Artigos

O impacto dos algoritmos no consumo de música uma revisão sistemática de literatura

The impact of algorithms on music consumption: a systematic literature review

El impacto de los algoritmos en el consumo de música: una revisión sistemática de literatura

Rose Marie Santini
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Debora Salles
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

O impacto dos algoritmos no consumo de música uma revisão sistemática de literatura

Signos do Consumo, vol. 12, núm. 1, pp. 83-93, 2020

Universidade de São Paulo

Recepção: 20 Janeiro 2020

Aprovação: 28 Janeiro 2020

Resumo: Os Sistemas de Recomendação (SR) são definidos como algoritmos que classificam e recomendam produtos culturais a partir de dados sobre as práticas e o comportamento dos usuários. O objetivo deste artigo é diagnosticar as consequências sociais e culturais dos algoritmos de recomendação de música como intermediários culturais on-line, examinando como e até que ponto eles afetam a percepção cultural, a classificação da música, a formação do gosto, o comportamento do ouvinte e a escolhas dos usuários. Realizamos uma revisão sistemática da literatura para identificar e discutir a produção científica sobre as implicações sociais e culturais de tais algoritmos nas práticas de consumo de música. Foram obtidos 311 artigos a partir de pesquisas bibliográficas em nove diferentes bases de dados científicos. Nossa análise crítica indicou quatro abordagens temáticas principais exploradas pela comunidade científica sobre esse tema entre 2000 e 2016: 1) O papel dos sistemas de recomendação na indústria fonográfica; 2) Impacto dos serviços de streaming no download de música; 3) Viés na classificação e recomendação de conteúdo; e 4) Consumo de música como recurso social. Os resultados revelam a lógica da intermediação cultural via sistemas de recomendação no mercado da música: esses algoritmos influenciam, modelam e mapeiam os gostos e hábitos dos usuários em um ambiente aparentemente livre, diversificado e ao mesmo tempo personalizado.

Palavras-chave: Algoritmos de recomendação, Streaming, Intermediários Culturais, Revisão Sistemática de Literatura, Indústria da música.

Abstract: Recommendation Systems (RS) are defined as algorithms that classify and recommend cultural products based on data about users’ practices and behavior. The purpose of this research is to diagnose the social and cultural consequences of music recommendation algorithms as online cultural intermediaries, examining how and to what extent they affect cultural perception, music classification, taste formation, listener behavior and user choices. We conducted a systematic literature review to identify and discuss the scientific production on the social and cultural implications of such algorithms in music consumption practices. 311 articles were obtained from bibliographic searches in nine different scientific databases. Our critical analysis indicated four main thematic approaches explored by the scientific community on this topic between 2000 and 2016: 1) The role of recommendation systems in the music industry; 2) Impact of streaming services on music download; 3) Bias in the classification and recommendation of content; and 4) Consumption of music as a social resource. The results reveal the logic of cultural intermediation via recommendation systems in the music market: these algorithms influence, model and map the tastes and habits of users in an apparently free, diverse and personalized environment.

Keywords: Recommendation algorithms, Streaming, Cultural Intermediaries, Systematic Literature Review, Music industry.

Resumen: Los sistemas de recomendación (SR) son definidos como algoritmos que clasifican y recomiendan productos culturales basados ​​en datos sobre las prácticas y el comportamiento de los usuarios. El propósito de este artículo es diagnosticar las consecuencias sociales y culturales de los algoritmos de recomendación musical como intermediarios culturales online, examinando cómo y en qué medida afectan la percepción cultural, la clasificación musical, la formación del gusto, el comportamiento del oyente y las eleciones de los usuario. Realizamos una revisión sistemática de literatura para identificar y discutir la producción científica sobre las implicaciones sociales y culturales de tales algoritmos en las prácticas de consumo de música. Fueran obtenidos 311 artículos por búsquedas bibliográficas en nueve bases de datos científicas diferentes. Nuestro análisis crítico indica cuatro enfoques temáticos principales explorados por la comunidad científica sobre este tema entre 2000 y 2016: 1) El papel de los sistemas de recomendación en la industria de la música; 2) Impacto de los servicios de streaming en la descarga de música; 3) Parcialidad en la clasificación y recomendación de contenido; y 4) Consumo de música como recurso social. Los resultados revelan la lógica de la intermediación cultural com el uso de los sistemas de recomendación en el mercado de la música: estos algoritmos influyen, modelan y mapean los gustos y hábitos de los usuarios en un ambiente aparentemente libre, diverso y al mismo tiempo personalizado.

