Artigos

Recepção: 29 Outubro 2019
Aprovação: 23 Janeiro 2020
DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1984-5057.v12i1p14-26
Resumo: Neste artigo pretendemos discutir as atualizações necessárias ou possíveis no habitus publicitário frente às transformações contemporâneas da publicidade, considerando especialmente as questões relacionadas à mediação dos algoritmos e processos em Big Data. Temos como guia a seguinte questão: Quais são as atualizações que acompanhamos no habitus publicitário diante das transformações no cenário da publicidade contemporânea? Faremos um acercamento sobre o conceito de habitus, discutindo principalmente o habitus publicitário e avaliaremos sobre as possíveis transformações desse na contemporaneidade.
Palavras-chave: comunicação, publicidade e propaganda, habitus, algoritmos, big data.
Resumen: En este artículo pretendemos analizar cómo se necesitan actualizaciones en el habitus publicitario frente a las transformaciones publicitarias contemporáneas, específicamente, como preguntas relacionadas con la mediación de algoritmos y procesos en Big Data. Tenemos como guía la siguiente pregunta: ¿Cuáles son las actualizaciones que seguimos en el habitus publicitario frente a los cambios en la escena publicitaria contemporánea? Abordaremos el concepto de habitus, discutiendo principalmente el habitus publicitario y evaluaremos las posibles transformaciones de este en los tiempos contemporáneos.
Palabras clave: comunicación, publicidad y propaganda, algoritmos habitus, big data.
Abstract: In this article we intend to discuss how updates needed in the advertising habitus in the face of contemporary advertising transformations, specifically, as questions related to the mediation of algorithms and processes in Big Data. We have as a guide the following question: What are the updates we follow in the advertising habitus facing the changes in the contemporary advertising scene? We will approach the concept of habitus, discussing mainly the advertising habitus and evaluate the possible transformations of this in contemporary times.
Keywords: comunicación, advertising and marketing, habitus algorithms, big data.
Introdução
Update processes in advertising habitus
Estamos vivendo um momento de profundas transformações na publicidade? Ou a publicidade se configura como um contexto de alterações contínuas? O fato é que diante de um contexto de digitalização acompanhamos um aceleramento destes movimentos que significam a alteração de uma situação vigente, configurando um futuro difuso, tanto em relação à produção publicitária, ao produto publicitário e à recepção desse. Fato esse que impacta ou deveria impactar a formação dos futuros profissionais da propaganda.
A digitalização dos processos publicitários acaba por exigir uma profunda reformulação no que diz respeito às competências e perfis profissionais. Se em determinado momento de sua história a publicidade teve longas fronteiras de intersecção com a arte, hoje tais fronteiras se expandem também com a tecnologia e o processamento de dados. Nesse sentido, temos o objetivo de discutir, com este artigo, as atualizações necessárias ou possíveis no habitus publicitário frente às transformações contemporâneas da publicidade, considerando especialmente as questões relacionadas à mediação dos algoritmos e processos em Big Data. Colocamo-nos frente à seguinte questão: Quais são as atualizações que acompanhamos no habitus publicitário diante das transformações no cenário da publicidade contemporânea?
