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Recepção: 28 Março 2018
Aprovação: 01 Junho 2018
DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1984-5057.v10i2p70-78
Resumo: Este artigo discute o panorama contemporâneo, em que as tradições enraizadas diluem-se tanto do ponto de vista tecnológico quanto nas relações inter e intrapessoais e de consumo, a partir das obras de Bauman Modernidade líquida e Vidas para o consumo, analisando-as e relacionando-as à teoria do hiperconsumo de Gilles Lipovetsky. Para este estudo, utilizaram-se pesquisa bibliográfica e análise das obras contemporâneas japonesas da arte Muji, que vem quebrar o princípio do consumo líquido, acelerado e individualista, próprio dos tempos atuais.
Palavras-chave: Modernidade líquida, Hiperconsumo, Consumo, Arte Muji.
Abstract: This article discusses the contemporary panorama, in which rooted traditions are diluted both technologically and in interpersonal, intrapersonal and consumption relations, based on Bauman’s works Liquid modernity and Consuming life, which are analyzed and related to Gilles Lipovetsky’s theory of hyperconsumption. For this study, we used bibliographical research and analysis of contemporary Japanese works of Muji art, which breaks up the principle of liquid, accelerated and individualistic consumption, typical of these days.
Keywords: Liquid modernity, Hyperconsumerism, Consumption, Muji Art.
Resumen: En este artículo se discute el panorama contemporáneo, en que tradiciones arraigadas se diluyen tanto desde el punto de vista tecnológico como desde el punto de vista de las relaciones inter e intrapersonales y de consumo, desde las publicaciones Modernidad líquida y Vida de consumo, de Bauman, que se analizan y relacionan con la teoría del hiperconsumo de Gilles Lipovetsky. Para este estudio, utilizamos la investigación bibliográfica y el análisis de las obras japonesas contemporáneas del arte Muji, que rompe el principio de consumo líquido, acelerado e individualista, típico de estos días.
Palabras clave: Modernidad Líquida, Hiperconsumo, Consumo, Arte Muji.
INTRODUÇÃO
É possível que este seja um momento histórico marcado pelo crescimento da ansiedade e da angústia como sintomas das dificuldades da vida em sociedade, com seu decorrente sofrimento psíquico. Com o enfoque oportunizado pela metáfora da modernidade líquida, Bauman (2003) nos introduziu a um modo de vida que se opera mediante dois grandes edifícios: primeiramente, a possibilidade de finalmente, após séculos de silêncios dolorosos, vivenciar a presunçosa liberdade de ser quem se quiser ser, implicando suas demandas pessoais, sejam de ordem étnica, de gênero, de religião, de pensamento ou de comportamento, em um momento histórico que reforça a autonomia, a crítica, o direito e o questionamento; nesse contexto, resistência, luta e vigilância parecem ser termos recorrentes. Adesões, muitas vezes subsidiadas pelas tecnologias da comunicação, são cada vez mais capitaneadas entre os “comuns”, que não passam muitas vezes de adoráveis estranhos. Em segundo lugar, os limites dessa tal liberdade impostos aos sujeitos – tripulantes e cambiantes –, cujos processos identitários os conduzem a uma pretensa individualidade, liberdade e autonomia. O que decidir então? Há escolhas?
Nesse cenário de ambivalências, seguimos intrépidos homens e mulheres em busca, sempre em busca. Neste afã que reside entre o que se é em suas identidades descolantes, mediante um modelo geral hegemônico, vêm erigir outra temática que se apresenta de forma incisiva: o hiperconsumo que vai se configurando como elemento que delineia um caminhar causticante pelos vieses do consumo em altas potências, também revelador deste novo tempo, além do destaque aos processos de renovação constante dos produtos, agora marcada, contudo, pela variedade e pela personalização ao invés da padronização – produtos cujas faces se apresentam como possibilidades factíveis de identificação com quem os consome.
