Resumo: Este artigo analisará a influência da religião islâmica na formação da personalidade infantil. Enquanto a boneca Barbie representa tudo o que uma menina ocidental supostamente quer ser, em relação a comportamento e padrões de beleza, a boneca Fulla caracteriza a jovem muçulmana, com traços árabes, roupas que cobrem a totalidade do corpo, um véu que esconde seus cabelos, tapete para rezar, além de um livro de orações. Por meio da análise semiótica da boneca Fulla e de suas principais manifestações, fica evidente que a constituição da marca, suas expressividades e posicionamentos refletem o ethos islâmico. Mais do que uma boneca ou uma marca, Fulla representa o contexto cultural no qual a menina, público consumidor do produto, está inserida, reforçando os códigos religiosos e de conduta.
Palavras-chave:FullaFulla, Marca Marca, Publicidade Publicidade, Criança Criança, Islã Islã.
Abstract: This article will analyze the influence of the Islamic religion on the formation of the infant personality. While the Barbie doll represents everything a western girl supposedly wants to be, in relation to behavior and beauty standards, the Fulla doll features the young Muslim girl, with Arabian traits, clothes that cover the whole body, a veil that hides her hair, a prayer rug, and a prayer book. Through the semiotic analysis of the Fulla doll and its main manifestations, it is evident that the brand's constitution, its expressiveness and positioning reflect the Islamic ethos . More than a doll or a brand, Fulla represents the cultural context in which the girl, a consumer of the product, is inserted, reinforcing religious and conduct codes.
Keywords: Fulla, Brand, Advertising, Child, Islam.
Resumen: Este artículo busca analizar la influencia de la religión islámica en la formación de la personalidad infantil. Mientras que la muñeca Barbie representa todo lo que supuestamente quiere ser una niña occidental en relación a comportamiento y patrones de belleza, la muñeca Fulla caracteriza a la joven musulmana, tiene rasgos árabes y lleva puesto ropas que cubren totalmente al cuerpo y un velo que esconde sus cabellos, además de acompañarla una alfombra para rezar y un libro de oraciones. Por medio del análisis semiótico de la muñeca Fulla y de sus principales manifestaciones, queda evidente que la constitución de la marca, sus expresividades y posicionamientos reflejan el ethos islámico. Más que una muñeca o una marca, Fulla representa el contexto cultural en el que se inserta a la niña, público consumidor del producto, reforzando los códigos religiosos y conductuales.
Palabras clave: Fulla, Marca, Publicidad, Niña, Islam.
Artigos
Fulla: a boneca muçulmana. a formação da personalidade de meninas islâmicas por meio do ato de brincar
Fulla: the muslim doll. The formation of the personality of islamic girls by the act of playing
Fulla, la muñeca musulmana: la formación de la personalidad de chicas islámicas por medio del juego

Recepção: 20 Setembro 2018
Aprovação: 14 Maio 2019
Islamismo, a religião que mais cresce no mundo contemporâneo, possui mais de 14 séculos de história, é praticada por cerca de um bilhão de pessoas no mundo e seus seguidores ocupam um vasto território que “[…] estende-se do Marrocos à Indonésia, do Cazaquistão ao Senegal” (LEWIS, 2004, p. 11). A fé islâmica engloba diferentes nacionalidades, raças e culturas, sendo que a maior comunidade islâmica do mundo está na Indonésia. Os continentes africano e asiático apresentam uma grande quantidade de seguidores e 18% dos fiéis encontra-se no mundo árabe.
A palavra Islã significa submissão, sendo derivada da raiz árabe salama, que também é utilizada como forma de cumprimento entre as pessoas. “[…] ‘salama’ […] significa paz, pureza, submissão, obediência etc. No sentido religioso, a palavra Islã significa ‘submissão voluntária à Vontade de Deus e Obediência à Sua lei’” (ALTOÉ, 2003, p. 9).
A relação existente entre o sentido literal da palavra e seu contexto religioso pode ser percebida com facilidade, sendo a total submissão à vontade de Deus condição essencial para ser muçulmano e para gozar de paz física e mental. A “[…] obediência traz paz ao coração e estabelece a verdadeira paz na sociedade em geral” (O ISLAM…, [201-], s.p.).
O seguidor do Islã é denominado muçulmano, que vem da palavra árabe muslim e indica a pessoa que se submete, de livre e espontânea vontade, a Deus, em árabe, Allah. O muçulmano pode encontrar-se em qualquer lugar do mundo, mas deve sempre ser fiel, obediente, leal a Deus e respeitar seus desígnios.
