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Recepção: 30 Outubro 2017
Aprovação: 26 Dezembro 2017
DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1984-5057.v10i1p82-93
Resumo: A partir de uma breve análise do caráter “maldito” atribuído ao consumo, este artigo se propõe a investigar a relação entre sujeito e objeto no consumo de moda e lifestyle, tomando por base duas fontes de leitura distintas: a obra clássica do Decadentismo (a crítica ao fin-de-siècle nos idos de 1800) Às avessas, de Joris-Karl Huysmans, e o clássico da antropologia contemporânea Trecos, troços e coisas, de Daniel Miller. O texto propõe uma análise do personagem Jean des Esseintes, um dândi consumidor devotado a uma estetização da vida, ante a visão de cultura material proposta na teoria de Miller, em que as coisas são “resgatadas” de sua superficialidade para uma ontologia própria que interage e transforma as pessoas.
Palavras-chave: Consumo masculino, Moda masculina, Estetização, Subjetividade, Antropologia do consumo, Identidades, Cultura material, Decadentismo.
Abstract: Based on a brief analysis of the “damn” character attributed to consumption, this article proposes to investigate the relationship between subject and object in the consumption of fashion and lifestyle, based on two distinct sources of reading – the classic work of Decadentism (the criticism of the fin-de-siècle in the late 1800s) Joris-Karl Huysmans’ À rebours, and Daniel Miller’s classic of the contemporary Anthropology, Stuff. The text proposes an analysis of the character Jean des Esseintes, a consumer dandy devoted to an aestheticization of life, before the vision of material culture proposed in Miller’s theory where things are “rescued” from its superficiality to an own ontology that interacts and transforms people.
Keywords: Male consumption, Masculine fashion, Aesthetization, Subjectivity, Anthropology of consumption, Identities, Material culture, Decadentism.
Resumen: Basado en un breve análisis de la frecuente calificación de “maldito” dada al consumo, este artículo propone investigar la relación entre sujeto y objeto en el consumo de moda y estilo de vida, fundamentado en dos fuentes distintas de lectura: la obra clásica del Decadentismo (la crítica al fin de siglo hecha a finales de 1800) “À rebours”, de Joris-Karl Huysmans, y el clásico de Daniel Miller sobre la antropología contemporánea, “Stuff”. El texto propone un análisis del personaje Jean Des Esseintes, un dandy consumidor dedicado a una estetización de la vida, ante la visión de la cultura material propuesta en la teoría de Miller, en la cual las cosas son “rescatadas” de su superficialidad a una propia ontología que interactúa y transforma personas.
Palabras clave: Consumo masculino, Moda masculina, Estetización, Subjetividad, Antropología del consumo, Identidades, Cultura material, Decadentismo.
Às avessas
Mais
dois meses se passaram antes que Des Esseintes pudesse engolfar-se no
silencioso repouso de sua casa de Fontenay; toda sorte de compras obrigava-o a
deambular ainda por Paris, a percorrer a cidade de uma à outra ponta
Fonte: Joris-Karl Huysmans
Um dos aspectos mais curiosos da relação entre os seres sociais e as práticas de consumo é o paralelismo existente entre o “uso” e o “repúdio”. Se, por um lado, as práticas de consumo e suas variáveis – e consideremos aqui, por extensão, toda forma de consumo que seja tanto simbólica (distintiva, religiosa, ornamental, tecnológica etc.) quanto de subsistência (alimentação, moradia, medicação, profilaxia etc.) – fizeram parte de todas as sociedades até então estudadas e registradas, por outro a simples menção do termo “consumo” ainda sugere à imensa maioria a versão maldizente de “consumismo”, epíteto do repúdio.
Consumir e maldizer o consumo parecem, numa mesma instância, práticas coadunadas. O aspecto funcional ou pragmático de qualquer forma de consumo parece sempre preterido em função da leitura imediata da frivolidade ou do desperdício atribuído ao ato praticado. Via de regra, o consumo é sempre visto como sinonímia de ato supérfluo, vulgar ou decorrente de imposições externas a quem o pratica. É deduzido como perda de autonomia e ato de baixo teor moral.
