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Recepção: 02 Setembro 2018
Aprovação: 25 Março 2019
DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1984-5057.v11i2p28-39
Resumo: Este artigo pretende discutir como plataformas de streaming musical podem contribuir com o gosto dos usuários a partir da sugestão de playlists. Para isso, toma-se o Spotify como referência. Por meio da aplicação de questionários, percebeu-se que há uma percepção idiossincrática entre o consumo de música, a solicitação de sugestões de outras pessoas e a aceitação das playlists indicadas pela plataforma por parte dos usuários.
Palavras-chave: Algoritmo, Gosto, Playlist, Spotify, Usuário.
Resumen: Este artículo pretende discutir cómo las plataformas de streaming musical pueden contribuir al gusto de los usuarios a partir de una sugerencia de listas de reproducción. Para ello, se toma el Spotify como referencia. Por medio de la aplicación de un cuestionario, se observó que hay una percepción idiosincrática entre el consumo de música, la solicitud de sugerencias de otras personas y la aceptación de playlists indicadas por la plataforma mediante los usuarios.
Palabras clave: Algoritmo, Gusto, Playlist, Spotify, Usuario.
Abstract: This article intends to discuss how musical streaming platforms can contribute to the users’ taste by suggesting playlists. For this, Spotify is taken as a reference. By the application of questionnaires, it was noticed that there is an idiosyncratic perception between the music consumption, the solicitation of suggestions from other people and the acceptance of playlists indicated by the platform by the users.
Keywords: Algorithm, Taste, Playlist, Spotify, User.
INTRODUÇÃO
As relações entre consumo, produtos culturais e gosto vêm sendo longamente discutidas de formas distintas em maior ou menor escala. Adorno e Horkheimer (1985), ao tratar das Indústrias Culturais, falam da estandardização do gosto e de como a industrialização e o consumo da música são em si viabilizados pela estandardização da música popular. É sobre este mote que Bourdieu (2013) elabora suas discussões acerca da relação entre consumo cultural e status social ao final da década de 1970. Para o autor, os padrões de consumo são definidos por meio de dois aspectos, sendo o primeiro a estrutura social, na qual ele classifica o gosto em gosto legítimo, gosto médio e gosto popular, e o habitus, princípio gerador de práticas sociais que, ao mesmo tempo, é um esquema de classificação dessas práticas. Sinteticamente, por habitus entende-se um “sistema de disposições duráveis e transponíveis que exprime, sob a forma de preferências sistemáticas, as necessidades objetivas das quais ele é produto” (BOURDIEU, 1976 apud ORTIZ, 1983, p. 82), algo construído através da relação entre a experiência de cada indivíduo e seu entorno.
A popularização dos dispositivos digitais conectados à internet nas duas primeiras décadas do século XXI, e o desenvolvimento de plataformas de consumo musical on-line e em streaming, têm provocado mudanças na forma de consumir música e, em tese, uma percepção diferenciada desse consumo. Isso porque permitem que o consumidor – aqui também chamado de usuário – saia de uma lógica passiva e unilateral de recepção de conteúdos e escolha aquilo que consome ao dar entradas (inputs) em sistemas algorítmicos (softwares), permitindo que esses sistemas de inteligência artificial coletem dados sobre si, viabilizando não apenas a recepção daquilo que é demandado, mas também de conteúdos novos ofertados pelo algoritmo, definidos, em tese, a) pelo consumo prévio, b) por escolhas individuais e c) por aquilo que consomem os contatos nas redes de relacionamento desse usuário.