Diante dessas antinomias, alvitramo-nos atravessar esse período proposto pelos autores em busca de reflexões acerca de paradoxos, nexos, encaixes e desencaixes que possam dar conta de temas que não podem passar sem nosso olhar crítico.
TEMPOS DE MODERNDADE LÍQUIDA
Pode a mente humana dominar o que a mente humana
criou?
Fonte: Paul Valéry
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925 -2017) – que teve uma vida marcada por constantes mudanças e conflitos quanto a sua cidadania, questões estas bastante discutidas em sua obra Identidade (2005) – deu início a sua carreira na Universidade de Varsóvia; publicou diversas obras, que somam mais de quarenta livros, entre os quais está Modernidade líquida, uma das obras escolhidas para este artigo.
Modernidade líquida, livro lançado em 2001, traz o conceito de “liquidez” numa metáfora alusiva aos nossos dias. Assim como os líquidos, movediços, escorregadios, o mundo atual também não se mantém uniformizado, estático, sólido, isto é, “derreter os sólidos significa quebrar tradições, responsabilidades e instituições, ou seja, quebrar grilhões e algemas que limitam a liberdade individual de escolher e agir” (BAUMAN, 2003, p. 13).
As cinco características desse mundo globalizado elencadas por Bauman seriam: a individualidade, o tempo e espaço, o trabalho e a comunidade. Nelas estão contidos os conceitos de liberdade, no sentido de um agir sem regras, conforme desejos e pensamentos, sem normas pré-estabelecidas por líderes impostos, e de emancipação, impossibilitada pela insatisfação, pela fluidez e pelas mudanças rápidas. Bauman (Ibidem) sugere que a modernidade traz uma infindável gama de realizações, oportunidades e desejos. Nesse sentido, a emancipação e a individualidade devem contribuir para a construção de uma nova cidadania, na qual os sujeitos possam dialogar com seus pares e o meio circundante, interagindo constantemente e em redes sociais; à frente de seu tempo. Contudo, para Bauman (Ibidem, p. 35), “ser moderno significa estar sempre à frente de si mesmo, num estado de constante transgressão”.
Paralelamente, o autor (Ibidem) afirma que liberdade deveria envolver responsabilidades que a “massa”, ou o coletivo, não quer assumir. Para isso, retorna a Marcuse, em Eros e civilização (1999), e a Durkheim (1975), em cujas bases de discurso os sujeitos livres são comparados a bichos sem freios e sem limites, visto não terem compromissos sociais. Daí estarmos numa sociedade tipicamente “de direitos” e não de justiça.
Outro aspecto bastante discutido na obra de Bauman (2003) é estarmos situados num mundo capitalista e exigente, onde o consumo é palavra de ordem. Nesse sentido, o tempo e o espaço confundem-se com lugares de ninguém, dos quais todos podem usufruir sem compromisso direto uns com os outros.
Com base em Lévi-Strauss, Bauman (Ibidem) reforça a ideia de duas reações em relação ao outro. Uma seria a “antropoêmica”, ou a recusa em reconhecer os estranhos; e a outra, a “antropofágica”, que sugere canibalismo ou destruição daquilo que pode ser uma ameaça à segurança, ao conforto ou à comodidade.
Sobre trabalho, a ideia do autor (Ibidem) é de que a capacidade de produzir e gerar capital sustenta a autoconfiança; no entanto, com a fluidez e os poucos espaços no mercado produtivo, ninguém se sente amparado ou seguro, gerando alta competitividade e luta constante pela sobrevivência, assim como exploração da mão de obra. Não há segurança, não há apoio nas instituições. Os sujeitos encontram-se cada vez mais isolados, competitivos e fragilizados em suas relações.
