Resumo: O colecionar é uma forma especializada de comportamento do consumidor. O presente artigo, que usa como referencial teórico principal Belk (1995), Garcia-Canclini (2006), Guimarães, Souza Leal e Mendonça (2006) e Lipovetsky e Serroy (2015), demonstra como o colecionismo de estátuas e figuras de ação proporciona uma experiência estética e contribui para uma vida estetizada. Um levantamento bibliográfico e revisão da literatura são os procedimentos metodológicos empregados para revelar que esse tipo de coleção corresponde a um processo ativo, seletivo e apaixonado de adquirir e possuir coisas percebidas como parte de um conjunto de objetos de memória. A partir da interação de componentes cognitivos e emocionais do colecionador com os objetos de coleção, desencadeia-se sentimentos carregados de sentido simbólico. O artigo traz como contribuição a revelação da prática do colecionismo em interface com a cultura pop e conclui que o poder de evocação sentimental dos objetos de coleção proporciona uma imersão estetizada do consumo, surgindo como uma forma de expressão e cultura hedônica individualista.
Palavras-chave:ColecionismoColecionismo,Experiência estéticaExperiência estética,EstetizaçãoEstetização,MemóriaMemória,NostalgiaNostalgia.
Abstract: Collecting is a specialized form of consumer behavior. This article, which uses Belk (1995), Garcia-Canclini (2006), Guimarães, Souza Leal and Mendonça (2006) and Lipovetsky and Serroy (2015) as the main theoretical framework, demonstrates how the collection of statues and action figures provides an aesthetic experience and contributes to an aestheticized life. A bibliographic survey and literature review are the methodological procedures used to reveal that this type of collection corresponds to an active, selective and passionate process of acquiring and possessing things perceived as part of a set of objects of memory. From the interaction of the collector's cognitive and emotional components with the objects of collection, feelings loaded with symbolic meaning are triggered. The article brings as a contribution the revelation of the practice of collecting in interface with pop culture and concludes that the power of sentimental evocation of the objects of collection provides an aestheticized immersion of consumption, emerging as a form of expression and individualistic hedonic culture.
Keywords: Collecting, Aesthetic experience, Aesthetization, Memory, Nostalgia.
Resumen: Coleccionar es una forma especializada de comportamiento del consumidor. Este artículo, que utiliza Belk (1995), García-Canclini (2006), Guimarães, Souza Leal y Mendonça (2006) y Lipovetsky y Serroy (2015) como el marco teórico principal, demuestra cómo la colección de estatuas y figuras de acción proporciona una experiencia estética y contribuye a una vida estética. Una encuesta bibliográfica y una revisión de la literatura son los procedimientos metodológicos utilizados para revelar que este tipo de colección corresponde a un proceso activo, selectivo y apasionado de adquisición y posesión de cosas percibidas como parte de un conjunto de objetos de memoria. A partir de la interacción de los componentes cognitivos y emocionales del coleccionista con los objetos de la colección, se desencadenan sentimientos cargados de significado simbólico. El artículo aporta como contribución la revelación de la práctica de coleccionar en interfaz con la cultura pop y concluye que el poder de la evocación sentimental de los objetos de colección proporciona una inmersión estética del consumo, emergiendo como una forma de expresión y cultura hedónica individualista.
Palabras clave: Coleccionismo, Experiencia estética, Estetización, La memoria, Nostalgia.
Artigos
A experiência estética no consumo de coleções um estudo sobre colecionadores de estátuas e figuras de ação
The aesthetic experience in the consumption of collections: a study about collectors of statues and action figures
La experiencia estética en el consumo de colecciones: un estudio sobre coleccionistas de estatuas y figuras de acción

Recepção: 16 Julho 2019
Aprovação: 25 Outubro 2019
Coleções estão em toda parte, fazendo-se presente no cotidiano das pessoas, em todas as culturas e países (BELK, 1995; McINTOSH e SCHMEICHEL, 2004). O ato de colecionar está na gênese da civilização humana (MARSHALL, 2005). Este artigo versa sobre a temática do colecionismo como um processo de adquirir e possuir coisas de forma ativa, seletiva e apaixonada, e que proporciona ao colecionador uma experiência estética e ao mesmo tempo estetizada na qual há uma interrupção do fluxo do cotidiano, do corriqueiro, da rotina e da automatização das experiências cotidianas (GUIMARÃES, SOUZA LEAL e MENDONÇA, 2006).