Trabalha-se aqui, sobretudo, no campo do ideal ou do hipotético, daí o uso do termo “em tese” no trecho anterior. Primeiro, porque não se sabe ainda se estamos tratando de uma forma de consumir música completamente diferente das anteriores. Em tratando-se de forma, sem dúvida. Não há de se incorrer no equívoco grosseiro de equiparar uma plataforma de streaming ao rádio ou a um álbum, seja em vinil ou CD, embora o streaming permita que o rádio e o álbum sejam emulados. A maneira mais comum de veiculação de conteúdo musical no streaming é a playlist. Por conta disso, poderíamos também cair na tentação de comparar essas playlists àquelas anteriormente feitas por profissionais (Disk Jockeys – DJ) e consumidores de música. Contudo, a plataforma muda não só o modo de consumo mas a forma como a playlist chega ao usuário e mesmo como é produzida. Há de se perguntar, então, o que há de efetivamente novo e de diferente no consumo de música via streaming em relação ao que era feito anteriormente.
Percebemos, ao longo do estudo que culminou com a produção deste artigo, que há tanto continuidades quanto rupturas em relação ao consumo musical anterior ao streaming, sendo esta a verdadeira riqueza das novas plataformas. Não cabe a um artigo, porém, apenas esgotar tal assunto. O segundo “senão” estabelecido se refere ao fato de o algoritmo basear sua oferta de conteúdo inédito ou repetido no consumo prévio de cada usuário. Segundo a utopia das empresas de software, seu jogo é limpo. Se fosse, poderíamos confiar que o algoritmo também o é, que as indicações feitas por ele são sempre isentas, porque são meramente maquínicas e que os softwares, dentro de uma lógica de ator-rede (LATOUR, 2011), são isentos. Todavia, as empresas não são isentas. São atores políticos, sociais e econômicos inscritos em contextos específicos.
Em termos gerais, este artigo pretende tratar de forma introdutória do consumo de música por meio da plataforma Spotify. Em termos específicos, buscaremos responder à seguinte pergunta: o consumidor compreende que seu gosto musical pode ser afetado pelo sistema de indicação do Spotify, isto é, por seu algoritmo? Para isso, faremos uma pequena introdução sobre a plataforma e seu funcionamento, tendo em vista que o sistema de recomendação algorítmico se diz neutro, embora haja acusações de que dê mais visibilidade a certos artistas em detrimento de outros, de acordo com seus próprios interesses. Após tratar do Spotify, trazemos um questionário aplicado no primeiro semestre de 2018, para compreender como o usuário percebe a plataforma e a indicação de playlists. Por fim apresentamos as considerações finais, com aquilo que foi possível sistematizar a partir da pesquisa.
SPOTIFY E CONSUMO DE MÚSICA
Idealizado por Daniel Ek e Martin Lorentzon, na cidade sueca de Estocolmo, o Spotify surgiu com o propósito de proporcionar uma nova forma de ouvir música. Disponível para diversos dispositivos, a plataforma fornece conteúdo através da transmissão instantânea de dados de áudio e vídeo por meio de redes, serviço conhecido como streaming.
Desde 2014 o Spotify passou a incluir algoritmos que possibilitam recomendações de conteúdo personalizado com o objetivo de aprimorar constantemente a qualidade do serviço. Combinando diferentes técnicas como filtragem colaborativa, metadados e análise de áudio, a plataforma analisa cada passo do usuário, coletando informações e, por meio de agentes de inteligência artificial presentes em seu sistema de recomendação, indica itens que acredita ser demandados pelo público.
Para Resnick e Varian (1997, p. 57), sistemas de recomendação são aqueles que utilizam as opiniões de uma comunidade de usuários – e do próprio usuário como no caso do serviço em questão – para auxiliar indivíduos desta mesma comunidade a identificar conteúdos de interesse em um conjunto de opções que poderiam caracterizar uma sobrecarga. É por esta ferramenta que a plataforma se diferencia das mídias tradicionais, como o rádio, já que a possibilidade de um conteúdo construído exclusivamente para cada usuário torna o streaming mais interessante.