O PRINCÍPIO DO PRAZER: HIPERCONSUMO
O consumo passou por várias fases que influenciaram mudanças, tanto na indústria quanto na sociedade em geral, na relação indivíduo-sociedade e, além disso, nas perspectivas de realização e felicidade dos consumidores. A partir dos anos 1970 e até a atualidade, percebemos um novo modelo de consumo, o hiperconsumo, descrito pelo filósofo Gilles Lipovetsky no livro A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo (2007) e abordado em outras perspectivas na obra Cultura-mundo (2011), em parceria com Jean Serroy. Para entender como se dá essa forma de consumo, é necessário entender os momentos do capitalismo de consumo, que o autor divide em três fases.
O primeiro momento, denominado fase I, inicia-se em 1880 e segue até a Segunda Guerra Mundial. Baseando-se na introdução dos mercados de massa, entra em voga a produção em larga escala devido às novas infraestruturas de transporte e de comunicação, tais como os caminhos-de-ferro e o telefone, que permitiram a elevação da produtividade e custos mais baixos. Nesta fase, a publicidade começa a exercer seu papel no processo de fortalecimento da marca, juntamente com a invenção do marketing de massa. Surgem os grandes magazines, ou lojas de departamento, como um local de venda necessário para essa nova forma de produção, as quais integraram motivação de consumo – através de táticas de decoração e de publicidade – com preços baixos, alta rotatividade de estoque, inovações tecnológicas e de venda. Salienta-se a vinculação feita entre consumo e lazer, ou seja, “a fase I inventou o consumo-sedução, o consumo-distração de que somos os fiéis herdeiros” (LIPOVETSKY, 2007, p. 28).
A fase II começa por volta dos anos 1950, seguindo até 1970. Esta fase foi a consolidação do crescimento que se iniciou na fase I e corresponde à “sociedade da abundância”, pois é o modelo puro do consumo em massa, no qual há maior democratização da compra devido à difusão do crédito e do modelo tayloriano-fordiano de organização de produção. A padronização se torna mais especializada e há uma elevação dos volumes de produção em que os produtos têm sua vida útil reduzida a fim de promover a renovação rápida destes, acelerando a “obsolescência programada”. Neste momento, surgem os shoppings centers, supermercados e hipermercados, criando uma vinculação entre consumo e um estilo de vida regido por valores materialistas e hedonistas, privilegiando o lazer, a vida cotidiana confortável e a busca pela felicidade (Ibidem).
O último momento, denominado fase III, inicia-se nos anos 1970 e perdura até a atualidade, correspondendo à era do hiperconsumo, no qual a renovação constante dos produtos é mais acentuada, porém agora marcada pela variedade e pela personalização ao invés da padronização. Este momento coincidiu com as diversas modificações dos consumidores e da sociedade, atualmente imersa na globalização em função das tecnologias da informação que possibilitaram o acesso fácil ao conhecimento e às novidades (Ibidem).
O universo do hiperconsumo é o cerne dessa pesquisa levantada pelo autor, pois revolucionou o consumo de diversos grupos e camadas sociais e os desejos de compra. Se em outro momento as motivações de consumo eram baseadas na diferenciação social, neste momento o que prevalece é a motivação individualista e hedonista e, sobretudo, o valor experiencial da compra. O gosto pela mudança e o desejo da moda além da indumentária se difunde universalmente; o consumo hedonista alcança as camadas populares e os mais jovens; o supérfluo, a moda e as férias se tornam aspirações coletivas condizentes com indivíduos totalmente centrados no seu bem-estar, ou seja, “a verdade é que existe uma ligação íntima, estrutural, entre hiperconsumo e hedonismo: esta ligação consiste precisamente no facto de a mudança e a novidade se terem tornado o princípio generalizado da economia material enquanto economia psíquica” (Ibidem, p. 57).
O consumo baseado no bem-estar e na busca da felicidade individual é o objetivo do hiperconsumo. Os indivíduos agora passam a se centrar mais em si próprios, seja na busca de sensações íntimas, como o equilíbrio, a harmonia interior e o crescimento subjetivo através de novas espiritualidades e manuais que prometem felicidade e sabedoria, seja na busca de experiências emocionais na autenticidade das marcas ou no consumo paliativo (Ibidem).