É vasta a reflexão acerca dos fenômenos das chamadas sociedades de consumo em abordagens que, sob diferentes pontos de vista, procuram elaborar teorias a partir de interpretações distintas. Lívia Barbosa (2004, p. 10) vai mencionar autores como Fredric Jameson, Zygmunt Bauman, Jean Baudrillard (teóricos da pós-modernidade) e outros como Don Slater, Daniel Miller, Grant McCracken, Colin Campbell, Pierre Bourdieu e Mary Douglas (teóricos da cultura material) como uma espécie de campo divisório das formas de compreensão de práticas de consumo, atribuindo a essa diferença teleológica um possível caminho para se maldizer ou não tal fenômeno.
Consideramos importante, para a proposição deste ensaio, uma breve passagem por duas reflexões relevantes acerca da questão, a fim de compreendermos possíveis interpretações dessa recorrente “leitura maldizente” do ato de consumir.
CONSUMO E SUPERFICIALIDADE
Daniel Miller (2013) vai recorrer à questão da moda e ao uso das roupas, teorizando sobre a questão da superficialidade para interpretar as leituras depreciativas do consumo. Para o autor, a visão generalizada de que a moda e o estilo (aqui identificados como consumo estético ou de objetos estetizados) são “superficiais” está relacionada ao que ele chamaria de uma ontologia da profundidade, a qual seria decorrente da crença comum de que o ato de ser está situado dentro de nós, em um cerne hipotético, não em nossa superfície. Tal concepção, segundo Miller, estaria relacionada a uma visão semiótica que presume certa “relação entre interior e exterior”, designando a superficialidade como valor inferior:
Um comprador de roupas é superficial porque um filósofo ou um santo é profundo. O verdadeiro núcleo do eu é relativamente constante e imutável, e também indiferente à mera circunstância. Nós temos de olhar profundamente dentro de nós para nos encontrarmos. Mas tudo isso são metáforas. Profundamente dentro de nós há sangue e bile, não certezas filosóficas. Nós não encontraremos uma alma se cortarmos alguém em profundidade, embora eu suponha que desse modo talvez incidentalmente pudéssemos libertá-la. Minha questão é que não há nenhuma razão na Terra pela qual outra população deva ver as coisas do mesmo modo. Nenhuma razão para que ela deva considerar que nosso ser real é profundamente interior, enquanto a falsidade é externa. (MILLER, 2013, p. 28)
Fica clara, nessa conjectura de Miller, uma compreensão da lógica comum que permeia a depreciação das coisas (consideradas, então, “superficiais”) em relação às pessoas, tendo em vista que o sujeito, dada a sua vinculação ontológica com a “profundidade”, “ascende” ante os objetos (de “superfície”) que consome.
O questionamento de Miller será doravante retomado para o contraponto definitivo nas pretensões deste ensaio.
CONSUMO E CAPITALISMO
Na introdução de sua obra A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista (2015), na qual se consideram as sociedades ocidentais contemporâneas imbuídas de um projeto de (re)estetização do mundo, o filósofo Gilles Lipovetsky e o crítico de arte Jean Serroy postulam sobre uma leitura de que o capitalismo, visto de forma quase demonizada como um elemento que “enfeia” a vida social, recorre a essa estetização para promover novos valores, “artealizando” suas atividades econômicas no intuito de legitimar suas práticas e sua própria afirmação, buscando corrigir os efeitos de “destruição do belo” com um novo “embelezamento” das coisas. Em dado momento, a obra debruça-se sobre uma inquietação quanto a esse caráter acusatório que tão somente demoniza e pouco busca compreender a real circunstância em torno de tal fenômeno:
O capitalismo se reduz a essa máquina de decadência estética e de enfeamento do mundo? […] Os aspectos devastadores da economia liberal se impõem com tanta evidência que não se pode pô-los em dúvida. Mesmo assim existem realidades mais amenas que convidam a reconsiderar o que ocorre na cena do capitalismo de consumo superdesenvolvido. […] Se é verdade que o capitalismo engendra um mundo “inabitável” ou “o pior dos mundos possível”, ele também está na origem de uma verdadeira economia estética e de uma estetização da vida cotidiana: em toda parte o real se constrói como uma imagem, integrando nesta uma dimensão estético-emocional que se tornou central na concorrência que as marcas travam entre si. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 13-14)
Notoriamente essa produção estética citada pelos autores está voltada para relações de consumo, tanto em aspectos da vida material quanto imaterial. Percebe-se, entretanto, no excerto acima, a observação dos autores quanto a uma reflexão menos contundente acerca do que eles denominam uma “cena de consumo superdesenvolvido”. Embora considerando todos os aspectos negativos da economia liberal promovida pelo sistema capitalista, os autores propõem algumas reflexões sobre como essa “era do capitalismo artista” produz sentido e alterações na vida cotidiana, devendo ser analisada de forma mais detalhada.