Como primeiro passo, entendemos que sejam necessárias algumas definições, entre elas a do conceito de habitus, e algumas reflexões no que diz respeito às possibilidade de transformação/atualização do próprio habitus. Partimos aqui, então, do conceito de habitus de Bourdieu (1983; 1998; 2005; 2007a, 2007b,2008)
é entendido aqui como o “funcionamento sistemático do corpo” em um determinado campo, podendo envolver modos de fala, práticas e posturas (BOURDIEU, 1998, p. 62). São as interiorizações da realidade do campo que definem tais posturas e condicionam a maneira como os indivíduos atuam de modo estratégico e adequado a essa realidade. O habitus, ao mesmo tempo em que define o comportamento dos indivíduos em um determinado espaço social, também é definido por estes e por suas condutas. Dessa forma, todos os nossos hábitos e ações sociais são condicionados e definidos pelo habitus dos diferentes campos que nos constituem enquanto sujeitos sociais. (PETERMANN, 2011, p.25-26)
Assim, o habitus constitui um conjunto de recursos e poderes efetivamente utilizáveis, como diz Bourdieu (2008, P.107), sendo que esses recursos compreendem os diferentes capitais (simbólico, social, cultural, econômico) que podem ser acionados em um determinado campo. Podemos dizer que as falas, as posturas, os gestos, os modos de vestimenta, conjuntos específicos de conchecimentos e de técnicas, entre muitas outras características, acabam por materializar o habitus de uma determinada profissão por exemplo. Na publicidade não é diferente: profissionais compartilham modos específicos de postura e de conduta e acabam por legitimar tais modos de ser e de fazer como necessários ao pertencimento ao campo. Na publicidade, o habitus perpassa o ensino de publicidade e propaganda; o ambiente das agências; os eventos que reúnem os profissionais; os livros e publicações da área; os lugares de encontros frequentes como bares, restaurantes e cafés; a atuação dos conselhos, associações e sindicatos; entre outros mecanismos (PETERMANN, 2017). É importante enfatizar que esses mecanismos não perpetuam o habitus de forma explícita, mas em um sistema de reificação, que faz com que determinados padrões pouco ou nada justificados sejam percebidos como naturais e essenciais entre as pessoas que os compartilham. Bourdieu (1983, p.73) diz que o “habitus é a mediação universalizante que faz com que as práticas sem razão explícita e sem intenção significante de um agente singular sejam, no entanto, ‘sensatas’, ‘razoáveis’ e objetivamente orquestradas” (BOURDIEU, 1983, p. 73).
No entanto, embora cada campo elabore seus mecanismos de transmissão e de compartilhamento do habitus, reforçando estratégias de manutenção desses campos, não se pode negar que nem tudo se define por estabilidade e manutenção. Assim, com o passar do tempo, as práticas e os modos de ser dentro de um campo se alteram por fatores externos e/ou internos.
Um cenário de muitas alterações desperta também olhares atentos no campo científico e aqui aproveitamos para apresentar o que consideramos como aspectos primordiais do nosso estado da arte e que demarcam pontos de tensionamentos ou de resistências no que diz respeito às praticas institucionalizadas no campo da publicidade. Consideramos que cambiaram os sujeitos consumidores e suas práticas de consumo (TAVARES; PEREZ, 2016); surgiram estratégias publicitárias híbridas empregadas em narrativas transmídia (COVALESKI, 2015) e também a publicidade converteu-se em multiplataforma (IRIBURE; TOALDO, 2015); fala-se há muito em crise nos modelos tradicionais de agência e nas alterações nas formas de remuneração, tendo em vista a verba de mídia (CARVALHO; CHRISTOFOLI, 2015); e, sabe-se que, até mesmo, as necessidades dos anunciantes e das marcas (TOALDO, 2010) já são outras – porém o mercado publicitário, em si, parece um tanto paralisado ou, pelo menos, com muita dificuldade em traçar novos rumos. E, por sua vez, o ensino na área, também apresenta evidentes dificuldades em se atualizar, seguindo o mau exemplo do mercado (PETERMANN, HANSEN; CORREA, 2013; 2015;2016;2017), (HANSEN; PETERMANN; CORREA, 2016; 2016b).(PETERMANN, 2019, p. 13 -14)
Mesmo diante de tantas mudanças, em função do próprio habitus que torna qualquer mudança muito complexa, percebemos certa dificuldade do campo em atualizar-se. Isso revela aspecto bastante contraditório do campo da publicidade que tem em sua essência a exigência de conservar-se atualizado e criativo.
Em artigo intitulado “La Publicidad y la Agencia de Medios Frente al Cambio en el Ecosistema Mediático”, de Ramón Francisco Martín-Guart e de José Fernández Cavia (2014), os autores propõem as seguintes questões:
¿Cuáles son los principales cambios en el ecosistema mediático que perciben los profesionales de la publicidad? ¿Cómo creen los profesionales que los cambios en el ecosistema mediático afectarán la actividad publicitaria? ¿Cuál será, en opinión de los profesionales, el papel que desarrollará en el futuro la agencia de medios?1
Assim, por vezes, nem mesmo a percepção de um contexto em transformação permite alterações efetivas nos modos de conduta dos agentes do campo, que acabam organizando movimentos de resistência frente a novos cenários, quando se esperaria, ao contrário, posturas dispostas à aquisição de novos conhecimentos e de novas técnicas.