Assim, colecionar algo não apresenta uma função utilitária. Baudrillard (2006) ilustra tal aspecto afirmando que o ato de colecionar vai além do atendimento de necessidades funcionais, em que estruturas mentais se misturam com dimensões culturais e transculturais embasadas no cotidiano do indivíduo, mas que transcendem as aparências de objetos corriqueiros, estabelecendo-se uma relação sacralizada com esses objetos ou experiências. É um tipo de consumo classificado por Garcia-Canclini (2006) como um processo ritual, ou seja, que serve para expressar desejos e fixar significados através dos objetos materiais, dar sentido a valores simbólicos por meio de objetos. As estátuas e figuras de ação colecionáveis acabam sendo objetos artísticos que se tornam o medium de uma presentificação de experiências estéticas (GUIMARÃES, SOUZA LEAL e MENDONÇA, 2006).
As estátuas e figuras de ação se inserem no contexto da cultura pop, expressão essa que tem origem diretamente das artes plásticas, mais especificamente da chamada Pop Art dos anos 60. A cultura pop é uma representação artística que tem grande difusão na mídia e que aspira atingir um público maior, permeando elementos culturais que se popularizaram. Ao longo dos anos, a cultura pop agregou elementos do universo da música, da televisão, do cinema, das histórias em quadrinhos, entre outros, disseminando temas da arte e do entretenimento de forma massiva (KOBAYASHI, 2009). Portanto, o colecionismo de estátuas e figuras de ação pertence ao universo da cultura pop e envolve a compra e o consumo de objetos temáticos diversos que transitam pelo universo da fantasia, da ficção científica, da música, dos games, das histórias em quadrinhos, dos Role Playing Games (RPGs), dos personagens famosos e clássicos de séries de televisão e de cinema (como Star Trek ou Star Wars).
As estátuas colecionáveis (vide figura 1) são peças que reproduzem personagens diversos da ficção literária, cinema, games, histórias em quadrinhos, entre outros, feitos geralmente de polystone e coldcast (tipos de resinas plásticas misturadas com pó de porcelana utilizadas para moldar as esculturas), PVC, chumbo ou bronze, combinados muitas vezes com outros materiais (como, por exemplo, aplicação de cabelo humano e roupas de verdade), em diferentes escalas de tamanho - por exemplo, life size (tamanho real), escala ¼ (45 cm) ou 1/6 (30 cm).
Já as figuras de ação colecionáveis são peças articuladas (vide figura 2) que reproduzem personagens diversos, feitas geralmente com resinas plásticas, combinadas com outros materiais (como tecidos) e acompanhadas de acessórios (por exemplo, bases, mãos e pés extras para trocar, armas). Em figuras de ação não existe uma padronização de tamanhos, sendo encontradas em diferentes escalas.
Este artigo objetiva demonstrar que o colecionismo de estátuas e figuras de ação oferece a seus colecionadores uma experiência estética e uma possibilidade de vida estetizada pelo consumo de massa, proporcionando um prazer estético a partir da interação de componentes cognitivos e emocionais do colecionador com os objetos de coleção suscetíveis de desencadear sentimentos, impressões e imagens carregadas de sentido simbólico, mobilizando a capacidade imaginativa do indivíduo. Como problema de pesquisa, o artigo investiga como objetos colecionáveis proporcionam uma experiência estética no indivíduo. Para isso, adotou-se como procedimentos metodológicos um levantamento bibliográfico e revisão da literatura sobre o tema. Foram consultadas diferentes bases de dados online disponibilizadas pela biblioteca da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) (Portal Periódicos CAPES/MEC, Emerald Insight, Web of Science, JSTOR, OECD Library, Elsevier Science, SAGE Journals, SPELL ANPAD, Scielo) para identificar artigos científicos, livros, monografias, teses e dissertações relacionados ao tema do colecionismo. Os artigos científicos identificados são ou ensaios teóricos ou investigações empíricas qualitativas. No que diz respeito ao objeto de estudo desse artigo teórico – colecionadores de estátuas e figuras de ação – dois trabalhos foram identificados no Brasil: o primeiro é uma monografia de Dantas (2014), que faz uma análise netnográfica em grupos de Facebook, sobre o colecionador de action figures; o segundo é uma dissertação de mestrado de Silva (2015), do campo da Comunicação, que analisa a produção sígnica, a produção de memórias e práticas identitárias do fã-colecionador de estátuas e dioramas bishoujo (estátuas de personagens femininas com traços japoneses).
O artigo está organizado da seguinte maneira: a primeira parte discute a prática do colecionismo como forma de experiência estética. A segunda estabelece a relação das estátuas e figuras de ação colecionáveis como conteúdo e objetos da experiência estética. A terceira e a quarta parte do artigo tratam, respectivamente, das condições para que a experiência estética aconteça nesse tipo de coleção e os seus efeitos sobre o indivíduo colecionador. E a quinta parte discorre sobre os colecionáveis como objetos de memória midiática e nostalgia, seguida das conclusões e considerações finais.
