FORMAÇÃO DO PSICÓLOGO BRASILEIRO: IMPASSES E DESAFIOS

Formation of the Brazilian Psychologist: impasses and challenges

Norma da Luz Ferrarini
Universidade Federal do Paraná, Brasil
Denise de Camargo
Universidade Federal do Paraná, Brasil
Luciana Albanese
Universidade Federal do Paraná, Brasil
Miriam Aparecida Graciano de Souza Pan
Universidade Federal do Paraná, Brasil
Yára Lúcia Mazziotti Bulgacov
Universidade Positivo Curitiba, Brasil

FORMAÇÃO DO PSICÓLOGO BRASILEIRO: IMPASSES E DESAFIOS

International Journal of Developmental and Educational Psychology, vol. 2, núm. 1, pp. 271-280, 2016

Asociación Nacional de Psicología Evolutiva y Educativa de la Infancia, Adolescencia y Mayores

Recepção: 22 Janeiro 2016

Aprovação: 15 Fevereiro 2016

Resumo: Este artigo, realizado sob a perspectiva dos Estudos Baseados na Prática (EBP),objetiva refletir sobre a formação do psicólogo brasileiro com base em pesquisas junto a estudantes e professores de Psicologia de duas universidades da região sul do país. Os instrumentos utilizados consistiram em grupos focais, entrevistas semiestruturadas e um grupo de discussão. O método de tratamento empregado foi a Análise de Conteúdo. Como resultados mais significativos destacaram-se nos discursos analisados: a multiplicidade teórica da Psicologia; a falta de unidade da ciência e da profissão; e o distanciamento entre teoria e prática. Tais dados, ao serem confrontados com a Resolução nº 5 do Conselho Nacional de Educaçãodo Ministério de Educação e com as diretrizes do Conselho Federal de Psicologia, evidenciam os principais impasses encontrados no ensino da Psicologia no país.Sinalizam os obstáculos mais relevantes a ser superados a fim de que a formação universitária contribua, efetivamente, para a construção da identidade profissional e para a consolidação da Psicologia como campo de saber e profissão comprometidos com a promoção da qualidade de vida dos indivíduos, grupos, organizações e comunidades.

Palavras-chave: formação universitária, multiplicidade teórica da psicologia, currículo de Psicologia, identidade profissional, articulação teoria-prática.

Abstract: This article, written from the perspective of Practice-Based Studies (PBS) aims to think over the training of Brazilian Psychologists based on surveys taken by students and Psychology professors from two universities located in the south of the country. The research instruments used were focus groups, semi-structured interviews and group discussions. The method of data treatment employed was the analysis of content. The most significant results that stood out in the speeches analyzed were: the theoretical multiplicity of Psychology; the lack of unity in the science and the profession; and the gap between theory and practice. Such data, when confronted with Resolution Number 5 of the National Council of Education, of the Ministry of Education, and with the guidelines of the Federal Council of Psychology, bespeak the main problems encountered in psychology education in the country. They also indicate the most relevant obstacles to be overcome in order for the university education to contribute effectively to the construction of professional identity and the consolidation of Psychology as a field of knowledge and profession committed to promoting the quality of life of individuals, groups, organizations and communities.

Keywords: university education, theoretical multiplicity of Psychology, Psychology curriculum, professional identity, articulation between theory and practice.

FORMAÇÃO DO PSICÓLOGO BRASILEIRO: IMPASSES E DESAFIOS

As atuais diretrizes curriculares para a formação do Psicólogo brasileiro impõem desafios ao professor de Psicologia. Dentre eles, destacam-se: a) formar profissionais capazes de articular teoria e prática com clareza epistemológica; b) garantira compreensão da Psicologia em sua totalidade histórica e social; e c) consolidar seu compromisso com a redistribuição do poder social e pessoal. No presente artigo, a aprendizagem é compreendida como atividade coletiva e situada em um contexto histórico e político, em que o conhecer e o fazer estão intrinsecamente entrelaçados (Gherardi,2011). Este artigo organiza-se em três momentos. O primeiro analisa normativas do Conselho Nacional de Educação (CNE) para cursos de Psicologia no Brasil, seus desdobramentos e discussões da formação do psicólogo conforme o Conselho Federal de Psicologia (CFP), órgão que regulamenta a profissão de Psicólogo no País. O segundo relata duas pesquisas realizadas em universidades do Brasil, uma pública, outra privada. Finalmente, o terceiro tece considerações sobre o processo de formação do psicólogo e a realidade da psicologiabrasileira enquanto ciência e profissão, assinalando alguns de seus impasses e desafios.

