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Produção e consumo digital e o Museu de Favela: ampliando as vozes da periferia
Production and consumption and the Museu de Favela: increasing voices of dodgy areas
Producción y consumo digital y el Museu de Favela: ampliando las voces de la periferia
Signos do Consumo, vol. 10, núm. 2, pp. 110-114, 2018
Universidade de São Paulo

Resenha


Recepción: 01 Mayo 2018

Aprobación: 04 Junio 2018

DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1984-5057.v10i2p110-114

Resumo: O livro Antropologia Digital e Experiências Virtuais do Museu de Favela relata a experiência da ampliação da comunicação digital do Museu de Favela, que tem como patrimônio as memórias coletivas das comunidades do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho, situadas na zona sul do Rio de Janeiro. A autora analisa os hábitos de consumo das mídias sociais pelos moradores e destaca como elas expressam sentidos culturais locais: a solidariedade, a espiritualidade, a reivindicação política e o humor são identificados tanto no mundo off-line como no ambiente digital.

Palavras-chave: Antropologia digital, Comunidades, Mídias sociais, Favela.

Abstract: The book Antropologia Digital e Experiências Virtuais do Museu de Favela describes the experience of increasing the digital communications at Museu de Favela, which has as its heritage the collective memories from Cantagalo, Pavão, and Pavãozinho, slums located in the south zone of Rio de Janeiro. The author analyzes the dweller’s social media habits and highlights the way these media express local cultural meanings. Solidarity, spirituality, political claims and humor are identified both online and offline.

Keywords: Digital anthropology, Communities, Social media, Favela.

Resumen: El libro Antropologia Digital e Experiências Virtuais do Museu de Favela relata la experiencia de la ampliación de la comunicación digital del Museo de Favela, que tiene como patrimonio las memorias colectivas de las comunidades del Cantagalo, Pavão y Pavãozinho, situadas en la zona sur del Río de Janeiro. La autora analiza los hábitos de consumo de los medios sociales por los habitantes y destaca cómo estos medios expresan sentidos culturales locales: la solidaridad, la espiritualidad, la reivindicación política y el humor se identifican tanto en el mundo offline como en el ambiente digital.

Palabras clave: Antropología digital, Comunidades, Medios sociales, Favela.

Como bem pontuado no prefácio de Antropologia digital e experiências virtuais do Museu de Favela, realizado por Daniel Miller, fundador do Programa de Antropologia Digital da University College London (UCL), esse livro é uma forma de imaginar a favela do Rio de Janeiro mediante os usos sociais que seus moradores fazem das plataformas digitais. Nele, a autora Mônica Machado, que cursou o pós-doutorado no mesmo programa na UCL e é professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), relata sua vivência e as decorrências dos quase cinco anos de trabalho em parceria com o Museu de Favela, situado na região do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho, comunidades situadas na zona sul do Rio de Janeiro.

A obra se insere ideologicamente no campo da antropologia digital de tradição inglesa. O que, em linhas gerais, significa dizer que seu estudo compreende o digital como uma experiência sociocultural e considera as sociabilidades digitais fenômenos tão autênticos como os demais campos de mediação anteriores, revelando vínculos entre as relações socioculturais locais e os usos das mídias digitais.

Machado conduziu o desenvolvimento das propostas de comunicação digital do Museu de Favela em parceria com o Laboratório Universitário de Publicidade Aplicada (Lupa) da UFRJ, núcleo de extensão também coordenado pela autora. Em síntese, o livro documenta essa experiência da ampliação da comunicação digital do Museu de Favela e analisa os hábitos de uso das mídias sociais pelos moradores. Os relatos estão em constante diálogo com conceitos-chave dos campos da antropologia, sociologia e estudos digitais. A perspectiva teórica adotada seguiu como referência os estudos sobre a cultura material em Douglas e Isherwood (2004) e Miller (2010) e as bases teóricas da antropologia digital articuladas em obras de Daniel Miller em parcerias com Heather Horst (HORST; MILLER, 2012), Mirca Madianou (MADIANOU; MILLER, 2012) e Jolynna Sinanan (MILLER; SINANAN, 2014).

