Resumo: Existem intertextualidades surpreendentes entre as tradições vétero e neotestamentárias. Os autores do Novo Testamento, pois, fizeram questão de ou citar literalmente algo das Sagradas Escrituras de Israel ou, de forma mais livre, fazer alusões a tais tradições. Nesse sentido, a personagem de Moisés e pormenores ligados à sua trajetória e/ou biografia, presentes nas narrativas de Êxodo a Deuteronômio, ganha maior destaque na segunda parte da Bíblia cristã. Justamente isso vale também para um discurso que, segundo a narrativa em Ex 3,1–4,17, o senhor, Deus de Israel, dirigiu a Moisés, visando à necessidade de o líder profético precisar convencer outros através de suas palavras: «Eu, pois, estarei com tua boca e te instruirei sobre o que deverás falar» (Ex 4,12b-c). Conforme os Evangelhos segundo Marcos, Mateus, Lucas e João, Jesus acolheu tal tradição e esperança religiosa ao instruir seus discípulos (Mc 13,11; Mt 10,19; Lc 12,12; Jo 14,26). A investigação dos pormenores da intertextualidade aqui indicada constitui a tarefa da pesquisa apresentada neste artigo.
Palavras-chave:Literatura bíblicaLiteratura bíblica,intertextualidadeintertextualidade,profetasprofetas,discípulosdiscípulos,discursosdiscursos.
Abstract: There are surprising intertextualities between the Old and New Testament traditions. The authors of the New Testament have therefore made it a matter of either quoting literally something from the Holy Scriptures of Israel or, more freely, making allusions to such traditions. In this sense, the character of Moses and details related to his trajectory and/or biography, present in the narratives of Exodus to Deuteronomy, gain greater prominence in the second part of the Christian Bible. This also applies to a discourse which, according to the account in Exodus 3: 1 – 4: 17, the LORD and God of Israel directed to Moses, in view of the need that the prophetic leader has to convince others by his words: «I will therefore be with your mouth, and will instruct you in what thou shall speak» (Ex 4: 12b-c). According to the Gospels according to Mark, Matthew, Luke and John, Jesus welcomed this tradition and religious hope in instructing his disciples (Mk 13: 11, Mt 10: 19, Lk 12: 12, Jn 14: 26). The investigation of the details of the intertextuality indicated here is the task of the research presented in this article.
Keywords: Biblical literature, intertextualities, prophets, disciples, speeches.
Moisés e os discípulos de Jesus não falam por si (Ex 4,12; Mc 13,11; Mt 10,19; Lc 12,12; Jo 14,26)
Moses and the disciples of Jesus do not speak for themselves
Recepción: 12 Junio 2018
Aprobación: 23 Agosto 2018
Diante da possibilidade e/ou probabilidade de os discípulosserem perseguidos, seja no âmbito da comunidade religiosa, sejano âmbito da sociedade e do poder público, Jesus, de acordo comas narrativas nos Evangelhos, chegou a fazer uma surpreendenteafirmação. Disse a seus discípulos que, no momento de eventuaisinterrogatórios, não lhes seria necessário preocuparem-se comseus discursos de defesa. Pelo contrário, seriam instruídos do alto.Em princípio, os quatro Evangelhos narram esse ensinamentopromovido por Jesus. No caso, será preciso ouvir ou ler o que éapresentado em Mc 13,11; Mt 10,17-20; Lc 12,11-12; Jo 14,26.
Contudo, parece ser provável que Jesus, em seu ensino, tenhaacolhido e atualizado um elemento pertencente às tradiçõesveterotestamentárias, ou seja, às Sagradas Escrituras de seu povo,os judeus. Consultando, pois, a primeira narrativa exodal sobre avocação de Moisés apresentada em Ex 3,1-4,17, descobre-se umareflexão teológica semelhante. Ou seja, no momento de insistir navocação de Moisés, no sentido de este voltar ao Egito e conduzir oshebreus para fora da sociedade que os oprimia, o Senhor, Deus deIsrael lhe afirma o seguinte: «Eu estarei com tua boca e te instruireisobre o que deverás falar» (Ex 4,12b-c).