A FORMAÇÃO DO PSICÓLOGO NO BRASIL: NORMATIVAS E DESAFIOS ATUAIS

A profissão de Psicólogo no Brasil foi regulamentada pela Lei nº. 4.119, de 27 de agosto de 1962, que estabeleceu os princípios para a constituição de cursos de formação em Psicologia (Antunes, 2012; Conselho Federal de Psicologia, 2012). O Conselho Federal de Educação definiu o currículo mínimo e a duração prevista para os cursos de Psicologia, Licenciatura e Bacharelado. Em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) instituiu novas diretrizes para a Educação Superior no país; os cursos de graduação em Psicologia passaram a ser ordenados pelas Diretrizes Curriculares Nacionais, aprovadas em 2004, substituindo o currículo mínimo vigente até então (Brasil, 2004). Em 2011, o Conselho Nacional de Educação da Câmara de Educação Superior do Ministério de Educação do Brasil aprovou a Resolução nº 5, que estabeleceu normas para o projeto pedagógico complementar para a Formação de Professores de Psicologia (Brasil, 2011).

A Resolução atual (Brasil, 2011) unifica a formação e apresenta princípios norteadores para o professor no ensino superior, uma vez que trata das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs). Nestas, especificamente naresolução de número 5, tem-se que: “O curso de graduação em Psicologia tem como meta central a formação do psicólogo voltado para atuação profissional, pesquisa e ensino de Psicologia” (Brasil, 2011, p. 1). Em relação à diversidade de orientações teórico- metodológicas, de práticas e de contextos de inserção profissional, consta, nessa mesma resolução, a necessidade de “domínio básico de conhecimentos psicológicos e a capacidade de utilizá-los em diferentes contextos que demandam investigação, análise, avaliação, prevenção e atuação em processos psicológicos e psicossociais e na promoção da qualidade de vida.” (Brasil, 2011, p. 3).

O texto Contribuições do Conselho Federal de Psicologia à discussão sobre a formação do psicólogo(Conselho Federal de Psicologia, 2013), por sua vez, visa a delinearquestões emblemáticas para orientar a formação do psicólogo comprometido crítica e politicamente comas necessidades da população brasileira. Destaca que a idealização de “um projeto ético-político de formação para a área” precede a questão do currículo na formação profissional,sendo necessário pensar “na interferência da ideologia que ofusca a identificação dos valores psicossociais que estão espraiados na formação teórica e prática do psicólogo” (Conselho Federal de Psicologia, 2013, p. 15), podendo desembocar em: práticas alienadas; abismo entre teoria e prática; cristalização de teorias que se isentam do diálogo com outras teorias; ações que sustentam o status quo opressivo em detrimento de uma prática emancipatória; tecnicismo; dificuldade de fazer análise da conjuntura social, polí- tica e histórica; produções científicas que desconsideram os sujeitos das demandas; ausência de reflexão ética e crítica sobre intervenção e suas consequências para o indivíduo e vida em sociedade; e a ausência de um posicionamento profissional com relação às demandas psicossociais do indivíduo na sociedade contemporânea.

Outra questão colocada refere-se à desarticulação entre ciência e profissão, pesquisa e ensino, pós-graduação e graduação, que, muitas vezes, acaba por responderaos ditames do produtivismo acadêmico ao invés de voltar-se para fundamento prático buscando respostas que subsidiem as questões psicossociais. O Conselho Federal de Psicologia (CFP) aponta que um dos desafios para a ciência, para a formação e para a profissão é a diversidade de teorias e práticas psicológicas que expressam visões antagônicas. Tal diversidade reflete-se no Projeto Político-Pedagógico dos diferentes Cursos de Psicologia, implicando em visão de homem, de sociedade e em uma dimensão política que sustentam o fazer cotidiano das instituições formadoras. De acordo com o CFP, muitas vezes está ausente na formação a discussão política sobre para que e para quem existe a Psicologia no Brasil, sobresuas injunções nas subjetividades dos indivíduos e sobre o compromisso social da profissãocom determinado tipo de sociabilidade, uma vez que, inegavelmente, a Psicologia fomenta um poder ideológico. A questão posta é, pois: de que psicólogos precisamos e que psicólogos queremos formar? (Conselho Federal de Psicologia, 2013).

