Resumo: Este artigo visa a compreender como a publicidade contemporânea vem se utilizando de campanhas híbridas e articulando recursos como o mobile marketing, o branded content, as mídias sociais e a captura de dados pessoais para melhor promover as marcas e envolver os neoconsumidores multicanais, digitais e globais. Busca perceber como essas mídias e linguagens são articuladas com estratégias e táticas cada vez mais estetizadas num contexto de ampliação da estetização do mundo e neotribalização. Para tanto, utiliza a metodologia qualitativa e a técnica de estudo de caso, tendo como objeto a plataforma Academia da Carne da Friboi. Além de apontar para a estetização de um setor historicamente comoditizado, o caso analisado nos permite pensar como a publicidade, cada vez mais hibridizada com o entretenimento e os conteúdos facilmente acessáveis nas mídias digitais, vem favorecendo a vigilância exercida sobre os dados e rastros digitais dos consumidores num “mercado de dados pessoais” fortemente ampliado na última década.
Palavras-chave:ComunicaçãoComunicação, Estetização Estetização, Vigilância Vigilância, Academia da Carne Academia da Carne.
Abstract: This article aims to understand how contemporary advertising is using hybrid campaigns and articulating features such as mobile marketing, branded content, social media and the capture of personal data to better promote brands and involve multi-channel, digital and global neoconsumers. It seeks to understand how these media and languages are articulated with strategies and tactics increasingly aesthetized in a context of enlarging the aesthetization of the world and neotribalization. For that, it uses the qualitative methodology and the case study technique, having as object the Friboi Meat Academy platform. In addition to pointing to the aestheticization of a historically commoditized sector, the analyzed case allows us to think how advertising, increasingly hybridized with entertainment and contents easily accessible in digital media, has favored the surveillance exercised over the data and digital traces of the consumers in a “personal data market” that has been greatly expanded over the past decade.
Keywords: Communication, Aesthetics, Surveillance, Meat Academy.
Resumen: Este artículo tiene por objeto comprender cómo la publicidad contemporánea está utilizando las campañas híbridas y articulando recursos como el mobile marketing, el branded content, las redes sociales y la captura de datos personales para difundir mejor las marcas y enredar a los neoconsumidores multicanales, digitales y globales. Se busca identificar cómo esos medios y lenguajes se articulan con estrategias y tácticas cada vez más estéticas en un contexto de ampliación de la estetización del mundo y la neotribalización. Para ello, se utilizan la metodología cualitativa y la técnica de estudio de caso, teniendo como objeto la plataforma Academia de Carne de Friboi. Además de señalar la estetización de un sector históricamente mercantil, el caso analizado nos permite pensar que la publicidad, cada vez más híbrida con el entretenimiento y los contenidos fácilmente accesibles en los medios digitales, está favoreciendo la vigilancia ejercida sobre los datos y huellas digitales de los consumidores en un “mercado de datos personales” más amplio y fuerte en la última década.
Palabras clave: Comunicación, Estetización, Vigilancia, Academia de Carne.
Artigos
Do açougue à academia: estetização e vigilância na academia da carne da Friboi
From the butchery to the Academy: Aestheticization and Vigilance at Friboi’s Meat Academy
De la carnicería a la academia: estetización y vigilancia en la Academia de Carne de Friboi

Recepção: 19 Agosto 2018
Aprovação: 17 Abril 2019
Vivemos um momento de grandes transformações socioculturais com a disseminação da chamada cultura digital. Há mais de duas décadas, a internet entrou, gradativamente, para a vida dos consumidores e cidadãos, fazendo parte de nossas atividades mais prosaicas e cotidianas, como trocar mensagens por e-mails, pagar contas pelo homebanking e efetuar compras em sites de e-commerce. De acordo com a pesquisa Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em dezembro de 2018, mais de dois terços da população brasileira (69,8%) já possuem conexão com a internet, o que equivale a mais de 145 milhões de pessoas conectadas à rede (SILVA, 2018). Em função dessas transformações, o marketing e a publicidade também passam por mudanças significativas tanto no uso das mídias quanto das linguagens.
