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ONDE VIVEM OS OBJETOS:A COMPOSIÇÃOMÁGICO-TOTÊMICADA NARRATIVA PUBLICITÁRIANA CAMPANHA “A REVOLUÇÃO NA SUA GARAGEM”DA MARCA HONDA

Where objects live: the magical-totemic composition on Honda´s advertising narrative "The revolution in your garage"

Donde viven los objetos: la composición mágico-totémica de la narrativa publicitaria en la campaña “La revolución en tu garage” de la marca Honda

Hertz Wendel de Camargo
Universidade Federal do Paraná, Brasil
Aryovaldo de Castro Azevedo Junior
Universidade Federal do Paraná, Brasil

ONDE VIVEM OS OBJETOS:A COMPOSIÇÃOMÁGICO-TOTÊMICADA NARRATIVA PUBLICITÁRIANA CAMPANHA “A REVOLUÇÃO NA SUA GARAGEM”DA MARCA HONDA

Signos do Consumo, vol. 8, núm. 1, pp. 23-38, 2016

Universidade de São Paulo

Recepção: 30 Abril 2016

Aprovação: 15 Maio 2016

Resumo: A partir dos pressupostos dos estudos antropológicos do consumo – relacionados às estruturas mágico-totêmicas da narrativa publicitária – e das relações míticas entre o homem e o objeto, este artigo, em essência, apresenta uma interpretação plausível para um filme que compõe a campanha 2016 para o carro Honda HR-V, desenvolvida pela agência F/Nazca Saatchi & Saatchi, cujo mote é “A revolução na sua garagem”.

Palavras-chave: totem, consumo, narrativa publicitária.

Abstract: From the assumptions of the anthropological studies of consumption - related to magicaltotemic structures in advertising - and its mythical relationship between man and object, this article essentially presents an interpretation of the advertising film/video that represents Honda’s 2016 campaign “A revolução na sua garagem”, developed by the agency F / Nazca Saatchi & Saatchi for the Honda HR-V model.

Keywords: totem, consumption, advertising narrative.

Resumen: A partir de los presupuestos de los estudios antropológico del consumo – relacionados a las estructuras mágico-totémicas de la narrativa publicitária – y de las relaciones míticas entre el hombre y el objeto, este artículo, esencialmente, presenta una interpretación plausible para un film que compone la campaña 2016 para el auto Honda HR-V, creada por la agencia F/Nazca Saatchi & Saatchi, cuyo tema es “La revolución en tu garage”.

Palabras clave: tótem, consumo, narrativa publicitaria.

1. INTRODUÇÃO

Segundo Campbell (2008), o homem não consegue estar no universo sem acreditar em algum arranjo de herança mítica. Desta forma, entendemos que as narrativas midiáticas possuem em sua genealogia, a partir da sua evolução no tempo, traços das narrativas míticas, pois o mito representa “fonte dos textos e tramas da cultura” (Contrera 1996) já que o ambiente de mito foi a origem dos “ambientes de mídia” (Baitello Junior 2014). Por outro lado, o fascínio que hoje exercem os objetos da sociedade do consumo, especialmente os tecnológicos ou automatizados (os automóveis são um bom exemplo), tal qual a relação mágica entre o homem e os objetos de outrora (Baudrillard 2007), também caracteriza uma herança mítica.

O mito não é apenas uma narrativa antiga, ancestral, em relação às narrativas midiáticas atuais. O mito é um sistema formado pelo conjunto equilibrado entre narrativa, ritual, totem, tempo e magia, um sistema mítico (Camargo 2013). Esse conjunto, ou partes dele, se manifesta na mídia em diferentes suportes, linguagens, gêneros, discursos, storytellings, narrativas. No entanto, verifica-se que existe uma aderência “natural” entre mito e mídias essencialmente audiovisuais, tais como o cinema e a televisão, características exploradas pela publicidade na produção de filmes publicitários.

Para Rocha (2010), o totemismo como um sistema de classificação de elementos da natureza e, consequentemente, de pessoas e grupos sociais relacionados a tais elementos, não desapareceu em nossa cultura. O totemismo está presente no sistema da publicidade que dá biografia, personalidade e identidade a produtos (objetos) para inserilos na cultura como vivos, independentes, magicamente humanos. Os produtos, portanto, são objetos magicizados pela narrativa publicitária para serem cada vez mais semelhantes ao homem, em relação (narcísica) de fascínio identitário pelo produto.