Mangi (2012) afirma, a partir de análise aprofundada em aspectos históricos do conceito de habitus, que este é razoavelmente resistente a mudanças. Isso porque, de acordo com Bourdieu, atua como mecanismo de socialização primária, sendo assim, mais formativo de disposições internas dos agentes em comparação com experiências posteriores de socialização. No entanto, ao se deparar com um contexto de transformações, o habitus organiza um processo contínuo de adaptação, que tende a ser lento e inconsciente, e que diz mais respeito à elaboração do que a alterações nas disposições primárias (MANGI, 2012).
Bourdieu afirma que o habitus é um produto da história, da experiência social e da educação, não sendo algo inato. Portanto, sendo fruto da história, pode ser alterado pela própria história, ou até mesmo pela educação, a partir de treinamento (MANGI, 2012)
Disposições são duradouras: elas tendem a se perpetuar, a se reproduzir, mas não são eternas. Podem ser alteradas pela ação histórica orientada pela intenção e pela consciência, e utilizando dispositivos pedagógicos. [...] O habitus não é uma fatalidade, não é um destino. (Bourdieu apud Mangi, 2012, p.9)
Dessa forma, podemos dizer que, embora lentas, as alterações no habitus são possíveis. Por isso, nossa preferência aqui é pelo termo atualizações, por entendermos que não se tratam de rupturas com modos de fazer institucionalizados e também por que não se trata de movimentos generalizados entre agentes da publicidade. São atualizações que, embora alguns agentes já estejam bastante avançados em relação ao restante das pessoas no campo, outros tardam a perceber o presente e, mais ainda, a ter uma perspectiva de futuro, permanecendo muito conectados aos modos de fazer publicidade do passado, ao estilo Mad Men2. No entanto, se as identificamos como possíveis, vamos discutir aqui como atualizações no habitus frente a questões tecnológicas como mediação dos algoritmos e processos em Big Data implicam em reformulações e novos modos de conduta no campo da publicidade.
Para a abordagem de questões tão complexas, organizamos este artigo a partir de uma discussão dos aspectos contemporâneos da publicidade, seguida por uma análise do habitus publicitário atualizado ou em atualização.
A publicidade contemporânea
Ao longo dos últimos anos, viemos mapeando transformações que permeiam diversas esferas da publicidade contemporânea3. Poderíamos começar pelas transformações ligadas à esfera da recepção e que acabam pautando o modo como profissionais da área se relacionam com a produção de mensagens. Vemos a partir de estudos recentes um consumidor muito mais ativo em relação a mensagens publicitárias e que cobra marcas e instituições por seus posicionamentos sociais e políticos. Wottrich (2017) define o que seriam as "práticas de contestação" por parte dos consumidores e consumidoras que levantam tensionamentos frente a mensagens publicitárias não representativas.
Outro ponto de transformação importante que mapeamos nesta pesquisa, está ligado a falta de representatividade de grupos minorizados nas agências de publicidade e empresas de comunicação. Para ilustrar esse aspecto, podemos iniciar, por exemplo, citando a falta de mulheres em setores criativos4, ou ainda a falta de pessoas negras nas agências5, e tantos outros problemas que denotam a homogeneidade do perfil sócio-demográfico dentro dos espaços de produção de mensagens publicitárias.
Além desses movimentos, observamos também transformações importantes no que diz respeito a novas gerações de profissionais ingressando nesse campo. Dados da pesquisa anterior que fizemos, revelam uma nova geração de profissionais da publicidade, ingressando no mercado de trabalho e refutando problemas estruturais da indústria da publicidade: práticas de assédio no ambiente de trabalho, longas jornadas de trabalho e remuneração insuficiente, ambiente de trabalho discriminatório em relação a gênero, questões étnico-raciais, diversidade sexual e classe social. Além disso, temos uma indústria bastante hierarquizada com poucas pessoas que recebem altos salários e muitas pessoas que recebem salários muito baixos. Essa nova geração de profissionais acaba por se posicionar contra essas práticas não sustentáveis e tenta rompê-las no dia a dia da prática profissional. Assim, a atuação desses e dessas profissionais adicionam um outro traço ao habitus dessa profissão: uma geração de pessoas inquietas por novos conhecimentos que parece favorecer a implementação de novas habilidades técnicas à profissão. Tais novas habilidades técnicas estão relacionadas com os processos de digitalização e com o surgimento de novas tecnologias e na criação das mensagens publicitárias.