Por outro lado, essa sacralização do consumo e do bem-estar possui sua faceta paradoxal. Como o próprio autor enfatiza, consumimos mais quando nos sentimos carentes, e o consumo é uma forma de compensar a falta de amor, de laços sociais ou de reconhecimento, ou uma espécie de fuga da realidade individual. A própria lógica da sociedade de consumo, que promete satisfazer os desejos e prazeres humanos, só se mantém sedutora com a insatisfação do cliente ou do desejo. Essa sociedade se compara muito com um sistema de necessidades em que se promete prazer a partir do ter, disseminando que a felicidade está ao alcance de todos – o que acarreta, paradoxalmente, cada vez mais frustração, carência e decepção. Ou seja, “a sociedade de hiperconsumo é contemporânea da espiral da ansiedade, das depressões, das carências ao nível do amor próprio, da dificuldade de viver” (Ibidem, p. 127).
Por fim, entende-se que o hiperconsumo, por um lado, atende necessidades e garante conforto, diversão, experiência e prazer; mas, por outro, pode sinalizar desconforto psíquico, insatisfação e frustração, uma vez que a efemeridade e o descarte precoce das mercadorias criam uma falsa ideia de satisfação/felicidade. Vale salientar que, para o autor, não é o consumo em si que deve ser acusado, mas sim seus exageros e seu imperialismo, que afetam muitas vezes as potencialidades e a natureza humana – ou seja, essa sociedade deve ser estruturada e reequilibrada. Logo, “para se experimentar o prazer, não são necessárias coisas ou seres de qualidades excepcionais” (LIPOVETSKY, 2007, p. 159).
O CONSUMO EM BAUMAN: PESSOAS E MERCADORIAS
Numa sociedade de consumidores, tornar-se uma mercadoria desejável e desejada é a matéria de que são feitos os sonhos e os contos de fadas. (BAUMAN, 2008, p. 22)
Para Bauman (2008), o termo “sociedade de consumidores” se refere aos encontros e interações dos potenciais consumidores com os potenciais objetos de consumo, uma vez que o mundo formado e sustentado pela sociedade de consumidores fica claramente dividido entre as coisas a serem escolhidas e os que as escolhem, as mercadorias e seus consumidores: as coisas a serem consumidas e os seres humanos que as consomem (Ibidem). Para o filósofo:
Num mundo em que uma novidade tentadora corre atrás da outra a uma velocidade de tirar o fôlego, num mundo de incessantes novos começos, viajar esperançoso parece mais seguro e muito mais encantador do que a perspectiva da chegada: a alegria está toda nas compras, enquanto a aquisição em si, com a perspectiva de ficar sobrecarregado com seus efeitos diretos e colaterais possivelmente incômodos e inconvenientes, apresenta uma alta probabilidade de frustração, dor e remorso. (Ibidem, p. 28)
Consumir sempre foi uma atividade do ser humano, que em sua evolução aprendeu a plantar, armazenar, trocar, consumir; no entanto, a modernidade caracteriza-se por um consumo desenfreado, enlouquecido pelo desejo e pelo prazer imediatos. Há a revolução consumista quando vemos a passagem do consumo ao consumismo, na qual o consumo se torna essencial na vida das pessoas, como um propósito de existência, de modo que querer, desejar e experimentar emoções passa a sustentar a economia, como já dizia Colin Campbell (2001). Ou seja, o consumismo é um atributo da sociedade, enquanto o consumo é uma característica e uma ocupação dos seres humanos.
A fase da modernidade sólida é aquela em que produzir e consumir tinham funções correlatas. Tudo deveria ter materialidade duradoura, permanente, com solidez e segurança, protegida da depreciação, numa sociedade denominada por Bauman (2008) de “a sociedade de produtores”.