Apresentados tais pressupostos, este artigo propõe um olhar sobre o filme publicitário “Garagem” (2016)[1] que compõe a campanha “A revolução na sua garagem”, desenvolvida pela agência F/Nazca Saatchi & Saatchi. No filme selecionado, é explorado o ponto de vista de uma garagem ao notar um novo carro estacionado dentro dela, o Honda HR-V. Ao buscar identificar os mecanismos semântico-argumentativos, discursivos e de significação relacionados ao sistema mágico-totêmico, empregamos a metodologia proposta por Vanoye & Goliot-Lété (1994) para a análise, já que se trata de um produto audiovisual de herança fílmica. Os autores propõem dois momentos analíticos: a decomposição do filme e a compreensão de como as partes isoladas estabelecem conexões para dar sentido ao todo. Deste modo, separamos o texto narrado no filme, permitindo desenvolver uma interpretação plausível de como o totemismo se manifesta por meio da textualização, promovendo a complementaridade entre natureza e cultura ao eliminar as características não humanas da garagem e agregar humanidade expressa por sua relação de admiração pelo produto. A antropomorfização da garagem garante que o espectador se identifique com ela em um processo de projeção narcísica e experimente seu lugar de sujeito. Por fim, o espectador tem sua atenção captada e direcionada para o produto.

2. MITO, NARRATIVA, RITUAL E TOTEM: UM SISTEMA MÍTICO

O senso comum sempre aponta o mito como uma narrativa antiga, ancestral, fábula, portanto, algo do passado e que deixou de existir no mundo moderno. Por outro lado, autores de diferentes áreas de conhecimento revelam por meio de suas investigações que os mitos estão vivos no âmago da cultura, seja no inconsciente coletivo (Neumann 1990; Jung 2000), nas relações com o imaginário (Durand 2001; Campbell 2007; Eliade 2010; Baudrillard 2009), nos textos midiáticos (Contrera 1996, 2008; Baitello Junior 2005), na linguagem (Cassirer 1992; Barthes 2001); e no consumo (Baudrillard 1991; Rocha 2006, 2008, 2010; Camargo 2013).

De maneira geral, podemos dizer que um dos papéis do mito é o de funcionar como roteiro para a interpretação das visões de mundo, comportamentos, espiritualidades, políticas, estéticas e organização social de determinados grupos humanos (tribos, cidades, sociedades, nações) em um dado momento histórico. Devemos, ainda, considerar que antes do dizer e do falar o ser e o sentir já faziam parte da espécie humana (Crippa 1975), ou seja, a formação do mito acontece antes mesmo do surgimento da linguagem, revelando um imaginário pulsante como uma realidade humana. Com o desenvolvimento da linguagem, o mito toma forma, enfim, nasce como narrativa. Lévi-Strauss (2008:224) postula que mito e linguagem são indissociáveis, pois “[...] o mito faz parte da língua, é pela palavra que o conhecemos, ele pertence ao discurso”. Portanto, enquanto fala, o mito possui uma estrutura que não apenas tende a se organizar em narrativa, mas a aderir às linguagens e suportes essencialmente estruturados em narrativas de sua época. No atual contexto histórico, os textos midiáticos formam uma teia de expressão para o mito. Barthes (2001: 132) amplia o campo fenomenológico do mito, saindo do campo da antropologia e adentrando a linguagem, quando afirma que “o discurso escrito, assim como a fotografia, o cinema, a reportagem, o esporte, os espetáculos, a publicidade, tudo isso pode servir de suporte à fala mítica”. Em outros termos, segundo Barthes (2001), o mito é uma linguagem que parasita outras linguagens, em contrapartida, também pode ser parasitado pelas narrativas midiáticas.

O mito é uma experiência singular da realidade, que se reveste de dimensões que ultrapassam a simples contação e descrição dos fenômenos culturais, psicológicos e históricos. Mais que palavra falada, narração ou fábula, o mito é proposição da realidade. A experiência mítica é uma experiência do real que se verifica num nível especial da consciência. Nível que corresponde a uma revelação (Crippa 1975: 41).