Palabras clave: Algoritmos de recomendación, Streaming, Intermediarios culturales, Revisión sistemática de literatura, Industria de la música.

Introdução

A internet oferece atualmente o maior e mais diverso catálogo de música que se tem conhecimento. Entretanto, diante da grande variedade de opções, um número considerável de indivíduos carece de informações e competência cultural suficiente para selecionar e tomar decisões sobre o que ouvir. Alguns autores, como Resnick e Varian (1997), Ansari, Essegaier e Kohli (2000) e Adomavicius e Tuzhilin (2005), explicaram o surgimento de Sistemas de Recomendação (SR) como resposta ao excesso de informações disponíveis na Internet. Este sistemas, no entanto, não apenas ajudam a pesquisar, classificar e recuperar informações, mas também apresentam e representam o conteúdo de maneiras específicas que moldam as descobertas dos usuários (MORRIS, 2015).

As primeiras aplicações comerciais de SR começaram a se tornar populares nos anos 2000. Porém, o uso de algoritmos no mercado musical, em que cada música que ouvimos ou pulamos é rastreada e inserida em um algoritmo, é um desenvolvimento recente, com implicações consideráveis na dinâmica de como o gosto musical de diferentes públicos é formado e modelado (PREY, 2016).

Nas ciências da computação e da informação, os sistemas de recomendação são geralmente definidos como sistemas que classificam e recomendam produtos culturais. Seus algoritmos funcionam a partir de dados sobre as práticas e o comportamento dos usuários. Baseando-se em aprendizado de máquina e inteligência artificial, os SR registram buscas e hábitos de usuários para fornecer recomendações de produtos semelhantes ou relevantes em plataformas comerciais online de acordo com cada perfil. Como os sistemas de recomendação não são possíveis sem os algoritmos de recomendação, esses dois termos são usados como sinônimos (KARAKAYALI; KOSTEM; GALIP, 2018).

Para as ciências sociais, esses sistemas são considerados mediadores que moldam a comunicação entre os usuários e o ecossistema cultural. Karakayali, Kostem e Galip (2018) argumentam que, combinando o papel de intermediários culturais com a personalização algorítmica, os sistemas de recomendação não podem ser reduzidos a um mero código ou plataforma: é preciso considerar seu poder mediador de organizar e dar sentido as informações culturais.

O objetivo deste artigo é diagnosticar as consequências sociais dos algoritmos de recomendação de música como intermediários culturais online. Coletamos resultados de estudos empíricos para examinar como e em que medida os sistemas de recomendação musical moldam ou modificam a percepção cultural, a classificação musical, a formação do gosto, o comportamento do ouvinte e a tomada de decisões. Realizamos uma revisão sistemática de literatura, seguida de uma meta-síntese (MCFERRAN; GARRIDO; SAARIKALLIO, 2016), para mapear e analisar qualitativamente a discussão sobre este tema até o ano de 2016.

Algoritmos como novos intermediários culturais no consumo de música

Seguindo uma abordagem bourdieusiana, os intermediários culturais são formadores de opinião que definem o critério de bom gosto em um determinado mercado. Eles realizam operações críticas, produzindo significado, promovendo o consumo, construindo legitimidade e agregando valor a bens e práticas específicas (MATTHEWS; MAGUIRE, 2014). Esses intermediários atuam como “banqueiros simbólicos” (BOURDIEU, 1980) de todos os tipos, que mediam e contribuem para estabelecer padrões de gosto e recomendar bens e práticas culturais.

A produção cultural depende da “criação do consumidor”, ou seja, depende da criação de gostos, necessidades e crenças nesses bens. Segundo Bourdieu (1993), para evitar uma análise “econômica” reducionista, é necessário examinar os processos sociais de mediação através dos quais as indústrias culturais podem impor seus produtos, artistas, obras, gêneros e estilos, ajudando a estabelecer as necessidades e gostos de uma determinada época e mercado. Portanto, a recomendação de bens simbólicos tornou-se um fenômeno onipresente no campo cultural desde o surgimento da mídia de massa. Diferentes tipos de intermediários moldaram ativamente o gosto cultural do público, como críticos, jornalistas, colunistas especializados e rótulos da indústria, marcas e prêmios, e a própria curadoria de conteúdo para transmissão de rádio e TV.