Como fenômeno social, colecionar é um ato universal (TEIXEIRA, 2008), que acompanha o desenvolvimento da civilização e está presente entre as diversas culturas do mundo, com semelhanças e diferenças marcantes. A cultura exerce influência sobre o que é colecionável ou não, sobre a forma preferencial de se colecionar e sobre que aspectos do colecionar serão mais relevantes, mas não parece haver a princípio uma cultura mais propensa a colecionar do que outra (McINTOSH e SCHMEICHEL, 2004).
Uma coleção se inicia a partir da decisão do que se deseja colecionar. Belk (1995) afirma que muitas coleções começam com pouca ou nenhuma premeditação, como um acidente ou como a manifestação de um ato espontâneo e apaixonado, e às vezes como um processo fundamentado em alguma motivação específica. Na perspectiva de Garcia-Canclini (2006), o consumo de estátuas e figuras de ação colecionáveis pode ser enquadrado como fruto de necessidades sociais e culturais, em que há a elaboração psicossocial dos desejos. A apropriação dos produtos é carregada de valor simbólico, o qual prevalece sobre os valores de uso e de troca. Esses objetos colecionáveis resultam daquilo que Lipovetsky e Serroy (2015) chamam de cultura estética de massa, na qual novos valores celebrados pela sociedade de consumo (hedonismo, ludismo, divertimento) proliferam em bens materiais impregnados simbolicamente de valor emocional. O colecionador assume uma persona de Homo aestheticus: a coleção é um componente estético que adquire relevância pois é um vetor importante para a afirmação identitária do indivíduo, configurando-se em uma estética autorreflexiva. Dessa forma:
A vida estetizada pessoal aparece como o ideal mais comumente compartilhado da nossa época: ele é a expressão e a condição do incremento do hiperindividualismo contemporâneo. À estetização do mundo econômico corresponde uma estetização do ideal de vida, uma atitude estética em relação à vida. Não mais viver, se sacrificar por princípios e bens exteriores a si, mas se inventar, estabelecer para si suas próprias regras visando uma vida bela, intensa, rica em sensações. (LIPOVETSKY e SERROY, 2015, p. 32).
Para se tornar parte de uma coleção um objeto deve ser reenquadrado como um colecionável (DANET e KATRIEL, 1989), ou seja, deve ser tratado como um objeto de apelo estético, que afeta as percepções sensoriais, de onde derivam respostas hedônicas. Cabe dizer que o entendimento do termo “estética” empregado ao longo de todo o artigo é aquele derivado do grego aisthesis e se relaciona com as percepções dos sentidos. Santaella (1994) reforça que a raiz grega aisth, no verbo aisthanomai, quer dizer sentir, não com o coração ou com os sentimentos, mas com os sentidos. Como aponta Arantes (2012), a experiência estética afeta a sensibilidade do indivíduo. Assim, o colecionador de estátuas e figuras de ação é um indivíduo faminto por experiências de fruições sensíveis.
As estátuas e figuras de ação colecionáveis são claramente desprovidas de função utilitária. Contudo, diferentemente de outros objetos de coleção (como, por exemplo, moedas, selos, canecas de café, papéis de carta, bonecas ou relógios) que acabam por perder sua utilidade para servir aos propósitos de uma coleção, as estátuas e figuras de ação já são concebidas e fabricadas como objetos colecionáveis. Não há uma função utilitária original desses objetos que se perdeu. Os colecionáveis não são considerados brinquedos e não foram feitos para se brincar. São colecionáveis concebidos para provocar os sentidos e promover um prazer estético pela apreciação dos objetos em si. Arantes (2012), citando Kant, afirma que o objeto estético é definido pelo sentimento por ele causado no sujeito que o percebe, em que o belo não pressupõe um julgamento dos sentidos, nem um julgamento logicamente determinado, mas sim um julgamento reflexivo que mobiliza a capacidade imaginativa do sujeito. Parece ser o caso com os colecionadores de estátuas e figuras de ação.
Na perspectiva dos estudos sobre consumo, Lipovetsky e Serroy (2015) afirmam que nenhum objeto, por mais banal que seja, escapa hoje da intervenção do design e de um trabalho estilístico ou estético, um estilismo que es estende até os territórios dos aromas, dos sons, das sensações tácteis e visuais. As estátuas e figuras de ação colecionáveis são aureolados pelo packaging (figura 3), pelo design, pelas esculturas faciais hiperrealistas das estátuas e figuras (figura 4), a fim de provocar o imaginário, as emoções e as vibrações hedonistas, seduzir pela imagem e pelo estilo das peças. O colecionismo de estátuas e figuras de ação seria uma forma de “artealização” ou, em outras palavras, uma estetização do consumo baseada em símbolos da cultura pop. Nas palavras de Lipovetsky e Serroy (2015, p. 71): “A meta não é a elevação espiritual do homem ou a realização da essência da arte, mas um consumo sempre novo de produtos culturais capazes de dar prazer, criar sonho, proporcionar uma satisfação imediata a todos.” É trabalhar de forma massificada um olhar, juízo e sensibilidade estética, idealizando sentimentos e alimentando o imaginário por meio de objetos comerciais, que representam ícones admirados pelos colecionadores, em que há a hibridização entre a indústria e a arte.