Pode-se observar que, em consonância com os princípios defendidos pelo CFP, as Diretrizes Curriculares Nacionais valorizam a diversidade e a multiplicidade teórica características da ciência psicológica, reforçam a necessidade de articulação teórica com possibilidades metodológicas de investigação e de intervenção, incentivam a integração dos psicólogos de diferentes áreas de atuação ecom outros profissionais, estimulam o ingresso e a atuação do psicólogo em diferentes contextos e sua participação na construção de políticas públicas, consideram a complexidade e a mul- tideterminação do fenômeno psicológico, visamà compreensão crítica dos fenômenos sociais e fortalecem a dimensão do compromisso social da psicologia com a promoção do bem-estar considerando necessidades sociais e os direitos humanos.

Considerados estes aspectos, cabeconhecer como se apresenta a prática do professor que atua na formação do psicólogo. Para tanto, resgatam-sealguns dados e questionamentos derivados de pesquisas empíricas. É disso que trata o item a seguir.

A PESQUISA COMO EXERCÍCIO DA CONTRA-PALAVRA: DANDO VOZ AOS PROFESSORES E ESTUDANTES

Foramrealizadas pesquisas junto a professores e estudantes do Curso de Psicologia, uma delas em universidade pública (U1) e outra, em universidade privada (U2), ambas situadas na região sul do Brasil.Tais estudos voltaram-se a investigar os seguintes temas centrais:1) sentido da Psicologia; 2) objetivo e objeto de estudo na formação do psicólogo; e 3) Psicologia: ciência e profissão. Utilizaram-se três procedimentos para produção dos dados: (I) Grupos Focais (GFs) (Gatti, 2005) com estudantes do Curso de Psicologia da U1 (Ranzi & Ferrarini, 2007; Ferrarini & Camargo, 2012); (II) entrevistas semi-estruturadas com cinco professores representantes das linhas teóricas presentes no Curso de Psicologia da U1 (Psicologia Sócio-Histórica, Behaviorismo, Fenomenologia, e dois professores de Psicanálise), com objetivo de identificar bases do conteúdo dos saberes e fundamentos das práticas do Curso de Psicologia (Barbacelli & Ferrarini, 2008; Ferrarini, Valore & Camargo, 2011); e (III) Grupo de discussão (GD)e análise conjunta dos dados com participação de estudantes formandos da U1 e da U2 (Ferrarini, Camargo & Bulgacov, 2014). Os dados foram analisados segundo o método da Análise de Conteúdo (Bardin,1977).

Na análise dos discursos observou-se que os dois primeiros eixos estruturantes propostos pelas DCNs – a saber: (I) Fundamentos epistemológicos e históricos na construção do saber psicológico, desenvolvendo a avaliação crítica das linhas de pensamento em Psicologia e (II) Fundamentos teórico-metodológicos abrangendo diferentes métodos e estratégias de produção do conhecimento científico em Psicologia - estão presentes nos currículos dos cursos de graduação em Psicologia dasduas universidades. Entretanto, o primeiro eixo aparece de forma mais acentuada na U1 por oferecer uma formação generalista fortemente embasada em pressupostos epistemológicos e teóricos, a partir de quatro matrizes teóricas: a Psicanálise, a Psicologia Comportamental a Psicologia Fenomenológica-Existencial e a Psicologia Sócio-Histórica. Na U2 não observamse matrizes teóricas como as diretrizes essenciais do currículo, mas disciplinas perpassadas por diferentes teorias, práticas e objetos de estudo. Os eixos estruturantes (III) Procedimentos para a investigação científica e a prática profissional, promovendo o domínio de instrumentos e estratégias de avaliação e de intervenção adequados a problemas e contextos específicos e (IV) Fenômenos e processos psicológicos clássicos na investigação e na atuação da Psicologia estão diferentemente presentes nas duas instituições. Na U2 a formação está mais voltada ao mercado e àaplicação prática da Psicologia Clínica e na U1 fortalece-se a pesquisa, o que está de acordo com o perfil dos docentes, uma vez que na U2 há forte evidência da prática profissional dos docentes no mercado de trabalho, especialmente na área clínica, enquanto a ênfase do perfil dos professores da U1 está na pesquisa. Fenômenos e processos psicológicos clássicos da Psicologia são trabalhados no curso da U1 nas diferentes abordagens teóricas, não existindo disciplinas específicas para tratálos. Quanto aos eixos (V) Interfaces com campos afins do conhecimento e especificidade do fenômeno psicológico e (VI) Práticas profissionais que permitam a atuação profissional e a inserção do graduado em diferentes contextos institucionais e sociais, de forma articulada com profissionais de áreas afins, cabe destacar que os estudantes da U1 e da U2 enaltecem o caráter humanístico da Psicologia, localizando-a prioritariamente na área das ciências humanas; todavia, não reconhecem incentivo à prática interdisciplinar e legitimam a necessidade de aprofundamento em Filosofia. Em ambas as instituições os campos de estágio coincidem: saúde/clínica, educação, trabalho. O objeto de estudo, no entanto, segundo a primeira investigação com estudantes da U1, circunscreve-se de acordo com a abordagem teórica. Na pesquisa subsequente, utilizando grupos de discussão, os estudantes das duas instituições apontam asubjetividade como categoria essencial para a concepção teórica e metodológica, entendendo-a como o objeto de estudo da Psicologia.