Conforme Durand (2001), o mito é um esboço de racionalização que utiliza o traço do discurso sobre o qual os símbolos se resolvem em palavras e os arquétipos em ideias e, quando analisado, o mito expõe uma estrutura ou um grupo de estruturas que serve para o estudo de ideologias, visões de mundo e terminologias de uma sociedade. No campo da antropologia, há uma vasta coleção de interpretações sobre as narrativas míticas já que, conforme Rocha (2008), para a interpretação do mito como forma de compreender um determinado sistema cultural, a antropologia faz uma analogia do mito com o contexto social. Dessa forma, o mito revela a psique de um grupo humano, sejam quais forem as complexidades desse grupo. Assim, podemos compreender o mito como texto passível de leitura e interpretação que revela tanto o momento histórico quanto as políticas e estéticas que determinam o estar-junto de um determinado grupo humano.

Para Morin (2005: 131), o sistema trata-se de “[...] uma inter-relação de elementos constituindo uma entidade ou uma unidade global” que possui “[...] duas características principais, a primeira é a inter-relação dos elementos, a segunda é a unidade global constituída por esses elementos em inter-relação”. A partir desse conceito e de sua aparente complexidade, o mito se mostra, globalmente, como o conjunto formado entre narrativa (mythós), ritual, totem, temporalidade e magia. Cada parte, em si, também constitui outro sistema. No entanto, voltaremos nossa atenção para o sistema totêmico, pois esse sistema, que compõe o complexo mítico, tem por essência tomar determinados elementos da natureza e transformá-los simbolicamente em signos que ocupam o imaginário cultural ao representar determinados grupos sociais. Tais signos são emblemas que se localizam no espaço entre natureza e cultura, promovendo, ao mesmo tempo a complementaridade de ambos e a classificação de coisas, pessoas, grupos e sociedades. O totemismo possui uma estreita ligação com a sociedade do consumo ao passo que, da mesma forma que os totens, os produtos ou referências em suas narrativas são objetos que traduzem em nosso tempo a complementaridade entre natureza e cultura, uma forma de classificação social dos consumidores, expressão do processo de antropomorfização e personalização do não humano, no protagonismo de mitos modernos emergentes das narrativas publicitárias.

3. SISTEMAS MÁGICO-TOTÊMICOS: O LUGAR DOS OBJETOS

Baudrillard (2007) apresenta uma grande contribuição para a interpretação das complexidades entre o homem e os objetos, uma relação moldada desde um passado em que imperava o pensamento mágico até os dias atuais em que produtos, gadgets, aparelhos, máquinas e robôs proliferam, nascem e morrem, encontrando um campo fértil para compor sua mitologia moderna. A proposição de Baudrillard não está na análise da criação de um novo objeto com uma nova funcionalidade, mas o quanto os objetos influem e modificam a nossa humanidade, nosso comportamento e “[...] nos processos pelos quais as pessoas entram em relação com eles e da sistemática das condutas e das relações humanas que disso resulta” (2007: 11).

Em um passado ancestral, no ambiente do mito, a relação do homem com os objetos era mágica. Por exemplo, no passado, um pedaço de madeira utilizado para produzir fogo não poderia ser visto apenas em sua utilidade, mas, também em sua essência simbólica, mágica (um presente dos deuses?), afinal, a fricção desse objeto em outro, produzindo calor a ponto de incendiar outros materiais, só poderia ser compreendida como mágica ou sagrada. Através da história, a conexão entre os objetos e a consciência humana se intensificou com as inovações tecnológicas, o que Baudrillard chamou de “delírio funcional”. Nesse nível, “[...] o objeto, longe das determinações objetivas, é desta vez tomado inteiramente pelo imaginário (2007: 121) “, pois há uma obsessão em criar sempre algo mais fantástico, criativo, inovador, ulterior aos limites da função e, por fim, da humanidade, traços de uma sociedade em que o consumo é um “[...] fato social que atravessa a cena contemporânea de forma inapelável” (Rocha 2005: 124).