Assim, muçulmano é aquele que se submete a Deus e vive em paz com o Criador, consigo mesmo, com as outras pessoas e com o seu meio ambiente, o Islam é um sistema completo de vida e o muçulmano vive em paz e harmonia com todos estes segmentos. (Ibidem, [201-], s.p.)
O uso da palavra Allah não admite gênero, tampouco plural, pois é único e soberano, sendo ele mesmo o fundador do Islã. As relações entre o homem e Deus são diretas, o que exclui a adoração de santos ou imagens na religião islâmica.
O registro das palavras de Deus está no Alcorão, “[…] um código de leis que deve reger a vida em todas as áreas” (CORÃO…, 2016, s.p.). As palavras foram reveladas durante 23 anos, por intermédio do Anjo Gabriel, a Mohammad[1], considerado o profeta final. Nascido na cidade de Meca, na Arábia, Mohammad recebeu a mensagem de Deus aos 40 anos de idade. “A revelação recebida tomou o nome de Alcorão e a mensagem é chamada de Islam” (O ISLAM…, [201-], s.p.).
Alcorão é a palavra literal de Deus ditada pelo Anjo Gabriel, significa recitação ou leitura e apresenta 99 atributos de Allah, dentre eles, “O Clemente”, “O Misericordioso” e o “O Primeiro”. O original do Alcorão foi escrito em árabe, é composto por 114 capítulos, os surahs e 6.236 versos, os ayats. O Alcorão é considerado um código de comportamento que regra a vida espiritual do indivíduo de forma isolada e inserido na coletividade. O registro é considerado o único caminho de salvação da humanidade.
Toda a lei do Islã está no Alcorão. E o Alcorão abrange toda a vida da pessoa. Relações com Deus, culto, também higiene, conveniências, educação, moral individual, vida social e política: nada escapa à religião. Tudo é rito, porque a onipotência de Deus e de sua lei, o Alcorão, se estende a todos os domínios de sua criação. Para o muçulmano, não há distinção entre o profano e o sagrado. Sua vida toda é regida pelo Alcorão. (SAMUEL, 1997 apud ALTOÉ, 2003, p. 33)
Além do livro sagrado, o comportamento do muçulmano é norteado pelo hadith, as palavras reunidas do profeta, que representa a aplicação prática dos preceitos, detalhes e explicações necessárias do Alcorão Sagrado. Além da suna, as atitudes do profeta. Os atos cometidos por Mohammad eram alicerçados pela lei do Alcorão. Em seu cotidiano, ele colocava em prática as palavras que recebeu de Deus e, na falta de uma revelação divina, o profeta utilizava o bom senso como guia de conduta. Sendo assim, todo muçulmano deve agir de acordo com os preceitos do Alcorão e do profeta.
A lei islâmica denomina-se Sharia, cujo significado é “o caminho do bebedouro”, ou seja, “o caminho que conduz a Deus” (ALTOÉ, 2003, p. 43). A Sharia regulamenta as relações entre os indivíduos e a sociedade, além das obrigações morais e religiosas. A lei islâmica é a expressão da vontade de Deus e, dessa forma, deve ser respeitada.
Tradicionalmente, no Islã não há distinção entre a religião e a política, tampouco entre a fé e a moral. Todas as obrigações religiosas, morais e sociais do homem estão estabelecidas na sagrada lei muçulmana, a Sharia, o caminho correto para a conduta humana. A lei sagrada se expressa sobretudo no Alcorão, que é muito mais que um texto religioso. Trata-se de um livro de leis que contém instruções sobre o governo da sociedade, a economia, o casamento, a moral, o status da mulher etc. (ALTOÉ, 2003, p. 35)
Mohammad era analfabeto, fato que justifica a crença de que os preceitos do Alcorão não sofreram qualquer influência de outros textos sagrados. O profeta ditava as revelações que recebia de Allah e pedia, a seus mensageiros, que as escrevessem e divulgassem.
O livro sagrado data de mais de 14 séculos, sem ter sofrido qualquer alteração desde sua criação, o que dificulta sua aplicação no mundo contemporâneo, imensamente diferente da época na qual viveu o profeta. Em casos omissos pelo Alcorão, sua interpretação pode ocorrer por analogia ou similaridade. “Para solucionar um problema totalmente novo, encontra-se um exemplo semelhante (análogo) no Alcorão, ou um precedente, e se estuda a base para a decisão” (ALTOÉ, 2003, p. 43). Outra solução, em casos de lacunas, pode ocorrer por consenso entre os fiéis e tornar-se-á lei caso seja aprovado, tendo sempre como escopo principal a criação de uma sociedade justa, com um sistema econômico equilibrado, além do estabelecimento de regras de conduta decentes.