Nessa esteira, percebemos então transformações ligadas à produção de mensagens publicitárias mediadas por algoritmos e dados. Importante dizer que não pretendemos com este artigo debater as questões de ordem técnica dessas transformações ou como são operados os dispositivos que permitem a publicidade digital quantificar e chegar até a instância da recepção, mas sim refletir sobre como essas transformações estão mudando o fazer publicitário nos espaços de trabalho da indústria da comunicação, especialmente no que diz respeito à quantidade de dados que podem ser coletados sobre a esfera da recepção.
Assim, iniciamos afirmando que "coletar dados dos consumidores e cidadãos não é uma prática nova. Instituições públicas e corporações historicamente dependem de dados demográficos e dados da audiência. O crescimento das plataformas online trouxe a intensificação da coleta de dados"6 (DIJCK et al, 2018, p. 33). Isso é importante para o campo publicitário pois esses dados são utilizados de duas formas complementares. A primeira delas é como fonte de insights para profissionais de publicidade sobre o comportamento dos usuários e das usuárias nessas plataformas. Os dados servem como fonte para o planejamento prévio de ações das marcas nas plataformas digitais. E também, como forma das plataformas segmentarem o público, direcionando as mensagens publicitárias de forma mais assertiva.
Temos assim investimentos midiáticos muito mais orientados: trazendo alguns dados relevantes em nosso país em relação a esse aumento do investimento em publicidade orientada, a pesquisa "Análise Global de Marketing e Publicidade Orientados por Dados"7 apresentada em 2017 pela GDMA (Global Alliance of Data-Driven Marketing and Advertising), feita com profissionais da área de marketing do Brasil, afirma que em 2016, 36% dos executivos da área aumentaram seus investimentos em publicidade orientada à dados, aumentando em 10% esse investimento em relação ao ano anterior. Dentre os dados interessantes nessa pesquisa, é que, de fato, o ponto que teve um maior crescimento expressivo no uso de dados em publicidade foi na segmentação de anúncios nas plataformas digitais como afirmam Dijck et al. (2018), e, além disso, esses executivos apontam que ainda mais melhorias são esperadas com os avanços futuros, e com a chegada de treinamentos específicos para que as equipes possam interpretar esses dados.
Outro ponto importante de transformação a ser observado aqui, então, é que com esse crescimento do uso de dados pelas plataformas digitais apontado anteriormente, as agências de publicidade (e empresas de comunicação como um todo) começam a desenvolver áreas especializadas dentro de seus modelos de negócio para dar conta da interpretação e apropriação do uso assertivo desses dados8. Além disso, com a popularização dessas novas áreas e departamentos, novas terminologias e conceitos passam a surgir no campo, como o termo "data-driven"9, para sugerir que todas as decisões tomadas nesses espaços são orientadas a partir da interpretação de dados coletados sobre as pessoas que utilizam e consomem nas plataformas digitais.
Percebemos que, historicamente no campo da publicidade, havia uma dificuldade maior de acesso a dados e mediações de plataformas online para a segmentação, planejamento e criação de mensagens publicitárias. A medida que o acesso a esses dados se democratiza na sociedade, podemos perceber traços de mudanças nesse campo em relação ao que apontamos ser o habitus publicitário. Uma geração de profissionais com novos conhecimentos técnicos, e que trabalha orientada por dados e não mais por pesquisas de amplo espectro ou de outras áreas correlatas como tínhamos até então no campo. Ou ainda: que trabalha por feeling sem embasamento em dados ou pesquisas de qualquer ordem, como muitas vezes é a lógica da prática publicitária. A simples definição e apropriação da expressão data-driven pressupõe uma mudança no habitus, já que sugere que anteriormente o mercado não era orientado por dados.
As implicações que os algoritmos e o uso de dados estão deixando em nossa sociedade são, em sua maioria, pensados originalmente para melhorar a experiência nas plataformas digitais e em suas interfaces, porém se transformam ao longo do tempo:
todas as formas de interação do usuário podem ser capturadas como dados: classificação, pagamento, inscrição, observação, namoro e pesquisa, mas também amizade, acompanhamento, curtição, postagem, comentário e retweeting. Nos primeiros estudos, esses dados eram frequentemente considerados um subproduto das plataformas online; À medida que as plataformas amadureceram, as empresas de tecnologia gradualmente se transformaram em empresas de dados, transformando os dados em recursos principais. A dataficação dota as plataformas com o potencial de desenvolver técnicas de análise preditiva e em tempo real, que são vitais para fornecer publicidade e serviços direcionados em uma ampla variedade de setores econômicos10. (DIJCK, 2018, p.33) [Tradução nossa].