Na última década, a linguagem publicitária clássica passou por significativas modificações a fim de melhor seduzir um consumidor mais bem informado, crítico e reativo às mensagens publicitárias tradicionais: os chamados neoconsumidores, que, de acordo com Souza (2009), são multicanais, digitais e globais. Para se relacionar com os novos consumidores, tornou-se necessário o uso de uma publicidade cada vez mais híbrida (COVALESKI, 2010), capaz de articular a comunicação mercadológica com outras linguagens, para além da publicitária, a fim de atrair as audiências. Esse fenômeno se deu em paralelo ao lançamento dos smartphones[1] no Brasil, em 2008 (TAGIAROLI, 2018), e levou as marcas a buscarem se relacionar com os consumidores digitais cada vez mais através desses gadgets, impulsionando o mobile marketing (MARTIN, 2013).
Nesta última década, também foram criadas as redes sociais digitais, amplamente aceitas pelo público brasileiro, as quais são agrupamentos complexos instituídos, na internet, por interações sociais apoiadas em tecnologias digitais de comunicação (RECUERO, 2009, p. 13), tornam-se protagonistas nesse novo ambiente tecnológico e comunicacional. O advento da comunicação mediada pelo computador modificou profundamente as formas de organização, identidade, conversação e mobilização social, criando o ambiente ideal para a articulação das pessoas em rede.
Como podemos perceber, novos players e recursos modificaram hábitos, comportamentos e relações, tanto entre as pessoas quanto entre as pessoas e as marcas. Tal fato vem exigindo novas habilidades das empresas para se tornarem relevantes para seus públicos, a fim de se comunicarem efetivamente com eles, gerando negócios. Com a consolidação da sociedade em rede (CASTELLS, 2010) e da cultura participativa (SHIRKY, 2009), a publicidade busca se utilizar de campanhas cada vez mais multiplataformas, com o intuito de se aproximar dos neoconsumidores, que trocam informações e percepções entre si, em tempo real, sobre os mais diversos assuntos, com capacidade de transmissão de dados e mobilidade cada vez maiores.
Nesse contexto, marcas de diversos setores perceberam a oportunidade de se aproximar dos seus públicos e extrair das plataformas digitais informações relevantes para a tomada de suas decisões estratégicas. Novos desafios e implicações ético-legais emergem com essa conjuntura em que diferentes negócios geram valor a partir do uso de dados pessoais e rastros digitais dos internautas (BELLEIL, 2002). Paralelamente à vigilância crescente dos dados disponibilizados em rede, a estetização surge como uma ferramenta de persuasão e sedução para setores historicamente pouco atentos a esse tipo de uso do marketing e da linguagem publicitária, como o setor de vendas de carnes diretas ao consumidor, conforme problematizaremos a seguir.
Em função das transformações no perfil das mídias e dos consumidores na última década – os quais atuam como propagadores de todo tipo de manifestação na rede, sendo chamados também de prosumers –, marcas de todos os portes buscam de maneira crescente desenvolver campanhas com linguagens que não remetem à publicidade clássica, dentro das normas e dos padrões estabelecidos pelo campo publicitário, amplamente difundida ao longo do século XX pelos meios de comunicação de massa. A publicidade tem procurado se hibridizar com linguagens próprias de outros campos, como o cinema e a televisão, a fim de capturar a atenção dos consumidores cada vez mais dispersos, atraindo-os com mensagens e ideias criativas não percebidas rapidamente (ou sequer percebidas) como publicidade (COVALESKI, 2010, p. 44).
Utilizando-se de linguagens híbridas (COVALESKI, 2010, p. 44), a publicidade desenvolve peças e campanhas publicitárias que mais se parecem com videoclipes, programas de televisão, seriados ou filmes de cinema, com o intuito de evitar a reatividade dos consumidores pós-massivos, amplamente “alfabetizados em propaganda”. Familiarizados com as intenções das mensagens que estão sendo comunicadas, eles conhecem as convenções que elas usam, formulam regras e generalizações que “transcendem” as intenções do anunciante (RAYNEY, 2006, p. 17).
Podemos testemunhar, na atualidade, um fenômeno interessante: a criação de campanhas publicitárias que não parecem campanhas como conhecemos e reconhecemos ao longo do século XX. Para se fazer atraente aos olhos dos prosumers, mais críticos e bem informados que os consumidores de tempos atrás, as marcas estão buscando criar e veicular a chamada “propaganda sem cara de propaganda”. Essa publicidade disfarçada de entretenimento configura o chamado branded content.