De maneira geral, a experiência estética proporcionada pelos objetos colecionáveis pode ser descrita a partir de quatro conceitos explorados por Gumbrecht (2006) e baseados em redes conceituais desenvolvidas por Kant, Heidegger e Seel, que remontam às origens das discussões filosóficas sobre a estética: 1) o conteúdo da experiência estética: são os sentimentos íntimos, as impressões e as imagens produzidas pela consciência do indivíduo; 2) os objetos da experiência estética: são as coisas suscetíveis de desencadear tais sentimentos, impressões e imagens; 3) as condições da experiência estética: são circunstâncias situacionais nas quais a experiência estética está baseada, ou seja, a distância fora da esfera do cotidiano, a interrupção do fluxo cotidiano e de propósitos práticos como condição universal para que a experiência estética se realize; e 4) os efeitos da experiência estética: são as consequências e as transformações decorrentes da experiência estética, que permanecem válidas além do momento exato em que ocorrem, isto é, a experiência estética quebra a rotina, o corriqueiro, proporcionando uma dimensão de beleza repentina e sentimentos de tranquilidade e serenidade.
De acordo com Guimarães, Souza Leal e Mendonça (2006), a experiência estética para Kant produz “sentimentos íntimos” de natureza diversa, uma “finalidade sem fim”, provocando um “prazer desinteressado”, que vai além dos propósitos cotidianos. As estátuas e figuras de ação que dialogam com a cultura pop proporcionam esses sentimentos íntimos, desinteressados e desvinculados da vida ordinária. A apreciação das estátuas e figuras de ação não tem um fim, mas mobilizam a capacidade imaginativa dos colecionadores pois a finalidade da forma é o que importa. Ao mesmo tempo, com argumentos menos transparentes, Heidegger chama de “terra” o conteúdo da experiência estética, isto é, a impressão de que se pode ver as coisas (os objetos colecionáveis, por exemplo) como o que são, de forma individual e tangível. Logo, as coisas não necessariamente desencadeiam uma experiência estética. É necessário que o objeto esteja associado ao conceito que lhe é atribuído, como diz Martin Seel em “Estética da Aparência” (GUIMARÃES, SOUZA LEAL e MENDONÇA, 2006). Assim, o colecionismo de estátuas e figuras de ação ganha apelo estético pois se associa a cultura pop apreciada e valorizada pelos colecionadores, sendo um gatilho para a fruição estética.
As estátuas e figuras de ação, como objetos da experiência estética, são as coisas que desencadeiam os sentimentos, impressões e imagens no colecionador (subjetividade que define o conteúdo da experiência estética). Esses objetos colecionáveis têm por finalidade exclusiva provocar a experiência estética. Essa experiência serve como abertura para a potencialidade criativa do sujeito materializada nos objetos de coleção e em sua organização e exposição. A exposição de uma coleção de estátuas e figuras de ação procura produzir um olhar estético, centrado nos prazeres dos sentidos, nas fruições da beleza das peças. A exposição dos colecionáveis torna-se um universo particular e multidimensional do colecionador, feito de sobreposições, de interpenetrações e transversalidades. Os objetos de coleção mesclam-se com o ambiente, tornam-se decoração, moda, arte e até peça de luxo pelo preço proibitivo de determinadas peças. Cria-se um “universo de vida” (LIPOVETSKY e SERROY, 2015). O prazer das formas e das cores dos objetos colecionáveis brincam com a originalidade da exposição, diferenciam-se em originalidade, valorizam a fantasia desejada pelo colecionador por intermédio do look dos objetos. As figuras 5, 6 e 7 são ilustrativas desses aspectos. Os ambientes das casas de cada colecionador transformam-se em ‘templos’ de adoração dos objetos colecionáveis, que são posicionados com evidente destaque, proporcionando uma imersão dos sentidos no universo da coleção.
Dessa forma, integra-se a experiência estética com a subjetividade do indivíduo. A experiência gerada pela coleção transcende as experiências ordinárias, o sujeito sente-se transformado; se constrói uma identidade expandida como “colecionador de...” (McINTOSH e SCHMEICHEL, 2004). Há uma conduta estética marcada pela intencionalidade de contemplar a coleção, em sua natureza apreciativa, cujo valor estético é intrínseco e não derivativo.
