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Soft power e a construção simbólica da realidade: a influência da mídia no comportamento da sociedade − o caso da reforma da previdência no Brasil

Soft power y la construcción simbólica de la realidad: la influencia de los medios de comunicación en el comportamiento de la sociedad − el caso de la reforma de la seguridad social en Brasil

Soft power and the symbolic construction of reality: the media influence in society’s behavior − the case of social security reform in Brazil

Aryovaldo de Castro Azevedo Junior
Universidade Federal do Paraná, Brasil

Soft power e a construção simbólica da realidade: a influência da mídia no comportamento da sociedade − o caso da reforma da previdência no Brasil

Signos do Consumo, vol. 11, núm. 1, pp. 13-25, 2019

Universidade de São Paulo

Recepção: 01 Outubro 2018

Aprovação: 20 Outubro 2018

Resumo: A sociedade contemporânea tem consolidado o capitalismo enquanto sistema econômico hegemônico, principalmente pela influência dos conglomerados de mídia e entretenimento para a construção simbólica da realidade, somados ao poder de corporações que induzem a definição de diretrizes públicas por parte dos Estados-nacionais. Este artigo, através de análise documental e estudo de caso, propõe tecer algumas relações entre os atores que influenciam as estruturas de poder e exemplificar com estudo de caso da campanha pela reforma da previdência social realizada pelo governo federal brasileiro e, assim, demonstrar a influência da linguagem persuasiva na comunicação pública.

Palavras-chave: Propaganda, Comunicação integrada, Política, Oligopólios, Poder.

Abstract: Contemporary society has consolidated capitalism as a hegemonic economic system, mainly by the influence of media and entertainment conglomerates for the symbolic construction of reality, added to the power of corporations that induce the definition of public directives by the national states. This article, through documentary analysis and case study, proposes to weave some relations between the actors that influence the structures of power and to exemplify with case study of the campaign for the reform of the social security system conducted by the Brazilian federal government and thus demonstrate the influence of persuasive language on public communication.

Keywords: Propaganda, Integrated communication, Politics, Oligopolies, Power.

Resumen: La sociedad contemporánea ha consolidado el capitalismo como sistema económico hegemónico, principalmente por la influencia de los conglomerados de los medios de comunicación y entretenimiento para la construcción simbólica de la realidad, sumados al poder de corporaciones que inducen la definición de directrices públicas por parte de los Estados nacionales. Este artículo, a través de análisis documental y estudio de caso, propone tejer algunas relaciones entre los actores que influencian las estructuras de poder y ejemplificar con estudio de caso de la campaña por la reforma de la seguridad social realizada por el gobierno federal brasileño y así demostrar la influencia del lenguaje persuasiva en la comunicación pública.

Palabras clave: Propaganda, Comunicación integrada, Política, Oligopolios, Poder .

Introdução

No mundo globalizado, integrado principalmente em decorrência do entrelaçamento das economias nacionais em arranjos comerciais internacionais, o poder das corporações tem se destacado como um dos principais influenciadores na definição de políticas públicas, o que interfere na vida de países e pessoas em escala global. Sua inter-relação com os Estados-nação tem forjado diretrizes planetárias de modo a valorizar a integração dos mercados produtores e consumidores.

Para o desenvolvimento deste artigo, num contexto marcado pela celeridade das relações sociais decorrentes da evolução tecnológica e pela conectividade global, tornou-se premente o desenvolvimento de pesquisas documentais para contextualizar os saberes derivados de autores como Adorno, Baudrillard, Ortiz, Souza, Warnier e Werthein de conceitos relacionados à antropologia, sociologia e comunicação; cotejados por Bresser-Pereira, Castells, Harari, Kotabe e Helsen, bem como Kotler e Nye, com estudos relacionados à economia, marketing, política e tecnologia; bases referenciais para a compreensão da dinâmica da propaganda contemporânea analisada, via estudo de caso, no contexto da reforma da previdência, a fim de apontar a relação entre interesses corporativos, diretrizes políticas e a tentativa de influenciar o comportamento social com a utilização de comunicação integrada via multiplataformas midiáticas.