Branded content (conteúdo de marca) é uma ferramenta de marketing que consiste na produção ou distribuição de conteúdo de entretenimento por iniciativa da própria marca. O objetivo principal é fazer com que as pessoas assimilem a mensagem, os atributos e os conceitos de forma leve e envolvente. (SANTA HELENA; PINHEIRO, 2012, p. 103)
É um conteúdo produzido e proporcionado pela marca para seus públicos-alvo, que não se parece com publicidade e será fruído de maneira prazerosa, desarmada e, muitas vezes, divertida. Ao ofertar um conteúdo do interesse das pessoas, as marcas evitam ser rejeitadas e estabelecem uma relação mais amistosa e, aparentemente, menos “interesseira” com o público.
As “caixinhas” bem delimitadas dos campos de conhecimento e de atuação, que vigoraram com muita força e clareza no século passado, estão cada vez mais imprecisas, ficando difícil, na atualidade, separar com segurança o que é uma matéria noticiosa do que é uma peça publicitária e até mesmo promocional, visto que as fronteiras entre as mídias e as linguagens foram largamente borradas com a cultura da convergência, que, por sua vez, está atrelada à cultura participativa. Nesse cenário em que as tecnologias da informação e da comunicação convergem, os smartphones se tornam dispositivos centrais de acesso a informações de toda ordem – jornalísticas, publicitárias, promocionais e pessoais –, favorecendo uma nova relação das empresas com seus públicos de interesse e fomentando uma publicidade cada vez menos percebida como tal em função tanto das camadas estéticas quanto dos aspectos éticos relacionados à vigilância e ao controle dos dados dos internautas.
A propaganda sem cara de propaganda, entregue através dos smartphones de milhões de consumidores e cidadãos brasileiros na atualidade, vem se mostrando uma poderosa ferramenta de comunicação, articulando meio e mensagem de forma inovadora e eficaz para aqueles que sabem fazer o uso adequado desses novos recursos materiais e simbólicos.
Em 2018, mais de 220 milhões de smartphones já eram utilizados pela população brasileira (DEMARTINI, 2018). Através deles, é possível acessar a TV, o rádio, os portais de notícias, as redes sociais digitais, os grupos de família e as facilidades no entorno, bem como as vantagens ofertadas pelas empresas que podemos geolocalizar e que também nos geolocalizam. “O marketing móvel envolve muito mais do que oferecer cupons e descontos. Trata-se de um compromisso nas interações com seus clientes, quando e onde eles escolherem, e de definir o futuro da sua marca no ambiente móvel” (MARTIN, 2013, p. 19).
Podemos, dessa forma, vislumbrar uma articulação crescente e vigorosa de ferramentas como o mobile marketing, o branded content e as redes sociais digitais, a fim de envolver os neoconsumidores, capturar seus dados e promover o loop viral (PENENBERG, 2010) necessário à ampla visibilidade de campanhas e marcas na atualidade, inclusive para a divulgação de produtos alimentícios que não se utilizavam, ou se utilizavam minimamente, de campanhas publicitárias até bem pouco tempo. A viralização de mensagens na internet se tornou uma ferramenta essencial para propagação de ideias, opiniões, conteúdos e campanhas de toda sorte.
Chamado de “loop de expansão viral”, esse fenômeno diz respeito à capacidade de certos produtos midiáticos serem repassados, espontaneamente, pelo público na rede. O loop de expansão viral surge em função da natureza do “encaminhar para”, próprio do ambiente da internet, ou, mais recentemente, da possibilidade de marcar pessoas nas mídias sociais, que se tornou muito usual no dia a dia das pessoas e está relacionada à capacidade de uma empresa crescer, porque cada novo usuário gera mais usuários sem nenhum investimento financeiro extra para que isso aconteça (PENENBERG, 2010).
Apesar de poderem pagar para impulsionar suas mensagens na rede, ampliando o alcance, o que as empresas mais desejam atualmente é tê-las “viralizadas” espontaneamente, visto que o alcance orgânico significa não apenas que mais pessoas viram sua mensagem sem investimento financeiro, mas que elas de fato gostaram do conteúdo acessado, valorizando seu repasse para suas redes de influência. As campanhas publicitárias do século XXI são pensadas de maneira a favorecer a viralização em função da capacidade de gerarem o interesse espontâneo dos internautas. Para isso, utilizam-se de ideias criativas e inovadoras capazes de surpreender o público com conteúdos relevantes, de acordo com seus interesses previamente pesquisados.