O termo “gadget”, empregado por Baudrillard (2007) para designar as “parafernálias” e seus sentidos na contemporaneidade, especificamente os objetos que detêm tecnologia, resgata uma relação ancestral do homem com os objetos, tal qual uma volta ao paraíso perdido, mas de forma mais intensa. O autor destaca que o início desse processo se dá com o automatismo dos objetos. Primeiramente, os objetos tais como utensílios, ferramentas, móveis e o espaços de moradia refletiam a imagem/identidade do homem. Em um segundo momento, com o processo de automação, os objetos passam por outro tipo de antropomorfismo quando suas funções primárias e seus significados simbólicos são permutados por abstrações imaginárias resultantes do que Baudrillard (2007: 120) chamou de “funções superestruturais”, isto é, “[...] não são mais os gestos, sua energia, suas necessidades, a imagem de seu corpo que o homem projeta nos objetos automatizados, é a autonomia de sua consciência, seu poder de controle, sua individualidade própria, a idéia de sua pessoa”.

Desta forma, o homem coloca em primeiro plano a magia, a natureza pendular entre o real e o imaginário e, principalmente, a estética de tais objetos, deixando para segundo plano sua funcionalidade. Enfim, o automatismo abriu espaço para que os consumidores projetassem nos objetos compensações, supressões ou disfarces das falhas humanas. A narrativa publicitária opera produzindo discursos, criando estilos de vida, novos mundos que orbitam os objetos (produtos) e alimentam o imaginário a partir do seu consumo.

É aqui que aparece a vocação dos objetos ao papel de substitutos da relação humana. Na sua função concreta o objeto é solução de um problema prático. Nos seus aspectos inessenciais é solução de um conflito social ou psicológico. [...]. Se há um santo para todos os dias do ano, há um objeto para não importa que problema: a questão toda é fabricá-lo e lançá-lo no momento adequado. (Baudrillard 2007: 134, grifo do autor)

Essa relação de fascínio pelos objetos autômatos, independentes e que são uma extensão narcísica de nossa consciência é, se comparado ao passado remoto do homem, uma relação mágico-totêmica que persiste no contemporâneo. Everardo Rocha (2010) nos apresenta uma clara definição do papel do totemismo e como ele está presente na atual cultura por meio do sistema publicitário. Ao interpretar Lévi-Strauss (1975), Rocha explica que o totemismo, em essência, é uma forma de classificar coisas e pessoas, de pensar o mundo que foge às regras internas do pensamento da própria sociedade na qual foi criado.

O totemismo é um sistema de classificação que opera em diversas sociedades procurando manter uma complementaridade entre natureza e cultura. [...] a continuidade é obtida por meio de uma lógica que diferencia os seres humanos por identificá-los com elementos da natureza. A diferença está em que a nossa sociedade, desde os gregos, segregou a natureza na sua forma de conceber o cosmos. Nos sistemas totêmicos, ao contrário, existia uma junção, uma aliança, entre natureza e cultura. (Rocha 2010: 131-132)

Contrariando a afirmação levistraussiana de que o totemismo em nossas sociedades é apenas residual, Rocha (2010) compara o sistema tradicional do totemismo com o sistema publicitário, considerando o conceito de Lévi-Strauss (1975) sobre a natureza ser o espaço exclusivo do anti-humano, o lugar do outro e que a cultura se dimensiona dentro dos limites do Eu. Ao destacar que a definição de natureza é culturalmente construída e representa o espaço do não humano, Rocha (2010) destaca que uma das possíveis traduções dessa concepção de natureza, nos dias atuais, é a produção, espaço do impessoal, do anônimo, do indiferenciado, do não humano. “Assim, a questão do totemismo poderia ser vista, no pensamento burguês, como uma transcendência entre natureza e cultura, traduzidas em produção e consumo” (2010: 133, grifo nosso).

Nesse sentido, a produção, onde a matéria-prima que compõe o produto e o próprio produto – universo da materialidade impessoal, seriada, inanimada e do inumano – está em oposição ao universo do consumo, espaço da imaterialidade, do produto preenchido de alma, personalidade, valores emotivos, de humanidade. Segundo Da Matta (2010), o consumo realiza-se no processo de inserção do produto na sociedade e nos circuitos de trocas sociais, essencialmente simbólicos, nas relações humanas. Como sujeitos, as mercadorias ganham uma biografia, uma vida cultural própria, uma identidade, portanto, é “magicamente” humanizado. O sistema publicitário torna o produto o duplo de seus consumidores e apaga a essência não humana da mercadoria, alimentando o imaginário cultural com produtos (objetos autômatos) que falam, pensam, são performáticos, fotogênicos, enfim, um ser que “anda por si” (Baudrillard 2007: 120).