O colecionismo, que pode ser encarado então como uma prática de subjetivação, reverbera no cotidiano, a partir das formas simbólicas oriundas das estátuas e figuras de ação, que são tanto objetos artísticos como midiáticos (GUIMARÃES, SOUZA LEAL e MENDONÇA, 2006). Há um resgate de um imaginário infanto-juvenil e de nostalgia midiática, de heróis, magos, bruxas, vilões e guerreiros, imagens poderosas de ideias arquetípicas. O status icônico, simbólico, arquetípico de um personagem em uma peça de coleção serve como um avatar para o indivíduo. As estátuas e figuras de ação colecionáveis retratam imagens arquetípicas, sendo a maioria delas ligadas à figura mitológica do herói. Pode-se pensar que os colecionáveis traduzem mitologias modernas em estátuas e figuras de ação.
O arquétipo do herói é extremamente importante na psicologia jungiana. Segundo Campbell (1990), a trajetória do herói é o arquétipo de todos os mitos, pois apresenta uma denotação ideal pura: o prazer em superar o monstro das trevas, um triunfo longo e esperado do consciente sobre o inconsciente (JUNG, 2013). O herói atua como um símbolo de três ideais: o feito heroico, o lutar ao máximo para triunfar e ser aceito no Olimpo. Em última análise, o herói encena o sonho antigo do bem triunfar sobre o mal. Figuras arquetípicas colecionáveis em figuras e estátuas de ação incluem, por exemplo, heróis (o personagem Han Solo de Star Wars), vilões (o Coringa de Batman), o velho sábio (o mago Gandalf de Senhor dos Anéis) e a criança divina (o personagem Superman).
O indivíduo compra objetos icônicos para incorporar o simbolismo do arquétipo, e o usa na sua busca para construir o self e a sua identidade cultural e social (TSAI, 2006). O colecionador se expressa e se projeta na coleção, mas a representação simbólica da coleção introjeta no colecionador os significados inerentes aos itens colecionáveis. Os objetos colecionáveis são artefatos simbólicos ou arquetípicos adquiridos pelos colecionadores (ARNOULD e THOMPSON, 2005). Os itens colecionáveis dão concretude aos significados almejados pelos colecionadores, e em muitos aspectos os objetos por si só criam e transferem seus significados (MILLER, 2013) a quem os possui. Logo, os significados dos itens colecionáveis são apropriados (introjetados) pelos (nos) indivíduos (THOMPSON, 1997). Há o desejo do colecionador de ter materializado por meio da coleção os significados inerentes à personalidade, características, caráter, valores e atitudes dos personagens retratados nas peças colecionáveis, tornando-se parte de sua personalidade/psique.
Os colecionadores estabelecem as condições para que a experiência estética aconteça. Assim, a posse dos objetos de coleção permitirá ao colecionador exercer controle sobre os objetos desejados (DANET e KATRIEL, 1989), assumindo “rituais de possessão” (McCRACKEN, 1986). Como forma de exercer tal controle, o colecionador necessita de informação a respeito dos objetos do seu interesse, a fim de alcançar um nível de conhecimento que lhe confere um status de expert no tema da coleção. O colecionador reúne as informações necessárias para que o ato de colecionar aconteça, o colecionador parte para adquirir esses objetos. O que importa é focar e procurar um ou mais itens considerados importantes e desejados para fazer parte da coleção. É um processo de “namoro” com a ideia de possuir o objeto desejado.
Os colecionadores imaginam como eles se sentirão quando possuírem o objeto que expande e integra suas coleções, e como isso irá enriquecer as suas identidades enquanto colecionadores, direcionando-os a um self colecionador ideal. De acordo com a definição proposta por Belk (1995), colecionar algo é um processo ativo, constante, seletivo e apaixonado de adquirir e armazenar objetos, sem que os mesmos apresentem necessariamente uma função utilitária, e atribuindo-lhes status de objetos especiais de desejo. Assim, como um processo ativo, constante e seletivo, o colecionar exige esforço e dispêndio de recursos na “caça” a novos itens que irão compor a coleção. Os colecionadores frequentemente se referem uns aos outros como “caçadores”, e o processo de adicionar novos itens à coleção é conhecido como “a emoção da caçada” (OLMSTED, 1991), fazendo com que essa atividade seja central no comportamento do colecionador.
O processo de aquisição é tão importante quanto o produto adquirido, sendo a falta uma característica intrínseca das coleções. Logo, uma coleção nunca está completa ou é perfeita; ela necessita constantemente de novos itens que se integrem ao interesse temático, numa “caça” contínua para atingir a “perfeição” do tema escolhido. Belk (1995), Olmsted (1991) e Long e Schiffman (1997) reforçam que encontrar o item desejado é considerado o aspecto mais prazeroso do processo de colecionar. O desafio em procurar o objeto, fazer um bom negócio, negociar o preço e realizar a compra leva o colecionador a uma experiência de imersão (CSIKSZENTMIAHALYI, 1990).