Atualmente, os SR se tornaram os novos intermediários culturais, absorvidos pelos maiores grupos de multimídia e gigantes da tecnologia. As plataformas mais populares usadas para acessar produtos culturais, como YouTube, Amazon, Spotify, Pandora, Tidal, Netflix, Facebook e Twitter, são baseadas em algoritmos de recomendação que provaram ser a maneira mais eficaz para gerenciar e controlar a oferta e a demanda de conteúdo online (FAIRCHILD, 2014). Os produtores de conteúdo estão orientando progressivamente suas estratégias de produção e circulação em direção às plataformas de recomendação e seus algoritmos (NIEBORG; POELL, 2018).

Esta revisão de literatura tem como objetivo identificar os caminhos explorados até o momento no que diz respeito à inserção de algoritmos na vida cotidiana dos usuários, com o poder de direcionar como os produtos, as pessoas e as empresas são apresentadas, medidas e percebidas nas plataformas online. Lidar com o poder dos algoritmos apresenta muitos desafios, incluindo a natureza oculta e extremamente técnica da maioria de suas operações (GILLESPIE, 2014). Assim, é necessário fazer um levantamento da pesquisa empírica sobre como os algoritmos estão sendo incorporados à nossa cultura e como eles produzem significado diante de um certo modo de experimentação do mundo.

Método

Revisões Sistemáticas da Literatura (RSL) são indicadas para responder a uma pergunta específica ou testar uma hipótese, identificando, avaliando e sintetizando estudos empíricos relevantes (PETTICREW; ROBERTS, 2006). Portanto, a pergunta de pesquisa que guiou o processo de coleta de dados é: Quais são as implicações sociais e culturais dos sistemas de recomendação de música como intermediários culturais on-line?

A partir de palavras-chave decorrentes da nossa questão de pesquisa, estipulamos e aplicamos uma expressão de busca a nove bancos de dados científicos, escolhidos com base na reputação, escopo e cobertura temática: Library and Information Science Abstracts (LISA), Library, Information Science and Technology Abstracts (LISTA), Sociological Abstracts (ProQuest CSA), SocINDEX with Full Text (EBSCO), IEEE Xplore, Web of Science, Scopus e SAGE Journals Online. A pesquisa foi realizada no final de 2016 e resultou em 311 documentos. Foram excluídos itens duplicados e selecionados 272 artigos publicados em periódicos ou anais de congressos entre 2000 e 2016.

A seleção dos estudos empíricos primários resultou em 36 artigos e baseou-se em um processo de codificação de título, palavras-chave e resumos realizados pelas duas autoras. Dois critérios de seleção foram definidos para garantir que os artigos selecionados fossem relevantes para a nossa questão de pesquisa. Primeiramente, foram excluídos os trabalhos que não se concentraram nas plataformas de recomendação de música. Em segundo lugar, foram excluídos os estudos focados apenas em questões técnicas, como protótipos de SR e avaliação de métodos e técnicas computacionais de sistemas ou algoritmos de recomendação.

Os artigos foram posteriormente avaliados em termos de qualidade metodológica e científica, a fim de reduzir o viés e fortalecer as evidências fornecidas pela revisão (PETTICREW; ROBERTS, 2006). Com base em uma lista de critérios adaptados de Najafabadi e Mahrin (2016), pontuamos os artigos de acordo com a clareza dos objetivos, métodos, resultados e limitações de cada um dos estudos primários. Durante a avaliação da qualidade, 10 artigos foram reconsiderados irrelevantes para o escopo e dois artigos foram excluídos por apresentar baixa qualidade metodológica. Ao final desse processo, 24 artigos permaneceram no corpus de análise.

Para consolidar as evidências primárias, realizamos uma meta-síntese, uma análise interpretativa, indutiva e iterativa para categorizar temas com base nas semelhanças, diferenças e relações (PETTICREW; ROBERTS, 2006). A meta-síntese, baseada na identificação de tópicos importantes ou recorrentes na literatura produziu quatro abordagens temáticas que são apresentadas e discutidas nas seções seguintes.

Análise dos estudos

Uma vez selecionados os artigos relevantes, eles foram compilados de acordo com os metadados da publicação dos estudos e com as abordagens metodológicas e temáticas. O primeiro artigo relevante foi publicado em 2002, mas um crescimento considerável no número de publicações sobre o tema só começou uma década depois, em 2012, o que coincide com a popularização global desses sistemas entre os usuários da Internet.