Essas transformações das empresas de tecnologia em empresas de dados trazem à tona diversas problematizações que não devem ser minimizadas e que estão relacionadas, por exemplo, com a privacidade e segurança dos dados das pessoas e com o compartilhamento desses dados com outras empresas de forma não autorizada. Além disso, especificamente, no que tange ao campo da publicidade, encontramos problemas éticos relacionados a algoritmização e dataficação que essas empresas promovem. A esse respeito, Silva (2019) investiga as controvérsias sobre plataformas digitais em relação a questões étnico-raciais no Brasil:
Nos ambientes digitais, entretanto, temos um desafio ainda mais profundo quanto à materialidade dos modos pelos quais o racismo se imbrica nas tecnologias digitais através de processos “invisíveis” nos recursos automatizados como recomendação de conteúdo, reconhecimento facial e processamento de imagens.(SILVA, 2019, p.3)
Poderíamos citar diversas pesquisas que se preocupam também em entender esses problemas de automação dos algoritmos (e a entrega de conteúdo publicitário) relacionados a outros recortes sociais como o caso das mulheres e conteúdos machistas, a comunidade LGBTQIA+ e conteúdos homofóbicos, entre tantos outros erros de algoritmos que, por sua vez, foram programados por alguém, e portanto, também possuem enviesamentos na sua programação.
Nesse sentido, a professora Meredith Broussard, da Universidade de Nova York, explica que "algoritmos são projetados por pessoas, e as pessoas incorporam seus preconceitos inconscientes neles. Se assumirmos que a discriminação é o padrão, podemos projetar sistemas que trabalhem no sentido de noções de igualdade"11 (BROUSSARD, 2018, p. 334). Gostaríamos de nos atentar a essa questão para analisarmos, então, as transformações no campo da publicidade a partir de agora.
Como percebemos, temos pesquisas que já debatem extensivamente, no campo do jornalismo e da publicidade, como os dados e algoritmos podem ser armas de discriminação inconsciente. Contudo, temos poucos estudos que se preocupem em entender também internamente (no âmbito da produção das mensagens) como esses dados são tratados, e não apenas relegando às plataformas de mídia e empresas de tecnologia a responsabilização por dados enviesados.
Gostaríamos de retomar o que dissemos no início deste tópico, sobre a falta de representatividade de minorias e grupos minorizados nos espaços de produção de mensagens publicitárias, agora com a apresentação de alguns dados: segundo pesquisa realizada pelo jornal Meio e Mensagem, entre as maiores agências do país, apenas 26% dos cargos em criação são ocupados por mulheres12. Em outra pesquisa, apenas sobre a área de planejamento, apurada pelo Grupo de Planejamento de São Paulo13, 96% das agências não possuem em seus quadros pessoas com deficiência. 64% delas não tem negros em suas equipes. Em relação a concentração geográfica, 40% das agências respondentes não têm pessoas oriundas de lugares fora do eixo Rio/São Paulo, e 85% dessas agências não tem profissionais com mais de 50 anos.
Portanto, conforme a indústria da publicidade começa a se utilizar de dados como base criativa e estratégica, e se denominar como uma indústria data-driven como vimos, é ainda mais urgente que avaliemos as constituições das equipes que analisam e se valem desses dados no momento de criar e representar a sociedade em seus produtos midiáticos.
Um habitus atualizado ou em atualização
nterseccionando o que vimos a partir de Bourdieu e o conceito de habitus, e também as mudanças nas práticas publicitárias, podemos dizer que vemos um campo em transformação e que sugere traços de atualização na postura de agentes do campo. Estamos presenciando um habitus em movimentaçã
Interseccionando o que vimos a partir de Bourdieu e o conceito de habitus, e também as mudanças nas práticas publicitárias, podemos dizer que vemos um campo em transformação e que sugere traços de atualização na postura de agentes do campo. Estamos presenciando um habitus em movimentação na medida em que estamos acompanhando o desenvolvimento de novas práticas, sejam estas derivadas de questões técnicas, como as relacionadas aos processos de digitalização e de mediação algorítmica e de dados, ou ainda os que surgem a partir da sociedade, pela movimentação crítica na esfera da recepção, pelas práticas de contestação (WOTTRICH, 2017).