O mundo ainda é politicamente fragmentado, mas os Estados estão perdendo sua autonomia rapidamente, sendo incapazes de executar políticas econômicas e sociais de modo independente ou de conduzir questões internas como julgar conveniente, pois estão cada vez mais abertos à influência dos mercados, à interferência de organismos multilaterais e empresas globais e à supervisão do público global e do sistema jurídico internacional (HARARI, 2015, p. 3635-3637).

Para David Rothkopf, diretor da revista Foreign Policy[1], o gigantismo das corporações e o seu enorme poder político subvertem as regras da democracia:

As duas mil principais empresas do mundo são maiores e controlam mais recursos que os menores países do mundo e seus governos nacionais. Em vez de um sistema internacional de Estados que se comunicam com outros Estados, temos hoje um sistema de Estados interagindo com atores privados que controlam recursos significativos e podem orientar e moldar os resultados da forma que lhes convém, atrasando a regulação dos mercados financeiros globais e pressionando por mais abertura de mercados, mesmo que isso cause problemas. (ROTHKOPF, 2012)

Kotabe e Helsen (2000, p. 72) indicavam esta tendência à concentração corporativa, a qual está em consonância com o levantamento da revista Forbes, no qual as duas mil maiores empresas do mundo em 2015 foram responsáveis por um faturamento total de U$ 39 trilhões , somaram lucros de U$ 3 trilhões e ativos valendo U$ 162 trilhões. Destas, 579 companhias estão nos Estados Unidos e 232 na China (SALOMÃO, 2016).

No ranking da mesma revista, sobre as maiores companhias globais de 2017, o grupo ICBC, instituição financeira chinesa, líder do ranking, tem um valor de mercado estimado em U$ 311 bilhões, com faturamento de U$ 165 bilhões, lucro de U$ 43 bilhões e ativos na casa dos U$ 4,2 trilhões (FORBES MAGAZINE, 2017). À guisa de comparação, o PIB aproximado dos EUA em 2016 foi de 18 trilhões de dólares, o da China 11 trilhões e o do Brasil 1,8 trilhões (IMF, 2016).

Quadro 1
Posição Corporação Setor Pais
1 ICBC Financeiro China
2 China Construction Bank Financeiro China
3 Berkshire Hathaway Financeiro EUA
4 JPMorgan Chase Financeiro EUA
5 Wells Fargo Financeiro EUA
6 Agricultural Bank of China Financeiro China
7 Bank of America Financeiro EUA
8 Bank of China Financeiro China
9 Apple Tecnologia EUA
10 Toyota Motor Automotivo Japão
Forbes Magazine Ranking (2017)

A proeminência das instituições bancárias dentre as maiores corporações do planeta em termos de faturamento indica a predominância do capital financeiro no funcionamento do sistema capitalista na contemporaneidade. Entretanto, são marcas que não reputam de um conhecimento amplo por parte da sociedade, pois, pela essência de seu próprio negócio, nem sempre focam seus negócios no consumidor final.

Quanto à concentração simbólica (brand awareness ou conhecimento de marca) refletida na lembrança das principais marcas globais, de acordo com a consultoria Interbrand, o destaque vai para, além da dominância dos Estados Unidos, a presença crescente de empresas de tecnologia, reforçando o conceito de Castells (1999) da mudança paradigmática da economia, que migra da valorização de energia para a valorização de conhecimento e tecnologia.

Quadro 2
Posição Corporação Setor Pais
1 Apple Tecnologia EUA
2 Google Tecnologia EUA
3 Microsoft Tecnologia EUA
4 Coca Cola Alimentício EUA
5 Amazon Tecnologia EUA
6 Samsung Tecnologia Coréia do Sul
7 Toyota Automotivo Japão
8 Facebook Tecnologia EUA
9 Mercedes-Benz Automotivo Alemanha
10 IBM Tecnologia EUA
Best Global Brands (2017)

A análise dos rankings apresentados anteriormente indica uma forte presença simbólica de marcas estabelecidas nos Estados Unidos, o que reforça a associação entre marca e nação e sua influência na percepção e escolha de produtos e serviços pelos consumidores (Kotabe; Helsen, 2000), bem como a predominância dos mercados financeiro e de tecnologia na construção de novos direcionamentos no processo de globalização, com conceitos e valores difundidos por meio do conjunto midiático que carrega as informações e o entretenimento em diferentes plataformas, utilizadas pela publicidade e propaganda, nas suas mais diversas roupagens, com o intuito de estimular o consumo (BAUDRILLARD, 2008).