O cristianismo, o judaísmo e o islamismo possuem as mesmas origens. O último reconhece a figura dos anjos, tratando-os como mensageiros entre Deus e os profetas. Os profetas receberam uma mesma mensagem e dentre eles é possível citar os nomes de Abraão, Isaac, Ismael, Moisés, David e Jesus, que para o Islã foi um enviado de Allah, que não foi crucificado e tampouco ressuscitou.
O islamismo rejeita a superioridade de raças, sendo que todos os seres humanos são iguais perante a lei de Deus. Nos momentos de oração, inclusive, todos ficam lado a lado nas mesquitas, havendo, somente, a separação por sexo. “Somente Deus conhece quem é o melhor, segundo os Seus critérios” (O ISLAM…, [201-], s.p.).
O Islã é regido pela crença no Deus único, sendo pautado por cinco pilares principais: i) a fé, ii) a oração, iii) o interesse pelo necessitado, iv) o jejum e v) a peregrinação a Meca. É considerado muçulmano o indivíduo que profere o testemunho de que não há outra divindade além de Allah e que seu mensageiro é Mohammad (EL-HAYEK, 2012). “Os tipos de adoração que são realizados fisicamente e verbalmente são chamados Pilares do Islã. Eles são a fundação sobre a qual a religião é construída e através da qual a pessoa é considerada muçulmana” (AL-SHEHA, 2014, p. 177).
A prática dos “cinco pilares do Islam” é a condição mínima que se exige para o culto. Mas na realidade, qualquer ação lícita realizada com a intenção de agradar a Deus é um ato de culto. A caridade, por exemplo, não tem limites: inclusive os detalhes mais insignificantes como receber uma pessoa sorrindo ou retirar da via pública um objeto perturbador são considerados atos de caridade, atos os quais o profeta Mohammad encomendava aos crentes. Praticamente todos os atos que sejam intencionados podem ser legítimos de culto. (HATHOUT, 2014, p. 82)
A fé, em árabe, Iman, deve ser exclusivamente em Allah e no profeta Mohammad. A declaração de fé é denominada shadada e diz que “‘Não há outro Deus senão Alá, e Maomé é o seu Profeta’, em árabe: ‘Lá Iláha il’Allah, Muhammad Raçul Allah’ (VII, 157)” (ALTOÉ, 2003, p. 21). Deus é uno e unipotente, é a fonte de toda criação, não pode ser substituído por riqueza, por outros homens, por animais, por plantas, por ídolos, por nada. A fé do muçulmano também alcança a existência de anjos e de profetas, o Alcorão, como lei e guia de conduta, a ressureição no fim do mundo e o juízo final, dia em que toda a humanidade será julgada, recompensada ou punida, de acordo com suas ações. O Islã prega que o homem nasce livre de pecados, sendo este o único responsável por suas ações. “Cada pessoa deve suportar o peso da própria responsabilidade pelas suas ações, porque ninguém pode expiar os pecados alheios” (ALTOÉ, 2003, p. 23).
A oração, em árabe, salat, refere-se ao segundo pilar do islamismo. O muçulmano deve proferir cinco orações por dia, como método de fortificar seu elo com Deus, ocorrendo antes do sol nascer, ao meio-dia, no meio da tarde, ao pôr do sol e à noite, com a face voltada para Meca e o corpo inclinado em sinal de submissão. As orações são dirigidas por uma pessoa que conheça o Alcorão, imã, uma vez que na religião não há figuras hierárquicas. As súplicas individuais podem ser realizadas em qualquer idioma, enquanto a oração deve ser feita em árabe. O culto, preferencialmente, deve ser feito em mesquitas, mas não sendo possível, é permitido em outro lugar. “Como Alá está em todos os lugares, o Islamismo ensina que o mundo todo é uma mesquita, portanto, a própria mesquita pode ser considerada um símbolo do mundo” (O’CONNELL; AIREY, 2011, p. 49).
O pagamento de dízimo, zakat, corresponde ao terceiro pilar do Islã. Zakat significa purificação e crescimento. Embora as posses estejam sob o domínio dos homens, tudo pertence a Deus, dessa forma, o muçulmano deve pagar ao Estado o valor de 2,5% de sua renda anual em benefício dos pobres, ao custeio da guerra santa, da educação e de peregrinações. A doação é comparada à poda das plantas, sendo que o corte, no caso a entrega de posses, equilibra e estimula novos ganhos (EL-HAYEK, 2012).
O quarto pilar da religião diz respeito ao jejum, siyam, realizado com o escopo de obter purificação física e mental, além de maior espiritualidade. “Entretanto, esta é uma busca constante uma vez que a purificação não é permanente no homem e tampouco é gratuita. […] a purificação é uma via e não um fim, ela é uma ação que possibilita o diálogo com o sagrado […]” (TOMASSI, 2010, p. 257-258).