A partir das mudanças de ordem técnica que mapeamos sobre a atuação de jovens profissionais que buscam por reformulações nas práticas publicitárias - no que diz respeito a novos modelos de negócios ou formas mais sustentáveis e humanas de condutas no campo da publicidade - percebemos que
novas habilidades começam a ser demandadas dos profissionais nesses novos modelos de negócios [em publicidade], com cargos ainda em construção. Habilidades como: linguagem de programação, prototipagem e desenvolvimento de produtos são algumas que não eram exigidas dos profissionais de propaganda até então, o que faz com que as empresas precisem recorrer a outras disciplinas do conhecimento e também com que os profissionais que já compõem o campo precisem se adequar a essas novas características de trabalho. (SCHUCH, 2019, p. 90)
Assim, identificamos a aproximação de profissionais como cientistas de dados, programadores e programadoras que auxiliem na compreensão dos conceitos como big data, data intelligence, data mining,14 entre outros. Em reportagem ao jornal Meio e Mensagem, no ano de 201515, as maiores agências do país já afirmavam que estavam expandindo suas áreas de dados, e que, à época, já contavam com quinze profissionais em média nesses novos departamentos.
Atualmente é notório outro movimento acontecendo no campo: empresas que mapeamos em pesquisas anteriores surgem já com o objetivo de criar mensagens publicitárias totalmente orientadas por dados. Como é o caso da Soko, que se define como "uma empresa de earned media com base em dados que liga histórias de marcas a contadores de histórias em uma jornada em direção ao público certo"16. Ou seja, trata-se de uma empresa que já nasce com uma área de dados interna e que se propõe a criar mensagens publicitárias sem um plano de mídia paga, mas sim, criando campanhas que geram mídia espontânea, valendo-se de dados das próprias pessoas que consomem para comunicar com estas da melhor forma.
Assim, na medida em que vemos empresas surgirem no campo, já com a área de dados em sua estrutura interna - ao contrário do que temos acompanhado até então, quando esses departamentos eram implementadas ao longo da história das empresas - vemos também traços de atualização no habitus profissional desse campo, que naturaliza em seu comportamento a utilização de dados para alcançar objetivos de comunicação.
Considerações Finais
Neste artigo tivemos como intenção responder à seguinte questão: Quais são as atualizações que acompanhamos no habitus publicitário diante das transformações no cenário da publicidade contemporânea? Ainda que sejam necessários estudos mais amplos para chegarmos a uma resposta definitiva, fizemo-nos essa pergunta considerando, especialmente, as questões relacionadas à mediação dos algoritmos e processos em Big Data. Iniciamos a partir de uma revisão do conceito de habitus e da construção do entendimento de que, embora complexas e demoradas, atualizações no habitus são possíveis.
Depois disso, consideramos alguns pontos em específico que retomamos agora de modo mais sintético, procurando dar conta efetivamente da resposta pela qual procurávamos. Assim podemos dizer que as principais atualizações que acompanhamos são:
a nova geração da publicidade, que já apresenta aquilo que podemos chamar de um novo sensorium, como diz Martín-Barbero (2011) ao utilizar o conceito de Walter Benjamin, está mais disposta a adquirir novos conhecimentos técnicos e já possui uma sensibilidade mais aguçada para o manejo das tecnologias e dos dados;
- essa nova geração de profissionais na propaganda busca por novos conhecimentos e novas habilidades técnicas à profissão: essas habilidades técnicas estão relacionadas com os processos de digitalização e com o surgimento de novas tecnologias e na criação das mensagens publicitárias;
- as novas tecnologias de produção de mensagens publicitárias são mediadas por algoritmos e dados. Isso altera profundamente o fazer publicitário tendo em vista à quantidade de dados que podem ser coletados sobre a esfera da recepção;
- esses dados podem ser utilizados como fonte de insights - tanto no que concerne ao planejamento prévio de ações das marcas nas plataformas digitais, quanto para oferecerem direcionamento criativo - para profissionais de publicidade sobre o comportamento e o consumo dos usuários e das usuárias nessas plataformas;