Existem dois modos de fazer uso do aplicativo: o plano Spotify Free e o plano Spotify Premium. No Spotify Free o anúncio publicitário é inserido no intervalo entre as faixas selecionadas pelo usuário e o conteúdo pode ser acessado apenas quando o usuário estiver conectado à internet. Já no Spotify Premium, versão paga do serviço, o usuário livra-se dos anúncios e pode consumir conteúdo mesmo sem conexão de rede. Contando com 170 milhões de usuários ativos por mês no mundo todo, sendo 22,8% deles entre 15-65 anos, este é atualmente o maior serviço de música no Brasil em termos de alcance semanal[1].
Frith (1996, p. 67, tradução nossa) vê na relação entre o consumo musical e o indivíduo um caminho para a construção da identidade pessoal a partir da ligação entre afeto e consumo: “A música constrói nosso senso de identidade através das experiências diretas que esta oferece ao corpo, ao tempo e à sociabilidade, experiências que nos permitem colocar-nos em narrativas culturais imaginativas”.
Na contemporaneidade, é cada vez mais comum a criação de ferramentas que busquem aumentar o consumo por meio da sedução, visto que “o hiperconsumidor já não procura tanto a posse das coisas por elas mesmas, mas, sobretudo, a multiplicação das experiências, o prazer da experiência pela experiência, a embriaguez das sensações e das emoções novas” (LIPOVETSKY, 2007, p. 54), passando a consumir produtos feitos à sua imagem. Assim, o Spotify parece ser a ferramenta perfeita para um consumo controlado agora transformado em fetiche.
Considerada hoje uma grande ferramenta de marketing musical, o Spotify tem introduzido novas músicas e artistas a milhões de usuários. Drew Lam (GWYNN, 2017), membro da equipe de Artist & Manager Services do Spotify UK afirma que o Spotify tem ajudado a impulsionar o crescimento da indústria musical. A receita total na indústria global havia caído 36% entre 1999 e 2014, indo de US$ 23,8 bilhões para US$ 14,3 bilhões. Entre 2015 e 2016, com a participação do Spotify e de outras plataformas de streaming, os valores aumentaram para US$ 15,7 bilhões, o que representa certa recuperação.
Convencidos da relevância da plataforma, mais artistas se encorajam a inserir suas composições no sistema. Assim, o Spotify tem se tornado uma enorme vitrine. Para artistas emergentes, participar de uma playlist oficial ou de grande visibilidade na plataforma significa ter reconhecimento. Há uma lista enorme de blogs voltados a ensinar aos artistas maneiras de entrar nas playlists do Spotify de modo a tirarem proveito disso.
Mastrogiacomo (2018), em artigo para o Sonicbids Blog, entrevistou alguns artistas que conseguiram este reconhecimento. O artigo se divide em alguns pontos. No primeiro, ela questiona como os artistas emergentes ganham lugar nas playlists do Spotify. Ian Cunningham, da banda Acid Tongue (com músicas nas playlists oficiais do Spotify “Garage Jams” e “Fresh Finds: Six Strings”), compartilha que “ser bem-sucedido como um artista emergente é fazer malabarismos com muitos pratos: turnês, imprensa, rádio, playlists, distribuição etc. E todas essas pequenas vitórias se alimentam” (MASTROGIACOMO, 2018, tradução nossa). Muitos dos artistas ouvidos durante a pesquisa informaram que o primeiro passo é ganhar espaço em pequenas listas de reprodução, para provar que a demanda por sua música existe. Esta estratégia inicial com um trabalho duro bem planejado e, algumas vezes, sorte, segundo Mastrogiacomo (2018), são instrumentos essenciais para o começo do percurso.