De certo, os Evangelhos, como as demais tradições neotesta-mentárias, originalmente foram compostos na língua grega, de acor-do com o uso dela no decorrer do primeiro século depois de Cristo.A edição crítica do texto grego do Novo Testamento comumenteusada no mundo acadêmico é a vigésima oitava edição do NovumTestamentum Graece, a qual consta também na quinta edição do The Greek New Testament1. Contudo, no momento de essas ediçõesapresentarem seus índices de citações, alusões e paralelismos ver-bais, o The Greek New Testament não menciona Ex 4,12c-d comoreferência para nenhum texto nos Evangelhos. O Novum Testamen-tum Graece, por sua vez, menciona Ex 4,12 em vista de Mt 10,19,mas sem mencionar Mc 13,11; Lc 12,12; Jo 14,26. Em vista de Mc13,11, no entanto, indica Ex 4,15 como paralelismo.
Diante disso, o estudo aqui apresentado insiste novamentena investigação das proximidades e/ou intertextualidades que asnarrativas neotestamentárias em Mc 13,11; Mt 10,19; Lc 12,12; Jo14,26 guardam com a tradição exodal em Ex 4,12. No caso, o termointertextualidade indica que «existem relações entre textos e quetais relações são de interesse para a interpretação do texto».2 Paraisso, será necessário consultar, de forma pormenorizada, o que seescuta ou se lê nos textos bíblicos acima citados, ora em hebraico,ora em grego, verificando, por excelência, citações, alusões e/ou ecostemáticos, sendo que as relações intertextuais nascem, sobretudo,desses elementos.
A narrativa em Ex 3,1-4,17 apresenta a seus ouvintes-leitoresuma ampla reflexão sobre a vocação de Moisés. A partir de umencontro pessoal com o Senhor, Deus de Israel, Moisés é chamadoa «ir ao faraó e fazer saírem do Egito os filhos de Israel» (Ex 3,10).
Diante dessa tarefa, Moisés, por sua vez, formula uma série deobjeções. Uma delas se refere à sua suposta incapacidade de falar.Eis uma tradução do texto hebraico em questão (Ex 4,10-12):10 Então Moisés disse ao Senhor: «Por favor, meu Senhor, eu não souum homem de palavras, nem de ontem nem de anteontem, nem depoisde tu teres falado a teu servo, porque eu tenho boca pesada, e pesadaé a língua». 11 O Senhor lhe disse: «Quem colocou uma boca para o serhumano? E quem torna mudo ou surdo, clarividente ou cego? Por acaso,não sou eu, o Senhor? 12 Vai agora! Eu, pois, estarei com tua boca e teinstruirei sobre o que deverás falar».Interessa à investigação intertextual aqui realizada justamenteo final desse discurso divino. Por isso, vale a pena verificar de pertocomo se dá, mais exatamente, a formulação em Ex 4,12b-c no textohebraico3.
Quem discursa é o Senhor, Deus de Israel. Visando ao futuro, eleopõe ao discurso de Moisés - «Eu não sou um homem de palavras!»(Ex 4,10) - uma fala que assume características de promessa. Trata-se,sintaticamente, de duas frases paralelas que, duplamente, insistemem uma só reflexão teológica. Em primeiro lugar, a formulaçãotrabalha com uma imagem, valorizando a linguagem metonímica.Visa-se à «boca» de Moisés (Ex 4,12b), sendo que ela representa apessoa enquanto fala e/ou até precisa pronunciar-se. Aliás, a boca éo único instrumento de trabalho à disposição do profeta, sendo queeste tem a tarefa de transmitir a palavra de Deus aos demais. Enfim,acolhendo a imagem aqui descrita, a narrativa transmite a seguintepromessa divina: «Eu estarei com tua boca!» (Ex 4,12b). No segundomomento, ocorre uma formulação abstrata, formada por uma frase (Ex4,12c) que tem o objeto direto introduzido pela palavra aqui traduzida como «que» . Ou seja, a expressão «sobre o que deverás falar»se torna complemento para o que se ouve ou se lê como sujeito epredicado: «te instruirei» (Ex 4,12c). 4