Conforme indicado por McFerran, Garrido e Saarikallio (2016), utilizamos uma abordagem iterativa para gerar uma sintetização crítica da literatura disponível. Alguns estudos abordam questões muito diferentes, como a relação entre música, sistemas de recomendação e educação (COX, 2007), as contradições entre sistemas gratuitos e pagos e suas consequências (MÄNTYMÄKI; ISLAM, 2015), a relação entre música, feminismo e espaço público (WERNER, 2012) e as possibilidades de intermediação cultural e criação de um significado social dos SR (HAGEN, 2016). Porém, identificamos quatro enfoques principais nos artigos: 1) O papel dos sistemas de recomendação na indústria fonográfica; 2) Impacto dos serviços de streaming no download de música; 3) Viés na classificação e recomendação de conteúdo; 4) Consumo de música como recurso social.

O papel dos sistemas de recomendação na indústria fonográfica

A indústria da música foi profundamente afetada pelas plataformas digitais que agora representam 50% da receita do mercado global de música (IFPI, 2017). Embora as gravadoras estejam investindo em algoritmos de recomendação, a substituição, a transição e a competição entre os formatos ainda são questões em aberto na indústria da música.

Meneses (2012) analisa o impacto de sistemas de streaming nas vendas de música on-line e off-line. Já Freire (2008) discute a possível substituição de estações de rádio tradicionais pelo SR nos processos de descoberta de música e formação de gosto. Ambos os autores argumentam que os serviços de streaming usavam a ideia do rádio como metáfora para legitimar as recomendações na fase inicial de expansão e popularização das plataformas de streaming de música.

A respeito do papel dos serviços de streaming como fonte ou ameaça à receita da indústria, o streaming parece ter um efeito positivo nas vendas de discos off-line, funcionando como um tipo de publicidade ao promover a venda de músicas (LEE et al., 2016). A pesquisa de Wlömers e Papies (2016) mostra como essas plataformas estão canibalizando outros formatos, atuando como um substituto para o consumo de discos e não apenas como uma ferramenta de descoberta de músicas para compras subsequentes de produtos. No entanto, a adoção de sistemas pagos tem um efeito positivo em termos de receita geral para a indústria da música, compensando os efeitos negativos do streaming gratuito.

Por outro lado, Hiller (2016) indica que o YouTube tem dois impactos importantes no consumo de música: tem um efeito negativo substancial na venda dos álbuns e aumenta a exposição das músicas à possíveis consumidores. Nguyen et al. (2014) sugerem que o streaming gratuito afeta positivamente a participação em shows ao vivo realizados por artistas cujas músicas estão disponíveis nessas plataformas. Os pesquisadores argumentam que o streaming é, portanto, um modelo de consumo que funciona a favor da indústria da música, diferentemente dos serviços de compartilhamento de arquivos P2P.

Portanto, o efeito do streaming nas vendas de música é um tópico comum entre os estudos mencionados, mas os resultados divergem: Lee et al. (2016) argumentam que o streaming tem um efeito positivo nas vendas de discos de música off-line; Nguyen et al. (2014) indicam que não há efeito nas vendas; enquanto Wlömers e Papies (2016) e Hiller (2016) apontam que as plataformas de streaming têm um efeito negativo nas vendas. Essas diferenças podem ser causadas pelas escolhas metodológicas, diferenças culturais locais e/ou seleção das amostras analisadas.

Kjus (2016) argumenta que, diante das novas condições de consumo, os distribuidores não apenas mudaram a forma como disponibilizam a música, mas também reivindicaram novas funções como intermediários culturais ao desenvolver diferentes formas de comunicar e experimentar a música. Além disso, os consumidores de música estão confiando mais em serviços de streaming, buscando informações sobre música em múltiplas plataformas e mídias, valorizando os algoritmos para descoberta de músicas e, mais importante, estão cada vez mais desapegados das compras físicas (LEE; CHO; KIM, 2016).

Pouco é mencionado sobre o pagamento royalties, jabá, seleções, curadoria e recomendações tendenciosas dos catálogos e playlists. Portanto, os serviços de streaming são claramente vistos como uma resposta eficaz da indústria da música à crise da pirataria e ao compartilhamento P2P.