Diferentemente dessa sociedade, na sociedade de consumidores o consumismo “associa a felicidade não tanto à satisfação de necessidades (como suas ‘versões oficiais’ tendem a deixar implícito), mas a um volume e uma intensidade de desejos sempre crescentes, o que por sua vez implica o uso imediato e a rápida substituição dos objetos destinados a satisfazê-la” (Ibidem, p. 44, grifos do autor).
Isso implica o surgimento de uma crescente instabilidade dos desejos, de uma insaciabilidade das necessidades, de um consumo instantâneo e consequentemente da substituição dos produtos e mercadorias de forma rápida e fluida, caracterizando uma sociedade líquida, inóspita ao planejamento, ao investimento e ao armazenamento de longo prazo (Ibidem).
Contudo, para Bauman, consumir não traz nenhum prazer por si só; tudo é muito momentâneo e, ao se adquirir um produto, não há saciedade. O desejo por outro novo continua movimentando a produção e a criação de novas mercadorias, cada vez mais frágeis, ou seja, “estimula emoções consumistas e não cultiva a razão” (Ibidem, p. 65). Nesse sentido, “a maior atração de uma vida de compras é a oferta abundante de novos começos e ressurreições (chances de ‘renascer’)” (Ibidem, p. 66).
Consumir novos produtos aumenta a sede de apresentar-se como detentor de poder, daí a publicidade mover-se na sedução, na conquista de novos consumidores. “Quanto maior a demanda de consumo (ou seja, quanto mais eficaz for a sedução de potenciais clientes), mais segura e próspera será a sociedade de consumo” (Ibidem, p. 164), e sua transmissão deve seguir em todas direções e a todos que se disponham a ser seduzidos.
Nessa sociedade, o consumo excessivo simboliza sucesso, alimenta-se do aplauso público e da fama, fortalecendo cada vez mais a ideia de que “possuir e consumir certos objetos e praticar determinados estilos de vida são a condição necessária para a felicidade” (Ibidem, p. 165).
TENSIONANDO O CONSUMO LÍQUIDO
A
vida no presente sobrepôs-se às expectativas do futuro histórico, e o
hedonismo,
às militâncias políticas; a febre do conforto ocupou o lugar das
paixões
nacionalistas e os lazeres substituíram a revolução.
Fonte: Gilles Lipovetsky
Na modernidade, apontada pelos autores, o consumidor entra em conflito pela amplitude das escolhas que estão disponíveis ao seu redor. A angústia da tomada de decisão correta frente às diversas alternativas, a responsabilidade do indivíduo livre pela sua decisão e o risco assumido fazem o processo do consumo cíclico e interminável.
A identidade do ser é aquela em que o indivíduo tenta solidificar o fluido, ou seja, é marcada quando se compartilham as mesmas coisas, como se ele fosse uma marca, na busca pelo eterno e pelo imutável. A identidade é única e individual e somente pode ser consolidada quando se adquire o objeto que todo mundo compra. Mudar de identidade implica em quebrar com os antigos preceitos, trata-se de uma iniciativa privada e individualizada; porém implica assumir riscos e romper determinados vínculos e obrigações.
Na contramão desse pensamento, a exposição na Japan House, entre os dias 20 e 28 de setembro de 2017, na cidade de São Paulo, possibilitou conhecer um pouco da Ryohin Keikaku Co., Ltd. (株式会社 良品 計画), ou Muji (無印良品 Mujirushi Ryōhin), que é uma empresa de varejo japonesa de bens domésticos e de consumo.
Segundo os patrocinadores do evento e da publicidade, a Muji se distingue pelo seu minimalismo de design, pela ênfase na reciclagem, pela evitação de resíduos na produção de embalagens e pela política de não-logotipo, ou “sem marca”. O nome Muji é derivado da primeira parte de Mujirushi Ryōhin, traduzido como “no brand quality goods” no site europeu da companhia.