Lipovetsky e Serroy irão lembrar que “O consumidor hipermoderno é um consumidor estético que se alimenta de músicas, espetáculos, viagens, programas culturais, marcas, modas” (Ibidem, p. 361). Assim como já havia acontecido no advento da Modernidade, o consumo novamente figura como elemento vultoso na ascensão do capitalismo, sendo um de seus mecanismos de fortalecimento. Essa vinculação inegável entre consumo e capitalismo, intensamente criticada nas formulações de Karl Marx sobre fetichismo da mercadoria, luta de classes e alienação, também influenciou de forma ostensiva a compreensão de que o consumo é uma prática impositiva e de alta criticidade. É tido como uma espécie de “legado negativo” ou “herança maldita” do sistema econômico, como se já não existisse desde os primórdios das trocas simbólicas entre as sociedades, mesmo antes do advento capitalista ou em culturas alternativas a esse sistema.
A compreensão do consumo como esse elemento “negativado”, aqui destacada por fatores ontológicos e político-econômicos, será um interessante ponto de discussão nas articulações pretendidas por este trabalho, como se verá nas postulações a seguir.
SOBRE PESSOAS E OBJETOS, IMAGENS E IDENTIDADES
Pode-se afirmar que há uma recorrência, na leitura das práticas sociais e culturais, de uma visão das construções humanas ligadas a elementos simbólicos. Manuel Castells vai reiterar esse sentido eminentemente “representativo” (em analogia ao representamen – o signo da semiótica peirceana[1]) da realidade, associando as práticas culturais a processos de comunicação:
Culturas consistem em processos de comunicação. E todas as formas de comunicação, como Roland Barthes e Jean Baudrillard nos ensinaram há muitos anos, são baseadas na produção e consumo de sinais. Portanto não há separação entre realidade e representação simbólica […]. Todas as realidades são comunicadas por intermédio de símbolos. (CASTELLS, 2005, p. 459)
Partindo de construções arroladas por Roland Barthes (através da Linguística e da Teoria Literária) e das formulações de Jean Baudrillard (signos virtuais e simulacros), Castells destaca uma vocação social para a produção e o consumo de sinais.
O pomo da discórdia da teoria de Daniel Miller sobre a interpretação considerada “superficial” dos objetos de moda e estilo diz respeito a essa abordagem predominantemente semiótica. Para Miller, não obstante a importante colaboração que tal abordagem trouxe para a compreensão dos fenômenos da moda, sua exegese limitou as roupas a “criaturas sem valor, superficiais, de pouca consequência, simples trecos inanimados” (MILLER, 2013, p. 22). Seus estudos de campo em Trinidad, na Índia e em Londres iriam atestar um caráter diferenciado a essa percepção dos usos dos objetos, ao ponto de o autor afirmar que
Aqui, contudo, estamos engajados em uma empreitada cujo propósito é resgatar dessa mesma impressão de superficialidade não só a indumentária, mas a cultura material como um todo, e as pessoas que a estudam. (Ibidem, p. 37)
A percepção de que a cultura material, em si, é imanente, com o objeto relacionando-se de forma personalizada com o sujeito que o “usa”, é vista pelo autor de forma especial naquilo a que ele se refere como uma “vasta gama de relações possíveis entre o conceito de eu, a pessoa e a indumentária” (Ibidem, p. 61). Miller vai redimensionar o caráter material das peças de vestuário, transcendendo seu caráter superficial para um caráter de profundidade, ao afirmar que “as roupas não são superficiais, elas são o que faz de nós o que pensamos ser” (Ibidem, p. 22).
Tanto para os semióticos quanto para Miller, entretanto, a questão do consumo parece fundamentada em um aspecto comum: o da interação social. Seja pelo caráter intrínseco da comunicação atestada pelos semióticos, estabelecendo sempre uma relação ou pacto social entre emissor e destinatário; seja pelo exemplo da experiência de Miller nas sociedades de Trinidad, da Índia e de Londres: prevalece, de ambas as partes, uma leitura do consumo como prática e escala de valores dentro de um âmbito de interação social, num grupo ou coletivo de pessoas, pra quem os objetos criam elementos de conexão e organização coletiva.