A seguir apresentam-se questões suscitadas pelos estudantes no seu processo formativo que merecem ser consideradas pelos professores de Psicologia.

Apesar de ambos os cursos incentivarem investigação, análise, avaliação, prevenção e atuação profissional, promovendo a qualidade de vida dos indivíduos, grupos, organizações e comunidades em diferentes contextos (conforme previsto nas DCNs), de acordo com os estudantes,nem sempre esses preceitos são efetivados. Os impasses referem-se à multiplicidade e diversidade teórica da Psicologia, à falta de unidade entre ciência e profissão e ao distanciamento teoria-prática.

Nas questões sobre definição, objeto e objetivo da Psicologia apresentadas pelos estudantes nos Grupos Focais e pelos professores nas entrevistas (Ranzi & Ferrarini, 2007; Barbacelli & Ferrarini, 2008; Ferrarini, Valore & Camargo, 2011), buscou-se entender a relação entre escolha teórica e as respostas dadas às questões.O que apareceu na entrevista com os professores foi a pluralidade teórico-metodológica da Psicologia, confirmando o encontrado nos GFs e na GD realizados com estudantes. As respostas enfatizaram a importância da abordagem teórica escolhida,a dificul- dade em definir a Psicologia (dada sua diversidade) e, tal como no discurso dos estudantes, aexis-tência de várias Psicologias independentes entre si, como se teorias não pertencessem ao mesmo campo de conhecimento. Desse modo, os futuros profissionais deparam-se com a existência de diferentes objetos, métodos, abordagens e áreas de atuação. Ainda assim, entendem que a finalidade da Psicologia, em que pese sua diversidade teórica, consiste na diminuição do sofrimento e napromoção da saúde, do bem-estar, da qualidade de vida, da saúde mental. Vale registrar que, no discurso dos estudantes da U1, aparecem com maiorevidência conceitos provenientes da reforma médica e psiquiátrica e presentes na Psicologia Social Crítica e na Psicologia Comunitária. Discursos estes cujas matrizes ideológicas se diferenciam da Psicologia tradicional pautada no modelo de escuta clínica e da prática individualista desvinculada da dinâmica histórico-cultural.

Na tentativa de explicar o que é Psicologia, os estudantes acentuam seu caráter de promoção da saúde, ainda que não apresentem uma definição unívoca quanto ao que isto venha a representar. Aparecem, pois, questionamentos sobre o que seja “promoção da saúde” e “qualidade de vida”, mas sem haver, contudo, uma fundamentação teórico-metodológicaque lhes confira consistência conceitual. De modo geral, associam a ideia de saúde à qualidade de vida e à recomendação de uma vida saudável, corroborando o discursoda Organização Mundial da Saúde (OMS), o qual, presente desde os anos 1970, tem exercido influência crescente nas políticas públicas de muitos países.