Por esse viés, Rocha (2010) conclui que a publicidade, tal como um operador totêmico, vincula os produtos às pessoas, os nomeia, os tornam identificáveis, humanos, para que se destaquem e sejam inseridos na cultura. O sistema publicitário transforma o produto em um totem, passando do status de objeto inanimado para algo autômato, com vida, personalidade e identidade singulares. O totemismo, antes de tudo, nega a separação entre cultura e natureza ao buscar a sua aliança, é “como por um tipo de exorcismo, a projeção, fora do nosso universo, de atitudes mentais incompatíveis com a exigência de uma descontinuidade entre o homem e a natureza” (Lévi-Strauss 1975: 15). A lógica do totemismo, proveniente de um tempo ancestral e dos espaços/ambientes do imaginário mítico, ganha sobrevida na lógica do consumo, que atualmente compõe o imaginário contemporâneo nos espaços/ambientes de mídia, a partir das narrativas publicitárias. Tais narrativas são mitificadoras de produtos que, assim como evidenciou Baudrillard (2007), são objetos imbuídos de consciência. Resta-nos questionar nosso corpus: em sua práxis, como se manifestam tais sistemas por meio da narrativa do filme “Garagem”?

4. A REVOLUÇÃO NA SUA GARAGEM

Desenvolvida pela agência F/Nazca Saatchi & Saatchi, a campanha 2016 para o novo SUV da Honda, o modelo HR-V, apresenta o automóvel com uma revolução na categoria, pois possui itens de tecnologia que o tornam um artigo de luxo como o console central elevado criando a sensação de um cockpit, retrovisores com rebatimento elétrico, maçanetas traseiras embutidas, freio de estacionamento eletrônico, painel multimídia multi-touchscreen de sete polegadas, entre outros itens de série. Um dos filmes da campanha é assinado pela produtora Killers com direção do Claudio Borreli, que reconstituiu cenas de momentos emblemáticos (revolucionários) da história, tais como o Woodstock, a Revolução Francesa e o comício de Martin Luther King em Washington.

Um segundo filme, intitulado “Garagem”, objeto de nossa análise, tem a narração de uma garagem como personagem que acompanhou várias revoluções que tiveram a garagem como espaço em que os primeiros passos de uma jornada foram dados, com referências claras a bandas de rock e grandes corporações de informática/tecnologia. A garagem, crente que nunca mais seria surpreendida, encanta-se com o Honda HR-V, superando suas expectativas. Ao descrever suas sensações em relação ao produto, a garagem destaca os principais atributos do carro, tem suas características não humanas apagadas para criar, narcisicamente, uma dada empatia com o espectador que se coloca no lugar da personagem e compartilha as mesmas sensações ao observar os detalhes que fazem do carro um produto revolucionário.

Antes de prosseguirmos, apresentamos o texto do filme narrado pela garagem, que ganha gênero (feminino), identidade (tem a voz de uma mulher jovem, mas experiente) e uma individualidade consciente de seu papel, sua história e sentimentos (ao falar do produto ela descreve sensações).

LOCUTOR 1: Prazer, eu sou a garagem. Que sorte tenho eu. Ouvi os primeiros acordes de grandes nomes da música. Eu fui palco de sonhos revolucionários. Vi enormes avanços da ciência e testemunhei invenções inacreditáveis. Já vi de tudo. Mas, volta e meia, ainda sou surpreendida. Meus olhos brilham, perco o chão. Depois de tantos anos eu sei quando estou diante de algo que muda tudo. LOCUTOR 2: Honda HRV, a revolução da sua garagem.