Podemos citar um autor que, de certa forma, concilia essas duas vertentes – a simbólica e a ontológica – ao discorrer sobre a questão do consumo e do uso de objetos em uma de suas obras fundamentais. Norbert Elias, ao analisar os códigos de sociabilidade e prestígio da corte francesa de Luís XIV em A sociedade de corte (2001), irá apresentar elementos simbólicos de uma diferenciação social atribuída por meio de “coisas”, as quais ele pontua usando termos reveladores como “aspecto exterior”, “forma”, “configuração visual”, como se pode perceber no excerto a seguir:
A composição diferenciada do aspecto exterior como instrumento da diferenciação social, a representação do nível hierárquico pela forma, tudo isso caracteriza não só as casas, mas também a organização da vida da corte como um todo. A sensibilidade desses homens para as ligações entre o nível social e a configuração visual de tudo o que faz parte de sua esfera de atuação, incluindo seus próprios movimentos, testemunha e expressa a situação social em que eles se encontravam. (Ibidem, p. 82)
Elias fará, ainda, uso dessas análises de expressões externas como códigos fundamentados (ou, numa interpretação particular, profundos, não superficiais) para afirmar que “o que hoje em dia aparece como luxo, numa consideração retrospectiva, não é nada supérfluo numa sociedade assim estruturada” (Ibidem, p. 83).
Fica claro, em Elias, que as questões simbólicas dos usos de trajes e elementos distintivos na corte francesa estabelecem não apenas os códigos (mensagens), como também a sua importância para uma estruturação da sociabilidade e do convívio, tipificando situações de prestígio e ostentação como “necessidades”, em sentido genérico:
Numa sociedade em que cada manifestação pessoal tem um valor socialmente representativo, os esforços em busca de prestígio e ostentação por parte das camadas mais altas constituem uma necessidade de que não se pode fugir. Trata-se de um instrumento indispensável à autoafirmação social, especialmente quando – como é o caso na sociedade de corte – todos os participantes estão envolvidos numa batalha ou competição por status e prestígio. Um duque tem que construir sua casa de uma maneira que expresse: sou um duque e não um conde. O mesmo vale para todos os aspectos de seu estilo de vida. Ele não pode tolerar que outra pessoa pareça mais um duque do que ele próprio. Precisa certificar-se de que tem a primazia frente ao conde na convivência oficial em sociedade. (Ibidem, p. 83)
É a partir dessas questões entre pessoas e objetos, usos e sociabilidade, que se abre um interessante viés para reflexão através da literatura, considerada um espelho de realidades, ainda que sendo obra de ficção. Tomemos, portanto, o caminho literário para, neste ensaio, perceber em uma obra específica uma curiosa narrativa em que um personagem resolve construir sua identidade não a partir da relação com pessoas, mas circundando-se de objetos. Ou seja: nessa obra peculiar, o consumo não é estabelecido em função da existência de indivíduos, e sim das coisas. Não se trata, portanto, de um ato interativo ou comunicacional, relacionado a um nomos social, mas a um eixo de “desvio do social”, onde o protagonista busca o confinamento a fim de que os objetos lhe “falem” sobre um modelo particular de vida.
O FIN DE SIÈCLE E O “TÉDIO GERADO PELA ABUNDÂNCIA”[2]
Às avessas
Adquiriu
reputação de excêntrico, que rematou usando trajes de veludo branco, coletes
orlados de ouro; espetando, à guisa de gravata, um ramalhete de violetas na
chanfradura decotada de uma camisa
Fonte: Joris-Karl Huysmans
O final do século XIX foi considerado, por uma corrente de artistas e pensadores pessimistas franceses, uma espécie de versão cultural do declínio do império romano para a chamada França moderna. Não obstante os avanços tecnológicos e científicos desse período, havia uma inquietude intelectual – herdeira dos mais desolados pensamentos críticos de Schopenhauer, Baudelaire, Gautier, Mallarmé, Verlaine, Zola, Maupassant, Manet, Rodin e Debussy, entre outros, cada qual em seu campo de atuação – apregoando uma recorrência de ideias e uma sensação de que tudo já havia sido feito, restando tão somente o tédio como resultado de tamanha abundância.