Durante o mês do Ramadan (nono mês do ano lunar), todos os muçulmanos fazem o grande jejum, desde a alvorada até o pôr do sol, abstendo-se de alimentos, água e relações sexuais. O indivíduo nasce sem pecados, podendo vir a cometê-los somente na puberdade, sendo assim, crianças não precisam participar do Ramadan. Idosos, mulheres grávidas ou lactantes, doentes, bem como deficientes físicos podem quebrar o jejum ou praticá-lo em outra ocasião, desde que pelo mesmo número de dias. Em casos extremos, a pessoa incapaz de jejuar deve alimentar um necessitado.
O muçulmano não deve comer carne de porco ou de animais selvagens, tampouco daqueles que não tenham sido sacrificados com a invocação do nome de Deus. O alimento permitido para o consumo é denominado halal, devendo ser obtido de acordo com os princípios explicitados no Alcorão e pela Sharia. Ao abater um animal, por exemplo, o nome de Deus deve ser proferido: “Em nome de Alá, o mais bondoso, o mais Misericordioso” (HALAL, 2008, s.p.), deve ser utilizada uma faca afiada e deixar todo o sangue do animal escorrer, além de evitar ao máximo o sofrimento do mesmo. “A Sharia proíbe o consumo de todo e qualquer tipo de alimento modificado geneticamente, assim como produtos minerais e químicos tóxicos que causem danos à saúde” (HALAL, 2008, s.p.).
A religião muçulmana proíbe o adultério, relações sexuais fora do casamento, consumo de bebidas alcóolicas e prática de jogos de azar. O Islã busca a integridade física e moral,
[…] busca salvaguardar a humanidade de cair ao nível de criação que não tem consciência. Como é bem sabido, aqueles que bebem álcool e usam drogas ficam viciados nelas. Sendo assim, eles tentariam satisfazer sua necessidade adquirindo dinheiro através de outros meios; mesmo que isso signifique roubar e matar. A pessoa deve manter-se alerta, os crimes que as pessoas cometem contra a honra e castidade dos outros por causa do uso dessas substâncias. Por esta razão, o Islam refere-se a isso como sendo a “mãe” de todos os pecados. (AL-SHEHA, 2014, p. 177)
Quanto aos utensílios de mesa, os muçulmanos não podem comer ou beber em objetos feitos de ouro ou prata. Em relação às vestimentas, os homens não podem usar roupas confeccionadas em seda, nem acessórios feitos com ouro ou prata, sendo o uso permitido somente para as mulheres. É considerado pecado o homem usar anel de ouro na hora de seu casamento, por exemplo. Recomenda-se que o homem use barba, para se parecer com os antigos mensageiros e distanciar-se da aparência feminina, uma vez que o profeta amaldiçoou homens que imitam mulheres.
O último pilar da religião muçulmana tange à peregrinação anual a Meca, Hajj, obrigação válida para aqueles que possuem as posses necessárias, além de boa condição física para tanto. Meca é considerada a Casa Sagrada de Allah. Nessa ocasião, homens e mulheres devem vestir-se de maneira simples para eliminar as diferenças entre classes e culturas, até porque todos são iguais perante a Deus.
Além dos pilares, alguns mandamentos regem o Islã, como a justiça, a igualdade, a reconciliação – quando houver disputa e desunião –, a virtude, a retidão, as boas maneiras, a generosidade e a busca pela paz na sociedade.
A família é a grande base da comunidade muçulmana. O desenvolvimento espiritual é alcançado por meio de uma unidade familiar estável, sendo que um número grande de filhos é sempre desejado. A contracepção é permitida, desde que o casal esteja de acordo. A desobediência aos pais é considerada um dos maiores pecados, sendo que o agrado de Allah é obtido pelo agrado dos pais. A mãe muçulmana tem prioridade em relação ao pai no que se refere ao tratamento e ao companheirismo, em função das dificuldades encontradas, desde a gravidez até a criação dos filhos. A seguir, destacaremos o papel da mulher na sociedade muçulmana.
As questões referentes ao tratamento da mulher no islamismo são bastante polêmicas e quase sempre suscitam dúvidas para aqueles que não compreendem a religião. A origem do Islã não estabelece distinções entre homens e mulheres, concebendo-os como seres iguais. Porém, a forma fundamentalista da religião, bem como suas influências territoriais e culturais distorcem as palavras do Alcorão no que se refere à mulher, sendo responsável por crimes, humilhações e violência contra elas, fatos que não serão objeto deste trabalho. “O islamismo original não é guerreiro nem fundamentalista. É tolerante para com todos os povos” (ALTOÉ, 2003, p. 85).