Nesse contexto, a linguagem publicitária tradicional perde espaço e dá a vez a múltiplas linguagens hibridizadas com as artes visuais, conteúdos editoriais e as mais diversas formas artísticas, sempre com o intuito de aproximar empresas e pessoas, além de gerar vendas, em última instância, como veremos a seguir.
Essas novas mídias e linguagens parecem estar articuladas, de maneira crescente, com estratégias e táticas que fazem uso da estetização com o objetivo de melhor envolver consumidores e cidadãos do século XXI. Para Lipovetsky e Serroy, o capitalismo tanto pode ser considerado o sistema que engendra o pior dos mundos possíveis quanto o propulsor de uma estetização da vida cotidiana, que nomeiam também como economia estética (2015, p. 14).
É o que chamamos de capitalismo artista ou criativo transestético, que se caracteriza pelo peso crescente dos mercados de sensibilidade e do ‘design process’, por um trabalho sistemático de estilização dos bens e dos lugares mercantis, de integração generalizada da arte, do “look” e do artefato no universo consumista. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 14)
Os autores avaliam que, quanto mais o capitalismo exige uma racionalidade monetária, mais ele “conduz ao primeiro plano as dimensões criativas, intuitivas e emocionais” (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 15). É notório como a “estetização do mundo” está presente em toda parte e, de maneira ainda mais evidente e sistemática, no universo da gastronomia, em que antigos cozinheiros ganharam status de chefs e alimentos como carnes, antes relegados aos açougues, nos fundos dos mercados públicos ou supermercados, são alçados à condição de iguarias, recebendo tratamento distintivo em ações mercadológicas que os colocam, inclusive, dentro de uma “academia”, conforme veremos a seguir.
A crescente estetização dos bens e das relações contemporâneas parece estar associada a estratégias e táticas de diferenciação de marcas, produtos e serviços, visto que a estetização de bens historicamente “comoditizados” tende a soar para os consumidores como algo inovador e a inovação é um valor da sociedade de consumo, ainda mais da sociedade digital de consumo. De acordo com Trout, “uma forma de deixar sua concorrência para trás é posicionar-se como o que existe de novo e de melhor (com ênfase no ‘novo’)” (2000, p. 167).
Ao refletirmos sobre a estética como valor, podemos ainda perceber a capacidade que ela tem de agregar os indivíduos em torno de crenças e visões de mundo. Maffesoli destaca que, na contemporaneidade, tendemos a nos reunir em comunidades a partir de afinidades nomeadas por ele como “emoções estéticas”. A emoção estética funciona com um cimento social expresso através do trabalho, de festas grupais, de uniformes, de iniciativas de caridade e ações militantes. Curiosamente, de acordo com o autor, nessa sociedade consumista e hedonista, o individualismo, paradoxalmente, convive com um senso gregário de “neotribalização” (MAFFESOLI, 2006).
A Academia da Carne é, dessa forma, uma comunidade virtual pautada na estetização e no senso gregário da cultura da participação, digital e em rede, reunindo internautas de todo o país em torno de emoções estéticas associadas ao consumo criativo e emocional de carnes. Esse case merece atenção por articular muito bem um série de recursos disponíveis para o marketing e a publicidade contemporâneos, que nos propiciam criar, produzir e veicular campanhas mais atuais, criativas e interativas, considerando-se a sociedade em rede, digital e global.
A fim de melhor compreender essas transformações, esta pesquisa utilizou a metodologia qualitativa e a técnica de estudo de caso (DUARTE, 2009, p. 215), tendo como objeto a Academia da Carne, plataforma de comunicação, entretenimento e consumo criada pela agência de publicidade Lew’Lara e pelo Departamento de Mídias Digitais da Rede Globo para a marca Friboi no ano de 2015.
De acordo com Yin, o estudo de caso é uma investigação empírica que busca compreender um fenômeno contemporâneo dentro de um contexto da vida real, “quando a fronteira entre o fenômeno e o contexto não é claramente evidente e onde múltiplas fontes de evidência são utilizadas” (YIN, 2001, p. 32 apud DUARTE, 2009, p. 216). Considera-se qualquer unidade social como um todo capaz de ser avaliado a partir de um raciocínio indutivo, ou seja, deste caso estudado para muitos outros, visto que “os princípios e generalizações emergem a partir da análise dos dados particulares” (DUARTE, 2009, p.17).