Surgiria, desse movimento, a corrente conhecida como “Decadentismo”. Tratava-se de uma contraposição ao realismo e ao naturalismo por meio de uma adesão ao subjetivismo, à primazia do estético, a valores inconscientes, aos mistérios da alma humana. A proposição artística dessa corrente adquiriria, a seu tempo, um caráter “maldito”, no sentido de atribuir a uma considerável “estabilidade conceitual” da sociedade francesa uma reflexão soturna, negativista, criticista, entediada.
Nesse cenário de retórico desencanto e viés crítico, uma obra literária surge com a alcunha de “a bíblia do decadentismo” – o movimento intelectual que aí se configurava – ilustrando a insatisfação e o ceticismo ante as estruturas de pensamento então vigentes. A obra é Às avessas, de Joris-Karl Huysmans, publicada em 1884, espécie de ode ao esteticismo e à vida elegante, marcas expressivas da adesão ao decadentismo francês.
No conto de Huysmans, o rico herdeiro Jean Floressas des Essaintes, personagem icônico da literatura dandista, isola-se das pessoas para fugir do tédio e imergir em um universo peculiar de luxo, requinte e glamour, apartado do dogmatismo dos aristocratas a seu redor. Entediado pelo déjà-vu, arregimenta-se numa sofisticação desmedida e num refinamento desenfreado de seus prazeres. Isolado, dedica-se ao requintamento e ao consumo como realidades de sua própria vida.
Às avessas é a fábula moderna do homem abastado que descobre nunca mais precisar trabalhar e vê-se isento das ameaças econômicas de todos os mortais. O malogro, porém, está em sua própria finitude: ele é vítima de uma doença – a nevrose – que tanto abrevia sua expectativa de vida quanto incentiva sua ânsia de refúgio em um ímpeto hedonista. A quarentena de Des Esseintes é autoprescritiva: ele é um esteta iluminado pelo mais sutil bom gosto possível aos homens de sua época, que se enoja de seus iguais, “dessocializa-se” do centro nevrálgico de Paris e isola-se numa casa na pacata Fontenay-aux-Roses, onde, chafurdado em seu enlevo estético, faz da nova morada um oásis de beleza para deleite pessoal, até que lhe cheguem seus últimos dias. Aos poucos, e a cada capítulo, decora detalhadamente sua casa como quem reconfigura a própria vida, demonstrando todo seu apreço e vínculo aos objetos mais custosos e estetizados de seu tempo.
A vida e a sociabilidade, conforme nos oferece o “lugar comum” de todos os homens, são, para Des Esseintes, mero tédio. Ele reconstrói simbolicamente tudo a seu redor, ressignificando sua própria existência a partir de coisas, objetos, ornamentos e produtos comprados no mais esfuziante e sofisticado mercado europeu de sua época – o comércio de Paris.
No prefácio da tradução da obra para a edição brasileira, o poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta José Paulo Paes afirma que Huysmans (1987, p. 13) teria atribuído a Des Esseintes “em registro caricaturesco, alguns dos traços e hábitos de Robert de Montesquiou, um dândi parisiense, diletante das artes, cujos gostos refinados e singulares, inclusive em matéria de sexo, serviram para celebrizá-lo entre seus contemporâneos”. Na introdução da obra para a mesma edição, Patrick McGuinness vai afirmar que “Des Esseintes é um personagem de ficção, mas não é pura invenção. Huysmans (1987, p. 50) era um arguto observador dos dândis e excêntricos que frequentavam os redutos literários de Paris”.
Tomando por base esses registros, bem como o apuro técnico da obra em seu caráter descritivo da sociedade francesa da época, é possível conjecturar que Des Esseintes representa uma síntese do consumidor masculino oitocentista – ou, minimamente, um “recorte” – representado pelo dandismo, um séquito de compradores e adeptos do lifestyle, que buscavam o belo e as boas maneiras como expressão pessoal[3].
TRÊS PERSONAGENS, UMA DISSOCIAÇÃO
Considero de fundamental relevância, para os fins pretendidos neste ensaio, analisar dois outros personagens literários da mesma geração do protagonista Des Esseintes. Ambos também ligados à dialética do consumo e da vida, com suas trajetórias marcadas pelo esteticismo e pelo uso de coisas ou objetos como afirmação ou expressão pessoal.