Segundo Carvalho (2004), no Brasil, o discurso da promoção da saúde se faz presente na proposta da Vigilância à Saúde, sustenta o projeto de Cidades Saudáveis, influencia práticas de Educação à Saúde e está nos projetos da rede básica hoje vinculados ao Programa Saúde da Família. Conforme os documentos orientadores da Conferências Internacionais de Promoção à Saúde (patrocinados pela OMS de 1986 a 2000),nesses programas é ressaltada a atribuição de liberdade de escolha ao indivíduo, ao mesmo tempo em que se defende aresponsabilidade social. O ideário de promoção de saúde do serviço público recomenda buscar o desenvolvimentopleno dos indivíduos como cidadãos autônomos responsáveis pela sua saúde, autores e inventoresda própria vida (Barbosa &Mendes, 2005).Assim, prioriza-se os programas de educação voltados à mudança de estilos de vida e da compreensão à saúde.

Entre estudantes, a falta de uma identidade única gera sentidos diversos sobre a Psicologia e sentimentos angustiantes de insegurança e de incerteza, tais como: a sensação de fragilidade frente a esse “não-lugar”, o lugar do “não saber”; a percepçãode incapacidade diante da realidade profissional;um esgotamento pela insegurança de não saber o que fazer, a quem se reportar ou onde encontrar respostas, o que acaba contribuindo para uma falta de reconhecimento da profissão como ciência, e, talvez, nas palavras dos estudantes, para a sua “banalização” social. Enquanto para os professores o permanente questionar é essencial à ciência, à pesquisa e ao exercício da profissão, para os estudantes o questionamento excessivo parece revelar uma constante dúvida sobre o lugar da ciência e da profissão (Barbacelli & Ferrarini, 2008; Ferrarini, Valore & Camargo, 2011).

Estudantes concluem que são várias formas de pensar, formas de olhar e campos de atuar. Na busca do que unifica a ciência psicológica, fazem menção ao movimento histórico de construção da Psicologia, referindo-se aos vários momentos de crise da própria ciência (Ferrarini, Camargo & Bulgacov, 2014). Destacam o reconhecimento social do profissional psicólogo e da prática da Psicologia, parecendo ser isto que a unifica. Afirmam que a existência do Conselho Federal e dos Conselhos Regionais de Psicologia significa que há uma unidade da Psicologia. Concluem que há “um jogo político envolvido” e também uma relação de poder. Um estudante declara:

Parece que essa disparidade, descaminhos, desencontros, eles são quase abafados para a sociedade que existe uma Psicologia, porque existe essa necessidade de você dizer que existe o psicólogo, que ele é reconhecido como profissional, pois afinal é o que nos une, o que nos dá autoridade para fazer alguma coisa na sociedade, de provocar mudanças, mas ao mesmo tempo parece que há um jogo meio sujo de esconder, as pessoas não sabem que justamente existe toda essa cisão, essa falta de unificação. (Estudante A, comunicação pessoal, 2014).

E ainda, no diálogo entre dois outros futuros psicólogos:

Estudantes dão grande importância à escolha da abordagem teórica já que esta definiria o que é Psicologia e quem é o profissional da área. Esta escolha, porém, é reconhecida como angustiante, como momento de crise na formação. A tensão entre a pressa na definição (sentida pelos estudantes) e a recomendação de calma para fazê-lo (feita por seus professores) agrava a dificuldade da situação.

Na relação teoria e prática a insegurança configurou uma regularidade nas falas produzidas.Consequentemente, os futuros profissionais admitem buscar referências para sua atuação no bom senso, em suas experiências pessoais e em seus próprios processos terapêuticos e não tanto, nos conhecimentos teóricos adquiridos. Esta questão é preocupante e sugere que a superação desse impasse possa ser produzida pela mudança de postura do professor; de uma atitude de depositário de verdades sobre “outro”, para a postura dialógica como estratégia orientadora.