Todavia, a reflexão teológica promovida por Ex 4,12b-c favorecea ideia de que o Senhor, Deus de Israel, «instrua» ou «ensine»constantemente o profeta que escolheu. Moisés não falará mais porconta própria, mas «instruído» pelo Senhor. Nem estará mais sozinhocom sua «boca», mas a «boca» dele terá a companhia do Senhor. Talvezpossa se ir ainda mais longe ao interpretar Ex 4,12b-c, pois a formulaçãopermite também a seguinte compreensão: a partir da vocação dele, a«boca» de Moisés pertence a Deus, no sentido de ser agora o Senhorquem atua «com a boca» de seu profeta. Quer dizer, Deus faz uso dela,sem que por isso precisasse arrancá-la do corpo de Moisés.Por causa da intertextualidade visada nessa pesquisa, tambémé de interesse saber como, na Septuaginta, o texto hebraico foitraduzido para o grego5. Eis o trecho em questão:
Observa-se, primeiramente, em relação a Ex 4,12b que a expressão verbal no hebraico – «eu estarei com tua boca» – sofreu uma pequena alteração, quando foi traduzida como «eu aBrirei tua boca». No mais, vale mencionar que a raiz verbal hebraica «instruir» ou «ensinar» encontra diversas traduções no grego. Verificando as quarenta e seis presenças do vocábulo na Bíblia Hebraica, os tradutores da Septuaginta usaram os seguintes verbos gregos para traduzi-lo: «encontrar, reunir-se» (ver συναντάω em Gn 46,28), «reunir, unir, unificar, demonstrar, provar, instruir, ensinar, advertir»
(ver συμβιβάζω em Ex 4,12.15; Lv 10,11; Sl 32,8), «mostrar, apontar, indicar, tornar conhecido, explicar, explanar, provar» (ver δείΚνυμτ em Ex 15,25; 1Sm 12,23; Jó 34,32; Mq 4,2), «legislar» (ver νομοθετέω em Ex 24,12; Dt 17,10; Sl 25,8.12; 27,11; 119,33.102), «fazer acontecer, antecipar, conduzir» (ver προβιβάζω em Ex 35,34), «explicitar, interpretar, contar, descrever, relatar» (ver έξηγέομαι em Lv 14,57), «relatar, reportar, dar a conhecer, proclamar, pregar» (ver άναγγέλλω em Dt 24,8; Jó 27,11; Is 2,3; 28,9), «tornar claro, mostrar, revelar, indicar» (ver δηλόω em Dt 33,10; 1Rs 8,36; 2Cr 6,27), «iluminar, esclarecer, trazer à luz, revelar» (ver φωτίζω em Jz 13,8; 2Rs 12,3; 17,27.28), «mostrar, provar, demonstrar» (ver ύποδείΚνυμι em 2Cr 15,3), «instruir, ensinar» (ver διδάσΚω em Jó 6,24; 8,10; Pr 4,4.11; 6,13; Is 9,14; Ez 44,23), «falar, dizer» (ver λέγω em Jó 12,7), «explicar, interpretar» (ver φράζω em Jó 12,8), «liderar, guiar, instruir» (ver em Sl 45,5; 86,11), «alegrar, animar» (ver εύφραίνω em Is 28,26) e «responder, replicar» (ver άποΚρίνομαι em Mq 3,11)6. Em alguns casos, os tradutores da Septuaginta não traduziram o verbo hebraico em questão (Dt 17,11) ou não o traduziram por um verbo (Hab 2,18-19).
Enfim, dezesseis verbos gregos foram aproveitados pelos tradutores da Septuaginta para traduzir a raiz verbal hebraica aqui traduzida como «instruir» ( no grau do hifil), sendo que a primeira ocorrência dela no cânon da Bíblia Hebraica se dá justamente em Ex 4,12. Aliás, os dezesseis verbos gregos presentes na Septuaginta também foram utilizados pelos autores neotestamentários. Todavia, com sete presenças, a tradução de «instruir»
com διδάσΚω (ver Jó 6,24; 8,10; Pr 4,4.11; 6,13; Is 9,14; Ez 44,23) se tornou a mais comum. Como verificável logo a seguir, os Evangelhos segundo Lucas e João insistem justamente nesse verbo grego, quando favorecem a intertextualidade com Ex 4,12c.