A mulher muçulmana deve respeitar seu cônjuge e observar as seguintes diretrizes: a esposa deve obedecer o marido, exceto havendo ordem de cometer algum pecado; a esposa não deve recusar o marido na cama; deve se esforçar para agradá-lo e fazer o que ele deseja; não deve sobrecarregá-lo com pedidos; deve proteger a honra do marido, os filhos e a riqueza; não deve deixar a casa sem a concordância do homem, nem mesmo deve permitir que entre em seu lar alguém de quem ele não goste (AL-SHEHA, 2014, p. 144-145). Ao se casar, a jovem islâmica recebe alguns conselhos de sua família, dentre eles:
[…] seja uma criada para ele e ele será seu escravo. Observe para ele dez qualidades e ele será um tesouro para você: contentamento, obediência, cuidado com sua beleza e perfume, ter consideração pela hora em que ele dorme e por suas refeições, cuidado com o dinheiro e com os filhos dele. Não mostre felicidade quando ele estiver preocupado nem pesar quando ele estiver feliz. (Ibidem, p. 145)
Os homens são considerados mais racionais do que as mulheres para resolverem dificuldades e, por isso, são os líderes da casa. Entretanto, o marido deve consultar a esposa nos assuntos relacionados ao matrimônio.
O casamento muçulmano é realizado por meio de um contrato, no qual é estipulado o valor do dote, mahr, que a mulher receberá do marido, “[…] um presente matrimonial que lhe é oferecido pelo marido, sendo incluído no contrato nupcial, e que tal posse não se transmite ao seu pai, irmão ou esposo” (A MULHER…, [201-], s.p.). A união deve ser duradoura, mas é permitido o divórcio, que pode ser pedido tanto pelo marido quanto pela esposa.
A mulher possui direito a ter seus próprios bens, podendo comprar, vender, alugar propriedades, receber herança, sem necessitar transferi-los ao cônjuge. O principal papel da mulher é cuidar de sua família, da educação dos filhos e das atividades domésticas, contudo, não é proibido que ela tenha um emprego fora do lar, desde que seja respeitoso.
Em todas as sociedades conhecidas, os cuidados com as crianças e as atividades domésticas cabem invariavelmente às mulheres. Se o homem […] está destinado às funções do exterior, a mulher está destinada, por natureza, às de interior. (LIPOVETSKY, 1997, p. 202)
A obrigação do sustento da família cabe ao homem, que pode casar-se com mais de uma mulher, desde que seja capaz de tratá-las com equidade e que todas aceitem tal situação.
A mulher deve ser decente, recatada e o islamismo recomenda que se vista de forma conveniente, sem expor seu corpo, e repudia a nudez. A vestimenta da muçulmana não pode ser transparente, justa, nem conferir aspecto sensual a quem a usa, deve protegê-la dos efeitos climáticos, dias quentes e noites frias, ser simples, não evidenciar arrogância, além de cobrir seu corpo, como proferido:
Ó Profeta, dize a tuas esposas, tuas filhas e às mulheres dos fiéis que (quando saírem) se cubram com as suas mantas; isso é mais conveniente, para que distingam das demais e não sejam molestadas; sabei que Deus é Indulgente, Misericordiosíssimo. (Ibidem, [201-], s.p.)
As roupas femininas podem variar de acordo com a cultura local, sem jamais revelar o corpo, nem mesmo realçar a beleza da mulher, para que não desperte o desejo do homem. Em grande parte dos países árabes, as mulheres usam túnicas longas, com um lenço que cobre a cabeça, deixando apenas o rosto à mostra. No Irã e na Arábia Saudita, as vestes cobrem o corpo todo, exceto os olhos, sendo denominadas xador. Nos locais dominados pelo Talibã, deve-se usar a versão radical do xador que cobre, inclusive, os olhos (QUAIS…, 2001).
O traje muçulmano representa o comprometimento de quem o usa com a religião, não obedecendo moda. As roupas devem ser largas e discretas, sem transparências, com mangas e cobrir todo o corpo. Os sapatos devem ser baixos e não podem fazer barulho ao andar. Os cabelos devem estar presos e cobertos por um véu. “Islam não segue moda, dita a verdade que vem de Allah!” (O HIJAB…, [201-?], s.p.).
A mulher muçulmana deve vestir-se de forma que preserve o pudor e a dignidade feminina. Maquiagem, roupas apertadas ou até mesmo o uso do véu como enfeite são formas de atrair os olhares masculinos e, dessa forma, não permitidos pelo islamismo. À família, cabe o dever de ensinar as tradições, os costumes e os hábitos adequados ao Islã para a formação dos novos fiéis que crescerão imbuídos do espírito religioso.