Os primeiros planos do filme apresentam um espaço interno de uma casa e logo os objetos em cena ganham um sentido de abandono, esquecimento e memória. Por meio do texto da locução que começa dizendo “Prazer, eu sou a garagem”, sabemos que são objetos esquecidos de uma garagem prestes a revelar histórias. Apresentado e reconhecido o espaço-personagem, a câmera, em travelling lento, desliza e mostra outros objetos esquecidos. É como uma incursão às memórias da garagem, um exercício de recordação por meio dos objetos, um olhar para dentro que também é o mesmo olhar do espectador/consumidor. Os objetos que fazem parte da memória da garagem também povoam (em espelhamento, como um duplo) a memória do espectador. Seu desejo é provocar o contraste entre o passado e o presente, representado pelos objetos de outrora (coleção de CDs, máquina de escrever, toca-discos, guitarra, quadros, ferramentas, computador que magicamente tem sua tela ligada, máquina fotográfica analógica) e pelo produto, objeto revolucionário que ocupa o centro da garagem (o coração dela?).

O filme apresenta a narração de uma personagem feminina que remete à imagem de uma mulher jovem, mas que passou por várias experiências, identificada a partir da locução (gênero e tom da voz). Apesar da qualidade da produção de imagens para o filme, sua força criativa está no texto e em sua locução, principalmente, por revelar uma garagem (objeto/moradia) como narradora de sua trajetória – objeto que, dentro da estrutura narrativa mágico-totêmica da publicidade, recebe trajetória, sentimentos, personalidade e um mito pessoal, este em forma de uma “jornada do herói” (cf. Campbell, 2007). Neste sentido, como sugeriu Vanoye & Goliot-Lété (1994), separamos do filme o texto da locução, pois ele apresenta escolhas estéticas, lexicais e de figuras de retórica que aproximam a garagem da antropomorfização necessária para ser “aclimatada” ao universo do consumo, torne-se “humana” e, dessa forma, alcance o efeito de sentido desejado pela agência de publicidade: prender a atenção, criar identificação e, por fim, persuadir o espectador sobre a qualidade do produto.

5. ANTROPOMORFIZAÇÃO NA PUBLICIDADE

Como estamos tratando de uma garagem que se torna sujeito por meio do texto da locução de um filme publicitário, recorreremos a uma parte da Linguística que contribui para os estudos do texto publicitário, a Semântica Argumentativa. Dentre diversos recursos argumentativos, os dêiticos (os diferentes pronomes) indicam o sujeito na enunciação. Segundo Fiorin (1996: 15), para entender o processo de discursivização, é necessário compreender os mecanismos de definem sujeito, tempo e espaço no discurso – comum a todas as línguas naturais. Para os estudos semântico-argumentativos, os dêiticos são signos exclusivamente linguísticos do discurso e não remetem a um objeto da realidade. Isso amplia a abstração atribuída às categorias de atores, espacialidades e temporalidades do discurso e abre espaço para a criação publicitária inserir lírica, retórica e imaginariamente significados que direcionam a interpretação do consumidor. No caso do filme em análise, essa abstração dos dêiticos permite à imaginação aceitar como sujeito um objeto personificado, contribuindo para prender a atenção e persuadir, pois trata-se, magicamente, de um objeto (a garagem) que ganha vida, que interpela o consumidor, que invade seu cotidiano para se assumir como um Eu e ocupar/impor sua centralidade em uma história enunciada.

Quando a publicidade funda um novo mundo por meio de sua narrativa, animais e, principalmente, objetos recebem o dom de viver, sentir, falar, dizer, ser. No texto do filme, a garagem é alçada à categoria de sujeito e é a partir do seu ponto de vista que o filme se constitui em discurso, pois, “[...] a enunciação é o lugar de instauração do sujeito e este é o ponto de referência das relações espaço-temporais [...]” (Fiorin 1996: 42). A partir do Eu (a garagem) são definidos o Você (o consumidor), o objeto (o produto), o tempo e as ações no espaço que levam à humanização da garagem. Os pronomes são, tradicionalmente, os dêiticos que apontam para os atores (quem fala e quem ouve) e para o espaço e o tempo que orbitam em torno dos sujeitos, sentidos criados e existentes dentro da enunciação.