Emma Bovary – protagonista de Madame Bovary, novela francesa de Gustave Flaubert publicada em 1857 – e Dorian Gray – protagonista de O retrato de Dorian Gray, romance filosófico do escritor e dramaturgo inglês Oscar Wilde publicado em 1890 – apresentam elementos viscerais para a formulação do caráter do consumo considerado “maldito”, previamente abordado neste ensaio sob seus aspectos superficiais (MILLER, 2013) e políticos (LIPOVETSKY; SERROY, 2015).
A jovem camponesa Emma, de alma burguesa requintada para os padrões provincianos, vai encontrar no consumismo e no adultério a saída para a expressão de sua liberdade no entediante casamento com o médico interiorano Charles Bovary.
Ao analisar a personagem sob o ponto de vista de sua condenação moral, Laura Graziela Gomes (2007, p. 67) vai afirmar que Emma é “um primeiro instantâneo desse personagem social – o consumidor moderno – tal qual o conhecemos nos dias de hoje, com todas as suas contradições, paradoxos e ambiguidades”. O endividamento compulsivo de Emma, a decretação de sua falência por um agiota e todo o “drama social” (termo usado por Laura no título do ensaio) gerado em torno da personagem, que a levam a tomar uma dose fatal de arsênico para uma morte lenta e agonizante, tipificam uma visão negativista e excessivista da dependência do capital arrolado ao projeto de uma França moderna, como se pode observar no texto:
um dos temas principais de Madame Bovary é o consumo e o consumismo, entendendo-se pelo segundo termo não tanto o ato de consumir exageradamente, mas consumir em função de algo que se busca e que nunca é completamente satisfeito e atingido – o prazer, a felicidade. Do latim consumere, consumir por si só significa “gastar”, destruir”, “dar cabo de”, “arruinar”, “gastar ou corroer até a destruição”, “extinguir”, “destruir pelo fogo”, “queimar”, “calcinar”. A morte de Ema, em termos de imagens, é a própria representação do processo de consumação pelo qual ela se deixa envolver: consumir e ser consumida, eis a questão. Nada mais coerente com a lógica da personagem e dos novos tempos que ela anuncia. (Ibidem)
Percebe-se, portanto, uma associação entre atributos materiais, os gastos com aquilo que causara seu endividamento financeiro, e atributos imateriais – o que Laura menciona como uma busca de prazer e felicidade. Ambos descambam para uma morte em que Emma é vitimada pelo ato de consumir ao ponto de ser consumida, uma relação de escolha e maldição. O consumo, conforme já fora visto na referência de Miller, tem aqui a mais agravante consequência de sua superficialidade: a destruição da própria vida, contraditoriamente atingindo o cerne que a “ontologia da profundidade” consideraria além do alcance exterior.
Não obstante o caráter maldito em contexto ficcional, a obra acaba por causar indignação social e malogro também para seu autor. A abordagem considerada controversa levou Flaubert a ser julgado pela Corte Francesa, que o absolveu, mas não o livrou da ira puritanista da sociedade da época, maldizendo seu livro e o expondo a um escândalo em nível social:
Já a questão do escândalo evidencia-se nas acusações de superficialidade e adultério que pesam sobre Emma, ambas provocadas não só por seu romantismo exacerbado, mas, sobretudo, pela forma com que se relaciona com o dinheiro e o patrimônio familiar. Emma é a própria imagem da dilapidação e da prodigalidade, sem dúvida uma das grandes ameaças introduzidas pelo consumismo e pelo materialismo modernos. Nesses termos, o que torna a prodigalidade de Emma particularmente escandalosa e ameaçadora é o fato de ela pertencer a uma classe social – a pequena burguesia – até então considerada um dos baluartes da ética do trabalho e da poupança. A certa altura o romance mostra que algo havia mudado e que a pequena burguesia já não se ajustava mais tão pacificamente a esse papel social. (Ibidem)
Como se pode observar, as relações de consumo estabelecidas pelos exageros de Emma estavam arroladas a várias questões referentes a um contexto social: o uso descabido do dinheiro, a transgressão do papel da mulher no tocante à sua condição ante o patrimônio familiar e a subversão dos valores pequeno-burgueses, todas atribuindo-lhe um sentido negativo de “superficialidade”.