Os preceitos e o comportamento da mulher na sociedade muçulmana foram apresentados, em um breve resumo, para que seja possível contextualizar o produto, objeto deste artigo, a boneca Fulla, no desenvolvimento da criança que segue os ensinamentos da religião islâmica.
O verbo brincar aparece no dicionário da língua portuguesa (ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, 2008, p. 232) como “Divertir-se com jogos de criança; entreter-se com brincadeiras”. Na legislação brasileira, por exemplo, é garantido à criança o direito “a brincar, praticar esporte e divertir-se” (BRASIL, 1990), de acordo com o artigo 15, inciso IV, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Brincar, mais que um verbo, é uma necessidade da criança, pois tal atividade possibilita que o menor conheça mais sobre si e sobre o mundo no qual está inserido, explorando-o de forma lúdica, desenvolvendo sua criatividade, aprendendo a ganhar e a perder, além de manifestar e aprimorar seus talentos. As brincadeiras constroem vínculos afetivos entre as próprias crianças, familiares e amigos. “Brincando, elas desenvolvem a imaginação, a linguagem, as habilidades sociais, elaboram sentimentos e criam significados para o que não compreendem, construindo seu conhecimento sobre o mundo” (CRIANÇA E CONSUMO, 2009, p. 19). Independente da crença comungada por uma criança, ela aprende e vivencia inúmeras experiências a partir do ato de brincar. As culturas ocidental e oriental divergem em uma série de questões, mas a brincadeira infantil possibilita, ao fiel de qualquer religião, as mais variadas trocas e integrações com o meio.
Na infância, a criança desenvolve o entendimento de sociedade, de coletividade, aprimorando sua capacidade intelectual, social, física e emocional. As brincadeiras proporcionam novas sensações, visões do mundo e aprendizados. Ao brincar, a criança desafia sua imaginação, constrói sonhos para o futuro e internaliza uma série de sensações lúdicas experimentadas na primeira idade.
As crianças não ficam apartadas do modelo de consumo adotado na sociedade contemporânea, participando ativamente da aquisição de produtos para seu próprio uso ou exercendo forte influência na escolha de bens para a família, o que justifica intensos investimentos de marketing nesse público, cada vez mais independente, conhecedor de marcas e que percebe o “ter” como um passaporte de aceitação e construção de personalidade. O consumo molda a identidade dessas crianças que, desde muito cedo, são impactadas por produtos que prometem completude, pertencimento e que, por meio da publicidade, introduzem o menor na ciranda da sociedade de consumo.
Na contemporaneidade, a questão da identidade é ainda mais perturbadora em função de como a transitoriedade e a efemeridade do contexto influenciam sua constituição. A mídia, a moda, a tecnologia e a publicidade exercem forte influência na composição da personalidade humana, de forma a oferecer modelos de referência, ao mesmo tempo em que desestabilizam as identidades e promovem a construção de novos comportamentos que logo serão desconstruídos, um movimento cíclico e repetitivo.
Nesse cenário volátil, educar uma criança muçulmana é tarefa desafiadora. O acesso irrestrito a qualquer tipo de informação, o amplo contato com a cultura ocidental, o questionamento dos valores pregados pelo profeta, há mais de 14 séculos, incitam a manutenção dos dogmas religiosos. Como ensinar uma menina a preservar seu corpo, a cobrir sua cabeça, esconder seus cabelos, sendo que os padrões de beleza do resto do mundo exaltam corpos desnudos, atitudes sensuais e a busca pela liberdade e a independência?
A publicidade, em especial, associa o produto que oferta às qualidades desejadas pelo consumidor, fazendo com que ele creia que sua identidade será moldada pelo artigo que adquiriu ou pela marca que usou. A propaganda dissemina valores e formas de comportamento que norteiam a vida na sociedade contemporânea. “[…] A propaganda está tão preocupada em vender estilos de vida e identidades socialmente desejáveis, associados a seus produtos, quanto em vender o próprio produto” (KELLNER, 2001, p. 324).
Meninas ocidentais buscam um estilo de vida igual ao da boneca Barbie, cujo slogan é bastante simbólico: “Barbie, tudo o que você quer ser”. Jovem, magra, loira, olhos claros, independente, trajando roupas curtas que valorizam seu corpo, exerce qualquer profissão, namora e representa um estilo de vida tipicamente americano, não havendo qualquer diálogo com a cultura muçulmana.