Vale lembrar que os dêiticos não são os únicos recursos retóricos que auxiliam na argumentação do filme. Por exemplo, a indicação de gênero do sujeito/narrador se dá por meio do gênero do objeto (a garagem) e da voz feminina da locutora. A identificação de um sujeito entre 30/40 anos também se dá pela maturidade da voz, que expressa segurança, intensidade e forte personalidade reafirmada pela experiência de vida (fui palco de sonhos revolucionários, vi enormes avanços, testemunhei invenções). Portanto, voz feminina, segura de si, intensa e experiente são recursos argumentativos que só ganham sentido na elocução do filme o que nos faz ousar em afirmar que são uma tipologia diferenciada de dêiticos nascidos no campo midiático e ainda pouco estudada pelos estudos da linguagem.

QUADRO 1
ESCOLHAS LEXICAIS PARA O TEXTO: DÊITICOS
PRONOMESCOMO FORAM APLICADOS AO TEXTO DO FILME
Pessoais[...] eu sou a garagem. [...] tenhoeu. Ouvi os primeiros acordes [...]. Eufui palco de sonhos revolucionários. Vi enormes avanços [...] e testemunhei invenções [...]. Já vi de tudo. [...] ainda sousurpreendida. [...] perco o chão. [...] eu sei quando estou diante de algo que muda tudo.
PossessivosMeus olhos brilham [...].
Verbos flexionados no tempo da primeira pessoa do singular, indicando o sujeito EuOuvi, vi, testemunhei, sousurpreendida, perco, estou.
os autores.

Os verbos são marcadores de ações humanas que, ao serem subordinados ao sujeito “garagem”, por si só, configuram a antropomorfização da garagem. Destacamos do texto os seguintes verbos exclusivamente humanos praticados pela garagem.

QUADRO 2
AÇÕES HUMANAS NO PROCESSO DE ANTROPOMORFIZAÇÃO
AÇÃO HUMANACOMO FOI APLICADA AO TEXTO DO FILME
Ser[...] eu sou a garagem. [...] ainda sou surpreendida.
TerQue sorte tenho eu.
OuvirOuvi os primeiros acordes de grandes nomes da música.
VerVi enormes avanços da ciência [...]. Já vi de tudo.
Testemunhar[...] testemunhei invenções inacreditáveis.
Perder[...] perco o chão.
SaberDepois de tantos anos eu sei quando [...].
Estar[...] estou diante de algo que muda tudo.
os autores

Junto às ações da garagem decorrentes da enunciação, indicadores atitudinais sugerem, em sua maioria, uma descrição do mundo interior da personagem (sua psique), seus sentimentos, suas posições políticas, sua visão de mundo. No texto, eles surgem como um significado construído no efeito de sentido de frases, expressões e não tanto como um signo específico. Os indicadores atitudinais também estão presentes nas imagens que mostram o interior do veículo. Como se a garagem olhasse por dentro, sentasse no carro, circulasse por dentro do produto, fazendo do seu olhar o olhar do espectador, por meio do recurso da câmera subjetiva. Os indicadores atitudinais, mais representativos no texto, são:

QUADRO 3
INDICADORES ATITUDINAIS
INDICADORES ATITUDINAISCOMO FORAM APLICADOS AO TEXTO DO FILME
Estabelecer contato com o espectadorPrazer, eu sou a garagem.
Sentir-se privilegiadaQue sortetenho eu.
Sentir-se importante, ser coadjuvanteEu fui palco de sonhos revolucionários.
SurpresaMas, volta e meia, ainda sou surpreendida.
AdmiraçãoMeus olhos brilham, perco o chão.
os autores

Desta forma, as escolhas lexicais dos criadores do filme para o texto narrado são signos que, de modo claro, compõem o tropo (figura de retórica) conhecido como prosopopeia, também chamado de personificação. O objetivo retórico da prosopopeia é “[...] intensificar o sentido, um alargamento do alcance semântico de termos designativos de entes abstratos ou concretos não humanos pela atribuição a eles de traços próprios do ser humano” (Fiorin 2014: 51). A prosopopeia, portanto, é um poderoso recurso argumentativo que em poucos segundos é capaz de ampliar os sentidos do objetogaragem, alçando-o à condição de humanidade no filme, do começo ao fim, promovendo a identificação necessária para o espectador experimentar imaginariamente sua posição, estar no seu lugar e perceber as qualidades do produto literalmente através dos “olhos” da garagem.