O mesmo sentido de (assim chamemos) “transtorno social” da obra de Flaubert também se faz presente no personagem principal da obra de Oscar Wilde, O retrato de Dorian Gray. Dorian é um jovem belo e narcisista que, sob a influência do dândi decadente Lord Henry Wotton, desenvolve um sentido extremo de culto à beleza e ao hedonismo, ao ponto de firmar um pacto satânico para manter-se em eterna juventude como na pintura do artista Basil Hallward. Henry é o aceno à superficialidade, ao estético, ao exterior. Basil é o paradigma da tal “ontologia da profundidade” a que Miller se referiu.
Assim, dividido entre Deus e o diabo nas terras de uma Inglaterra vitoriana, segue Dorian Gray a sua sina: por um lado, é tentado ao impulso irredutível pelo belo e pela ostentação promovidos pelo deslumbramento de um Henry que estetiza tudo a seu redor; por outro, convive com a moralidade e os princípios éticos de um Basil que se surpreende com a emulação de Harry para que Dorian se torne um arrogante aristocrata em uma vida artificial. Aos poucos, o quadro vai tendo a imagem distorcida, como que revelando o caráter corrompido de quem ele retrata.
Ao analisar a obra, Enéias Tavares vai destacar que
Ao unir o materialismo dos objetos finos à percepção estética, Dorian, ainda reconhecendo a influência de Henry, cita aquela que poderia ser a máxima exemplar do espírito do esteta: ‘Tornar-se espectador da sua própria vida’. Wilde, após demonstrar a influência discursiva que o dândi exerce sobre aqueles que estão próximos dele e enumerar as experiências que formariam, num jovem como Dorian, uma existência mais estética do que natural, demonstra que apenas numa estetização completa da existência encontrar-se-ia o caráter central da vida elegante. (TAVARES, 2016, p. 90)
Dorian exercia, por meio da obsessão estética e de sua envergadura de dândi, dois aspectos frequentemente prometidos pelas chamadas sociedades de consumo: a afirmação e o fascínio. Seu poder de sedução, seu sentimento de liberdade e poder absoluto são expressos, a todo tempo, em razão dos atributos físicos e de sua riqueza material. No conto fantástico, fica clara a oposição entre a superficialidade (revelada na aparência) e a “revolta” de uma “profundidade ontológica” denunciada pela deformidade da imagem pintada no retrato: a aparência não consegue impedir que a obra de arte apodreça a imagem de Gray, uma vez que a pintura passa a retratar seu aspecto interior.
CONCLUSÃO
Investigamos, neste ensaio, o traço marcante da condição maldizente do consumo, segundo duas abordagens distintas – a ontológica (relativa à superficialidade) e a política (relativa à leitura crítica ao capitalismo) – para entendermos não apenas seu “legado negativo”, mas sobretudo como o traço dessas duas abordagens perpassa as identidades e construções sociais, como nos exemplos dados na literatura. A partir de personagens selecionados, identificamos suas relações, usos e apropriações das coisas para evidenciarmos, nesta conclusão, uma diferenciação importante, que faria de Des Esseintes talvez a grande referência literária oitocentista de uma reflexão contemporânea sobre a cultura material nos estudos da antropologia do consumo.
Há uma divergência considerável (e esclarecedora) entre Des Esseintes, Emma Bovary e Dorian Gray. Embora todos estejam relacionados a um mesmo período economicamente favorável, sob a influência do pensamento decadentista e retratando o consumo e a estetização da vida como válvulas de escape para seus dramas pessoais, Des Esseintes tem uma peculiaridade que o distingue.
Para ele, o consumo não está na percepção de que os objetos e as coisas são elos de interação com a vida social. Há uma reversão da lógica social do consumo na trajetória desse personagem. Nele, o requinte da vida estetizada tem a via oposta da regra social: antes, Des Esseintes se torna fugidio de todas as sociabilidades, adepto do autoconfinamento e de sua própria segregação.
O ímpeto de construir “personagens” para escalonar o desempenho e mesmo as identidades dentro de uma sociedade nos remete à teoria sociológica de Erving Goffman, a qual tipifica a visão de que o mundo é um teatro e que os indivíduos “representam” seus papéis. Segundo o autor,
Quando um indivíduo desempenha um papel, implicitamente solicita de seus observadores que levem a sério a impressão sustentada perante eles. Pede-lhes para acreditarem que o personagem que veem no momento possui os atributos que aparenta possuir, que o papel que representa terá as consequências implicitamente pretendidas por ele e que, de um modo geral, as coisas são o que parecem ser. (GOFFMAN, 1985, p. 25)
Para Emma, o consumo é a via inclusiva; para Dorian, o esteio autoafirmativo. Ambos estão cientes de que as posses, a ostentação ou a via do consumo lhes permite representar papéis almejados, alcançar as identidades sociais pretendidas, conforme propõe Goffman. Mas, para Des Esseintes, o fascínio não está nas formas de representação social: ele destrói a sociabilidade ao demonstrar repúdio às pessoas de sua época e se refugiar na casinhola de Fontenay que, após a venda de seu castelo em Lourps, torna-se a morada distante e incomunicável do mundo social que ele quer ignorar. Está, portanto, nas coisas, na verdade e na biografia do que as coisas representam, a vida estética daquilo que ele pretende consumir e contemplar.