- além disso, os dados favorecem a segmentação do público, direcionando as mensagens publicitárias de forma mais assertiva e com investimentos midiáticos muito mais orientados. Isso altera muito o fazer publicitário baseado em feeling, bastante comum em mercados e agências que não têm ou não conseguiam adquirir pesquisas de amplo espectro, em função do alto investimento necessário para essas aquisições;
- na nova geração de profissionais a prática publicitária passa a ser orientada por dados;
- com o crescimento do uso de dados, as agências de publicidade e empresas de comunicação passam a inserir em suas estruturas áreas especializadas na interpretação e apropriação de dados;
- o termo "data-driven" passa a ser incorporado no campo da publicidade;
- com a intensificação do uso dos dados, passamos a enfrentar problemas éticos relacionados a algoritmização e dataficação até então inexistentes no campo;
- campo esse que passa a perceber que os dados e algoritmos podem ser armas de discriminação;
- por esse motivo, fica ainda mais latente a necessidade de que o campo da publicidade avalie a constituição das equipes - procurando ter equipes mais diversas em termos de gênero, classe, raça e etnia e orientação sexual - responsáveis por analisar e se apropriar desses dados no momento de criar e representar a sociedade em seus produtos midiáticos;
- outra necessidade que fica evidente é a aproximação de profissionais de outras áreas como cientistas de dados, programadores e programadoras que auxiliem na compreensão dos conceitos como big data, data intelligence, data mining;
- em períodos mais recentes já acompanhamos o surgimento de agências e de empresas de comunicação que possuem a área de dados em seu DNA.
O fato é que os efeitos benéficos do surgimento de tecnologias e dos processos de digitalização da prática publicitária - pela assertividade na elaboração e no envio das mensagens, bem como pelo encurtamento dos períodos de produção - podem ser facilmente neutralizados pelos problemas éticos no manejo dos dados. Na propaganda isso é potencializado tendo em vista que identificamos um cenário homogêneo de pessoas e olhares, pois, como vimos, nosso campo sofre pela falta da diversidade. No entanto, o aspecto positivo que pode vir a contrabalancear é a possibilidade de renovação do campo da publicidade pela atuação de pessoas de uma outra geração que chega não apenas com conhecimento técnico e sensibilidade digital, mas também com um novo olhar sobre as práticas publicitárias.
Outro aspecto que pesa a favor dos efeitos benéficos dos processos de digitalização da publicidade é que, da mesma forma como temos uma nova geração de profissionais, temos também uma nova geração de pessoas que consomem os anúncios publicitários. Embora, essas pessoas hoje sejam lidas, com o auxílio dos dados, cada vez mais em sua individualidade, têm agido enquanto coletividade na defesa por uma melhor representação de si nesses anúncios:
Na contramão do jargão publicitário, em que ouvimos cada vez mais falar em uma individualização dos receptores, que agora podem ter seus hábitos seguidos e escrutinados a partir do big data, podemos dizer que uma marca das práticas de contestação é seu caráter coletivo (WOTTRICH, 2017, p. 258).
Assim, em uma visão bastante otimista, percebemos o delinear de novas vivências e outras visões de mundo a partir desses processos de atualização no habitus publicitário: uma geração mais engajada, mais empática, mais diversa, atuando a partir de um novo sensorium e com conhecimentos e técnicas digitais mais aprofundadas pode estar também mais disposta a processos de transformação e, assim, talvez, possamos nos comunicar melhor com uma nova geração que se apresenta também no âmbito da recepção, muito mais crítica e disposta ao debate com a publicidade.
Referências bibliográficas
BOURDIEU, P. Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.
. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
. Para uma sociologia da ciência. São Paulo: Edições 70, 2004.
. O campo econômico. Política & Sociedade, n. 6, p.15-58 (tradução de “Le champ économique”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 119, p. 48-66), 2005.
. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva. 2007a.
. Escritos de educação. Petropólis, RJ: Vozes, 2007b.
BROUSSARD, M. Artificial unintelligence: how computers misunderstand the world. Cambridge: MIT Press, 2018.
CARVALHO, C. M.; CHRISTOFOLI, M. P. . Da força das mídias ao poder do conteúdo: revisão de modelos de negócio na publicidade. E-Compós(Brasília), v. 18, p. 1-14, 2015.