A Academia da Carne é um canal de branded content criado para a marca de carne bovina Friboi, líder no segmento no país, com quase meio século de atuação. Desde 2013, a empresa vem promovendo ações de marketing e de comunicação consideradas inovadoras pelo mercado publicitário brasileiro, visto que o setor de vendas de carnes sempre se posicionou como commodity e assim trabalhava sua imagem: sem grandes novidades ou estratégias diferenciadoras. De acordo com a revista Deguste, a Friboi era, em 2016, “reconhecida espontaneamente por 80% dos brasileiros por oferecer produtos de confiança, com garantia de origem e rigorosos processos de qualidade” (SIQUEIRA, 2016).
Com a meta de impactar mais de 130 milhões de brasileiros, em 2016, a plataforma Academia da Carne reunia dicas, cursos, técnicas e receitas sobre carne bovina, tendo como “embaixadores” a apresentadora de televisão Ana Maria Braga e os prestigiados chefs de cozinha, bastante conhecidos também na grande mídia, Olivier Anquier e Guga Rocha. A plataforma funciona em formato mobile first, sendo acessada facilmente pelos telefones celulares conectados à internet (smartphones), o que favorece a interatividade com o público e possibilita acesso móvel rápido e fácil.
A celebritização que envolve a plataforma Academia da Carne Friboi parece ter profundas associações com a ideia de estetização do mundo, defendida por Lipovetsky e Serroy (2015), se tomarmos, especialmente, o termo “estética” em sua matriz primordial “aísthêsis”, que significa sensação. Para Simões (2014, p. 215), “são dons do corpo e do espírito que uma celebridade encarna que constroem esse poder de tocar e sensibilizar a experiência dos sujeitos, que manifestam (ou não) seu reconhecimento em relação às celebridades.”. Sendo assim, os internautas são afetados pelas celebridades envolvidas no projeto num processo maior de estetização do mundo que não somente aquele capaz de glamourizar o universo da gastronomia e do consumo de carnes. A estetização está nas sensações provocadas pela relação com as celebridades envolvidas, com as marcas participantes e com o imaginário fashion associado à plataforma virtual. É possível também perceber, nesse caso, a ideia de comunidade estética ou neotribo de acordo com a perspectiva de Maffesoli (2006).
A Academia da Carne Friboi conta com a participação de diversos chefs e especialistas conceituados na área, como Felipe Bronze, Ana Luiza Trajano, Jimmy McManis, Ivan Aschar, Clarice Chwartzmann, Flavio Myiamura, Carla Pernambuco, Mônica Rangel, Arthur Sauer, André Castro e Kathia Zanatta, consultores do projeto que dividem seu conhecimento com os consumidores através de cursos em vídeo, dentre outros suportes.
Até agora a Friboi tinha contato com os consumidores no momento pré-compra, com ações publicitárias e campanhas de mídia, e na hora da compra, nos supermercados e açougues. Agora estaremos presentes também na hora do preparo, do consumo e pós-consumo. Será um relacionamento muito mais próximo e direto. Queremos que todos tenham confiança e conteúdo para falar sobre carne[4]. (RIBEIRO, 2016)
A Academia da Carne Friboi está dividida em nove seções: Cortes, Receitas, Cursos, Dicas, Cozinha na TV, Pelo Brasil, Chefs, Toque Final e Perfil. De acordo com o site Deguste, a seção Cortes:
Informa quais são as características de cada corte e as receitas que se destinam, para aproveitar o que cada peça tem de melhor; que não existe “carne de segunda”, mas sim a maneira certa de preparo para cada uma; que se deve respeitar as fibras, item fundamental também para garantir a maciez e a suculência de cada peça. Esses itens são explicados de maneira clara e objetiva. (SIQUEIRA, 2016)
O lançamento da plataforma para a imprensa ocorreu no Museu Brasileiro da Escultura (MuBE), em São Paulo, o que nos leva a refletir sobre a escolha do local como mais um mecanismo de estetização da Academia. Os lugares de destaque das carnes bovinas sempre foram os açougues, mas, com a Academia da Carne Friboi, essas passam a frequentar os círculos antes dedicados somente às artes. Note-se a imbricação das artes com toda a sorte de bens, conforme sugerem Lipovetsky e Serroy (2015). Até mesmo carnes de açougue são, agora, “emolduradas” por um ambiente dedicado, tradicionalmente, à alta cultura.