O prefácio de José Paulo Paes reitera, sobre o personagem, que “os objetos de luxo de que se cerca é que são o ideograma ou símbolo de sua personalidade, uma emanação dela, não ela deles” (HUYSMANS, 1987, p. 21). Como na perspectiva teórica de Miller (2013, p. 22) ao questionar a visão semiótica dos objetos na fábula onde “a roupa representa o imperador”, a afirmação de Paes corrobora a visão milleriana de que as coisas têm existência própria – razão pela qual Des Esseintes, após “destruir” o mundo existente (social) do qual se aparta, resolve construir seu mundo próprio a partir dessas emanações de objetos estetizados ou de consumo: quadros, mobiliário, livros, flores, perfumes, trajes e tudo o mais que, em forma de coisas, oferece sua profundidade não exatamente para adornar, mas para emanar seu sentido próprio. Assim, não é o imperador que dá sentido à roupa: como numa espécie de “reversão da semiótica”, é a roupa quem dá sentido ao imperador.
É relevante a afirmação de Eneias Tavares acerca de Des Esseintes, quando ele observa que
a estetização da existência humana via capacidade imaginativa constitui-se como um dos traços constituintes de sua personalidade. Tal característica visual e comportamental fica evidente nas inúmeras reflexões sobre obras de arte e/ou objetos utilitários e na sua valorização do imaginado em detrimento do vivido. Energizado pela imaginação de Des Esseintes, o artificial suplanta a experiência real. (TAVARES, 2016, p. 84-85)
O “imaginado” e o “artificial” observados no excerto parecem diretamente associados à necessidade de Des Esseintes de reconfigurar um novo mundo a partir da realidade não-social que seu ambiente de confinamento requer. Apartado do que seria “o mundo real”, ele precisaria de elementos que pudessem não apenas “significar”, como apregoaria a visão semiótica, mas sobretudo “emanar” ou “provocar reflexão”, sugerindo uma linha de diálogo entre duas fronteiras existenciais – a existência do indivíduo (Des Esseintes) e a existência não menos intrínseca das coisas (as obras de arte e demais objetos).
A relevância desse estudo sobre o personagem de Às avessas pode nos trazer alguma reflexão ou inquietude sobre a questão do consumo e da cultura material nas sociedades contemporâneas. Seriam os objetos de consumo tão somente criação ou atribuição sígnica de uma mercadologia que categoriza ou qualifica commodities numa escalada da economia neoliberal? Ou haveria, a partir de sua criação ou composição, uma certa autonomia desses objetos para interagirem não mais numa lógica de submissão, mas com protagonismo e expressando interatividade?
Manequins e figurinos expostos numa loja de grife estariam restritos a uma proposição de estilo e de compra determinada por um vitrinista ou gestor de visual merchandising ou seguiriam a mesma lógica de autonomia relativa de um perfil de Facebook ou Instagram, que é criado para representar uma pessoa, mas pode interagir e sofrer ações específicas de forma “independente” (curtidas, compartilhamentos, bloqueios, denúncias, réplicas etc.) mesmo quando essa pessoa está ausente ou off-line?
No nono capítulo de O retrato de Dorian Gray, em que Henry oferece a Dorian justamente o livro Às avessas como presente, assim definiria o narrador a experiência sensorial extrema na obra singular de Huysmans: “Era, em suma, um livro venenoso, de páginas impregnadas de um cheiro forte de incenso que perturbava o cérebro” (WILDE, 2001, p. 138).
Que nos venha esse doce veneno literário provocar, de forma anacrônica e ao mesmo tempo tão atual, uma perturbação cerebral sobre trecos, troços, coisas e pessoas presentes em nosso cenário contemporâneo.
Referências
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Notas