No segundo ponto, ela questiona se é real a possibilidade de artistas emergentes entrarem nas playlists oficiais do Spotify. A resposta foi que sim, mas que é preciso ser paciente, dedicado e possuir uma boa estratégia. Provar que as pessoas realmente querem ouvir suas músicas é um dos métodos, juntamente a uma forte presença nas redes sociais e a realização de shows. Assim como produtos, as pessoas precisam conhecer o artista para sentirem a necessidade de consumir sua música. É pra isso que a inserção das músicas em playlists orgânicas serve. Brian McLaughlin, da banda The Rare Occasions, que conseguiu entrar nas playlists “Fresh Finds: Six Strings” e “Indie Songs for Slackers” explicou como funcionou com sua banda:
Uma coisa que fizemos no ano que antecedeu o lançamento foi tentar trazer nossos fãs para a plataforma Spotify e aumentar nossa audiência lá. Fizemos isso postando links para nossas faixas e também contatando curadores de playlists de terceiros e colocamos nossas músicas lá. Essas playlists não recebem o mesmo público que as oficiais do Spotify, mas na época não tínhamos muitos ouvintes e acho que o esforço que fizemos para incentivar nossos ouvintes e seguidores também pode ter ajudado nossa nova música a entrar no radar do Spotify. (MASTROGIACOMO, 2018, tradução nossa)
O último ponto é reservado à tentativa de compreender se há como acelerar este processo de entrada. Com todos os exemplos pesquisados por ela, foi possível perceber que apesar de muitos artistas terem percorrido o mesmo caminho, havia alguns com quase nenhum reconhecimento inicial que conseguiram um lugar no cenário musical sem precisar de tanto esforço, algo que poderia ser considerado “sorte”.
Forde (2017) discute quanto as playlists do Spotify modificam os processos de composição musical atualmente. As listas de reprodução da plataforma estão se tornando tão influentes quanto as rádios foram e o sucesso de listas categorizadas por estados de humor no lugar de gêneros musicais – a exemplo da lista “Afternoon Acoustic” com mais de dois milhões de seguidores – marcam uma transformação na forma de classificar música. George Ergatoudis, ex-chefe de música da Radio 1 e 1Xtra, agora trabalhando no Spotify, explica a Forde (2017, tradução nossa) que: “O público mainstream geralmente precisa de mais orientação para ajudá-lo a descobrir novas músicas […]. As listas de reprodução cumprem bem essa função”.
Forde (2017) traz em seu artigo a percepção de um novo tipo de multiformatação: enquanto nas décadas passadas o foco era em uma gravação principal a ser explorada em muitos meios (LP, CD, cassetes, TV, rádios etc.), hoje as mesmas músicas passam por alterações e arranjos distintos com o objetivo de chegar ao máximo de playlists. Versões acústicas, remixes, parcerias e variações são concebidas para que a mesma composição-base seja integrada em qualquer playlist que esteja em alta.
Ergatoudis afirma: “A indústria está ficando muito mais inteligente em entender o portfólio de playlists do Spotify”, e explica: “Há lançamentos para playlists específicas com mais frequência agora” (FORDE, 2017, tradução nossa). O projeto More Life do rapper Drake, por exemplo, já não é considerado um álbum e sim uma playlist. Não existe um conceito ou uniformidade nas músicas da obra, de modo que se configure um álbum no sentido tradicional. O More Life é uma coletânea de composições escolhidas pelo artista, na qual estão presentes canções variadas, algumas das quais nem o próprio Drake faz parte.
Tendo em vista o poder da plataforma, os integrantes do Spotify acreditam que são capazes de apontar a seus usuários qual será o próximo grande artista do cenário musical. Segundo o diretor de negócios do Spotify, Jeff Levick:
Uma das coisas para as quais usamos os dados é realmente entender – e acreditamos que nos tornamos muito bons nisso – quais artistas ou quais músicas serão sucesso. Colocamos muita energia e tempo nesses artistas e músicas para promovê-los. (LEVY, 2015, tradução nossa)
Levick também informou que a empresa tem interesse em talentos menos conhecidos, aproximando-se dos empresários de artistas que estejam com engajamento alto no Spotify com o objetivo de ajudá-los a crescer. Artistas como Lorde e Hozier foram citados como exemplos disso.