Com relação à organização do livro, no capítulo inicial a autora delineia os marcos conceituais da antropologia digital associados ao tema da cultura material e da museologia social; na sequência, é feita uma contextualização do crescimento digital nas favelas do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho; no terceiro capítulo, é feita uma análise da experiência de desenvolvimento das plataformas digitais no Museu de Favela. Nos quatro capítulos que seguem, a autora pontua as chaves-conceituais das marcas de retenção no contexto da favela: a sociabilidade, a narrativa política, a religiosidade e a linguagem do humor. Em seguida, Machado trata da adesão das plataformas digitais associando-a com conceitos de polymedia (escolhas de uso da tecnologia no contexto da favela) e media literacy (conteúdos aprendidos e produzidos nas mídias pelos usuários).

Segundo Machado (2017), as novas tecnologias digitais chegaram às periferias em um momento de ebulição criativa, quando seus moradores apresentam cada vez mais reinvindicações por direitos sociais. Momento que converge também com a inclusão das classes mais populares ao mundo do consumo de celulares, smartphones e computadores, decorrente de uma política governamental de ampliação de crédito. Nesse contexto está situado o Museu de Favela, fundado em 2008 por líderes culturais do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho, que assumiu papel estratégico na reafirmação dos valores locais na comunidade.

A missão do Museu de Favela se enquadra na proposta da museologia social de impulsionar o empoderamento das vozes periféricas. Na contramão das formas hegemônicas de seleção de patrimônio, o Museu de Favela tem seu circuito a céu aberto, no qual é possível percorrer casas de moradores grafitadas como registros visuais de memórias coletivas locais, as chamadas casas-tela. O Museu de Favela valoriza a história oral dos moradores e a arte do grafite como forma de expressão. Nesse contexto, um dos objetivos da autora era propor soluções digitais que replicassem no mundo on-line o mesmo processo de registro cultural que acontece com o uso dos grafites nas casas-tela.

Ao analisar a importância do Circuito das Casas-Tela, onde os principais valores culturais da comunidade podem ser vistos nos grafites, a autora se aproxima do que afirmam Douglas e Isherwood (2004): os bens produzem significados públicos e conhecimento sobre o universo social. Machado (2017) afirma, então, que a arte do grafite enquanto representação iconográfica pode ser entendida como uma forma de resgatar a memória coletiva. Seguindo o que Miller (2010) sugere sobre a cultura dos objetos – vistos como “reveladores culturais” –, a arte de rua nesse caso representa a voz da favela, ao revelar em seus grafites o senso de espiritualidade, a devoção aos santos, a cultura do futebol, o samba, os relatos dos imigrantes e os conflitos sociais.

De acordo com Machado (2017), memórias pessoais, culturais e coletivas são os principais capitais do Museu de Favela, e sua documentação digital assume um importante papel político de ampliar os diálogos entre a favela e os demais espaços da cidade. O trabalho de campo da autora nas comunidades foi desenvolvido entre os anos de 2012 e 2016. Através da parceria com o Lupa, iniciada em 2013, foram criados para o Museu o novo site institucional, as quatro edições da revista digital e o tour virtual do Circuito de Casas-Tela[1]. Além disso, também foram feitas contribuições para gestão das páginas do Facebook, Twitter e Instagram.

A revista digital foi pensada para atender à função institucional de gerar visibilidade do Museu para possíveis parceiros, e o processo produtivo da revista foi executado de forma colaborativa, compartilhando técnicas com os responsáveis pelo Museu, para garantir a autonomia do seu gerenciamento futuro. A fanpage no Facebook, rede social com maior relevância no local, é uma plataforma que estreita os vínculos sociais e abre espaço para os fóruns comunitários da população local e também para atores externos. Além disso, a página também pode ser entendida como uma ferramenta de estímulo à manutenção da história coletiva das comunidades, pois reúne memórias por meio das postagens. Ao detalhar o percurso de criação do tour virtual do Circuito de Casas-Tela, a autora ressalta que as diretrizes conceituais diferem da ideia do turismo de favela, pois nesse último caso geralmente as agências não possuem vínculos com a comunidade. No caso do turismo do Museu de Favela, de orientação singular, a ideia digital busca reafirmar o turismo como uma alternativa sociocultural e ampliá-lo para fortalecer a gestão participativa dos negócios criativos locais.