Impacto dos serviços de streaming no download de música

Sete artigos analisados buscam entender o comportamento do consumidor, on-line e off-line em relação aos modos de acessar e compartilhar conteúdo. Estes estudos indicam que os usuários apreciam as recomendações fornecidas pelos algoritmos, mas como aponta Caetano (2016), esses sistemas atuam como novos gatekeepers, limitando e definindo a exposição à música online.

Por exemplo, o estudo de Im e Jung (2016) identifica como as diferentes formas de consumo de música na Coréia do Sul - seja a compra de CD, o download legal e ilegal e o streaming - são influenciadas pelas diferentes características dos consumidores locais. Já Dörr et al. (2013) demonstram que a intenção do consumidor de usar sistemas pagos é influenciada pelos seus círculos sociais próximos, enquanto a atitude em relação ao streaming gratuito é uma escolha pessoal. Outros fatores que tornam o streaming mais atraente são o desejo de receber recomendações algorítmicas de músicas, o modelo de assinatura e as vantagens tecnológicas dos SR em comparação às plataformas ilegais.

Borja, Dieringer e Daw (2015) identificam que os jovens usuários de streaming têm mais probabilidade de baixar músicas ilegalmente. Os autores também indicam que a influência dos colegas é essencial para entender a pirataria: uma vez que existe uma percepção generalizada no círculo social de que a pirataria é uma prática ilícita menor, aumenta a probabilidade de ser praticada. Borja e Dieringer (2016) ao questionarem se os serviços de streaming são percebidos como um substituto ou facilitador da pirataria, indicam que o streaming gratuito complementa a pirataria e coexiste com as plataformas de download ilegal.

Sinclair e Green (2016) discutem como a experiência do consumo de música on-line migrou do uso ilegal de plataformas P2P para serviços legais de streaming. Os autores identificaram quatro tipos diferentes de consumidores de música on-line: “ex-downloaders” (movidos por utilidade e conveniência, trocam downloads por streaming), “mixed-tapes” (apresentam sentimentos conflitantes sobre pirataria e apresentam consumo misto), “piratas inabaláveis” (baixam conteúdo ilegalmente, com um grande volume de consumo, vasta competência tecnológica e ausência de sentimento de culpa) e “old-schoolers” (não baixam músicas ilegalmente e consumem música principalmente através de suportes físicos).

Viés na classificação e recomendação de conteúdo

Cinco artigos discutem como os algoritmos podem influenciar a classificação e recomendação de conteúdo nos serviços de streaming, já que os parâmetros de classificação musical são uma questão crucial para o funcionamento dos sistemas. Santini (2013) demonstra que os usuários classificam as músicas de acordo com sua conveniência de uso, em termos de contexto, identidade ou distinção social. No entanto, a indústria organiza a oferta de acordo com seus próprios interesses: ganhar escala e, ao mesmo tempo, controlar os diferentes nichos de mercado. A autora conclui que existe uma lacuna entre a percepção do ouvinte e os padrões comerciais da classificação da indústria.

Webster et al. (2016) discutem o papel dos atores tecnológicos e humanos no funcionamento dos sistemas. Baseando-se nas abordagens teóricas de Pierre Bourdieu e na teoria do ator-rede de Bruno Latour, os autores argumentam que o capital cultural acumulado pelos intermediários culturais, sejam humanos ou tecnológicos, é necessário para a recomendação musical. Assim, a "autoridade" cultural dos usuários é construída a partir das suas interações e relações sociais, enquanto os algoritmos operam como uma espécie de "ordem superior" objetiva.

Stumpf e Muscroft (2011) apontam que o contexto de consumo deve ser considerado pelos algoritmos de recomendação uma vez que os usuários compartilham conceitos circunstanciais para descrever músicas. Downie e Cunningham (2002) analisam as buscas por informações relacionadas à música postadas por usuários em um fórum de discussão online. O estudo sugere que a análise da dinâmica de busca de informações pode ser útil para o desenvolvimento de interfaces de recomendação mais eficazes e para indicar resultados mais adequados às necessidades específicas dos usuários.