Com a coleta de milhões de dados avaliando o gosto musical do usuário para extrair recomendações musicais, o Spotify é visto como uma biblioteca neutra, na qual cada indivíduo recebe o conteúdo que melhor se ajusta ao seu gosto. Para Hwei (2015), com afirmações como as de Levick, assumindo que a empresa possui interesse em artistas específicos e que determina qual vai ser o artista do momento ou o hit do ano, é possível perceber seu enorme poder dentro da indústria musical atual. Se levarmos em consideração a quantidade de dados coletados sobre os hábitos musicais dos milhões de usuários, esse poder ganha dimensões enormes.
ABORDAGEM METODOLÓGICA E RESULTADOS
Buscando investigar melhor o objeto de estudo foi feita uma pesquisa exploratória utilizando um questionário on-line com o objetivo de identificar o perfil do consumidor da plataforma Spotify e o tipo de percepção que é elaborada a respeito do sistema de indicações feito pela plataforma. O questionário ajudou a compreender as características dos usuários da plataforma e como se comportam ao utilizar o serviço, sendo de extrema importância para as considerações finais da pesquisa. Foi possível observar se o consumidor compreende que seu gosto musical pode ser afetado pelo sistema de indicação do Spotify e outros pontos relativos a isso, como se verá posteriormente.
Para este artigo foram aplicados 64 questionários a partir de uma abordagem feita por critério de proximidade. A pesquisadora que originalmente coletou e tabulou os dados usou suas próprias redes sociais como ponto de partida para convidar voluntários a responder e divulgar o questionário. Não foram utilizados quaisquer recursos financeiros nesta pesquisa, algo que explica a questão anterior. Isto inviabilizou a estruturação de critérios estatísticos pelo uso de questionários on-line para grandes quantidades de respondentes (a plataforma utilizada, o Google Forms, assim como outras semelhantes, torna-se paga quando há mais respondentes ou perguntas envolvidas, entre outros aspectos), assim como sua divulgação e tabulação. Usando-se a lógica de proximidade, com a aproximação espontânea dos respondentes – pessoas que viram a pesquisa ser divulgada e apresentaram-se como voluntárias para respondê-la – 64 questionários foram integralmente respondidos.
Sabe-se que isso torna este trabalho frágil em termos metodológicos, contudo, prefere-se aqui pensar de forma exploratória. Isto é, tanto considerando que a aplicação do questionário é em si uma etapa exploratória para esta e outras pesquisas de caráter e conteúdo semelhante, quanto ao levar em conta que, mesmo sem um tratamento estatístico adequado, essa abordagem mostrou-se capaz de apontar respostas para a pergunta postulada na introdução deste artigo. Optamos aqui por apresentar alguns dos dados coletados de forma descritiva e outros, mais relevantes para os objetivos propostos, na forma de gráficos, de modo que sua leitura seja facilitada.
Dos respondentes, 57,8% (37) declararam ser do gênero feminino e 42,2% (27) do masculino. Isoladamente e para esta pesquisa este dado não traz impactos, servindo somente para conhecer a distribuição de gênero entre os entrevistados.
Em termos de faixa etária 89,06% (57) dos respondentes possui entre 18 e 25 anos; 9,37% (6) entre 26 e 35 anos e 1,57% (1) está abaixo de 18 anos. Inicialmente acreditou-se que isso fosse um viés proporcionado pela abordagem metodológica por proximidade. Mesmo com alternativas voltadas para um público com mais de 35 anos, apenas usuários abaixo desta idade responderam ao questionário, o que poderia refletir a idade da pesquisadora que elaborou e aplicou o questionário. Em detrimento disso, a presença marcante de pessoas pertencentes à geração dos millennials, formada por indivíduos nascidos da década de 1980 até o começo dos anos 2000, foi confirmada por dados divulgados em 2016 nos quais esse grupo demográfico foi responsável por 72% de todos os fluxos semanais do Spotify (MCINTYRE, 2016).