Tecnocracia, informação e poder

A base do poder não é econômica, militar ou religiosa. Sua base é informacional e quem controla a informação tende a controlar o poder. Tal equação é fundamental na sociedade contemporânea, caracterizada por transformações técnicas, organizacionais e administrativas que têm como base os insumos baratos de informação decorrentes dos avanços tecnológicos na informática e nas telecomunicações (WERTHEIN, 2000). Para Castells (1999):

O que caracteriza a atual revolução tecnológica não é a centralidade de conhecimentos e informação, mas a aplicação desses conhecimentos e dessa informação para a geração de conhecimentos e de dispositivos de processamento/comunicação de informação, em um ciclo de realimentação cumulativo entre a inovação e seu uso. […] O que pensamos e como pensamos é expresso em bens e serviços, produção material e intelectual. (p. 69)

A pertinência do raciocínio do autor pode ser representada pelo crescimento exponencial das empresas de tecnologia, com sete das dez marcas globais provenientes da área de tecnologia (Quadro 2). Todas essas corporações têm investido pesadamente em big data e inteligência artificial como forma de melhorar a compreensão sobre comportamento de consumo e, consequentemente, otimizar a oferta de produtos e serviços a seus consumidores (FERNANDEZ, 2017).

Como exposto acima, enquanto o poder econômico concentra-se nas instituições financeiras, o poder simbólico (brand awareness) está centralizado nas corporações do ramo de tecnologia. Entretanto, cabe destacar que a construção de marcas está fortemente vinculada à comunicação promocional, difundida por grupos de mídia e entretenimento responsáveis pela propagação de informação e lazer em âmbito planetário.

Embora o poder corporativo seja proeminente na estrutura mundial contemporânea, é notória a concentração geoeconômica e geopolítica, refletidas de modo ainda mais nítido quando se considera a oligopolização midiática planetária. De acordo com o relatório da Zenith Optimedia, Top 30 Global Media Owners 2017, ranking que lista as maiores corporações de mídia do mundo:

Quadro 3
Posição Corporação Pais
1 Alphabet (Google) EUA
2 Facebook EUA
3 Comcast EUA
4 Baidu China
5 Walt Disney Company EUA
6 21st Century Fox EUA
7 CBS Corporation EUA
8 iHeartMedia Inc. EUA
9 Facebook EUA
10 Bertelsmann Alemanha
Zenith Media Ranking (2017).

Das dez maiores corporações de mídia, informação e entretenimento, oito estão baseadas nos EUA, o que explicita, de modo incontestável, a proeminência do domínio norte-americano na produção simbólica e o potencial agendamento de pautas de interesse para a reificação de valores de manutenção sistêmica dos conteúdos de informação e entretenimento (WARNIER, 2003, p. 79). Este poder de influenciar e persuadir por meio da cultura, das instituições e das ações no âmbito internacional é definido como soft power e, segundo Nye (2002), “o país que consegue legitimar seu poder aos olhos dos demais encontra menor resistência para obter o que deseja. Contando ele com uma cultura e uma ideologia atraentes, os outros se mostram mais dispostos a acompanhá-lo” (p. 39).

Indústria cultural global

O sistema capitalista, hegemônico neste século XXI, se encontra cada vez mais excludente, concentrando a renda numa elite global, enquanto a maior parcela da população mundial vive às suas margens, relegada à subsistência. Um estudo de 2015 da organização não governamental britânica Oxfam constatou que a riqueza acumulada pelo 1% (aproximadamente 70 milhões de pessoas) mais abastado da população mundial agora equivale, pela primeira vez, à riqueza dos 99% (cinco bilhões novecentos e trinta milhões de pessoas) restantes (REUBEN, 2016). Ou, numa exposição ainda mais dramática, as 67 pessoas mais ricas do mundo têm US$ 1,72 trilhão. Tanto dinheiro quanto os 3,5 bilhões mais pobres − metade de toda a humanidade! (PANDOLFI, 2017).