Por fim, muitas recomendações parecem adotar uma lógica de “jabá digital”, na qual as gravadoras fazem acordos comerciais para incluir suas músicas nas playlists. Essas recomendações são sugeridas como se fossem escolhidas pelos critérios “objetivos e neutros” dos algoritmos, sem nenhuma indicação para o consumidor de que são patrocinados. Essa antiga prática do jabá atualizada no mundo digital se torna ainda menos detectável e livre de qualquer regulamentação. Pouco sabemos sobre suas consequências e a opacidade dos critérios de mediação dos algoritmos de recomendação representam uma vulnerabilidade fundamental da curadoria de música on-line.

Consumo de música como recurso social

Outro aspecto importante na lógica dos algoritmos de recomendação é o papel da música na sociabilidade. Håkansson et al. (2007) demonstram que o uso dos sistema de recomendação entre os membros de um grupo social intensifica suas interações sociais. Hagen e Lüders (2017) examinam os aspectos pessoais e sociais do consumo de música em rede, no qual os usuários incorporam uma "consciência social" mesmo quando não há opção de compartilhamento. Laços fortes, fracos e ausentes também são relevantes no que diz respeito ao processo de descoberta de novas músicas. Estas pesquisas reforçam que a sociabilidade nas plataformas de streaming permitem a conexão e, consequentemente, a influência entre os consumidores.

Considerações finais

Esta revisão sistemática de literatura indica que as pesquisas empíricas sobre os efeitos dos sistemas de recomendação no consumo de música e as implicações sociais de seus algoritmos são mais especulativas do que rigorosas. Identificamos, por exemplo, poucos artigos que tratam do impacto desses sistemas na formação de gostos musicais e nas estratégias de distinção social. Há também pouca discussão sobre o impacto dessas plataformas na própria produção cultural e no processo social de atribuição de valor artístico às obras, que envolvem questões relevantes para a Sociologia da Arte e a Economia Política da Cultura.

Entre os estudos empíricos analisados, a maioria corresponde a pesquisas quantitativas com usuários, mas utilizam amostras pequenas selecionadas por conveniências. Não encontramos estudos comparativos entre diferentes países. Também permanece inconclusivo se as plataformas algorítmicas de streaming aumentam ou diminuem a prática do download ilegal gratuito e a venda legal de músicas.

Existem poucos estudos críticos sobre como os algoritmos de recomendação funcionam. Há uma demanda por pesquisas que investiguem os efeitos dos algoritmos no comportamento e crenças dos consumidores, incluindo a análise dos riscos de vigilância e controle desses sistemas para fins comerciais. A maioria dos estudos se debruça sobre o sistema Spotify, mas suas características são tratadas de maneira genérica, como se fossem equivalentes ou representativas dos algoritmos de recomendação em geral.

Várias plataformas fornecem serviços de recomendação que identificam conteúdos “relevantes” para cada usuário, influenciando diretamente as escolhas e os comportamentos dos consumidores de música. No entanto, a determinação do que é relevante é um julgamento fluido, baseado em métricas parciais de acordo com os interesses dos desenvolvedores dos algoritmos. Portanto, os donos dos algoritmos definem os resultados que desejam e os engenheiros ajustam o algoritmo para atingir tal resultado (GILLESPIE, 2014).

Os sistemas de recomendação foram desenvolvidos como uma sofisticada solução sócio-técnica e econômica, não apenas para lidar com o excesso de informação, mas também para a gestão e controle dos mercados culturais. Como uma nova classe de serviços que trata bens culturais como software, Morris (2015, p. 452) os chama de infomediários: “entidades organizadoras que monitoram, coletam, processam e reembalam dados em uma infraestrutura informacional que molda a apresentação e representação de bens culturais”.

O presente estudo mostra que várias questões permanecem em aberto diante da pesquisa do campo: em que medida as pessoas usam a Internet para cultivar hábitos culturais pré-existentes? As práticas de consumo de massa são reproduzidas nos ambientes on-line? Até que ponto estamos testemunhando uma real "fragmentação dos públicos", uma vez os algoritmos e o big data estão forçando a multiplicação dos segmentos e nichos de forma controlada? Ou esses sistemas ajudam os usuários a explorar a variedade de opções, ampliando suas práticas culturais e tornando os gostos mais abertos e diversificados?

Para cada uma das possibilidades, é preciso investigar a lógica social envolvida, suas causas e motivações, por meio de pesquisas empíricas rigorosas. Portanto, há uma ampla agenda de pesquisa a ser desenvolvida que deve abordar as consequências desses sistemas tanto no domínio ético, econômico, político, social e cultural, bem como no escopo da própria produção artística.

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