COVALESKI, R. L. . Narrativas Publicitárias e Transmidiação: Consumo de Conteúdos Midiáticos. In: COMUNICON - CONGRESSO INTERNACIONAL EM COMUNICAÇÃO E CONSUMO, 2015, São Paulo SP. Anais... São Paulo SP: ESPM, 2015.
CORREA, R. S. ; HANSEN, F. ; PETERMANN, J.. Análise Crítica dos modelos de aprendizagem no ensino de criação publicitária: uma revisão metodológica. In: CONGRESSO INTERNACIONAL COMUNICAÇÃO E CONSUMO, 2016, São Paulo. Anais... São Paulo, 2016.
DIJCK, J; POELL, T; WALL, M; The Platform Society: Public Values in a Connective World. Londres: Oxford University Press, 2018
HANSEN, F. ; PETERMANN, J.; CORREA, R. S. Estratégias de trabalho docente no ensino de criação publicitária: a atividade de orientação como situação de aprendizagem. Texto (UFRGS. Online), v. 36, p. 163-182, 2016.
. Lugar discursivo e autoria: condições para experiências significativas no ensino de criação publicitária. In: XXXIX CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 2016, São Paulo. Anais... São Paulo, 2016b.
MANGI, L. C. M. Durável e/ou Modificável? Reflexões Acerca da Noção de Habitus em Pierre Bourdieu. In.: XXXVI Encontro da ANPAD, 2012, Rio de Janeiro. Anais do XXXVI Encontro da ANPAD. Disponível em:<http://www.anpad.org.br/admin/pdf/2012_EOR1020.pdf> .Acesso em 12 out. 2019
MARTÍN-BARBERO, J. Desafios culturais: da comunicação à educomunicação. In: CITELLI, Adílson Odair; COSTA, Maria Cristina Castilho (Org.). Educomunicação: construindo uma nova área de conhecimento. São Paulo: Paulinas, 2011, p. 121-134.
SILVA, I. S. ; TOALDO, M. M. . Publicitários + Anunciantes: a dinâmica de Uma Relação Complexa. 1. ed. Porto Alegre: Entremeios, 2010. v. 1. 146p.
SILVA, T. (2019). Racismo Algorítmico em Plataformas Digitais: microagressões e discriminação em código.
PETERMANN, J. Do sobrevôo ao reconhecimento atento: a institucionalização da criação publicitária, pela perspectiva do habitus e dos capitais social, cultural e econômico. 2011. 408f. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação). Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Unisinos, São Leopoldo, 2011.
PETERMANN, J. Uma grande cartografia - ou - Porque, você, estudante de publicidade, deveria começar a pesquisar hoje. In.: PETERMANN, J; FERNANDES, A; SCHUCH, L (orgs.) . Nós da Propaganda. Santa Maria, RS: FACOS - UFSM, 2019.
PETERMANN, J.; HANSEN, F. ; CORREA, R. S. Perspectivas do campo criativo e as práticas institucionalizadas no Ensino Superior de criação publicitária. Ação Midiática - Estudos em Comunicação, Sociedade e Cultura, v. 1, p. 1-16, 2013.
. Práticas no ensino de criação publicitária: entre a institucionalização e a busca por ludicidade. Animus (Santa Maria. Online), v. 14, p. 203-216, 2015.
Mobilização de repertório em disciplinas de criação publicitária: entre institucionalizações e sensibilizações. In: CONGRESO DE LA ASOCIACIÓN LATINOAMERICANA DE INVESTIGADORES DE LA COMUNICACIÓN, 13, 2016, Ciudade de Mexico. Anais... Mexico, 2016.
TOALDO, M. M.; RODRIGUES, A. I. . Publicidade multiplataforma? Processos de digitalização e configurações contemporâneas da atividade publicitária brasileira. In: PRÓ-PESQ PP - ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM PUBLICIDADE E PROPAGANDA, 6, 2015, São Paulo. Anais... São Paulo, 2015, p. 243-257.
MARTÍN-GUART, R. F. Y; FERNÁNDEZ CAVIA, J.: «La publicidad y la agencia de medios frente al cambio en el ecosistema mediático. [Advertising and media agency against the change in the media ecosystem]». Cuadernos.info, (34), 13-25, 2014
WOTTRICH, L. H. "Não podemos deixar passar": Práticas de contestação na publicidade no início do século XXI. Porto Alegre: UFRGS 2017, 323p. Tese.
Notas