6. CONCLUSÃO

Lévi-Straus (1975: 18) afirma que o totemismo é definido pela conjunção de três elementos, sendo um social, um psicológico e um ritual. Nessa concepção, no filme “Garagem” temos como elemento social a garagem, plenamente humanizada e inserida na cultura por meio da narrativa publicitária. O elemento psicológico se estabelece na ligação íntima do consumidor com a garagem e, posteriormente com o produto. O ritual acontece, durante a recepção da mensagem publicitária e pelo aceite voluntário da mensagem do filme como um reflexo das próprias experiências, a ponto de provocar recordações pessoais e emoções.

O filme publicitário é, simultaneamente, parte do processo de climatização do produto, no universo do consumo, e objeto visual igualmente consumido. Como mercadoria imagética, o filme publicitário traz o imaginário para o mundo real, naturaliza o irracional ou possibilita o impossível, como ouvirmos a garagem “narrar” sua história pessoal e admirar um automóvel. “Os sistemas mágico-totêmicos privilegiam a estrutura e a permanência. Seu projeto é o de não pensar o tempo como linearidade, é o de desfazer o tempo como história” (Rocha 2010: 135). Tanto no mito como no filme publicitário, percebemos a transformação do histórico (o real) em natureza eterna e atemporal, o mesmo efeito de sentido do mito de outrora.

Diferente da publicidade impressa, a narrativa audiovisual publicitária já é dada como acontecimento visual com determinada duração no tempo. O tempo que dura o filme publicitário na tela de televisão, o tempo da recepção, é sempre presente. A verossimilhança entre o texto audiovisual e a realidade é um dos fatores que compõem a eficácia mercadológica e semiológica do filme publicitário: durante o ritual da recepção, o filme é um mito de discurso despolitizado, já que “o mito não nega as coisas; a sua função é, pelo contrário, falar delas; simplesmente, purifica-as, inocenta-as, fundamentaas em natureza e eternidade, dá-lhes uma clareza, não de explicação, mas de constatação” (Barthes 2001: 163).

O texto do filme em questão, do começo ao fim, opera com dêiticos, verbos e indicadores atitudinais (entre outros recursos argumentativos) que permitem ao consumidor projetar-se imaginariamente no lugar da garagem, pensar e, no fim, ter a certeza que os sentimentos relatados, as experiências vividas, o apelo às memórias e o calor humano emanado do filme são exata e narcisicamente os mesmos que ele sente.

As escolhas lexicais e os tropos (figuras de retórica) somados às imagens em sequência compõem uma experimentação da garagem que é, em aspectos visuais, sonoros e discursivos, muito próxima da experimentação do consumidor ao deparar-se com o produto em sua garagem ou em uma loja. Em outros termos, o filme forma um mapa mental pelo qual o consumidor percorre imaginariamente consumindo imagens, signos e discursos que representam sua própria experiência. Ao olhar para o filme na tela, assim como Narciso que no mito descobre a própria face no espelho d’água, nos vemos representados pelo discurso e olhar da garagem que percorre o produto. O drama existencial da garagem passa a ser o nosso próprio drama: nascer, viver, orgulhar-se do que viveu (ou não), esquecer, rememorar e, quando podemos incluir nessa trajetória o envelhecer e a morte, o filme da campanha propõe admirar o novo e ser feliz, voltar a viver. As memórias da garagem são um tipo de jornada idealizada narcisicamente pelo consumidor, em outros termos (Rocha 2010: 172): “[...] o anúncio é uma narrativa codificada em palavras, cores, movimentos, imagens, etc., que pode ser vista como sagrada. É uma narrativa idealizada que fala de uma ‘outra vida’ e viabiliza um conjunto de feitos mágicos. É um mito”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAITELLO JUNIOR, N. A era da iconofagia: ensaios de comunicação e cultura. São Paulo: Hacker Editores, 2005.

_____. A imagem e os ambientes de imagens: o mito, o culto, a arte e a mídia. Palestra. Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e Imagem (ENCOI). Dia 24 de novembro de 2014. Organização: Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Estadual de Londrina (PPGCOM/UEL).

BARTHES, R. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1991.

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CAMARGO, H. W. Mito e filme publicitário: estruturas de significação. Londrina: Eduel, 2013.

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Notas

[1] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=f2qGH4UOLsU
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