Na coletiva, oferecida no museu, estavam dezenas de profissionais da área de gastronomia, entre jornalistas e blogueiros de todo o país, além dos vários chefs parceiros do projeto, como Ana Luíza Trajano, Carla Pernambuco, Ivan Aschar, Mônica Rangel e Tereza Paim, dentre outros. O clima, como se pode ver nas fotos, era de celebritização da iniciativa.
Note-se que a atmosfera do evento, apresentada na Figura 3, mais parece de lançamento ou premiação de produtos badalados da indústria cinematográfica mundial. Na Figura 4, podemos observar todas as celebridades presentes reunidas num palco, posando à frente de um grande backdrop.
O clima descontraído e, ao mesmo tempo, glamouroso observado na foto acima aponta para a estetização do universo da gastronomia e, especialmente, do consumo de carnes vermelhas, com a Academia da Carne. Observemos o próprio nome do projeto: as carnes de boi saem da condição desprestigiada e comoditizada do açougue, lugar cuja memória discursiva nos remete a sangue, suor e sujeira, para o imaginário da academia, lugar limpo, racional e bem posto, onde as pessoas podem refletir sobre suas escolhas, distinguindo-se dos demais sujeitos e grupos sociais que não podem frequentar aquele lugar de distinção e de legitimação.
Além de apontar para a estetização crescente das mais diversas esferas sociais, o case analisado nos permite pensar sobre como a publicidade, cada vez mais hibridizada com o entretenimento e os conteúdos facilmente acessáveis nas mídias digitais, vem favorecendo a ampliação da vigilância sobre os consumidores em rede (BAUMAN, 2013).
No primeiro acesso pelo celular, o internauta é convidado a se “logar”[7] na plataforma, fornecendo seus dados para o database da Friboi. Essas informações serão utilizadas para entender melhor o seu perfil de consumo, gostos, hábitos e horários de acesso, bem como o percurso que costuma fazer ao visitar a plataforma, ou seja, como se comporta e o que mais atrai sua atenção será devidamente conhecido e registrado pela empresa numa pesquisa de mercado 24/7 em tempo real.
O login realizado pelo internauta também propiciará que, uma vez cadastrado, tenha o seu perfil personalizado de forma randômica com os temas mais buscados por ele dentro do site sempre que o acessar. Essa captura e sistematização de dados propiciada pela plataforma insere o case Academia da Carne na nova publicidade de controle, a publicidade algorítmica, programática e vigilante, que, de acordo com Domingues (2016), segue os passos dos consumidores, conhecendo-o com uma precisão jamais vista, através dos seus rastros digitais.
Ao degustarem as informações, aparentemente gratuitas, oferecidas nas plataformas on-line, os consumidores deixam seus dados e rastros digitais para uso das empresas dentro de um “mercado de dados pessoais” (BELLEIL, 2002) que não para de crescer na última década. Esse mercado consiste na captura, organização e sistematização de dados pessoais dos consumidores a fim de montar perfis passíveis de análise e ordenação em grupos de interesse, com determinados estilos de vida e hábitos de consumo. Associada à perfilização está a possibilidade de personalização, ou seja, de criação de ofertas e sugestões dirigidas para os consumidores em rede a partir do conhecimento das mais variadas informações de sua vida, como lugares que frequenta, de que gosta, como se comporta, entre outras milhares de informações primordiais para entender o seu comportamento de consumo. De acordo com Belleil (2002, p. 18), o mecanismo da personalização é poderoso porque vai sendo reforçado com o tempo: quanto mais se coleta informações sobre o indivíduo, mais as ofertas direcionadas para ele são pertinentes.
Na internet, não temos uma identidade, mas um perfil (COSTA, 2004). Com a explosão da web, no início dos anos 1990, muitos foram os sites que começaram a utilizar a declaração do perfil de cada usuário para uma série de operações: oferta de produtos, notícias e programação nos veículos de mídia, endereçamento de perguntas, encontro de parceiros etc. “A destruição da vida privada está para a economia da informação como a destruição do ambiente está para a economia industrial” (BELLEIL, 2002, p. 7).