O Evangelho segundo Marcos parece guardar certo paralelismocom Ex 4,12b-c, quando visa aos «discípulos» (Mc 13,1), que,«entregues aos sinédrios e às sinagogas» e até «conduzidos perantegovernadores e reis por causa de Jesus, hão de dar testemunho» (Mc13,9), a fim de que, dessa forma, «proclamem o Evangelho a todasas nações» (Mc 13,10). Garante-lhes, Jesus, para tais situações deperseguições, um apoio divino. Eis o texto grego e uma traduçãoliteral do discurso jesuânico que interessa à investigação aquiapresentada:
Prevê-se, para os discípulos, que eles sejam testemunhasfavoráveis ao anúncio de Jesus como Cristo. Com isso, por suavez, não será possível evitar acusações e processos por parte dosdetentores de poder, seja na comunidade religiosa, seja na sociedade.No entanto, por intermédio de seu discurso, Jesus indica uma posturade despreocupação (Mc 13,11b). Por mais que fosse necessário osdiscípulos, ao serem interrogados, «falarem» (Mc 13,11c-d) nostribunais, «em vista de sua defesa não seriam decisivas as suascapacidades retóricas», mas, naquela hora, «se tornariam profetas,sendo que, através da boca deles, se pronunciaria o Espírito Santo». 7
Prevê-se, dessa forma, o cumprimento da profecia de João Batista,segundo a qual Jesus «batizaria os seus com o Espírito Santo» (Mc1,8), sendo que existe também a possibilidade contrária no sentidode o discípulo, junto aos escribas (Mc 3,22), «blasfemar contra oEspírito Santo» (Mc 3,29) 8
No que se refere à intertextualidade entre o que Deus diz a Moisés (Ex 4,12) e o que Jesus transmite aos seus (Mc 13,11), percebe-se que tanto o maior profeta do antigo Israel (Dt 34,6) como o discípulo precisam falar, e isso, por excelência, naqueles momentos críticos em que irão enfrentar oposição, resistência e perseguição. Justamente o verbo aqui traduzido como «falar», presente já no discurso dirigido pelo SENHOR a Moisés (ver λαλέω em Ex 4,12c), ganha também centralidade no discurso parenético que Jesus oferece a seus discípulos, e isso de forma destacada através de sua tripla menção (Mc 13,11c.e-f).
A mesma intertextualidade se repete também em relação aEx 4,15, sendo que, neste caso, o Novum Testamentum Graecefaz o registro de Mc 13,11 guardar uma alusão à tal tradiçãoveterotestamentária. Em Ex 4,15, o Senhor dirige outro discurso aMoisés, visando, desta vez, à relação entre este último e o irmãodele, que é Aarão: «Falar-lhe-ás e colocarás as palavras em suaboca. Eu estarei com tua boca e com a boca dele. E vos instruireisobre o que deveis fazer» (Ex 4,15). Além do paralelismo referenteà presença do verbo «falar» (Ex 4,15a; Mc 13,11c.e-f), talvez existatambém uma alusão no nível do pensamento que norteia a reflexãoteológica: como «será dado» aos discípulos «o que devem falar»(Mc 13,11d-e; ver também Mt 10,19d), Moisés é apresentado comoquem «coloca as palavras na boca» de Aarão (Ex 4,15b), a fim deque este último fale
No Evangelho segundo Mateus, de forma semelhante, amesma ideia parece estar presente. Em seu discurso dirigido aos«doze discípulos» (Mt 10,1), Jesus avisa estes últimos sobre futurasperseguições (Mt 10,16-20). Por serem «enviados como ovelhas emmeio a lobos», hão de «ser prudentes como as serpentes e simplescomo as pombas» (Mt 10,16). Mesmo assim, serão «entregues aostribunais, flagelados nas sinagogas e levados diante de governadorese reis» (Mt 10,17-18). Enfim, é de maior interesse para esta pesquisao que irá acontecer com os discípulos quando precisarão falar emtais situações. Eis uma tradução literal do que se ouve ou se lê emMt 10,19-20:
A ordem dada por Jesus aos discípulos insiste em que estes«devem confiar em Deus, sem partir para a vingança ou sucumbirà intimidação»9. Pelo contrário, será preciso que deem «testemunhoaos governadores e reis», assim como «às nações» (Mt 10,18).«Entregues» a seus carrascos (Mt 10,19a), eles realmente lhes devemfalar. Mais ainda, justamente pela presença quadrupla do verbo«falar» (verem Mt 10,19b.c.20a.b), essa atitude indicada ganhamaior realce no discurso promovido por Jesus. Focando, por sua vez,no que Deus disse em seu discurso a Moisés, estudado anteriormente, observa-se que também ali há o verbo «falar» (Ex 4,12c). Moisés,pois, «deve falar» palavras de acordo com «a instrução» do Senhor(Ex 4,12c). Semelhantemente, também os discípulos de Jesus devemfalar palavras cuja origem não está neles.