Evitar convulsões sociais num cenário tão assimétrico só é possível graças, principalmente, ao uso da indústria cultural, com ênfase nos meios de comunicação e entretenimento, que estabelecem padrões internacionais de comportamento e consumo que suportam esta estruturação global focada na confiança de funcionamento do sistema capitalista e que, a partir da Segunda Guerra Mundial, tem difundido valores liberais, principalmente na economia, numa rede de relacionamentos originária no Institute of Economic Affairs (IEA), fundado em 1955, em Londres, e que hoje tem no Atlas Network sua face mais conhecida.

Financiado por parte significativa do PIB planetário através de diversas fundações e institutos, o Atlas propaga um mundo livre, próspero e pacífico, onde o estado de direito, a propriedade privada e os mercados livres são a base de desenvolvimento planetário[2].

Esse pensamento liberal é refletido nas diretrizes macroeconômicas do Consenso de Washington (BRESSER-PEREIRA, 1990), com a defesa do livre mercado e a redução da ingerência do Estado na economia, num receituário propagado pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial, ambos sob controle das principais economias mundiais, nominadas como G7[3] (Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido) e que defendem diretrizes como disciplina fiscal; redução dos gastos públicos; reforma tributária; juros de mercado; câmbio de mercado; abertura comercial; eliminação de restrições ao investimento estrangeiro direto; privatização de empresas estatais; desregulamentação de leis econômicas e trabalhistas e direito à propriedade intelectual.

A globalização econômica foi forjada nestes preceitos que justificam e sustentam seu pleno funcionamento. E, para sua manutenção e continuidade, é relevante a confiança no sistema, cuja construção perpassa a propagação ideológica perpetrada pelo conjunto midiático e de entretenimento. Assim, ao sistema da indústria cultural cabe a apologia aos processos econômicos dominantes, atuando no âmbito da propagação cultural para a difusão de valores pertinentes à sua sustentação.

A maior parte dos produtos culturais, como filmes, programas de televisão, música, livros, revistas e jornais, além da posse de sistemas de transmissão por cabo ou satélite, está restrita a grandes empresas de comunicação, as quais “oligopolizam” o sistema midiático e limitam a multiplicidade de fontes de informação, o que seria fundamental para uma composição adequada da produção democrática da informação, que é solapada com tal concentração. Um exemplo desta concentração é os Estados Unidos, onde seis grandes corporações de mídia e entretenimento possuem 90% de participação no mercado: Comcast, The Walt Disney Company, 21st Century Fox, TimeWarner, Viacom e CBS (Media, 2016, p. 46).

Simulacros, media e corporações

O capitalismo organizado se expande da esfera de produção de bens materiais para a produção industrial de bens simbólicos, constituindo aquilo que Adorno havia chamado de indústria cultural: diversas formas de manutenção ou adequação de comportamentos sociais aos interesses dos oligopólios ou a representação ideológica de sustentação dos oligopólios através da comunicação de massa. (ADORNO apud COHN, 1986).

Quem controla a produção das ideias dominantes controla o mundo. Por conta disso também, as ideias dominantes são sempre produto das elites dominantes. É necessário, para quem domina e quer continuar dominando, se apropriar da produção de ideias para interpretar e justificar tudo o que acontece no mundo de acordo com seus interesses (SOUZA, 2018).

A indústria cultural é a aplicação da lógica capitalista da maximização do lucro à esfera dos bens simbólicos. Ou seja, além de ser a forma dominante de produzir mercadorias materiais, o capitalismo também passa a ser a forma dominante da produção de mercadorias simbólicas, como a informação e o conhecimento (SOUZA, 2018). E, no contexto contemporâneo, essa produção e seu posterior consumo suplantam as barreiras tradicionais dos Estados-nação e agem em escala planetária (ORTIZ, 1994).

A mídia se estabeleceu e se consolidou como uma das bases do funcionamento das democracias e coube à imprensa a atuação para zelar pelo bom funcionamento das instituições, denunciando a luta pelo poder político e suas relações perigosas com os atores que suportam a condução da política de Estado. Entretanto, a imprensa tem uma notória relação com grupos econômicos e financeiros que, com a globalização, atuam em escala planetária e definem os objetivos e estratégias de condução da civilização sob o beneplácito da mídia corporativa que reverbera seus preceitos.