Garcia-Canclini (2006) afirma que os bens materiais são acessórios rituais, já que os mesmos são um meio para a troca de significados entre grupos. Dessa maneira, as estátuas e figuras de ação são vetores de objetivação de desejos de reconhecimento e admiração entre os colecionadores, promovendo integração com os demais e, ao mesmo tempo, diferenciação social e distinção simbólica. O colecionar serve então para suprir necessidades individuais e necessidades de se pertencer a um grupo, em que cooperação, comparação e competição na posse de objetos são aspectos inerentes. Se um colecionador se compara a alguém que coleciona as mesmas coisas, isso pode ameaçar sua autoestima caso o outro colecionador possua uma coleção melhor (BELK, 1995). Contudo, toda coleção apresenta evidências tangíveis de que a coleção em si é única e autônoma (DANET e KATRIEL, 1989).
A sensação de concretização de um objetivo de coleção provoca um sentimento de autoeficácia (OLMSTED, 1991), elevando a autoestima do colecionador, como consequência e transformação decorrente da experiência estética. O objeto adquirido se incorpora à identidade do colecionador. Por meio da coleção, o colecionador consegue contar um pouco a respeito de quem ele é, do que realmente gosta. Baudrillard (2006) diz que sempre “colecionamos a nós mesmos”. Dessa forma, os objetos colecionáveis se identificam e se relacionam com a própria personalidade do colecionador, como uma extensão do seu eu (self). As coleções acabam se tornando representações do “eu”. Belk (1988) emprega o termo “self estendido” para incluir o papel das posses na identidade do consumidor, destacando que conscientemente ou não, intencionalmente ou não, as pessoas associam suas posses como partes delas mesmas. Uma coleção se transforma para o colecionador num discurso sobre si mesmo (BAUDRILLARD, 2006).
Aqui a noção de self significa que quanto mais o indivíduo acredita que possui ou é possuído por um objeto, mais esse objeto se torna parte do self. Quando se declara que alguma coisa é “minha”, também se passa a acreditar que o objeto “sou eu”. Os objetos agem como repositórios de memória que confirmam as identidades dos indivíduos. Logo, o eu estendido é importante na construção, manutenção e desenvolvimento de coleções (BELK, 1995). Conforme aponta Rochberg-Halton (1984, p. 335): “posses materiais... agem como sinais do eu..., e do mundo de significados que criamos para nós mesmos, e que cria a nós mesmos.”
Nos dias atuais, Lipovetsky e Serroy (2015) apontam que os objetos tendem a perder seu estatuto de marcadores sociais, pois são buscados mais como meios de promover satisfações hedonistas, lúdicas e experienciais. Segundo os autores (2015, p. 330):
Eis-nos numa nova era de consumo em que este funciona num registro mais emocional do que competitivo, mas experiencial do que honorífico, mais lúdico do que prestigioso. Menos corrida ao status, mais finalidades sensitivas, distrativas ou emocionais: assim, o capitalismo artista assiste ao triunfo de uma estética do consumo. Como já dizia Toffler, estamos numa era em que o comprador se tornou um ‘colecionador de experiências’, buscando incessantemente novas sensações e emotividades. Primazia das experiências sentidas e vividas: o neoconsumidor se caracteriza por essa relação estética com os produtos mercantis.
Com esse mundo marcado pelo consumo, o ser humano se expressa por meio de seus objetos e faz uso de suas posses materiais para procurar a felicidade, rememorar experiências, obter realizações e até mesmo criar um senso de imortalidade (BELK, BAHN e MAYER, 1982). As posses, vistas como símbolos do self (BELK, 1988), promovem uma estética do consumo centrada na subjetividade dos gostos e das sensações de prazer. O cultivo de qualquer tipo de coleção é um ato intencional de definição do eu e está associado a uma busca por bem estar emocional, servindo como um marcador de “pequenos prazeres” cotidianos. Busca-se, por meio de novidades mercantis, novas emoções, “impedir a fossilização do cotidiano, fruir da impressão de viver uma vida mais intensa, sempre nova.” (LIPOVETSKY e SERROY, 2015).
Dessa forma, os objetos de coleção proporcionam um “museu ou arquivo pessoal” que reflete as histórias, as mudanças de vida do indivíduo, seus gostos próprios, o que acha bonito ou agradável. Zwick e Dholakia (2006) chamam os objetos colecionáveis como “objetos de consumo epistemológico”. No que tange ao colecionismo de estátuas e figuras de ação, há a valorização de um consumo individualizado que insere um modo hedonista-estético voltado a um prazer contemplativo, lúdico, divertido e êfemero.