Em termos de dispositivos de acesso e uso, 73,4% (47) dos usuários afirmaram usar o Spotify exclusivamente pelo celular, 18,7% (12) exclusivamente pelo computador, 4,7% (3) m ambos, 1,6% (1) no carro (rádios com saídas USB, bluetooth e análogos) e 1,6% (1) em outros dispositivos, como videogames. Isto corrobora com dados que apontam que 25% dos millennials gastam mais de 5 horas por dia utilizando o aparelho celular (SMARTPHONE…, 2017).
A respeito do nível educacional, 53,1% (34) dos respondentes têm ensino superior incompleto; 25% (16) têm ensino superior completo; 6,3% (4) têm pós-graduação; 14% (9), ensino médio completo; e 1,6% (1), ensino médio incompleto. Mais da metade dos entrevistados são estudantes universitários, o que é explicável tanto em função do critério de proximidade a partir do qual esta pesquisa foi desenvolvida, quanto pela existência de um desconto de 50% no valor total da assinatura Premium para estudantes universitários. A respeito do tipo de assinaturas, 17,2% (11) dos usuários possuem o tipo Premium Universitário; 32,8% (21), Premium Familiar; 34,4% (22), Free e 15,6% (10), Premium.
Entre os entrevistados, 29,7% (19) usam a plataforma desde 2017; 26,6% (17) usam desde 2016; 9,4% (6) não se recordam; 10,9% (7) usam desde 2014; 20,3% (13) usam desde 2015 e 3,1% (2) começaram a usar em 2018. A questão seguinte se refere à frequência diária de uso do Spotify.

O Gráfico 1 aponta que 43,8% (28) do total não pede recomendações musicais a conhecidos. Pouco mais da metade dos respondentes procura de alguma forma conhecer novas músicas dentro da plataforma por meio de recomendações de conhecidos. Surpreendentemente, boa parte dessas recomendações se dá pessoalmente e isso teria de ser investigado mais profundamente no futuro. De todo modo, isso indica que os usuários estão inclinados a aceitar sugestões de atores não-maquínicos.

Em detrimento do que foi dito no Gráfico 1, aqui, 62,5% (40) dos respondentes aponta receber conteúdo recomendado pela plataforma. Nota-se que, se na questão anterior muitos usuários afirmam não pedir indicação a outros sujeitos, aqui eles dizem aceitar as indicações de playlists que o algoritmo proporciona. Vale ressaltar que aceitar conteúdo direcionado é ideal para o bom funcionamento do sistema de indicações. As chances de se obter conteúdo recomendado que agrade o usuário é tão maior quanto for o uso ativo da plataforma. Assim, pessoas que não possuem o hábito de consumir conteúdos recomendados comprometem o bom funcionamento do sistema de recomendação, que não vai ofertar conteúdo adequado para aquele usuário. Neste sentido a lógica ator-rede (LATOUR, 2011) não é capaz de se estabelecer.

Por extensão, conhecer novos artistas é uma consequência natural de aceitar conteúdo recomendado pela plataforma. O usuário consome o conteúdo recomendado e seleciona os artistas que prefere. Quanto mais ele consome, maior será a chance de o conteúdo ofertado lhe agradar, porque o algoritmo do Spotify é um agente de inteligência artificial que aprende por meio das entradas fornecidas pelo usuário. Seja como for, isto parece indicar uma alteração do gosto. Apenas 17,2% (11) dos respondentes permanecem ouvindo apenas artistas que consumiam antes de usarem a plataforma. Os demais, em menor ou maior grau, incorporam artistas que conheceram na plataforma ao seu consumo musical. Este fato é bastante semelhante no quesito gênero musical, como se verá abaixo.

