapta à
existência de edifícios seculares que devem ser
aproveitados, mas é necessário que o espaço
utilizado para a construção de novos edifícios seja
ampliado por forma de dar satisfação às exigências
actuais dos diversos serviços.20
Para além das opções estruturantes, a influencia do modelo irá notar-se no desenho urbano do plano que confere o carácter monumental do conjunto, pela organização a partir do grande eixo central e da consequente simetria de composição que, nas palavras do próprio Piacentini, estabelece a “ordem e a postura de grandiosidade” do plano.21
Como resultado, a Cidade Universitária de Coimbra veio corresponder ao que Nuno Teotónio Pereira define como a via do Estado Novo escolhida para os grandes edifícios públicos onde “o carácter dominante era de uma monumentalidade retórica de raiz clássica, muito próxima dos modelos alemães e italianos da época. Tratava-se de exprimir o poder do Estado e de incutir nos cidadãos os valores da autoridade e da ordem”.22 A historiografia elaborada sobre a arquitetura portuguesa dos anos de 1940 tem apresentado quase de forma unânime a Cidade Universitária de Coimbra como a obra de regime que melhor demonstra uma utilização deliberada da arquitetura de cariz monumental pelo poder político como uma escolha ideológica, à imagem da retórica dos restantes estados autoritários da época. 23 Mas, se no caso de Itália, a construção da Cidade Universitária de Roma foi orientada por uma visão assumida de Mussolini em associar a sede de ensino superior a uma expressão espiritual de concepção fascista,24 em Coimbra não se pode afirmar que existiu um posicionamento político claro que associasse as opções estéticas do plano com quaisquer orientações ideológicas. Após o texto inicial de Salazar, mais sentimental que doutrinário, não é conhecida nenhuma outra intervenção sua sobre o significado político da obra. São os discursos oficiais da época, em particular os que saem da própria Universidade, que associam a construção da Cidade Universitária a uma ação pessoal do líder do governo (fig. 4).
As opções tomadas, influenciadas pelos modelos urbanos e arquitetónicos de estados autoritários como a Itália ou a Alemanha, foram postas em prática sem um discurso ideológico a favor da monumentalidade como estética do poder, defesa da ordem ou representação da identidade nacional, como aquele que acompanhou a Exposição da Moderna Arquitectura Alemã, que decorreu em Lisboa em 1941.25 Nesse contexto, a Cidade Universitária de Coimbra enquanto exemplo da retórica monumental do Estado Novo será por ser assumida, por associação aos modelos que se referencia, pelo seu próprio resultado formal.
As instalações académicas como centro da vida comunitária
No momento em que a Europa estava profundamente marcada pela destruição da guerra, Portugal assiste ao início da construção da Cidade Universitária de Coimbra com uma atitude radical em relação a um território histórico. A opção por uma metodologia de tabula rasa, baseada nos princípios do urbanismo funcionalista que a própria arquitectura moderna tentava agora ultrapassar, torna evidente o desacerto temporal — e estético — desta operação.
Na década de 1950, quando o processo de construção já havia começado e as demolições estavam praticamente concluídas, começam a surgir críticas abertas em relação a algumas das opções estruturantes da Cidade Universitária e, em parte, da sua manutenção na Alta.26 É precisamente nesse momento que se avança para a construção de um equipamento indispensável nos campus universitários modernos: um complexo que agregasse as atividades de extensão académicas e que incluísse locais de reunião e convívio.
Localizada desde 1913 no piso térreo do antigo Colégio de S. Paulo Eremita, a antiga sede da associação de estudantes não resistiu ao programa de demolições e, perante a clara falta de espaço dentro dos limites do plano da Cidade Universitária, o projeto das novas Instalações Académicas estabelece definitivamente a sua saída da Alta. Deste modo, eliminava-se do recinto da Cidade Universitária um dos mais ativos espaço de convívio entre os estudantes. Determinada a localização na cota baixa das Escadas Monumentais pelo então Ministro das Obras Públicas, Eduardo Arantes de Oliveira, Luís Cristino da Silva, arquiteto-chefe da CAPOCUC desde a norte de Cottinelli em 1948, elabora o anteplano geral das Instalações Académicas. Esta primeira proposta desenhada, apresentada em duas versões, estabelece um programa base ambicioso que vai, posteriormente, sendo reduzido e adequado ao local, mas deixa definida a ideia da “Sede Cultural e Social” e do “Cine Teatro” como dois edifícios quase autónomos na frente da Avenida Sá da Bandeira, introduzindo com este gesto, a função de equipamentos urbanos que viriam a adquirir (fig. 5).