Com certa liberdade, pode-se dizer que o colecionismo como experiência estética se configura em um “prazer desinteressado”, no sentido de que o prazer obtido com a coleção independe dos propósitos e das funções que os indivíduos perseguem em seus mundos cotidianos (GUMBRECHT, 2006) ou de qualquer interesse de outro tipo (ético ou moral, por exemplo). A apreciação da coleção faz com que a experiência estética dependa das disposições e preferências individuais em um grau particularmente alto, ou seja, ela se manifesta no plano sensível como uma experiência autônoma. Sendo assim, o colecionismo de estátuas e figuras de ação pode desencadear a experiência estética, gerando uma ruptura, uma crise, uma quebra no fluxo do cotidiano, trazendo uma dimensão de beleza repentina e um sentimento de tranquilidade e serenidade ao colecionador.
Manipular, catalogar e expor os itens colecionáveis são determinantes críticos para garantir os efeitos da experiência estética, os sentimentos de posse e de expressão do self (FURBY, 1978; BELK, 1988). Catalogar proporciona ao colecionador um meio tangível de controlar a concretização dos objetivos de coleção. Manipular os objetos conforme o desejado pelo colecionador garante uma unicidade à coleção. E a exposição dos objetos assume um caráter ritualístico, já que o colecionador busca criar um contexto apropriado (espaço, iluminação, organização) para dispor os objetos. As coleções, e os itens que as compõem, são expostas de forma a valorizar os objetos frutos de admiração, compondo um mosaico de objetos colecionáveis sacralizados (NASIO, 1999). Objetos sacralizados são vistos como místicos e poderosos, merecendo um comportamento de devoção, em oposição aos objetos ditos profanos, comuns e ordinários (WALLENDORF, BELK e HEISLEY, 1988). Sob esse ponto de vista, objetos de consumo sagrado, embora seculares em sua natureza, são tratados da mesma maneira que ícones religiosos.
A importância que o colecionador dá ao tema da coleção tem um caráter sagrado (BELK, WALLENDORF e SHERRY, JR., 1989) pois os objetos incorporam qualidades que são valorizadas pelos colecionadores. Segundo Belk (1995), a perfeição de uma peça, a raridade, a exclusividade e a preciosidade de um item conferem uma aura de sagrado ao objeto colecionável, sendo a raridade a característica mais importante na composição de uma coleção.
No que diz respeito ao colecionismo de estátuas e figuras de ação, seria certamente forçoso afirmar que tais objetos colecionáveis possuem uma “aura” no sentido apregoado por Walter Benjamin. Os colecionáveis não são obras de arte – apesar do processo artesanal de muitas de suas partes e da pintura manual de muitas peças, a autenticidade e unicidade, que seriam características de um objeto aurático, escapam à reprodução técnica. A subjetividade é massificada - a experiência é serial e torna-se acessível a todos, já que os objetos de coleção tratam de temas da cultura pop e do mercado de consumo midiático. Contudo, é inegável o apelo artístico desses objetos e sua capacidade em fazer sentir, em estimular a apreciação, em estabelecer um valor estético para o colecionador. É uma estetização da vida baseada na realidade concreta do prazer individual do colecionador. As estátuas e figuras de ação surgem como exemplo da ascensão da estética como mercadoria. Os colecionáveis revelam uma aura de prazer em torno de objetos que usufruem de apelo sensível, os quais geram um estado de plenitude e deleite sensorial, emocional e mental no indivíduo (BELK, 1995).
Segundo Belk (1988), o processo de colecionar envolve uma carga proveniente de experiências nostálgicas, sejam elas pessoais ou históricas, uma volta cognitiva e emocional a um passado com significado positivo e especial. As posses que evocam memórias nostálgicas crescem na medida em que se acumulam experiências do passado e se reduzem o estoque de experiências prazerosas que podem vir a ocorrer no futuro. Os indivíduos acabam propensos a valorizar as posses que trazem boas memórias.
A nostalgia surge como um processo de memória emocional (HOLAK e HAVLENA, 1998; STERN, 1992) e cognitiva (BELK, 1990), manifestando-se tanto como uma nostalgia ‘pessoal’ ou ‘histórica’ (HIRSH, 1992; BAKER e KENNEDY, 1994; MARCHEGIANI e PHAU, 2010). A nostalgia pessoal refere-se a um passado lembrado pelo indivíduo (“do jeito que eu era”), vista como um reflexo idealizado do passado e manifestada por uma associação distintiva e ‘agridoce’ de um passado em que não se pode mais voltar (BAKER e KENNEDY, 1994; HOLAK e HAVLENA, 1998; HIRSH, 1992). Já a nostalgia histórica é gerada de um momento da história que o indivíduo não experienciou diretamente (“do jeito que era”). A nostalgia histórica ou situacional se explica como aquela em que há o desejo de se identificar com uma era, um objeto, um lugar ou uma pessoa, em que há um conjunto de traços e valores que são aderentes a uma personalidade ideal. Esse tipo de nostalgia é também referenciado como nostalgia simulada ou indireta (STERN, 1992), em que os sentimentos nostálgicos por um objeto são baseados em fontes externas que não fazem parte da experiência direta do indivíduo.