O Gráfico 4, assim como o 3, mostra os efeitos das ações da plataforma. No lugar de artistas, aqui trata-se de gêneros musicais, um campo muito mais amplo no qual os artistas em si estão inseridos. Ainda que o número de entrevistados que não tenha conhecido um novo gênero seja significativo, 68,75% (44) foram apresentados a novos gêneros. Não obstante, cabe lembrar que, com as playlists, a plataforma coloca em questão a própria definição de gêneros musicais e suas fronteiras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não é possível afirmar com base nos dados levantados se o uso do Spotify é capaz de alterar o gosto musical dos usuários. Isso exigiria, além de uma pesquisa de caráter estatístico de fato, uma abordagem mais próxima do usuário para compreender se o gosto, pelo menos em termos do que foi definido por Bourdieu, foi efetivamente modificado. A este respeito, o autor afirma que “não há nada tão poderoso quanto o gosto musical para classificar os indivíduos e por onde somos infalivelmente classificados” (BOURDIEU, 2013). Contudo, a resposta à pergunta “o consumidor compreende que seu gosto musical pode ser afetado pelo sistema de indicação do Spotify, isto é, por seu algoritmo?”, postulada na introdução, tende a ser negativa, embora o usuário se deixe permear pelo conteúdo ofertado pelo Spotify.
Essa idiossincrasia é em si o principal achado desta pesquisa e sugere-se que sirva de inspiração para trabalhos futuros. 62,5% dos usuários aceitam as indicações feitas pela plataforma (Gráfico 2). Podemos inferir então que, como consequência, 17,2% dos respondentes permanecem ouvindo apenas artistas que consumiam antes de entrarem na plataforma, enquanto todos os outros passam a consumir novos artistas (Gráfico 3) e 68,75% foram apresentados a novos gêneros musicais (Gráfico 4). Estes dados são bastante significativos do potencial de influência do Spotify sobre os usuários. Quase metade (43,8%) não pede recomendações musicais a conhecidos, deixando-se levar por aquilo que o algoritmo indica (Gráfico 1). Pode-se dizer sinteticamente que o usuário do Spotify não parece compreender neste momento que o sistema de indicação da plataforma afeta, senão seu gosto, para não entrarmos no conceito de gosto como Bourdieu o postula, mas a forma como a música é consumida.
Sabe-se que a identidade é um processo contínuo de construção pessoal e que a música, assim como outras formas de arte, faz parte deste processo. Entende-se que ela é uma forma de expressar ideias, valores, estilos de vida e ainda é capaz de nos incluir em grupos sociais com os quais nos identificamos. Pelo gosto musical conseguimos transmitir aquilo que somos.
O que aparentemente parecem ser pequenos gestos aleatórios (alguém trocando estações de rádio, avançando faixas de CD ou expressando desgosto por uma música em particular, por exemplo) acaba tendo um impacto vitalmente importante em nosso próprio senso de identidade, bem como sobre a forma que escolhemos nos apresentar ao mundo. (WASHBURNE; DERNO, 2004, tradução nossa)
Frith (1996) acredita que essa visão expressivista de que os sons devem de alguma forma “refletir” ou “representar” o povo é limitada e aberta a receber críticas, pois faz parecer que as pessoas e grupos possuem crenças e identidades fixas. Para ele, a relação entre música e identidade não deve ser resumida apenas em “representação do que somos” e sim como elemento essencial para o desenvolvimento da identidade pessoal, uma força que cria e molda a identidade do indivíduo. Um exemplo disso são as pesquisas que mostram a importância da música como “contexto de autoexploração” para adolescentes que estão em fase de transição da identidade infantil para uma identidade mais autônoma (VOLGSTEN, 1999), mostrando que a identidade é uma questão prática voltada ao que fazemos e não ao que somos, ao que Frith (1996) se refere como “the self-in-process” (o eu em construção) e que está incluso em um contexto social.