Contudo, pode surgir a questão a respeito da intensidade doparalelismo, sobretudo em vista da reflexão teológica promovidapelos dois discursos diretos em questão, sendo que o primeiro delespertence ao Senhor, Deus de Israel, e o segundo a Jesus. No caso,a «fala» de Moisés é pensada como «instruída» ou «ensinada» porDeus (Ex 4,12c). O Senhor «estaria com a boca» de seu profeta (Ex4,12b). Ouvindo essas formulações, é possível chegar à ideia deinstrumentalidade. Também parece haver uma comunhão específicaentre Deus e Moisés.
No Evangelho, o discurso de Jesus aparentemente ganhe umaradicalidade ainda maior. Os discípulos «irão falar» o que «lhesserá dado» (Mt 10,19c). E «não serão eles que falarão», mas «seráo Espírito do Pai deles que neles falará» (Mt 10,20). Através dessaformulação, parece que as ideias de instrumentalização e comunhãochegam a seu auge, no sentido de ocorrer uma atualização nova doantigo mistério. No caso, pois, o «Espírito do Pai» (Mt 10,20b) - queé o Espírito do Filho - é pensado como quem «falará nos» discípulos(Mt 10,20b), apropriando-se deles de forma definitiva. No caso deMoisés, no entanto, o Senhor é apresentado como quem «está coma boca» de Moisés, «instruindo» Moisés «sobre o que deve falar»(Ex 4,12b-c). Contudo, tratando-se de uma experiência mística, nãoé possível pensar em um «mais ou menos». Tanto Moisés como osdiscípulos de Jesus são contemplados não como quem fala por si, massim como quem expõe a palavra de Deus, «instruído» por Deus (Ex4,12c) e/ou acolhendo «o Espírito do Pai» (Mt 10,20b). E as palavrasfaladas por ambos sempre terão qualidade divina. 10
Também o Evangelho segundo Lucas acolhe a tradiçãoreferente aos «discípulos» (Lc 12,1) e «amigos» (Lc 12,4) que, ao«se declararem» por Jesus (Lc 12,8), em vez de «negá-lo» (Lc 12,9),irão precisar defender-se diante das autoridades religiosas que, nosespaços reservados a julgamentos, irão interrogá-los a respeito desua postura favorável ao «Filho do Homem» (Lc 12,8.10). Eis umatradução literal dos dois versículos em questão (Lc 12,11-12):
Enquanto o trecho correspondente no Evangelho segundoMateus insiste na presença quádrupla do verbo «falar» (veremMt 10,19b.c.20a.b), o Evangelho segundo Lucas traz duplamente overbo aqui traduzido como «dizer» (verem Lc 12,11d.12a), alémde apresentar o verbo «defender-se» (verem Lc 12,11c),sendo que este último também faz imaginar que está sendo proferidoum discurso. Portanto, o terceiro Evangelho valoriza, assim comoo Evangelho segundo Mateus, o paralelismo veterotestamentárioobservado no parágrafo anterior, mesmo que o faça através de outrosvocábulos. Como Moisés «falaria» por causa de o Senhor «estar naboca dele» (Ex 4,12), os discípulos também «dirão» o que há de ser«dito» (Lc 12,11b.12a) e «se defenderão» diante das autoridades religiosas e/ou «autoridades romanas» por causa da ação do «EspíritoSanto» (Lc 12,11b) 11
Contudo, observando o que é narrado em Ex 4,12, o Evangelhosegundo Lucas guarda um paralelismo duplo. Além de insistir nofalar, traz o verbo aqui traduzido como «instruir» (verem Lc12,12a e a raiz verba em Ex 4,12c). Vale lembrar que dessaraiz verbal nasce o substantivo Torá
, o qual, na Bíblia Hebraica,dá nome ao Pentateuco. Enfim, como, na narrativa do Êxodo, oSenhor «instrui» Moisés a respeito do que «deverá falar» (Ex 4,12c),na narrativa do terceiro Evangelho, o «Espírito Santo instruirá» osdiscípulos de Jesus sobre «o que será preciso dizer» (Lc 12,12a).