Muito dessa influência corporativa ocorre pelo uso de poder econômico, com pressão sobre jornais feita com destinação (ou não) de verbas publicitárias e com lobby, com financiamentos de campanhas ou ações empresariais em áreas de interesse político, seja por conta de desenvolvimento econômico em “currais eleitorais”, seja pela difusão de apelos que se coadunam a emendas parlamentares ou projetos de lei. Esse tipo de relação amplia a percepção de que a imprensa e a política andam a reboque de interesses outros que não os da sociedade.

Um estudo de caso: reforma da Previdência no Brasil

Em 2016, as empresas públicas investiram R$ 1,07 bilhão em propaganda. E a administração direta (Planalto e ministérios) investiu outros R$ 432 milhões. Assim, o investimento público federal em comunicação publicitária atingiu R$ 1,439 bilhão, sem incluir os gastos com publicidade legal, patrocínios e os custos de produção (NETZEL; BARBIÉRI, 2017).

De acordo com pesquisa do Kantar Ibope Media sobre o ranking dos maiores anunciantes e agências do Brasil em 2016 (Blue Bus, 2017), o líder é a empresa do ramo farmacêutico Genomma, com investimentos de R$ 1,3 bilhão. Cruzando-se os dados destas referências, identifica-se o governo federal como o maior anunciante brasileiro quando considerado o conjunto de verbas publicitárias sob sua administração.

A Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom[4]) é responsável por coordenar a verba e a negociação da publicidade vinculada ao governo federal. A verba de comunicação publicitária de R$ 1,439 bilhão (2016) foi investida na seguinte proporção (Figura 1):

Verba do governo federal 2016.
Figura 1
Verba do governo federal 2016.
LEVIN & LEMOS (2017).

Como forma de se tornar uma marca-nação mais atraente ao capital internacional e assim prospectar investimentos, tornou-se premente ao governo federal do Brasil a subordinação às normas do Consenso de Washington e, dentre destas, a redução do déficit fiscal através, com destaque, da reforma previdenciária.

Assim, o governo federal investiu na campanha pela reforma da Previdência com o intuito de angariar apoio popular para influenciar os deputados federais e senadores quando esta for debatida no Congresso Nacional. Desde 2016, de acordo com dados disponibilizados pela Secom, o governo federal gastou R$ 103,6 milhões com agências de propaganda para formular campanhas sobre essa temática (CARNEIRO, 2018).

Anúncios foram veiculados em TV[5], rádio, jornal, revista e internet, inclusive em plataformas como Google, YouTube[6], Twitter e Facebook. Nos meios oficiais de comunicação do governo, como em perfis no Facebook, websites do Planalto e de ministérios, foram propagadas mensagens favoráveis à reforma. Também foram contatados influenciadores digitais (INFLUENCIADORES, 2018), sem a devida formalização, para desenvolver conteúdos favoráveis à reforma previdenciária, o que remeteu ao caso anterior em que o governo federal contratou youtubers (PORTINARI; SALDAÑA, 2017) para defender a reforma do ensino médio sem a identificação necessária em ações publicitárias deste tipo, o que gerou um questionamento sobre a conduta ética da administração no sentido de influenciar a opinião pública.

Tal falta de transparência é reforçada com a interrupção dos serviços do Instituto de Acompanhamento da Publicidade (IAP) em 2017. O órgão compilava todos os gastos com propaganda na esfera pública federal. Era custeado com o direcionamento de 1% do investimento em publicidade por parte das agências que atendiam as contas públicas (RODRIGUES, 2017).

Menos transparência tende a dificultar o acompanhamento dos investimentos governamentais em comunicação promocional e segue na contramão do que o marketing contemporâneo propõe: difusão de informações claras e fidedignas para a sociedade, como forma de reforçar a marca por meio de processos e investimentos que podem ser acompanhados por todos (accountability), mostrando a lisura e idoneidade da marca corporativa, que ganha respeitabilidade e credibilidade junto aos consumidores. (KOTLER, 2010).