A nostalgia é capaz de revelar uma variedade de respostas emocionais, como excitação, prazer, alegria, gratidão, afeto e inocência, misturadas com um certo sentimento de melancolia e de perda (HOLAK e HAVLENA, 1998). A nostalgia é descrita como um desejo individual pelo passado, um anseio pelo ontem (HOLBROOK, 1993), que envolve todas as pessoas, independentemente de idade, gênero, classe social ou outros grupos sociais (MARCHEGINAI e PHAU, 2010).
Baudrillard (2006) indica que o interesse por coleções geralmente surge como compensação em fases críticas da vida, mais nitidamente na infância ou ao atingir a maturidade, fazendo com que as posses colecionáveis comuniquem, construam e redefinam o eu (self). Desde a infância começa-se a colecionar objetos e experiências (BARBOZA, SILVA e AYROSA, 2011).
Os objetos colecionáveis reafirmam as memórias saudosas do passado e estabelecem um resgate de boas lembranças da infância. O colecionador reconstrói e revive o seu passado, fazendo com que as peças adquiridas estejam carregadas de afeto e paixão tanto na aquisição como na manutenção dos objetos colecionados (SLATER, 2002; OLIVER, 1999; MUENSTERBERGER, 1994).
De acordo com Lipovetsky e Serroy (2015, p. 245-246), “restabelecendo o tempo como dimensão sensível, o produto conta uma história, suscita emoções, reaviva as cores da memória.” No caso das estátuas e figuras de ação, os colecionáveis tornam-se objetos carregados de memória, que proporcionam “o doce prazer da nostalgia, sentir os arrepios da lembrança, a felicidade de mergulhar de volta nos ‘velhos tempos’, de reviver mitos e lendas.[...] ao desejo de reviver instantes pessoais, sentir afetos, se experimentar a si mesmo por meio de lembranças seletivas e pessoais (LIPOVETSKY e SERROY, 2015, p. 248-249).
A importância da memória de afetos acionada pelo consumo das estátuas e figuras de ação é reforçada por Nunes (2015), já que os personagens retratados nos colecionáveis, queridos e desejados pelos colecionadores, são a materialidade que fala de um tempo por vezes idílico, por vezes dramático, da memória afetiva, familiar, que é também acionada pela memória midiática, havendo um casamento entre as memórias autobiográficas e a coletiva das representações midiáticas.
Este artigo procura demonstrar que o colecionismo é fortemente relacionado a um consumo comprometido com o sentir – uma conexão apaixonada por uma temática específica que promove uma experiência estética, hedônica, lúdica, nostálgica, simbólica e arquetípica.
Belk (1988) aponta que o processo de colecionar envolve experiências nostálgicas, sejam elas pessoais ou históricas, como uma volta cognitiva e emocional a um passado especial. Os objetos colecionáveis evocam memórias de afetos (NUNES, 2015) e são valorizados por conta disso. A subjetivação dos ícones da cultura pop nas estátuas e figuras de ação é associada por uma nostalgia claramente infanto-juvenil. Estudos futuros decorrentes desse artigo sobre coleções da cultura pop em seus temas e imaginários poderiam investigar se existem outros processos de subjetivação não infantilizados, como forma de confirmar se é uma especificidade desse tipo de coleção ou não.
As coleções também surgem como extensões do self do colecionador mas ao mesmo tempo traduzem arquétipos que são introjetados no self dos colecionadores. Assim, o colecionismo influencia na projeção da identidade do indivíduo (self estendido) e na introjeção de ideias e imagens arquetípicas traduzidas nos itens colecionáveis incorporados à identidade do colecionador (self arquetípico).
O poder de evocação sentimental dos objetos de coleção proporciona uma imersão fruitiva estetizada do consumo. Há um estado de plenitude sensorial, emocional e mental do colecionador, o que fomenta a sensibilidade ao belo, o apetite das novas e contínuas sensações e experiências (LIPOVETSKY e SERROY, 2015).
O colecionismo surge como uma cultura hedônica individualista que cria significados por meio de objetos simbólicos de representação – as estátuas e figuras de ação -, e produz uma forma de expressão e experiência autônoma, desencadeando um mundo que se parece com o colecionador e a sua subjetividade.