Todo o desenvolvimento das propostas de comunicação digital do Museu foi norteado pela experiência vivida nas comunidades e por pesquisas sobre os usos das novas mídias nas favelas. A análise do modo navegação on-line no Cantagalo, Pavão e Pavãozinho se deu por meio da participação observante com visitas constantes à sede do Museu e da interação com seus representantes locais, além de entrevistas e conversas com moradores. De acordo com a autora, essa metodologia etnográfica seguiu a perspectiva de Geertz (1989), partindo da microanálise das narrativas discursivas para questões que se traduzem como visões mais globais. Um breve estudo quantitativo foi produzido em 2013. Em 2014 foi realizado um survey com quatrocentas entrevistas, o que permitiu expandir o repertório de informações sobre preferências de plataformas digitais, hábitos de uso de mídia, tempo de dedicação e escolha de conteúdo. Paralelamente, a análise dos dados levantados enfatizou a interpretação qualitativa a partir de depoimentos, diários de campo, conversas com moradores das comunidades e referências locais.

No livro estão documentados os resultados dessa pesquisa, detalhando condições de acesso à internet, modos de uso e outras informações relativas à rotina dos moradores. Também se produziu um mapa da favela por meio da análise das divisões territoriais declaradas pelos moradores nas entrevistas. O que Machado (2017) evidencia, a partir da análise dos resultados, é que fazem parte do cotidiano das favelas do Rio de Janeiro uma forte noção de sociabilidade, os sentimentos de partilha de temas religiosos, uma prática cultural voltada para o humor e um estilo de vida despojado, e esses mesmos temas são compartilhados nas redes sociais.

Com relação às razões de escolha de plataformas digitais, a autora faz reflexões ancorada no conceito de polymedia, proposto por Madianou e Miller (2012). Além de auxiliar o grupo de trabalho a identificar caminhos da ativação digital do Museu de Favela, o estudo do polymedia mapeou as motivações digitais para o uso de dada ferramenta e também observou os “aprendizados digitais”, ou media literacy. Machado (2017) afirma que no contexto da favela, o Facebook é uma plataforma usada para salientar o sentido de pertencimento, alargando os horizontes do contradiscurso e valorizando a visão da favela como lugar de criatividade e riqueza cultural. O Instagram é visto como espaço para estocar fotos que sublinham a beleza das comunidades pobres do Rio de Janeiro, a beleza das cores, da música, da arte e das danças e dos projetos sociais. Além de ampliar o mapa de imagens da favela, também cumpre um importante papel compartilhando memórias autobiográficas, histórias de vida e lembranças. Já o WhatsApp e o Messenger do Facebook são usados, de modo mais privado, para estreitar laços de sociabilidade entre pares, membros da família e amigos próximos, salientando os laços afetivos de famílias que vivem separadas, estendendo a comunicação entre amigos próximos. Essas seriam as principais observações das preferências de uso de ferramenta, levantadas no último capítulo do livro.

Ao observar as correlações entre o mundo off-line e o on-line, a autora encontra em Miller e Sinanan (2014) a proposta da theory of attainment, entendida como “marcas de retenção” que evidenciam na expressão digital dos usuários traços culturais precedentes, sem deixar de considerar a formação de novos sentidos. Machado (2017), então, revela quais seriam essas marcas de attainment no uso digital no contexto das comunidades do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho.