Ações de relações públicas e assessoria de imprensa também foram realizadas na campanha pela reforma previdenciária. O presidente Michel Temer (MDB) protagonizou em programas televisivos, como Silvio Santos[7], Ratinho[8] e Amaury Jr.[9], em entrevistas variadas à imprensa, como para a rádio Bandeirantes[10], fez diversos discursos em cerimônias no Palácio do Planalto[11] e mesmo no Fórum Econômico Mundial, em Davos[12], sempre reiterando a importância da mudança constitucional que possibilitasse adequar as propostas reformistas defendidas pela sua gestão. Estratégia coerente de comunicação integrada para diminuir a rejeição popular à proposta governamental.

É importante destacar a assimetria na cessão de espaço editorial para o presidente defender propostas governamentais. Mesmo que tais ações de comunicação governamental pudessem ser enquadradas como publicidade institucional, conforme normativa da Secom, desde que fossem destacadas como ações publieditoriais − o que não ocorreu − não fica claro o interesse dessas empresas de mídia quanto à cessão de espaço com alto valor de mercado sem a contrapartida formal de inversão publicitária (LUPION, 2017).

Para uma difusão verdadeiramente diversificada da informação seria fundamental também expor a posição daqueles contrários às reformas governistas nesses veículos de comunicação, dando oportunidade ao conjunto da sociedade em construir uma percepção ampla e abrangente dos temas difundidos até então de modo unilateral e, consequentemente, tendencioso, com eminente falta de espírito democrático quanto à difusão da informação em concessões públicas.

Indiferente às críticas, e mesmo às ações na Justiça, o governo federal não se furtou em manter a campanha com os motes “contra privilégios, a favor de todos” e “sem reforma, o Brasil quebra”, enfatizando dados parciais para tentar convencer a população, num evidente esforço para fazer valer seu ponto de vista, como destacou, em dezembro de 2017, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, quando entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a suspensão da veiculação da propaganda do governo Temer em favor da reforma, questionando o uso de verba suplementar de R$ 99 milhões aprovada pelo Congresso em “campanha estratégica de convencimento público e que não explicita de maneira clara e transparente a totalidade dos dados pertinentes ao tema” (CARNEIRO, 2018).

Tecnicamente, a campanha de comunicação é eficiente e contemporânea, pois multiplataforma, transmídia e digital, com integração de ações de publicidade, de relações públicas e de assessoria de imprensa. Eticamente, é uma campanha questionável por possuir viés persuasivo, o que não se coaduna à comunicação oficial, que deveria ser eminentemente informativa e formalmente identificada como ação de comunicação governamental.

Relação de anúncios favoráveis à
reforma da Previdência.
Quadro 4
Relação de anúncios favoráveis à reforma da Previdência.
levantamento realizado pelo autor. [13][14][15] [16] [17] [18] [19][20]

No conjunto de ações da campanha pela reforma da Previdência houve uso intensivo de informações parciais, descontextualizadas, com valorização de elementos secundários para explicar o déficit governamental e a insinuação de culpabilidade do funcionalismo público enquanto causador do rombo nas contas do governo.

Publicidade persuasiva, desenvolvida para induzir o cidadão a ter uma atitude positiva perante a proposta governamental, como exposto acima, com variados exemplos de anúncios favoráveis à reforma da Previdência, realizados predominantemente por órgãos governamentais e reforçados por anúncios de entidades patronais e partidos políticos da base governamental. Somados à cobertura jornalística, que nos veículos tradicionais ganhou viés favorável à proposta governamental, chega-se a uma ideosfera midiática francamente favorável à realização das reformas.

Considerações Finais

O discurso promocional, com o intuito de estabelecer percepções positivas acerca de marcas ou ideias dos anunciantes, sejam corporações, organizações ou governos, transcende o uso tradicional da publicidade, eminentemente comercial, e foca intensivamente na propaganda, cujo discurso tem viés mais ideológico e superestrutural, presente em conteúdos variados que interferem na percepção social da realidade.

O uso de publicidade e propaganda como ferramenta de influência social por parte de movimentos organizados (Brexit); campanha política (Donald Trump) ou comunicação governamental (reforma da Previdência) demonstra a ampla gama de influência da comunicação promocional, que intermedeia o discurso entre publicidade e propaganda conforme os objetivos comunicacionais, possibilitando uma abordagem holística e integrada entre diferentes plataformas midiáticas.