Estudantes afirmam que nem sempre encontram subsídios na teoria, mas sim na prática. Afirmam que não se trabalha com a prevenção e sim com tratamento do sofrimento. Pensar o sofrimento humano, em um modelo clínico de atuação individual, leva ao argumento da valorização da prática, independente da teoria. Pode-se dizer que há enaltecimento da prática em relação à teoria decorrendo uma cisão entre a ciência psicológica (teoria psicológica) e a profissão (a prática psi- cológica) (Ferrarini, Valore & Camargo, 2011; Ferrarini & Camargo, 2012; Ferrarini, Camargo & Bulgacov, 2014).A demanda imediata da intervenção reafirma a visão da formação enquanto um patchwork teórico, e não como concepções epistemologicamente estruturantes de objeto e método, e, portanto, orientadoras das práticas.

Há dificuldade em estabelecer um locus para a Psicologia, dificultando a identificação dos professores como atuantes da mesma ciência, capazes de trabalhar juntos, na contramão do proposto pelas DCNs. Vemos essa dificuldade relatada pelos estudantes ao mencionarem a escassez de exemplos interdisciplinares, o desconhecimento de alguns professores a respeito da atuação ou da teoria empregada por outros e as críticas infundadas a respeito de abordagens diferentes. Na fala dos professores observamos pouca identificação pela falta de designações que indiquem colaboração quando falam das relações entre diferentes abordagens. Palavras utilizadas pelos professores para designar essas relações foram ‘luta’, ‘disputa’, ‘tentativa de cooperação’ – indicando algo que não se consegue. Observa-se dificuldade em trabalhar com a diferença, próprios das políticas de identidade. Por outro lado, afala dos alunos revela o reconhecimento da singularidade do objeto da Psicologia como tentativa de construção de um espaço da diferença (Barbacelli & Ferrarini, 2008;Ferrarini, Valore & Camargo, 2011).

Uma problemática que influencia o ensino da Psicologia é que teoria e prática são colocadas em lados diferentes, quase que intransponíveis. A prática dos profissionais aparece como barreira divisória, uma especialidade que afasta qualquer possibilidade de diálogo entre as linhas, contribuindo para a construção da multiplicidade psicológica citada nas entrevistas. Acredita-se que, para superar dicotomias e disputas, há que se consideraro que preconiza a Resolução nº 5 sobre a “compreensão dos múltiplos referenciais que buscam apreender a amplitude do fenômeno psicológico em suas interfaces com os fenômenos biológicos e sociais;” – “reconhecimento da diversidade de perspectivas necessárias para compreensão do ser humano e incentivo à interlocução com campos de conhecimento que permitam apreensão da complexidade e multideterminação do fenômeno psicológico;” -“compreensão crítica dos fenômenos sociais, econômicos, culturais e políticos do País, fundamentais ao exercício da cidadania e da profissão;” “atuação em diferentes contextos, considerando as necessidades sociais e os direitos humanos, tendo em vista promoção da qualidade de vida dos indivíduos, grupos, organizações e comunidades;”. (Brasil, 2011, p. 1)

O mesmo aplica-se às orientações das DCNs quanto à formação do professor chamando-o para atuar na construção de políticas públicas de educação em todos os níveis e modalidades, comprometendo-se com “valores da solidariedade e da cidadania, capazes de refletir, expressar e construir, de modo crítico e criativo, novos contextos de pensamentos e ação” (Brasil, 2011, p. 5). A reflexão e a atuação crítica presentes no discurso da promoção da saúde devem também se aplicar à pro- moção da educação e da cultura como sustentáculos para constituição de sujeitos ativos e criativos rumo a transformações político-sociais e a uma educação inclusiva e de qualidade. A Resolução nº 5 prevê que a Formação de Professor deve oferecer conteúdos que incluam conhecimento da organização escolar, gestão e legislação de ensino referentes à educação no Brasil, reflexão sobre a realidade escolar nacional e articulações entre políticas públicas educacionais e o contexto socioeconômico mais amplo. O professor e o profissional não podem desobrigarse desse convite feito pela sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Problemas na formação de professores e profissionais têm raízes no histórico educacional onde o professor “aprende” o conteúdo e depois o transmite como conhecimento universal, generalizável, como se a realidade social se encaixasse em esquemas pré-estabelecidos.

Esse modelo de formação não possibilita reflexão que permita relacionar teoria com saberes práticos e possibilite que sujeitos se tornem conscientes do próprio discurso e de suas capacidades (Wenger, 2011). Nesse modelo, conhecimento e aprendizagem não são compreendidos enquanto prática social, conquista social em curso, constituída e reconstituída com atores envolvidos no mundo.