A primeira marca de retenção avaliada é a solidariedade. Os dados de experiência virtual levantados pela pesquisa reafirmam que o processo de organização da vida social na favela pressupõe vínculos de solidariedade mútua, o que é revelado pelo compartilhamento da cultura comunitária através de várias mensagens, imagens e fotos nos conteúdos digitais. Machado (2017) afirma que a cultura da favela diverge da tendência contemporânea do narcisismo: nota-se uma forte cultura do colaborativismo, que pode ser mobilizada pela carência de recursos. A cultura participativa e o espírito comunitário se apresentam como traços culturais também no mundo on-line, tanto como forma de proteção, por meio de mensagens de alerta, quanto como experiência social local, para encurtar distâncias e estreitar vínculos com outras pessoas.

O mesmo princípio também é observado na expressão da religiosidade nas redes sociais, segunda marca de retenção observada pela autora. A linha de expressão da religiosidade no Brasil é singular, não obedecendo uma forma estruturada de lidar com a fé por meio de uma seita específica, mas sim reafirmando laços de solidariedade e relacionamento social. A narrativa digital da favela é repleta de mensagens que marcam o espírito solidário dos residentes: santos, orixás e guias espirituais são evocados para expandir proteção, assistência, e trazer confortos para a fome, pobreza e violência.

Há também a marca de retenção relacionada ao contexto político e à valorização da cidadania dos moradores locais. A mídia social irradia as vozes culturais locais, seja por meio dos coletivos feministas, debates sobre saúde e segurança ou outras causas comunitárias. Muitas vezes, o ambiente digital abriga o contradiscurso às visões oficiais da mídia de massa, que tende a evidenciar os morros cariocas quando o tema é violência e marginalidade. Facebook e Instagram têm sido usados como espaço para disseminar e dar visibilidade à resistência. Nesse sentido, colaboram para reduzir percepções estigmatizadas, reafirmando a cultura da periferia e a noção de que a favela faz parte da cidade.

A última marca de retenção perpassa pelas outras e aponta para a retórica do humor, através de memes – conteúdos audiovisuais que viralizam na internet – e piadas, que fazem releituras das críticas sociais em relação à política ou criticam tentativas de persuasão religiosas. Machado (2017) também afirma que a jocosidade é um código para transformar a dor e o sofrimento em pulsão de vida e estratégia de superação da pobreza pela graça e pelo riso. Em síntese, as marcas sócio-históricas das experiências de sociabilidade, do modo de relação com a política, das expressões espirituais e da cultura do lúdico nas favelas aparecem nas redes sociais como retenções precedentes.

Dessa forma, o livro trata das evidências de experiências culturais reinseridas no ambiente digital, destacando como as mídias sociais expressam sentidos culturais locais. No caso da favela carioca, enfatizam a solidariedade, a espiritualidade, a reivindicação política e o humor.

Por fim, podemos afirmar que o trabalho de pesquisa para o desenvolvimento da comunicação digital do Museu de Favela reforçou a força da favela como local da cidade, sublinhando suas especificidades culturais. A fundamental contribuição da obra de Machado (2017) é fazer ecoar as vozes dos atores locais, suas memórias comunitárias e suas reivindicações por reconhecimento social.

Referências

DOUGLAS, M.; ISHERWOOD, B. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. Tradução de Plínio Dentzen. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004.

GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Tradução de Gilberto Velho. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989.

HORST, H. A.; MILLER, D. (Eds.). Digital anthropology. New York: Berg, 2012.

MACHADO, M. Antropologia digital e experiências virtuais do Museu de Favela. Curitiba: Appris, 2017.

MADIANOU, M.; MILLER, D. Polymedia: towards a new theory of digital media in interpersonal communication. International Journal of Cultural Studies, London, v. 16, n. 2, p. 169-187, 2012.

MILLER, D. Stuff. Cambridge: Polity, 2010.

MILLER, D.; SINANAN, J. Webcam. Oxford: Polity, 2014.

Notas

[1] Todo o trabalho desenvolvido pode ser acessado em <http://www.museudefavela.org>.


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