Isso se relaciona à pesquisa no sentido em que os questionários aplicados apontam para o consumo de novos artistas e mesmo de gêneros musicais a partir daqueles que as playlists do Spotify apresentam. Aceitar as indicações da plataforma está circunscrito ao que fazemos. Em paralelo, e cabe investigação a respeito, há uma relação idiossincrática entre aceitar indicações musicais (ou não) de atores humanos e aceitar (quase sempre, conforme os dados mostram) as playlists oferecidas pelo Spotify. Embora não peçam sugestões da plataforma, dando preferência a recomendações de pessoas que conhecem e afirmando privilegiar contatos sociais de caráter físico em detrimento dos virtuais, os usuários aceitam receber indicações de playlists do Spotify. Parece haver certo distanciamento entre a percepção do uso que o consumidor faz da ferramenta, isto é, da forma como o indivíduo acredita consumir pelo Spotify, e aquilo que acontece de fato em termos de mecânica e funcionamento da plataforma.
Estabelece-se de forma bastante evidente a dinâmica do ator-rede, conforme proposta por Latour (2011), na qual os atores ou actantes humanos são os usuários e os maquínicos, a plataforma, são algoritmo(s). Todos interagem entre si em sistemas complexos de retroalimentação, em que o actante maquínico aprende e se adapta aos humanos, colhe dados a respeito deles (a partir de inputs fornecidos por desenvolvedores de software e pelos próprios usuários) e oferece outputs, no caso do Spotify, entre outras coisas – e esse talvez seja o principal serviço ofertado pela plataforma – música direcionada de acordo com o gosto do usuário e, eventualmente, de suas redes de relacionamento.
Na utopia do software isento isso seria o paraíso. Ilhas de gosto em que cada usuário pode se refugiar. Mas, praticamente desde Tron (1982), software isento deveria ser sido tratado apenas como utopia. Tron, inclusive, fala do Master Control Program, software que, por meio de processos de aprendizagem, se torna mais astuto que seu criador e o golpeia, iniciando uma espécie de revolução na qual as máquinas controlam os indivíduos. O Spotify já foi vendido como uma espécie de revolução do gosto. Mas isenção, sabemos, não existe, e cabe aqui voltar às acusações de que o Spotify pode manipular as playlists para promover artistas e ocultar outros. Cabe também perguntar se as ilhas de gosto são sempre positivas ou se a compartimentalização extrema seria capaz de fazer o gosto definhar.
De qualquer forma, fica o alerta da metáfora. Assim como os inadvertidos criadores de Tron não sabiam do enorme poder que o Master Control Program estava angariando ao acumular conhecimentos, já que era um sistema de inteligência artificial, os usuários do Spotify parecem utilizar a plataforma descuidadamente. Por isso o clássico filme de 1982 como metáfora. É pouco provável, contudo, que o software do Spotify vá tentar controlar os usuários. Todavia, viu-se ao longo deste texto que, se estamos distantes da distopia do software proposta por Tron, tampouco estamos próximos da utopia do software do bom gosto ou, pelo menos, do gosto neutro. Os usos de uma plataforma do porte e da rentabilidade do Spotify não parecem ser isentos. Há de se ficar cada vez mais atento às formas de consumo mediadas por sistemas algorítmicos e de suas implicações para os actantes, sejam eles empresas, prestadores de serviço – neste caso, artistas – ou consumidores.
Percebemos, ao longo do estudo que culminou com a produção deste artigo, que há tanto continuidades quanto rupturas em relação ao consumo musical anterior ao streaming, sendo esta a verdadeira riqueza das novas plataformas. Não cabe a um artigo, porém, apenas esgotar tal assunto. Prefere-se aqui pensar de forma exploratória. Isto é, tanto considerando que a aplicação deste questionário foi em si uma etapa exploratória para esta e outras pesquisas de caráter e conteúdo semelhante, tanto ao levar em conta que, mesmo sem um tratamento estatístico adequado, esta abordagem mostrou-se capaz de apontar respostas para a pergunta postulada na introdução deste artigo. Por fim, enfatiza-se que é preciso realizar pesquisas mais aprofundadas e acompanhamentos prolongados de sujeitos variados para que seja possível fortalecer a hipótese aqui postulada de que a plataforma influencia efetivamente a construção do gosto musical dos usuários.
Referências
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Notas