Uma perspectiva social e cultural, deferentemente, destaca estruturas simbólicas compartilhadas e coletivas do conhecimento que compreende tanto a ação dos homens como a ordem social (Reckwitz, 2002).A competência do indivíduo no saber fazeré tida como coletiva e baseada em práticas quotidianas, em queconhecer, aprender, trabalhar e inovar estão intimamente ligados no tempo (Gherardi, 2011).

Resultados dessas pesquisas que embasam esse artigo contrariam essa perspectiva da aprendizagem enquanto prática social, revelando dicotomia entre teoria e prática, sinalizando necessidade de articulação em que a teoria, como apontado pelos alunos, seja ferramenta para a investigação e não um discurso.

A diversidade e a multiplicidade presentes nas respostas e existente na Psicologia apresentam duas interpretações. De um lado, demonstram abertura da ciência a questionamentos e inovações, deoutro, uma falta de identidade no corpo teórico-metodológico-científico, marcado pela disputa entre diversas linhas teóricas e pela busca de verdade única. Nesse contexto, temos um problema de como os professores de Psicologia lidam com a diversidade epistemológica, produzindo um conhecimento que, nos leva a um “não-lugar” científico da profissão e da ciência psicológica.

Destaca-se a necessidade de professor, pesquisador e profissional abrirem seu referencial teórico para diálogo. É no objeto de estudo que se encontra potencialidade da descoberta do novo,mais do que nos artifícios teóricos.

Diversidade de teorias e práticas psicológicas podem atuar como impulsionadoras para a reflexão crítica e para a consciência da necessidade de formação contínua ou podem ser fator de fechamento para a aprendizagem. O papel do professor é fundamental na criação de contextos que possibilitem discussões, conflitos, tensões e questionamentos sobre os diferentes discursos e práticas. Nos discursos dos acadêmicos constata-se que existe lacuna na formação atual que facilite transposição do aporte teórico para a prática. O curso é direcionado para o discurso e pouco para o fazer, o que é gerador de angústia e insegurança, construindo uma identidade permeada por sentimentos de incompletude.

A possibilidade dos estudantes participarem de projetos de pesquisa, de extensão e de forma- ção comprovou ser espaço para discussão e reflexão sobre o processo de aprendizagem e de for- mação profissional, tendo sido enriquecedor para a experiência de estudantes de duas instituições de culturas diferenciadas. Confirmase a hipótese da aprendizagem enquanto prática social promovida por comunidades de práticas educativas que permitem aos estudantes se implicarem enquanto sujeitos singulares e produtores de novas zonas de sentido (Rey, 2003), permitindo-lhes rever seu processo de formação, de atuação profissional e de configuração de suas subjetividades.

Os desafios apontados são significativos, devendo estar na base da formação do psicólogo, podendo ser enfrentados com posturas que venham a: 1) promover visão crítica do conhecimento fomentando diálogos e práticas interdisciplinares; 2) alicerçar o conhecimento na relação teoria e prática; 3) fortalecer a ciência e a profissão, enfrentando o descompasso existente na formação,as demandas psicossociais e o mercado de trabalho; 4) incrementar o compromisso ético e social no processo de formação, nos diferentes contextos de profissionais e investigativos; e 5) fomentar diálogo entre associações profissionais, de pesquisa e da academia.

O estudo revelou a necessidade de mais trabalhos sobre o tema. Um dado relevante da pesquisa demonstrou que um dos caminhos possíveis para superar a insegurança suscitada nos estudantes diante da diversidade da Psicologia é valorizar o conhecimento tácito na relação com o conhecimento (Polanyi, 2010) construído na prática. Conhecimento construído na experiência, na reflexão sobre a prática, que deve perpassar o curso todo, nos estágios e nas supervisões, nos trabalhos em grupo, em discussões de disciplinas, em projetos de pesquisa e de extensão. Há necessidade do estudante deparar-se com diferentes perspectivas teóricas e diferentes categorias conceituais para construir seu modelo explicativo aberto para ser revisto e ou superado, tornando-se protagonista de sua formação. A diversidade da Psicologia deve ser usada como dimensão positiva que mobiliza a expansão e não o enrijecimento e encapsulamento da aprendizagem e do conhecimento compreendido como produção histórica dos homens.

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