Para desenvolver o projeto, é contratado o arquiteto Alberto José Pessoa que trabalha em parceria com o arquiteto e pintor João Abel Manta.27 No desenvolvimento da solução, até a entrega do projecto de conjunto no início de 1957, Pessoa e Manta vão adaptando o programa e experimentando diferentes relações entre os volumes, a frente urbana e o espaço central definindo o encerramento do conjunto em relação à rua, num desenho que intencionalmente delimita o quarteirão e reforça a uniformização de um pátio central. Começa-se a desenhar um conjunto moderno, de baixa densidade, que desenvolve a ideia funcionalista de atribuir a cada programa uma forma particular e que valoriza o centro aberto como um espaço fundamental de relação entre volumes e escala humana, uma ideia oposta ao desenho estático do campus. Com uma relação muito mais próxima com a malha urbana da cidade, este conjunto demonstra uma nova atitude na sua relação com a cidade, que Jorge Figueira descreve, recorrendo ao sentido da expressão do filósofo Eduardo Lourenço, como uma “consequente contra-imagem” em oposição ao monolitismo da Cidade Universitária (figs. 6 e 7).28
Nesta combinação articulada de elementos, destaca- se a presença urbana do teatro. Para além dos jardins e dos espaços de convívio, do museu e da sala de exposições que integram o conjunto, é principalmente com o teatro que este conjunto se vai afirmar como um equipamento coletivo e cultural ao serviço não só da comunidade universitária, mas também da cidade. Esta abertura pode ser lida, simbolicamente na forma como este volumen se relaciona com o espaço urbano, isolando- -se no vértice do conjunto orientado para a Praça da República para onde abre a galeria envidraçada do bar avançando, em balanço, sobre a entrada (fig. 8). Numa comparação entre os dois símbolos que se opõem, o Teatro e as Escadas Monumentais, Jorge Figueira afirma ainda que:
Entre esta arquitectura decididamente moderna
e a Escadaria decididamente Monumental, uma
centena de metros à frente, cruza-se a história
da cidade [...]. O teatro é, ainda hoje, um farol
de modernidade, o espaço central da cultura em Coimbra. As “monumentais” são um resquício do sombrio formalismo da ditadura, na prática uma
ruína funcional.29
As instalações académicas de Coimbra representam, assim, uma contraproposta formal e vivencial em relação à Alta de Coimbra: o novo edificio destina-se à vida em comunidade e funciona como um espaço de alternativa. Também aqui, a escolha do lugar foi determinante. Liberto do valor representativo da instituição dos restantes edifícios construídos na Alta e integrado em plana malha urbana, o edifício conseguiu relacionar- -se com a cidade, transformando-se num polo de partilha de novas práticas de sociabilidade urbana e articulando a vida dos estudantes entre a Universidade e a Cidade. As novas Instalações Académicas acabaram por receber a vida quotidiana que a Alta, dedicada exclusivamente “ao estudo”, não conseguiu acomodar.
Na sua expressão formal, o conjunto representa os princípios que revisão da arquitetura moderna tinha debatido no congresso CIAM 8, realizado em 1951, que marcou definitivamente a abandono do tema da “retórica do centro cívico monumental” em detrimento da “metáfora do coraçãodo centro urbano”.30 No entanto, paradoxalmente, é a monumentalidade e a retórica da Cidade Universitária que será integrada como símbolo pela cidade.
Nuno Rosmaninho, num artigo recente sobre a recepção estética e política da Cidade Universitária, estabelece um quadro cronológico desde uma fase de fascínio pelo progresso das obras anunciadas e exaltação do regime, a consciencialização tardia do valor patrimonial destruído e a rejeição política generalizada a toda a produção do Estado Novo, até uma nova fase de reinvestimento simbólico da Cidade Universitária, que a classificação como património mundial veio reacender. 31 A cidade sentimental que Jorge Figueira descreve, seria por natureza contrária à destruição do centro medieval e à lógica racionalista de uma proposta de tabula rasa. Essa cidade seria também desfavorável à aceitação do discurso ideológico do Estado Novo.
No entanto, para além dos moradores afetados, de alguns estudantes e de uma facção tradicionalista de defesa do património, o projeto foi apresentado e aceite como uma visão progressista para a cidade que esta adotou com orgulho. A aceitação quase consensual do valor da tradição do lugar implicou a aceitação de uma das mais poderosas expressões da arquitetura monumental do Estado Novo.
Passados os anos imediatos ao final do regime e à proximidade dos seus efeitos, a leitura dessa retórica foi conscientemente assumida como uma etapa da história nacional. Com a classificação de património mundial, a Alta de Coimbra voltou, uma vez mais, a ser valorizada como um lugar de tradição e de memória coletiva.
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Notas