Quanto menos homogênea é a moda, mais o corpo esbelto e firme se torna uma norma consensual. Quanto menos teatralidade do vestuário houver, mais práticas corporais com objetivos estéticos existem; quanto mais se afirmam os ideais de personalidade e autenticidade, mais a cultura do corpo se torna técnica e voluntarista; quanto mais se impõe o ideal de autonomia individual, mais aumenta a exigência de conformidade com os modelos sociais do corpo. (LIPOVETSKY, 1997, p. 131)
Para a tradição islâmica, a Barbie não pode ser considerada “tudo o que você quer ser”, sendo exatamente o oposto do que se objetiva ensinar às meninas muçulmanas. A exposição do corpo, os costumes divergentes, o desapego à família não são tolerados pelo Islã, não havendo qualquer reciprocidade entre a boneca e a consumidora que segue os ensinamentos de Allah. Sendo assim, em um cenário sem espaço para a boneca mais famosa do mundo, surge a Fulla, muitas vezes denominada como a Barbie muçulmana.
Olhos grandes e amendoados, aparência árabe, cabeça coberta por um véu, partes íntimas preservadas por uma espécie de segunda pele que surge a partir da cintura até metade das coxas, sapatos baixos, um tapetinho para rezar e roupas escondidas por baixo de vestes negras, assim é a boneca Fulla (Figura 1), nome que deriva de uma flor encontrada apenas no Oriente Médio.
Lançada em 2003, na Síria, pela fabricante New Boy, a boneca é um sucesso de vendas no Oriente Médio. Fulla não possui namorado, exerce profissões respeitadas pelos muçulmanos, tais como professora ou médica, e vive de acordo com os costumes islâmicos. Embora haja uma versão de cabelos loiros, as garotas preferem a que possui cabelos negros, mesmo estando cobertos pelo
A marca Fulla (Figura 2) estende-se a vários outros produtos, tais como cereais matinais, mochilas, cadernos e roupas, estando presente nas redes sociais Facebook e Instagram. O site oficial da boneca apresenta jogos, receitas culinárias, dicas de como se vestir de forma adequada à religião, além de conselhos para ser uma boa muçulmana.
As marcas estabelecem relações afetivas com os consumidores. De acordo com Perez (2004, p. 10), “a marca é uma conexão simbólica e afetiva estabelecida entre uma organização, sua oferta material, intangível e aspiracional e as pessoas para as quais se destina”. A marca, na contemporaneidade, de acordo com Marc Gobé (2010), precisa se humanizar e conquistar o coração do consumidor. O autor elabora um paralelo entre a construção de marcas e o movimento artístico impressionista, no qual os pintores saíram dos estúdios fechados e passaram a pintar in loco, colocando na arte suas emoções e perspectivas e não somente aquilo que enxergavam de forma concreta, “[…] eles transcrevem suas emoções através da pintura” (GOBÉ, 2010, p. 57). Nesse sentido, as marcas devem ir ao encontro dos desejos dos consumidores, que buscam reconhecimento, experiências e sensações diferenciadas ao adquirirem determinada marca.
O conceito de marca deve considerar três elementos essenciais: o sinal, a identidade e a distintividade. A marca é “portadora de significados cada vez mais complexos” (PEREZ, 2007), sua consolidação é envolta por prestígio, ou seja, um valor sociocultural positivo, diferenciação, reconhecimento, devendo ultrapassar valores funcionais, adentrando a dimensão simbólica e intangível, por meio do uso das mais variadas expressividades, como nome, logotipo, mascote, slogan e embalagem.
O nome da marca, escrito por extenso, lettering, é utilizado de forma semelhante à caligrafia árabe ou islâmica, a mesma utilizada no Alcorão, tida como uma das mais nobres formas de arte. A caligrafia é considerada a mais sublime das artes islâmicas, sendo a língua e a escrita tesouros do povo muçulmano. Oficializado em 786, o alfabeto árabe transformou-se, com o advento do Islã, em uma arte visual. As revelações do Anjo Gabriel a Mohammad não poderiam ser representadas de forma realista, sendo assim, “[…] todo impulso criativo plástico do povo muçulmano foi focado no desenvolvimento artístico de sua caligrafia” (CALIGRAFIA…, [201-], s.p.).
O nome da marca funciona como um signo genuíno, ou seja, um símbolo. Ele, “[…] além de sua função verbal […] possui uma dimensão não-verbal, icônica, que incorpora, por conotação, significados complementares ao próprio nome” (PEREZ, 2004, p. 53). Soma-se a isso o uso da cor branca para o nome da marca, que na esfera emocional gera efeitos como limpeza, pureza, juventude, piedade, otimismo, paz, infância, harmonia (BASTOS; FARINA; PEREZ, 2006, p. 97). O branco é a junção de todas as cores da luz. “O branco é imaculado, isento dos negros pecados; branco é a cor da inocência” (HELLER, 2013, p. 163).
Ao lado do nome da marca, surge o desenho de uma flor. Fulla significa um típico jasmim do Oriente Médio, de cor branca, tal como a marca.