A tecnologia potencializa a difusão de conteúdos direcionados a diferentes segmentos da sociedade de modo a amplificar a anuência às propostas defendidas pela publicidade e propaganda, a fim de tornar os discursos maleáveis a diferentes audiências, reiterando valores que permeiam os setores da sociedade e os levam a confluir à aceitação das mensagens promocionais de seus patrocinadores.

No estudo de caso apresentado sobre a reforma da Previdência, mesclam-se os interesses ideológicos e econômicos com a desregulamentação de leis previdenciárias e trabalhistas que tendem a reduzir o déficit público pelo aumento do tempo de contribuição por parte dos trabalhadores e pelo corte de direitos sob o pretexto de desburocratização fiscal para empresas de modo a se adequar ao ideário do Consenso de Washington e potencializar a atração de investimentos internacionais ao país, na esperança de que isto resulte em desenvolvimento para a nação.

O estudo também indica que não importa o segmento da sociedade, não importa o ramo de atividade e não importa a relação factual com a verdade. Cada vez mais, o que importa é difundir o discurso adequado às diferentes audiências para cativá-las e torná-las receptivas às proposições expostas por anunciantes, cada vez mais capacitados com o uso de algoritmos que caracterizam segmentos sociais e tornam o uso de big data e inteligência artificial os últimos fronts da persuasão humana.

É nítida a teia de relações entre predileções corporativas, governamentais e midiáticas quanto à sua sinergia para forjar uma percepção pública da realidade consonante a seus valores e interesses, de modo a potencializar o retorno de investimentos em termos de capital financeiro (empresas anunciantes e veículos de comunicação) ou políticos (governos); perpetuando, assim, o poder restrito a uma oligarquia global que representa uma ínfima parcela da sociedade, mas que a conduz de modo a eternizar o status quo em detrimento dos interesses majoritários e, ainda assim, conta com a sôfrega anuência destes que, embora excluídos, dão o suporte necessário à manutenção do sistema graças à incorporação dos valores simbólicos difundidos, dentre outras formas listadas neste artigo, pela publicidade e propaganda.

Referências

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Notas

[5] Disponível em http://bit.ly/2B9iiIw e http://bit.ly/2BaoakQ. Acesso em: 15 set. 2018.
[6] Disponível em https://bit.ly/2sC78rj. Acesso em: 15 set. 2018.
[7] Disponível em http://bit.ly/2MKmh2F. Acesso em: 15 set. 2018.
[8] Disponível em http://bit.ly/2GbtXdb. Acesso em: 15 set. 2018.
[9] Disponível em http://bit.ly/2BcpIe1. Acesso em: 15 set. 2018.
[10] Disponível em http://bit.ly/2RYDrzv. Acesso em: 15 set. 2018.
[11] Disponível em http://bit.ly/2RWgL2Z. Acesso em: 15 set. 2018.
[12] Disponível em http://bit.ly/2RtMLpU. Acesso em: 15 set. 2018.
[13] Disponível em https://bit.ly/2MgkzpS. Acesso em: 15 set. 2018.
[14] Disponível em https://bit.ly/2MaIsyQ. Acesso em: 15 set. 2018.
[15] Disponível em https://bit.ly/2TPgCL9. Acesso em: 15 set. 2018.
[16] Disponível em https://bit.ly/2Cl2rGB. Acesso em: 15 set. 2018.
[17] Disponível em https://bit.ly/2VU7eIc. Acesso em: 15 set. 2018.
[18] Disponível em https://glo.bo/2HbNZ9K. Acesso em: 15 set. 2018.
[19] Disponível em https://bit.ly/2CyoAS7. Acesso em: 15 set. 2018.
[20] Disponível em https://bit.ly/2FEAtbY. Acesso em: 15 set. 2018.
[1] https://fpgroup.foreignpolicy.com/
[2] Disponível em: http://bit.ly/2MHPLyn. Acesso em: 20 set. 2018.
[3] Disponível em: https://bit.ly/2rMSizd. Acesso em: 20 set. 2018.
[4] http://www.secom.gov.br/
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