A Figura 1 demonstra uma casa projetada a partir dos produtos fabricados e comercializados pela empresa japonesa Muji, que variam entre produtos simples, como canetas, blocos de papel, enfeites e bibelôs, até móveis, objetos de construção, de arquitetura e outros.

Se, na sociedade dos consumidores individualizados, tudo precisa ser feito por conta própria, a ironia reside no fato de que ir às compras é um ato que encerra em si próprio a atividade individualizada de comprar.
Adquirir um produto Muji é estar contra a regra, é quebrar esses conceitos e se tornar realmente um sujeito que não adere às marcas do tempo. Não há assinatura, não há marca, não há o compromisso com a efemeridade. Os produtos são feitos para durar. Tal pensamento pode consistir em mudança de comportamento social, começando pela simplicidade, sem perder a força do design – com uso responsável dos produtos naturais, que estão em risco de extinção, segundo a visão da ecologia responsável, das relações duráveis e de uma consciência cidadã ou, conforme as palavras de Mahatma Gandhi[1], porque “devemos de nos tornar na mudança que queremos ver”.
Muji é certamente um exemplo de tensionamento das características essenciais do consumo na sociedade líquida, pautada pela aceleração, pela volatilidade e pela efemeridade. No entanto, ainda que não queiram seus criadores, a Muji já se transformou em marca, pois é signo de todos os valores que comunica, ou seja, da durabilidade, do design sofisticado aliado à simplicidade, à sustentabilidade e ao compromisso social. A Muji é parte da sociedade líquida surgida no contexto do capitalismo ocidental e, por isso, não pode fugir totalmente às suas lógicas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar das diferenças de formação, trajetória acadêmica e de paradigmas, Bauman e Lipovetsky se encontram nas reflexões acerca do lugar ocupado pelo consumo na sociedade atual. Mais pessimista, devido à sua filiação marxista, Bauman vê poucos caminhos iluminados para os cidadãos consumidores que são assolados pela publicidade, de modo que estes sucumbem a efemeridade das práticas de consumo, reforçando individualismos. Tudo está posto à venda, inclusive as pessoas, o que é fundamento da sua obra Vida para o consumo (2008). Já Lipovetsky, filósofo francês, é crítico em várias das suas reflexões e, de forma mais enfática, quando cria o conceito do turbo-consumidor (LIPOVETSKY; SERROY, 2011). No entanto, amplia suas discussões no sentido de entender a centralidade do consumo hoje, que não se confunde com o consumismo, ou seja, o exagero e a exacerbação das práticas sobre todas as demais possibilidades de estar no mundo.
Assim, mais do que apenas demonizar o consumo, os autores propõem pensá-lo, e foi neste sentido que apresentamos as reflexões sobre a Muji, empresa japonesa que agora também está presente no Brasil e busca construir uma relação de consumo mais interessante, na medida em que está pautada em valores como sustentabilidade, durabilidade, respeito às relações e preço justo. Com essas práticas, a Muji tensiona as bases do consumo atual, apresentando-se como uma alternativa engajada e construtora de coincidência, identidade e cidadania, mesmo no consumo.
Desse modo, saímos do discurso midiático, que apenas critica o consumo, para adentrarmos nas reflexões mais consequentes que, a partir da centralidade inevitável do consumo nos países capitalistas, circunscreve as reflexões e as práticas comprometidas com estar no mundo de um modo melhor.
Referências
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
______. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
______. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
CAMPBELL, C. A ética romântica e o espirito do consumismo moderno. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
DURKHEIM, É. A ciência social e a ação. São Paulo: Difel, 1975.
LIPOVETSKY, G. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo. Lisboa: Edições 70, 2007.
LIPOVETSKY, G.; SERROY, J. Cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
MARCUSE, H. Eros e civilização. Rio de Janeiro: LTC. 1999.
Notas