Com isso, cabe a seguinte observação: verificada a edição doThe Greek New Testament, falta no índice de alusões ou paralelismosverbais a menção de Ex 4,12 como referência para Mc 13,11; Mt10,19; Lc 12,12. No Novum Testamentum Graece, por sua vez, falta amenção de Ex 4,12 como referência para Mc 13,11 e, especialmente,para Lc 12,12, sendo que essa edição crítica do texto grego do NovoTestamento traz a menção de Mt 10,19. Todavia, a ausência de Lc12,12 no índice de alusões ou paralelismos verbais surpreende maispela circunstância de, justamente no terceiro Evangelho, ocorrer umparalelismo duplo em relação ao que é narrado em Ex 4,12.
Em vista do que é narrado em Ex 4,12b-c, há ainda outraintertextualidade a ser observada nas tradições do Novo Testamento.Fazendo parte de seu discurso de despedida (Jo 14-17), ouvem-seou leem-se as seguintes palavras de Jesus em Jo 14,26:
Semelhante ao Evangelho segundo Lucas, também o quartoEvangelho apresenta «o Espírito Santo» como quem «instrui» osdiscípulos (Jo 14,26a-b; Lc 12,12a), sendo que, dessa forma, o Espíritoserá experimentado como «Paráclito» (Jo 14,26a), ou seja, comoquem é «convocado para o auxílio e a defesa», no sentido de atuarcomo «um advogado ou assistente de defesa»12. Contudo, segundo acompreensão joanina, o Espírito Santo será «mestre dos discípulos»não «de forma autônoma ou como transmissor de novas revelações,mas somente para lembrar os discípulos das palavras de Jesus»13.Nessa perspectiva, é sublinhada a importância do que Jesus «disse»(Jo 14,26c), e não daquilo que os discípulos poderiam dizer por contaprópria (ver também Jo 15,26-27).
Todavia, por mais que Jesus enuncie aqui «o sentido novo doEspírito Santo conforme a experiência da comunidade joanina», emvista da intertextualidade aqui investigada percebe-se novamente apresença dos vocábulos «instruir» e «falar/dizer» (Ex 4,12c; Jo 14,26b-c)14. Com isso, outra vez, ganha destaque a experiência religiosade o profeta e/ou discípulo ser misteriosamente assistido por Deus,sobretudo nos momentos marcados pela perseguição e/ou solidão.
«O Jesus dos quatro Evangelhos promete o apoio do EspíritoSanto», sendo que este último também é chamado de «Espírito doPai» ou «Paráclito» (Mc 13,11g; Mt 10,20b; Lc 12,12a; Jo 14,26a)15.Assim como Moisés, profeta maior de Israel (Dt 34,10), devia ter aconvicção de que poderia «falar» na qualidade de profeta «instruído»pelo Senhor, Deus de Israel (Ex 4,12b-c), também os discípulos«falariam» e, com isso, anunciariam o Evangelho. Contudo, cadaEvangelho se expressa de sua maneira ao veicular a reflexão religiosajá presente nas tradições exodais. Ora é dito que será o «EspíritoSanto» que «falará» no lugar dos discípulos (Mc 13,11f-g) ou «neles»(Mt 10,20b), ora o «Espírito Santo instruirá» os discípulos para queestes saibam «o que é preciso dizer» (Lc 12,12a) ou sejam «recordadosde tudo aquilo que Jesus lhes disse» (Jo 14,26b-d).
Por excelência, a intertextualidade dessa reflexão religiosaganha visibilidade através dos paralelismos verbais acima descritos.Nesse sentido, ganha destaque, de um lado, o «falar» (Ex 4,12c;Mc 13,11c.e-f; Mt 10,19c.e.20a-b) e/ou «dizer» (Lc 12,11d.12a; Jo14,26d). De outro lado, é o vocábulo «instruir» (Ex 4,12c; Lc 12,12a;Jo 14,26b) que cria conexões. Assim, como já afirmado, o Evangelhosegundo Lucas parece guardar a maior proximidade ao que faz partedas tradições exodais, contrariamente ao que é afirmado no índice dealusões ou paralelismos verbais na edição do Novum TestamentumGraece. Nele, os «dizeres» dos discípulos são imaginados como«instruídos» pelo Espírito Santo (Lc 12,12a), assim como o «falar» deMoisés se encontrava «instruído» pelo Senhor (Ex 4,12c).