A forma como as informações são estruturadas na internet, em rede e reproduzidas em diversos pontos, levou a um novo modo de vigilância, que se preocupa em saber de que modo essas informações estão sendo acessadas pelos indivíduos. Há uma intensa vigilância sobre a dinâmica da comunicação, não apenas entre as pessoas, mas principalmente entre as pessoas e as empresas, os serviços on-line, o sistema financeiro, todo o campo possível de circulação de mensagens. Para Lyon, “se cidadãos comuns e consumidores entenderem esse aspecto da vigilância, eles talvez se tornem menos animados quanto ao comportamento de ‘nada a esconder’ ou quanto à troca de sua ‘privacidade’ por mais ‘segurança’” (LYON apud BRUNO, 2013, p. 171). O que parece interessar, de acordo com Costa, acima de tudo, é como cada um se movimenta no espaço informacional.
Isso parece dizer tanto ou mais sobre as pessoas do que seus movimentos físicos ou o conteúdo de suas mensagens. A vigilância constante sobre as trilhas que os indivíduos deixam na web, por exemplo, tornou-se objeto de inúmeras discussões e especulações. Afinal, quem somos nós? Para onde vamos, o que fazemos, o que dizemos? Ou o que pensamos? O modo como nos deslocamos por entre informações revela muito do como pensamos, pois mostra como associamos elementos díspares ou semelhantes. (COSTA, 2004, p. 164)
A publicidade de controle se configura, então, como a que desponta da ascensão da sociedade de controle, com a programação e a multiplicação dos dispositivos infocomunicacionais. É a publicidade digital, programática, pluridirecional, colaborativa, aberta à cocriação e ao diálogo com os consumidores e cidadãos, baseada no continuum do fluxo informacional, cuja linguagem vai se afastando dos paradigmas publicitários que constituíram a linguagem utilizada pelo setor ao longo do século XX. Está sempre pronta para observar, controlar e envolver os sujeitos que, muitas vezes, não sabem que estão sendo vigiados e seguidos, também desconhecendo que essa nova publicidade faz uso dos dados pessoais deixados pelos indivíduos na rede no “mercado do comportamento”, baseada no uso dos dados pessoais, dos hábitos e dos desejos das pessoas, conforme sugere Pariser (2012, p. 45).
Há uma evidente imbricação dos aspectos da estetização e da vigilância na publicidade contemporânea, com a perfilização e o uso dos filtros invisíveis (PARISER, 2012), que mantêm os internautas/consumidores sendo retroalimentados com seus próprios gostos, a partir das pegadas digitais deixadas em plataformas como a Academia da Carne Friboi.
Hoje, os algoritmos dizem o que devemos ler, assistir e até avaliam o nosso desempenho profissional. Mas, ao mesmo tempo que somos manipulados por eles, não sabemos como esses códigos são formados. Isso é justo? Eu não sei se somos manipulados pelos algoritmos, porque somos nós que manipulamos os algoritmos. Mas você está certo quando diz que eles não são transparentes, então não sabemos o que há dentro desses algoritmos que nós mesmos manipulamos. O que eu acho é que eles deveriam ser muito mais transparentes e abertos e que deveríamos poder participar da criação desses códigos. Mas, é claro, isso vai de encontro a segredos comerciais. Essa é nossa situação hoje. (LÉVY, 2014)
Através das séries de escolhas das notícias lidas, dos bancos de dados subscritos e dos sites visitados, as pessoas passam a criar um filtro de escolhas em torno de si mesmas (PARISER, 2012, p. 11). Amigos e feeds escolhidos arbitrariamente ou de maneira dirigida pelos softwares se tornam os marcadores por meio dos quais os programas e mecanismos de busca escolhem o que mostrar para cada indivíduo. Nesta era de opções previamente sugeridas e programadas por computadores, há um número infinito de possibilidades de escolha, nuances e caminhos que não é sequer cogitado pelas pessoas diante da facilidade das opções previamente ofertadas pela automação e aceitas, rapidamente, com um clique.
A plataforma Academia da Carne Friboi aponta para uma transformação crescente da publicidade. A estetização e o controle se tornam ativos demasiadamente importantes para as marcas dos mais diversos segmentos de atuação. Envolver os consumidores com diferenciais advindos da economia criativa e das tecnologias da informação e comunicação (TICs) parece ser um caminho sem volta para a Publicidade que, como campo, encontra-se tão hibridizada quanto os cases de maior sucesso na área no momento.