Em geral, as flores representam o auge de um ciclo de crescimento e uma realização premiada. Surgindo da terra e receptivas ao sol e à chuva, elas estão relacionadas ao poder do passivo, princípio feminino, manifestando beleza literal e fisicamente assim como espiritual e metaforicamente. (O’CONNELL; AIREY, 2010, p. 174)
A marca também utiliza as cores lilás e rosa, tipicamente femininas. Enquanto o rosa remete a sonhos, romantismo, doçura, “[…] é a cor da vida em sua juventude” (HELLER, 2013, p. 215), a cor lilás associa-se a calma, estima, valor e representa a cor de mulheres disponíveis para o casamento.
A partir do momento que o consumidor entender as características simbólicas dos produtos, agregará valor à marca. No universo infantil, essa compreensão vai se desenvolvendo de acordo com a evolução etária. Nos primeiros anos a criança não percebe a marca de maneira simbólica, assimilando-a, apenas, em função de determinada característica associativa. Nesse viés, a comunicação da boneca baseia-se no estilo de vida muçulmano, exaltando características como honestidade e respeito à família. Muito mais do que uma boneca, Fulla representa uma revitalização da religião islâmica, um modelo de comportamento para as novas gerações de fiéis (TERREBONE, 2008).
Nos comerciais de televisão[2], a boneca apresenta-se bem-humorada, cumpridora de suas obrigações religiosas como orar, cuidar da casa, ir à mesquita, ler e ser boa para com seus amigos e familiares. Fulla aparece trajando Hijab – vestimenta preta usada por cima da roupa, que a cobre do pescoço até os pés, deixando somente as mãos e o rosto descobertos –, sapatos baixos, cabelos presos, elementos que permitem total identificação da criança com a marca. O filme apresenta, tanto no início quanto no encerramento, a figura de um pássaro na sacada do quarto da boneca, representando o poder do falo, uma associação por contiguidade ao homem, possível marido, que está sempre presente, guiando e controlando a vida da mulher muçulmana. Ao se deitar, em uma cama de casal, Fulla acaricia a metade vazia do espaço, pois embora a figura masculina apareça apenas de forma simbólica, é certo que o dever de toda garota islâmica é casar e constituir uma família. A comunicação do brinquedo é envolta por encantamento, Fulla é um signo de felicidade, de contentamento e realização por seguir os preceitos da religião e corresponder a um código virtuoso de conduta como ser humano e como praticante do islã. Dessa relação, pode-se concluir que a marca confere diferenciação a seus usuários, ocorrendo um processo de transferência de significado por similaridade, sendo que a criança percebe similaridade entre a boneca e o comportamento esperado pela mulher muçulmana.
Fulla, bem como os produtos que levam sua marca, são sucesso de vendas. Em função da boa aceitação por parte de crianças muçulmanas, a boneca ganhou novas versões, sendo possível adquirir modelos diferentes de roupas para diversas ocasiões: ir a festas, rezar ou até mesmo ficar em casa, sendo que todos respeitam os ensinamentos do livro sagrado, sem transparências, sem exageros e sem exibir o corpo. Existe, também, a possibilidade de se adquirir, além do produto principal, ou seja, a boneca, uma série de acessórios como véus de cores diferentes, livros de oração, tapetes para rezar na direção de Meca e há, inclusive, versões da boneca que recitam orações por meio do comando de um botão, o que representa, além da diversão, um aspecto didático do produto, conforme ilustra a Figura 3.

A consumidora da boneca, menina muçulmana, em fase de descobrimento dos valores da vida e da religião identifica-se com o produto, se enxerga nela, tendo o brinquedo como uma extensão de sua personalidade. Fulla, muito mais do que uma boneca, é um reflexo da cultura na qual a menina que brinca está inserida. O véu, muitas vezes rejeitado por meninas muçulmanas, passou a ser adorado pela consumidora da Fulla, que o enxerga como parte constituinte da personalidade da mulher praticante do islamismo.
Entender o perfil do target para o qual um produto será desenvolvido é condição sine qua non para seu sucesso. As marcas, em sua maioria, estabelecem relações afetivas com o público alvo e participam de forma aprofundada na constituição de sua personalidade. Esse processo demanda conhecimento da cultura, dos valores, das tradições, exige estudo dos aspectos morais e estéticos.
Sendo assim, o ser humano entende o mundo a partir de suas crenças, do que julga correto, de suas experiências colaterais. O muçulmano, obviamente, atua da mesma maneira, compreende o universo de acordo com os ensinamentos do Alcorão e do profeta e, nesse contexto, a boneca Fulla representa a mulher islâmica por meio de vestimentas, comportamentos e predicados.